Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 18 de novembro de 2007
Guiné 63/74 - P2278: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (1): A triste sorte do sapador Quaresma... morto por aquela maldita granada vermelha
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > O Fado da Guerra ou... das Minas e Armadilhas ? Os Fur Mil Guimarães (tocando viola) e Quaresma, sapadores...
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > Os Fur Mil Guimarães e Quaresma, sapadores, junto ao abrigo de sargentos.
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.
Texto do David J. Guimarães, ex-furriel miliciano da CART 2716 (Xitole, 1970/1972). Originalmente publicado em 10 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIX: Estórias do Xitole: 'Com minas e armadilhas, só te enganas um vez' (David Guimarães)
Estórias do Xitole (1): A morte do sapador Quaresma...
por David Guimarães
O RAP 2 (Gaia) semppre fez parte da minha família
Sempre me preocupei, durante a guerra, em contar cá para a Metrópole (era assim que então se dizia) não propriamente as peripécias da nossa vida militar mas as coisas mais belas que encontrava na Guiné: os mangueiros carregados de mangas, os milhares de morcegos que povoavam o céu ao escurecer e ao amanhecer e que dormiam nas árvores, os macacos, as galinhas de mato, etc.
Eu achava que deveria poupar a minha família e que esta não teria que ouvir e até viver a guerra em directo: bastava para isso o sofrimento de saber que eu andava por lá...
Foi assim que eu senti e vivi a guerra. Lembro-me um dia, quando alguém me disse:
- Guimarães, este batalhão [BART 2917] vai para a Guiné (ainda estávamos no RAP 2 em Gaia). E eu exclamei:
- Ainda bem, é a província mais próxima de Portugal para vir de férias...
Não será aqui o sítio certo para falar do RAP 2. Mas na minha vida pessoal foi um marco importante. Foi de lá que foi mobilizado o meu pai, militar de carreira, para ir servir em França… na 1ª Grande Guerra (Ele nasceu em 1893 e eu nasci quando ele tinha 54) (1). É de lá mobilizado o meu irmão que parte, com o BART 525, para Angola e sou eu mobilizado, no BART 2917, para servir na Guiné...
Ironias do destino ou coincidências de graus de parentesco... É que, entre o meu irmão e o meu pai, também é mobilizado para África um primo meu, em 1º grau. Não há dúvida, aquele Regimento entrou na nossa casa, muito antes de eu ter nascido... Se fosse isto um romance serviria para dizer que a minha existência como que começou ali. Mas isto é outra história que, não sendo menos curiosa, não vem agora a propósito...
O soldado Almeida: a nossa primeira baixa
Uma noite, no início da comissão no Xitole, ainda estava eu de serviço, de sargento de dia... O Leones, furriel miliciano, meu camarada, informa-me:
- Guimarães, um teu soldado está mal…
E estava mesmo: quando lá cheguei vi a equipa de enfermagem em volta dele mas já nada havia a fazer... O soldado Almeida tinha morrido no seu posto de sentinela, fulminado por um ataque... de coração!
Foi a nossa primeira baixa. No dia a seguir chega um médico à Companhia e lá vai autopsiar o Almeida... Confirma o óbito: enfarte do miocárdio. Assina: Alferes miliciano médico Horta e Vale. Curioso, este médico (quem o conheceu teve sorte, contava cada história!), hoje é um distinto médico dentista da Clínica da Circunvalação, aqui junto à cidade do Porto.
Bem, nada como pegar no pessoal mais chegado, eu era um deles, pois o Almeida era meu soldado (meu, e aí surge o termo militar de posse, meu). Mas como dizia, aquando da evacuação - e tudo foi rápido, mesmo! - aí fomos nós fazer patrulhamento para as zonas próximas de Seco Braima [vd. mapa do Sector L1, Zona Leste]. Nos céus do Xitole levantava um helicóptero e lá levava o Almeida: tinha adormecido no seu posto… Para sempre.... Deus o guarde!
