Grande Régulo Luís.
Apanhaste-me na curva. tens insistido comigo para repor “O meu Diário” (*). Resisti à tentação porque não sinto que tenha o valor que lhe dás e sobretudo porque há vivências de tantos camaradas que merecem muito mais que eu serem valorizadas... Mas já que insistes, vamos lá...
Com tempo pude vasculhar a correspondência com a minha ex-namorada e atual companheira de vida, bem como da minha família, o que me despertou para outras situações vividas e que não foram passadas para o “Diário”, talvez por perguicite, medos, etc.
Assim, tomo a liberdade de reenviar “O meu Diário” acrescido com letra em itálico para não se confundir com o que escrevi em cima dos acontecimentos em que procurava falar para mim mesmo, de partes de aerogramas e recordações que o tempo não consegue apagar. Se vires que tem interesse podes publicar.
Junto algumas fotos para enriquecer toda esta “tramoia”que me pregaste.
Abraço fraterno do Zé Teixeira
Comentário de L.G.:
Grande Zé: Just in time!... Vou reformular os postes... Assim há um motivo acrescido para ler ou reler o teu diário (que é, sem favor, um notável documento)... Tu mereces esta pequena gentileza e muito mais!... Um xicoração. Luis
2. 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (2): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Os Maioriais, Buba e Empada, 1968/70) (Parte II): Picada Buba/Aldeia Formosa, 24/26 de julho de 1968
Fotos: © José Teixeira (2005): Todos os direitos reservados
Continuação da publicação do "diário" do José Texeira (ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70), agora aumentado com correspondência:
Aldeia Formosa, 24/26 de julho de 1968
Comecei a guerra. Saí de Buba dia vinte e quatro às seis da manhã e cheguei a Aldeia Formosa dia vinte e cinco às vinte e uma, depois de durante dois dias batalhar com o IN, com o tempo e ultrapassar outras dificuldades.
A estrada (picada) está num estado lastimoso: buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros, foram percorridos em oito horas e meia.
O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo, sentado na berma, entre os arbustos, a conselho de um africano que estava a meu lado e não sofri uma picada. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela cor que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada um tanto hilariante. Se o IN tivesse atacado nesse momento era um desastre total, tal foi a desorganização gerada
Depois... Veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo... Inimigo cobarde!... frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores.
Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas mãos, que os homens não se amem? Que culpa tenho eu?
A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...
Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o RT morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caiu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino [, o outro 1º cabo aux enf, ] nada pudemos fazer.
Esperávamos que o IN atacasse de noite pois tinha sido detectado pela aviação durante o dia. Felizmente durante a noite não houve surpresas e eu entregue totalmente ao ferido que sobrou para mim, o condutor da viatura sinistrada, um pouco mais conformado recomecei, melhor recomeçamos a marcha com toda a cautela, pois no dia anterior, além da mina que rebentou, foram localizadas mais três.
Para alimentação deste dia não tínhamos nada. A ração de combate, mal chegou para o primeiro dia. À frente havia elementos do IN, "manga dele", havia buracos, pontes interrompidas; havia minas, só não havia comida.
Ainda não tínhamos percorrido três quilómetros, quando caímos na primeira emboscada. Dois bi-grupos esperavam-nos. Felizmente a Milícia do Candé (Aliu Candé) que protegia os flancos descobriu-os e sem compaixão, todas as máquinas de guerra funcionaram. O meio e a retaguarda da coluna embrenhados no mato aguardavam prontos a intervir o que não foi necessário. Quinhentos metros à frente é a vez da retaguarda ser flagelada e obrigar o soldado português a mostrar as suas capacidades de luta. Deste segundo encontro há registar dois feridos.
A coluna recompôs-se e continuou a sua marcha de 30 viaturas carregadas de mantimentos e armamento (três obuses de 140 mm, entre outro material). A meio da manhã chegaram os Fiat. Com a aviação sentimo-nos mais seguros e confiantes. Os feridos foram evacuados de Hélio. Uma coluna que normalmente se faz em oito horas, demorou dois dias.
Agora que sinto o barulho do matraquear das armas, que sinto o sibilar das balas assassinas sobre a minha cabeça, começo a sentir um tremendo ódio a tudo o que seja guerra. Sim. Odeio os homens que em vez de se amarem se guerreiam. Que culpa tenho eu que os homens não vivam o amor?
