Vista parcial de Brunhoso - O olmo da esquerda era o do ninho da cegonha, debaixo do qual os ciganos, nos meses de verão se instalavam noite e dia.
1. Em mensagem de 2 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos a sua freguesia de Brunhoso de há 50 anos:
Brunhoso há 50 anos
1 - As Autoridades
Havia o presidente da junta cuja escolha recaía sobre um
homem dentre o número restrito das famílias mais ricas.
O regedor, representante da autoridade policial, sendo um cargo
com menor prestigio social era escolhido entre os homens das famílias
de lavradores remediados.
Tanto o presidente da junta como o regedor eram nomeados pelo
presidente da Câmara escolhendo os mais idóneos e respeitados entre
estas duas camadas da população.
O regime com esta distribuição de cargos procurava contentar
uns e outros, respeitando a hierarquia social e económica.
Em abono da verdade os cargos de um e outro mais pareciam
honoríficos pois pouco mais faziam do que afixar às portas da igreja
ou noutros locais públicos editais e posturas camarárias, tinham uma
autonomia quase nula face ao poder camarário e central. Não recebiam
qualquer vencimento, nem tinham direito a qualquer mordomia pelo
desempenho do cargo.
Já eu era um rapaz praticamente quando foi construída a
escola primária, penso pelo ministério da educação, antes as aulas
eram dadas na residência paroquial, pois o padre tinha casa própria e
dispensou-a. Alguns anos depois foi fornecida eletricidade, o dia da
inauguração teve direito a foguetes e banda de música, perdi a festa
pois não estive presente.
As ruas, que em tempos foram construídas com pedra à
maneira da calçada romana, estavam muito deterioradas com falta de
pedra e no inverno algumas transformavam-se num lamaçal.
O presidente da câmara, muitos anos também deputado da
União Nacional, herdou do pai a riqueza e o cargo, grande
proprietário, um dos maiores do concelho, com muitos bens ao luar, em
várias freguesias sendo uma delas Brunhoso. Hoje, como ontem, o poder
político é pertença do poder económico e financeiro, diretamente ou
através de serventuários bem pagos para isso.
Era um homem muito poupado, morava numa freguesia a cerca de 7 kms do
concelho e levava todos o dias o almoço de casa para não o ter que
pagar mais caro no restaurante, nas contas da Câmara, que geria, era
igualmente poupado não dispensando dinheiro para o arranjo tão
necessário das ruas das freguesias do concelho. Não era urgente,
afinal as pessoas e os animais passavam sem ficar presos no atoleiro!
Constava-se que o município emprestava dinheiro, a juros
baixos, à Câmara do Porto. Formado em direito, era um homem muito
conservador, honesto e trabalhador, cumpria o horário de trabalho
como qualquer funcionário. O meu pai gostava muito dele, tinham a
mesma idade e fizeram a tropa juntos algum tempo, havia
muita consideração entre eles.
Dentro dos condicionalismos familiares e do regime em que
foi criado, sem ter um rasgo de visão e inteligência que ultrapassasse
essas margens estreitas, foi um bom homem, e que eu saiba não foi
importunado por ninguém na mudança de regime apesar dos cargos
políticos que tinha ocupado.
O regedor, sendo a autoridade policial durante a minha vida
em Brunhoso, somente uma vez o vi atuar nessa qualidade, só ele, sem a
companhia dos cabos de ordem, o "Vermelho" e o "Verdinho", cunhados
entre eles e dizia-se serem os trabalhadores mais valentes da terra.
Por sua vez o regedor tinha fama de ser um campeão do lançamento da
relha e do ferro, no concelho e nos concelhos limítrofes.
Eram três homens fortes e altos, como havia poucos na
aldeia, com uma boa estrutura óssea, que infundiriam temor e
respeito, caso tivessem que intervir os três nalguma desordem. Não
sei se isso algum vez aconteceu. Da sua força e valentia ficou a lenda.
Residência Paroquial onde esteve instalada a Escola Primária até cerca de 1960
Fotos: © Francisco Baptista
Brunhoso era uma terra pacifica, as pessoas iam gerindo
alguns pequenos conflitos que iam surgindo sem a intervenção de
terceiros. Ouvi falar, era eu muito novo não me apercebi, que foi
chamado a intervir num conflito onde houve um ferido muito grave.