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS do BART 2917 (1970/72) > Monumento aos mortos do batalhão e unidades adidas (este monumento foi destruído a seguir à independência da Guiné-Bissau). O Fur Mil Quaresma e o Sold Almeida pertenciam à CART 2617.
A vida lá volta à rotina, os patrulhamentos, as acções psico e a ida à Ponte dos Fulas... Ui, aqueles 3 a 4 Km que todos os dias eram picados e onde se ia sempre levar os géneros!... A Ponte dos Fulas, onde fiz o primeiro mês da minha comissão, a Ponte dos Fulas!...
Era o local onde efectivamente o repouso era enorme, mas cansativo. Ali é que não havia ninguém a não ser o pelotão de serviço... Comia-se, bebia-se e mais nada, além da missão de vigilância permanente, que consistia em guardar aquela ponte de origem militar sobre o Rio Pulon...
Era uma vez um granada instantânea com fio de tropeçar
O aquartelamento do Xitole estava bem minado em seu redor. Do lado da pista de aviação, tinha eu mesmo montado um poderoso fornilho às ordens do capitão. Esse fornilho era comandado do abrigo dos furriéis (vd. foto onde estou eu sentado em cima de um bidão). De resto todo o terreno à volta estava semeado de minas A/P m/966 (2)...
Para a protecção total e permanente do aquartelamento no Xitole só faltava um ponto por armadilhar: a estrada Bambadinca - Xitole - Saltinho... Os ex-combatentes da CCAÇ 12 conheciam-na bem e sabiam onde era a casa de Jamil Nasser, um comerciante libanês que vivia no Xitole (*) ... Pois era exactamente ali, naquela rampazinha que dava acesso ao aquartelamento.
Resolveu-se então que todas as noites essa entrada do quartel fosse armadilhada... Essa operação era sempre feita ao cair do dia. O material era simples: uma granada instantânea e arame de tropeçar, do mesmo tipo daquela granada que um dia matou o macaco.... Lembram-se dessa estória que eu aqui já contei [vd. post de 23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas ]
E lá foi naquele dia o Quaresma, sempre ele, que já tratava por tu essa maldita granada. E como gostava dela, o furriel miliciano Quaresma!
Mais um dia, e novamente o armadilhamento da entrada. Dessa vez ele até foi contrariado, estava a preparar uma galinha para churrasco, lerpou, não comeu…
O quadro é simples: ouve-se um rebentamento, só um. O Quaresma é decapitado (**), o Leones fica cego e sem dedos… Ficámos todos em estado de choque:
-Não podia ser!!!
Mas foi: um parte para a eternidade, o outro é evacuado... O Quaresma desta vez tinha falhado, nunca mais armadilharia na vida (3)...
David J. Guimarães
Notas do D.G.:
(1) Não pensem que há algum anacronismo quando eu refiro que o meu pai foi mobilizado, pelo RAP 2, para servir a Pátria, em França, em 1917... O meu pai nasceu em 1893 e eu em 1947, o que quer dizer que nos separam 54 anos... 2º Sargento de Artilharia de Campanha, segue para França integrado no Corpo expedicionário, comandado pelo General Gomes da Costa. Como mera curiosidade, sou eu que tenho a caderneta militar e as condecorações de meu pai: guardo com toda a estima sete medalhas sendo uma delas a da Vitória... Por outro lado, e como sabem, nós estivemos na 1ª Guerra Mundial e não na 2ª.
(2) Não sei se sabiam, aqueles que não eram de artilharia, mas uma CART como a 2716 tinha três Furriéis de Minas e Armadilhas e um Alferes. Todos levantámos uma PMD-6 do IN em diversos locais: o Alferes Sampaio, o Furriel Quaresma, 0 Furriel Ferreira e eu. A PMD-6 é exactamente aquela mina que se encontra já documentada em fotografia (vd. acima). De fabrico russo com espoleta MUV. Esta espoleta tinha uma particularidade curiosa: poderia funcionar por pressão ou tracção...