Quando abriu a emboscada escondi-me debaixo de uma viatura e senti bem perto as balas a assobiarem, pois um IN. estava em cima de uma palmeira à minha frente a fazer fogo. Ainda tentei usar a arma que tinha comigo, mas esta encravou à primeira tentativa e ainda bem. Fui apenas um espectador.
Senhor!, que eu jamais faça guerra!... Que eu ame sempre!
Hoje, 26, recebi uma carta, a que tanto precisava para acordar o meu espírito... Dou-te graças, Senhor, porque me deste um anjo, porque me deste um amor que está sempre comigo, até nos momentos mais difíceis.
Aldeia Formosa, o meu novo poiso, também foi atacada ao anoitecer . O IN teve fraca pontaria e não meteu uma dentro do Quartel. A mesma sorte não foi para Gandembel, há cerca de quinze dias, quando atacaram aquele Destacamento com 11 canhões sem recuo, mataram um Alferes e feriram vários militares.
[Foto à esquerda: O Zé Teixeira, em Empada, junto ao pau da bandeira, em 1970, a escrever o seu diário]
Extrato do bate estradas que escrevi à minha namorada
A lição que a G3 me deu, ao recusar disparar e, ao mesmo tempo, não rebentar o cano em tiras, o que possivelmente me mataria, levou-me a pensar no pedido que minha mãe me tinha feito na minha despedida e ao compromisso que assumi perante mim mesmo de não dar um tiro, nesta guerra. Ser enfermeiro curador de feridas e nunca causa de dor ou morte. Quero ser só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal é a minha missão.
Entreguei a arma ao quarteleiro e nunca mais quero ter uma G3 na mão. Senti que Deus esteve comigo naquele momento.
Mas aquela vida. Aquele olhar a apagar-se e nós sem lhe poder valer. A sede que o fazia agonizar. Os gritos de desespero de quem sente a vida a fugir-lhe. Depois o adormecer suavemente para sempre.
Meu Deus, que jamais eu faça guerra, nesta missão ingrata de viver em guerra, quando apenas quero viver em paz. Construir a paz.
MATARAM O FUTURO
O destino, no tempo o marcou.
Aquela hora!
A mina escondida!
Aquela viatura!
Quando a quinta passava, deflagrou,
Uma vida cheia de vida,
A morte a levou.
Destino cruel.
Demasiado duro.
Deixou de ser a esperança, no futuro.
Para sempre partiu,
Aquele jovem.
Cheio de saudades de um tempo,
De quem nem sequer se despediu.
Um tempo, para com garra viver,
Mas. . .
Ficou sem tempo, para o conhecer.
Já não vejo!
Já não vejo!
Vou morrer!
Com ténue voz.
Balbuciou.
Tremendo grito.
Eu quero viver!
E . . .
Ali se ficou.
Até morrer.
Sede.
Muita sede.
Aquela vontade danada de viver,
E um corpo a arrefecer!
Vida.
Quase sem vida.
E eu. . .
Sem lhe poder valer.
Tremendo momento.
Num mundo mais pobre,
Um futuro em sofrimento.
(Continua)
_____________
Nota do editor:
(*) Vd. poste anterior da série > 25 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11150: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (1): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Parte I): Buba, julho de 1968
De quem nem sequer se despediu.
Um tempo, para com garra viver,
Mas. . .
Ficou sem tempo, para o conhecer.
Já não vejo!
Já não vejo!
Vou morrer!
Com ténue voz.
Balbuciou.
Tremendo grito.
Eu quero viver!
E . . .
Ali se ficou.
Até morrer.
Sede.
Muita sede.
Aquela vontade danada de viver,
E um corpo a arrefecer!
Vida.
Quase sem vida.
E eu. . .
Sem lhe poder valer.
Tremendo momento.
Num mundo mais pobre,
Um futuro em sofrimento.
(Continua)
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Nota do editor:
(*) Vd. poste anterior da série > 25 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11150: 9º aniversário do nosso blogue: Os melhores postes da I Série (2004/06) (1): O meu diário (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba e Empada, 1968/70) (Parte I): Buba, julho de 1968