1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 17 de Janeiro de 2011:
Caros Luís, Carlos, Briote, Magalhães e restantes atabancados.
Quando pensamos na infância e percurso dos miúdos que mal saíam da escola tinham que ir trabalhar, vimos a diferença com o dias de hoje.
Os filhos eram os servos baratos nos campos da família, iam para as fábricas, para as lojas como marçanos, todo dia com a cesta a fazer entregas, e muitos os pais pagavam do seu bolso a aprendizagem nas oficinas.
Foram mais estes, dos que tiveram condições de estudar e quando chegaram à idade do serviço militar, lá foram lendo mal e escrevendo pior.
É para esses meninos esta estória.
Um Abraço
Juvenal Amado
Mosteiro de Sta. Maria de Alcobaça. Foto com mais de 40 anos, mas este traçado existiu até há pouco tempo. Agora é só pedra e saibro.
SÓ O APRENDIZ SABE O QUE CUSTA APRENDER
- Jorge… Vá acorda filho…
A voz vem de muito longe e aproxima-se lentamente, até que toma consciência de que é a mãe a chamar de mansinho, como que a pedir desculpa de o estar a acordar tão cedo.
Está frio. Ao passar as mãos sobre o cobertor, vulgarmente chamado de papo, nota que este está húmido da condensação do calor do corpo.
Ainda não são 7 horas e o Janeiro de 1963 vai frio.
Está escuro.
A mãe avia-lhe o almoço. Acaba de tomar o café da manhã já passa das 7 horas, tem de andar depressa para chegar a tempo à paragem, onde apanha a carreira que o levará à localidade de Valado dos Frades.
A avenida João de Deus está escura, escuro e silencioso está o Rossio, onde o Mosteiro, indiferente ao frio da geada, o vê passar rumo à rua de Baixo, passa pelo o posto da GNR e as suas grandes portas verdes, que está todo escuro, salvo a lanterna eléctrica por cima da porta e segue mais cinquenta metros até à paragem dos transportes públicos junto ao cruzamento da Sevena.
A passagem pelo posto fá-lo lembrar que acontecimentos sombrios como a invasão da Índia Portuguesa, o assalto ao paquete Santa Maria, o começo da guerra primeiro em Angola, depois Moçambique e agora na Guiné, tinham crispado a sociedade parda e cinzenta, abanando as convicções ganhas na escola ainda de memória fresca, de país inatingível, que só o nome afastava os inimigos. Enfim a propaganda do regime lá nos bombardeava com razões e vitórias no campo militar, mas que escondia o facto, de estarmos sós no contexto Internacional e justificavam a falta de liberdade com segurança da Pátria.
Está à espera há pouco tempo, mas o calor que ganhou pelo caminhar apressado, rapidamente saiu através do casaco onde está embrulhado.
Passam vultos silenciosos nem dão por ele. Todos carregam algum fatalismo e não esperam outra coisa que um dia a seguir ao outro. O magro salário deles fará os seus filhos engrossar a legião de trabalhadores, que a própria vida se encarregará de ensinar com dureza, que as oportunidades nunca serão iguais para todos.
A camioneta está a chegar. O homem ao volante bem como o revisor olham para ele, passageiro único, como que a censurá-lo de não ir apanhar o transporte numa paragem onde houvesse mais passageiros.
A roupa gelada é comprimida contra o corpo ao sentar-se. Olha para as janelas das casas ainda às escuras e tenta evitar um sentimento de inveja, pelo conforto que os seus ocupantes sentem ainda.
O rádio debita músicas da época, mais tarde chamadas de nacional-cançonetismo.
Nisto algo quebra o
status e ouvem-se os primeiros acordes do "Twist And Shout" dos Beatles.
Fica mais atento.
O condutor da camioneta apressa-se a desligar o rádio, como se de um censor de lápis azul se tratasse. Decidir o que os outros devem ouvir ou ler, bem como a cor do lápis, é um problema da época.
Como ele está enganado ao pensar, que pode parar a marcha dos tempos, com um simples premir de um botão.
Já é dia mas o tom é pardo e húmido, talvez a proximidade do rio Alcobaça, que corre paralelamente à estrada, seja a razão. O mesmo rio no Verão serve em alguns pontos para dar uns mergulhos ou pescar uns barbos.
Pararam na localidade chamada Fervença descem uns e entram outros. Deita um olhar à casa onde nasceu, os pomares em redor estão todos brancos de geada e o frio que entra pela porta, fá-lo pensar que próxima vez tem de escolher outro lugar mais abrigado.
A Praça Central já em Valado dos Frades é a última paragem.
É uma povoação onde as pessoas do mar se encontram com os de terra e resulta na metamorfose de pescadores com agricultores. Depois mercê da quantidade de empresas de cerâmica, porcelanas e vidro, rapidamente passam a operários, que trabalham a terra antes e após o horário de trabalho das fábricas.
Jorge vai a correr daí até à fábrica de cerâmica "Os Pereiras", onde é aprendiz.
Chega esbaforido depois de correr mais de um quilómetro, com o frio a entrar pela boca e pelo nariz. São quase oito horas. A camioneta segue para a Nazaré e ultrapassou-o no caminho.
O chefe da secção do gesso é um grande artista na arte de modelar bem como pintor. Das suas mãos nascem cães, gatos, pássaros, jarras e terrinas como por magia. Fez um candeeiro em forma de dragão com uns 25cm de altura que motivou uma autêntica romaria dos trabalhadores da fábrica para o apreciarem.
Depois de esbanjar talento por todas as fábricas da região, foi mais tarde para Angola, onde montou uma bem sucedida empresa.
Escusado será dizer que ninguém se torna artista só por privar com um.
Infelizmente a habilidade não se pega como a gripe. Pode-se aprender alguma técnica, mas as mãos que são capazes de executar o que o cérebro cria, é só para alguns.
Assim o Jorge aprendeu a dar e a tirar sabão, das madres para fazer formas. Mexer o gesso com um piaçá que é a tecnologia da época.
Os dias passavam entre fazer pesados moldes e acartá-los para dentro dos fornos por vezes com um saco de serapilheira pela cabeça. Aproveita-se assim o calor secando-as mais rapidamente. De vez em quando a visita dos fiscais de trabalho, fornecem assim uma folga ainda que de uma hora ou duas, mas sempre bem vinda. Vêm à procura de trabalhadores menores e não inscritos na Segurança Social, que verdade seja dito são vários de ambos os sexos. Sendo assim, quando algum carro dos referidos serviços pára à porta da fábrica, é uma correria para os pinhais próximos.
Os fiscais por ali andam a cheirar bastante tempo e, quando finalmente se vão embora, vão à procura deles como de gado tresmalhado se tratasse.
Está quase na hora, vai limpar as ferramentas de toda a gente e arrumá-las. Toca o sinal das 18 horas, lava as mãos, tira a roupa de trabalho e corre para a Praça Central, onde a camioneta dos Claras não esperará por ele para o levar para casa.
Já está na paragem quando o transporte chega, o caminho parece mais curto.
Sobe, vai direito a um lugar vago, senta-se e pensa nos 42 escudos que ganha e nos 48 escudos que gasta em transportes por semana.
Talvez o condutor o deixe ouvir desta vez o
Twist and Shout dos Beatles.
Juvenal Amado
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 de Janeiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7565: Estórias do Juvenal Amado (33): O Léo e a macaca Chita