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xitole > CART 2716 (1970/72) > Mina antipessoal PDM-6 reforçada com uma carga de trotil de 9 kg (as barras do lado direito). Detectada e levantada na estrada Bambadinca-Xitole pelo furriel de minas e armadilhas Guiimarães da CART 2716 ("Bem, ia uma GMC ao ar, isso sim!!!".
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.
Amigos, este caso que aqui relato foi, e ainda é, bastante doloroso para mim. Confesso que, ao evocá-lo trinta e tal anos depois, não consegui conter uma lágrima...
As grandes batalhas eram travadas nestas pequenas guerras surdas, que quase não se davam por elas. Muitos diziam que eram acidentes e não contabilizavam estas baixas como mortes em combate. Sempre tive opinião diversa, porque o combate estava exactamente sempre que havia necessidade de manusear uma arma de fogo, preparando-a para a defesa ou ataque...
Centenas, talvez milhares de indivíduos morreram a armadilhar… mas não morreram em combate, segundo as estatísticas. Dá-me vontade de perguntar:
- Terá sido a brincar ? E será que armadilhávamos os terrenos para apanhar gazelas, cabritos e cabras?
Pois, não era para caçar e muito menos para nos matarmo-nos a nós próprios....
Tive um amigo, alferes (antes andava embarcado, a tropa foi lá buscá-lo com 30 anos)... Isso é pouco interessante. O que eu quero referir, em concreto, é que, já no nosso tempo, na estrada de Mansoa - Mansabá ele levantou uma mina PMD-6 e… morreu a olhar para ela. Rebentou-lhe na mão!!!
- Como é que isso aconteceu ? ...
Ele já não está cá, entre nós, para contar o que aconteceu... Chamava-se Couto... Talvez haja alguém que um dia apareça na nossa tertúlia e saiba contar melhor esta estória…
(3) O Leones ainda hoje é vivo, está cego e trabalha na Previdência em Lisboa. O Rebelo, furriel sapador do BART 2917, escolhido para delegado do Batalhão em Bissau, era quem tomou conta do espólio do Quaresma. Quando estava doente com paludismo, assaltaram-lhe o espólio do Quaresma. Bem, acontece que eu, como estava de férias, lá fui a Algés (onde morava os pais do Quaresma) tentar negociar...
Sabem o que a mãe me perguntava? Se o filho estava interinho... E eu lá tive que mentir, dizendo que sim... Como é que eu podia contar-lhe a verdade, dizendo de chofre que ele ficara sem a cabeça no local onde armadilhava com uma granada instantânea, aquela maldita granada vermelha com espiras de aço !?... É claro que não podia contar essa história a uma mãe. Mais me perguntava ela pelo fio de ouro que ele usava...Eu tive que lhe dizer que possivelmente alguém tinha guardado, não se sabia aonde...
Mais tarde, o pai tentou negociar o espólio, tentando sei lá o quê (ganhar algum junto da tropa no Quartel General, extorquir o desgraçado do Rebelo...). Não conseguiu, mas o Rebelo passou uns maus bocados.
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Notas de L.G.:
(*) Vd. post de 11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)
(**) Joaquim Manuel da Palma Quaresma, Fur Mil do Exército, morreu a 20 de Outubro de 1970... por acidente. É assim que consta, para a posteridade nos registos da tropa...
Guiné 63/74 - P2277: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) - Anexo II: Gandembel/Balana, Março de 2007 (Pepito)
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 2007 > Foto 2 > Um antigo abrigo, vendo-se restos das estruturas metálicas que sustentavam o tecto.
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 2007 > Foto 3 > Mais restos do aquartelamento
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 2007 > Foto 4
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 2007 > Foto 5
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 2007 > Foto 6
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 2007 > Foto 7
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 2007 > Foto 8
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 2007 > Foto 9
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 2007 > Foto 10>
Imagens de vestígios do antigo aquartelamento de Gandembel, outrora guarnecido pela CCAÇ 2317 (Gandembel/Balana, 1968/69), tendo sido abandonado em 28 de Janeiro de 1969 (1).