O conflito que eu recordo e ao qual sei que ele foi chamado
com insistência porque pareceu a alguns habitantes que poderia haver
perigo de morte, aconteceu num dia de Carnaval.
O dia de Carnaval na aldeia era o dia da grande borga, da
grande descontracção, da grande bebedeira, alguém que me foi muito
próximo, o meu pai não, que era abstémio, disse-me um dia, penso que
com algum exagero, o seguinte:
- Chico, há alguns anos eu bebia um garrafão de vinho por
dia e era isso que me dava força para trabalhar a terra, no Entrudo
bebia dois garrafões e à noite transportava os borrachos às costas
para casa deles.
Nesse ano, teria eu 16 ou 17, ao cair da noite, os que
continuaram a pé pelas ruas, após as festas diurnas, eram todos alegres
foliões. Tão excessivos no consumo de álcool em épocas festivas só
conheci os bávaros num Carnaval em Munique. Em Munique, cerveja ou
vinho quente com aguardentes ou especiarias, em Brunhoso, vinho, in
illo tempore, hoje de tudo, cerveja e até água ardente.
Nesse estado
de espírito alegre e divertido, com alguns copos a rodar de mão em mão,
estavam muitos no Balcão, uma praça pequena, como a aldeia, comparada
com Munique, uma grande cidade europeia, equivaleria à Marianplatz, em
ponto pequeno e sem a estátua de Maria, mas era a praça central.
Surgiram alguns "estrangeiros" que tinham estado a comer e a beber em
casas da aldeia, portugueses naturais ou próximos de terras grandes e
longínquas, a trabalhar em Mogadouro, que a alguns da terra fizeram
perguntas que eles acharam provocadoras e de quem quer gozar com os
pobres e ignorantes. Eles estavam na melhor da disposição para lhes
dar comida e vinho, mas essas palavras caíram-lhes como rastilho já a
arder em pólvora pronta explodir. O grande provocador, o que
pronunciou as palavras que incendiaram os presentes, foi
agarrado, maltratado, esbofeteado, pontapeado e por fim arrastado por
uma rua contígua cheia de pedras e lama.
Quando chegou o regedor, os maus-tratos terminaram e os
estranhos foram enviados de automóvel para Mogadouro. Sei que o homem
maltratado, que afinal foi só um, esteve um mês no hospital, ainda
pensou pôr uma acção em tribunal mas desistiu talvez por não
encontrar testemunhas.
As relações entre estas duas autoridades, presidente da junta
e regedor, eram corretas, sem serem cordiais ou amistosas, nunca
soube qual a razão apesar de conhecer bastante bem um e o outro.
Aparentemente parecia também que não davam especial
importância aos cargos e que procuravam fugir das raras cerimonias
oficiais.
Parecia-me igualmente que eram indiferentes ao regime, sem
terem ideias politicas para lá da defesa da propriedade, da família e
da religião, aceitavam esse regime como qualquer outro que aceitasse
essas premissas. Noutro contexto, e sem querer fazer uma comparação
ipsis verbis, lembrei-me da forma como os homens grandes das tabancas
da Guiné recebiam os cumprimentos das autoridades militares. Afinal a
sociedade deles tinha resistido a revoluções várias e a regimes
diferentes. Não imaginavam que o fim dessa sociedade estava próximo.
Havia duas outras autoridades de quem pensava falar o padre e
a professora, fica para outra altura, pois a conversa já vai longa,
como não gosto de abusar da paciência de alguém que me queira ler,
vou remeter este texto ao amigo e camarada Carlos Vinhal e ele e o
grande camarada Luís Graça que decidam se é publicável ou não.
Não sem razão escrevia ontem o amigo Helder Valério, por
outras palavras, que estes quadros bucólicos, que pinto mal ou bem,
repetiam-se muito com várias cambiantes e matizes por essas aldeias
de Portugal inteiro.
Na verdade ao escrever estas estórias para muitos de vós,
que já as conheceis no todo ou em parte, devia estar a escrever para
os meus netos, desculpai, estou à espera que eles cresçam para me
ouvirem com mais atenção. Entretanto vou relembrando aos mais
esquecidos ou distraídos, ou aos que nasceram na cidade grande e
tenham curiosidade de saber como se vivia à mais de 50 anos nas
aldeias, muitas vezes a poucos quilómetros dessa cidade.
A todos um grande abraço
Francisco Baptista