Fotos: © Pepito / AD - Acão para o Desenvol vimento (2007). Direitos reservados
1. Imagens que nos foram enviadas pelo Pepito, fundador e director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, em 13 de Março de 2007:
Caro Luís Graça:
Seguem 10 fotos do antigo aquartelamento de Gandembel/Balana, que tirei há dois dias no sul.
Se todos estarão interessados, o Idálio Reis, mais ainda. Ele terá é que redescobrir o aquartelamento, pois o que sobrou foi pouco.
Abraços
Pepito
2. Comentário do Idálio Reis,
Meu caro Luís
Há itinerários pessoais particularmente difíceis de definir e perceber, quando reclamam o fulgor da plenitude, porquanto muito poucos a conseguem atingir. É o caso do Pepito, que um dia teve um forte apelo, para dar cumprimento a uma singular missão. Este seu apego à Guiné, um dos países mais pobres do Mundo, para se empenhar em acções de ajuda filantrópica aos seus naturais, sem nada reivindicar, merece um hino de louvor. Para ele, uma dedicação muito carinhosa, e que possa continuar por muitos anos, esse seu aliciante e abnegado préstimo ao povo-irmão guinéu.
As imagens que se revelam ante o meu olhar, sufocam de estupefacção. Causam-me um pesado sentimento de perda, ainda que reconheça que elas são circunstanciadas pela voragem avassaladora do binómio tempo/homem.
Passaram-se já 4 decénios, é certo, mas o que apenas resta, são fantasmas de uma obra tecida com muito sofrimento. Soerguida por um denodado esforço braçal, sofrida e chagada pelo fenecimento de tantos.
Reassumem estas fotos, a quem agradeço muito sensibilizado ao Pepito, também uma incontida emoção, porque me confrontei com aqueles recônditos, onde sobrevivi uma parte bastante curta, mas crucial da minha vida. A acção de existir é uma dádiva, e esta minha passagem por Gandembel/Ponte Balana, teve a particularidade de sublimar num jovem, a verdadeira dimensão da vida e o real significado da sua importância.
Com as fotografias que em tempos te enviei, tentarei inserir estas que como o Nuno Rubim me referiu, são “fresquinhas...acabadas de chegar”.
Eis então:
Foto 1 > [Minha foto 412] (1)
Sobre uma camada de betão fresco, pode surgir um mosaico gravado, que pode ser essoutro ou um bastante similar.
O que nos interessa é que possa e deva ser uma lápide a colocar no museu de Guileje, de forma a perpetuar no interminável, a presença dos Dragões Dourados da CCaç 2317.
Foto 2 > [Minhas fotos 301 a 308] (1).
Há uma visualização das estruturas metálicas que sustentavam as casernas-abrigo, e que na sua parte exterior eram colocadas: como paredes laterais, troncos de árvores justapostos e uma camada de pedras (bem visíveis), e na parte superior, uma forte camada de betão assente em aplainadas chapas aproveitadas dos bidões, as quais assentavam sobre cibes.
Há ainda uma parede adobada, que julgo ser parte integrante do forno, e que teve de ser refeito parcialmente pelo menos 2 vezes (as minha recordações!), em virtude de ataques ao aquartelamento.
Foto 3 > [Minhas fotos 419 a 421] (2)
Um achado mais complexo. Mas, porque o Pepito também refere o destacamento de Ponte Balana, a minha inclinação propende para este belo sítio. Este destacamento tinha 2 entradas: a nascente, a própria ponte; do outro lado, vislumbro os restos de um pequeno fortim aí situado.
Foto 4 > Uma inscrição, como a de milhares que devem estar espalhados por esse País. Consigo ler: VISEUS,..., GLOB-TROTTERS.
O que se me afigura dizer?. Havia cerca de uma vintena de militares deste distrito, que como se testemunha, se consideravam vagamundos de um destino cruel e incerto.
Mas estes Viriatos também se dignaram fazer a sua história, à maneira do seu antepassado, deixando as suas marcas ao tempo, numa terra tão diferenciada da que os viu nascer.
Foto 5 > Numa outra qualquer parede, um paraquedista também quis deixar o seu registo. Foi um Barreto. E também os que por aqui tiveram uma passagem mais efémera, mas de uma enorme valia, dedicados, valentes e intemeratos, quiseram deixar gravado que Gandembel também lhes foi ponto de passagem e encontro.
Foto 6 > Parece que esta infra-estrutura tomou a intenção de melhor resistir, onde inclusive, na parte superior de uma parede lateral, sobressai ainda a concavidade onde assentava a trave mestra.
Era o armazém dos víveres, uma das últimas construções a substituir uma tenda de campanha.
Foto 7 > Sombras do passado..., mas há aqui restos de uma caserna-abrigo. E à sua direita, um muro de formato circular, que me leva a apontar que era aqui que esteve postado o ninho da metralhadora pesada Browning.
Foto 8 > Parece manifestamente ser o resto de uma edificação mais isolada, a brotar do subsolo. E por isso, só pode ser o paiol, onde milhares munições de todo o tipo, foram guardadas.
Já não espera nenhum SOS, para que um helicóptero se desloque de Bissau, a aportar mais uns cunhetes em falta.
Foto 9 > Uma estrutura metálica que servia de viga, o que indicia que aqui se implantou mais uma das 8 casernas-abrigo.
De pé, eventualmente o resto da parede posterior, que ainda resiste, porventura como cofre-forte a resguardar alguma mágoa mais dolente.
Foto 10 > Trata-se de uma outra perspectiva do local da Foto 2. Esta caserna-abrigo parece tenazmente guardar as suas estruturas metálicas. E como se trata da última fotografia, deixem-me exorcizar os meus fantasmas, e digam da vossa justiça. Aqueles 3 pilares mais seguidos, hoje colocados numa rotunda de uma nossa qualquer cidade ou vila, não daria um belo monumento aos combatentes da guerra colonial?
E se fosse possível transmutá-las, tal e qual, para a nossa Guileje?
É tudo caro Luís. Em nome da minha Companhia, ficam estes 2 pedidos. Sê o mediador com o Pepito, a quem reitero os meus agradecimentos.
E o resto por lá ficará!
Com uma imensa cordialidade, Idálio Reis.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)
(2) Vd. post de 18 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2276: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) - Anexo I: Destacamento da Ponte Balana
Guiné 63/74 - P2276: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) - Anexo I: Destacamento da Ponte Balana
Foto 422 > Aproveitando os restos da antiga ponte, davam-se belos mergulhos para banhos retemperadores
Foto 419 > Ponte Balana: Uma visão do destacamento
Foto 420 > Um aspecto interior de Ponte Balana
Foto 421 > Uma vista da entrada contrária à ponte
Guiné > Região de Tombali > Gandembel / Balana >CCAÇ 2317 (1968/69) >
(1) Idálio Reis, engenheiro agrónomo, reformado, foi Alf Mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69)
Vd. post de 10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)
sábado, 17 de novembro de 2007
Guiné 63/74 - P2275: Estórias avulsas (11): Saídas frequentes para o mato (Albino Silva)
ex-Soldado Maqueiro,
CCS/BCAÇ 2845
Teixeira Pinto,
Jolmete,
Olossato,
Bissorã,
1968/70
Começaram as saídas frequentes para o mato
Teixeira Pinto era um Sector bastante difícil, porque era de lá que se abastecia quase sempre, e através de Escoltas, vários destacamentos, designadamente, Có, Pelundo, Jolmete, Bachile, Bassarele, Cacheu e Caió.
As colunas faziam-se em itinerários complicados devido à acção do IN que minava as estradas e abria buracos enormes pela acção de rebentamentos, e só com o apoio do Héli-canhão e Bombardeiros é que se conseguia chegar ao destino.
Por isso e devido à escassez de Enfermeiros, a partir de certa altura da comissão, era a CCS do BCAÇ 2845 que fornecia às outras Companhias, sempre que requisitado, o pessoal do Serviço de Saúde. Havia uma Escala na Enfermaria, mas quase sempre me tocava a mim a alinhar, talvez porque o meu número era baixo ou então por começar na letra A, sei lá.
Se foi verdade que durante sete meses nem do Quartel saí, a partir dessa data fui o que mais vezes saiu, na minha Companhia, como já disse a CCS.
Era o apoio de camaradas operacionais que me encorajavam e faziam com que eu fosse perdendo o receio e que aos poucos me fosse habituando a andar pelo mato.
Entre outras saídas, participei em acções de psico com camaradas da CÇAC 2368 que era do meu Batalhão, bem como em outras missões onde tinha contacto com a população no exterior, dando assistência sempre que era necessário e nisso tinha orgulho e até sentia vaidade.
Alinhei com um pelotão da CCAÇ 2313 em missões de reconhecimento, escoltas, picagens de estrada e até na capinagem, na estrada de Teixeira Pinto-Cacheu, logo após a Ponte Alferes Nunes, entre Teixeira Pinto e o Bachile.
Foto 1> Guiné> Ponte Alferes Nunes entre Teixeira Pinto e Bachile
A minha primeira participação em escoltas foi com o pelotão da CCAÇ 2313 aquartelada em Teixeira Pinto, e para o Bachile, com a duração de 7 horas sem problemas.
No dia 11 de Abril de 1969 participei noutra para Jolmete com a duração de 6h30 sem haver contacto nem se ter encontrado vestígios.
Foto 2> Guiné> Jolmete> Aquartelamento
Em 27 de Maio de 1969, participei numa escolta com o itinerário Teixeira Pinto-Jolmete-Teixeira Pinto, que teve a duração de 8 horas e segurança montada pela CCAÇ 2585, recentemente chegada a Jolmete, e por um pelotão da CCAÇ 2313 onde eu ia integrado. Tratava-se de uma escolta de reabastecimento à CCAÇ 2585, em Jolmete desde 17 de Maio 1969, e para transporte da CCAÇ 2366 que deixava Jolmete e regressava a Teixeira Pinto, de onde partiria para Bissau e depois Quinhamel.
Nas primeiras horas, cerca das 9 da manhã, foram encontrados detonadores de minas anti-carro numa curva da estrada e em zona onde já tinham havido emboscadas, mas devido à presença das NT, não chegaram a montar nenhuma mina, tendo o IN refugiado-se na mata, que por acção do Héli-Canhão e Bombardeiros que batiam a zona, a escolta não teve problemas. Tanto a CCAÇ 2366, como a CCAÇ 2313, onde eu me integrava, regressaram a Teixeira Pinto.
Momentos depois e já dentro do Quartel, chega a informação via rádio que na CCAÇ 2585 também já dentro do Quartel em Jolmete, tinha havido um acidente com arma de fogo que causou as seguintes baixas:
Feridos graves evacaudos para o HM 241
1.º cabo - 19983868 - Francisco Inácio da Paz
Soldado - 15606668 - José Martins de Almeida
Soldado - 18119468 - António Antunes Lopes
Soldado - 18457168 - Henrique Pinto Araújo
Soldado - 18450068 - António Fernandes Barbosa, que viria a falecer pouco depois
Soldado Mil - 50/67 - João da Silva - PEL MIL 128
Nós que tínhamos feito a escolta com eles, ficamos muito chocados com este triste acontecimento, pois sabíamos que iria ser bastante difícil levantar o moral daqueles camaradas que choravam a morte do camarada morto, que não sendo em combate complicava mais a situação. Sabia-se que o descuido por vezes era fatal e infelizmante eram muittos os casos.
Lembro-me ainda do dia em que o Comandante do Batalhão visitou o Pelundo.
O Comandante tinha ido ao Pelundo para participar no funeral de um Soldado Milícia. Terminadas as cerimónias, regressou a Teixeira Pinto para logo de seguida lhe ser comunicado que no regresso de uma acção de rotina nos arredores do destacamento de Pelundo, realizada pelo 3.º GCOMB/CCAÇ 2313 se tinha verificado, já no Aquartelamento, um acidente com arma de fogo (LGF 6 cm) de que resultaram as seguintes baixas:
Mortos:
Soldado - 04366267 - Orlando da Silva Lopes - CCAÇ 2313
Soldado Mil - 100/64 - Possu Djabu - Pel Mil 127
Soldado Mil - 104/64 - José Upá - Pel Mil 127
Feridos evacuados para o HM 241:
1.º cabo - 04556567 - Albino de Oliveira Coelho - CCAÇ 2313
Soldado - 04258467 - Custódio Videira Passos - CCAÇ 2313
Este foi o primeiro caso grave que vivi na Guiné em que tive de intervir com muita coragem. Desejei não mais ter de passar por situações semelhantes, pois era doloroso ver partir jovens como eu, na força da vida.
Albino Silva
Fotos e texto: © Albino Silva (2007). Direitos reservados.
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Notas de CV:
Vd. posts de:
3 de Novembro de 2007> Guiné 63/74 - P2236: Estórias avulsas (9): Um soldado que não queria sair do quartel (Albino Silva)
10 de Novembro de 2007> Guiné 63/74 - P2254: Estórias avulsas (10): 8 de Dezembro de 1968 - Dia da Mãe (Albino Silva)
Guiné 63/74 - P2274: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (6): Luís Cabral, os assimilados e os indígenas (António Rosinha)
Assunto:
Luís Cabral na RTP, e os assimilados e indígenas
Luís, penso que nunca escrevi tanto em tão pouco tempo, como por tua causa. Primeiro, porque não tenho jeito, segundo porque não gosto.
Penso que nunca tive madrinha de guerra porque era preciso escrever. Peço-te que faças o melhor, quando vires alguma calinada embrulha e manda para o cesto.
Queria falar de uma pessoa, guineense, que vi governar e cumprimentei mais que uma vez, pois ele fazia questão de cumprimentar toda a gente, Luís Cabral. E de um assunto que ele abordou n[o 5º episódio da sére documental, de Joaquim Furtado] A Guerra, que é o assunto dos assimilados e indígenas (2).
Eu, que era um apolítico completíssimo, achava naturalíssimo na altura que uma pessoa que nunca tivesse calçado uns sapatos, que nunca tivesse vestido umas calças, nem pegado num lápis ou papel, deveria ter um estatuto diferente daquela que vestia e calçava como eu, embora os dois fossem negros. Depois das explicações na RTP, não percebi se era errado ou certo fazer a destrinça.
Luís Cabral falou em quarta classe e mais alguma coisa que não entendi bem, mas não sei se chegou a condenar ou a aprovar essa discriminação colonial.
Mas uma coisa eu posso afirmar: Ele, Luís Cabral, enquanto governante, não distinguia muito bem uns e outros, desde que fossem povo, e principalmente rapazes.
E o que vou dizer, sei que temos tertulianos que podem corrigir ou desmentir aquilo que me foi dado observar e que relato. Passou-se pouco antes de Luís Cabral ser deposto em 14 de Novembro de 1980:
Com a Independência, bastante fresca, todos os jovens afluíam a Bissau.. Trabalho a zero, desorganização a mil, qual a solução?
Muito facilmente o governo resolveu o problema: Grandes camiões Volvo à entrada das principais vias de acesso à praça... Logo pela manhã, umas dezenas de polícias de cacetete e armas de fogo, junto a cada camião, e lá iam os camiões carregados para uma esquadra perto do Alto Crim, de onde, com cunhas e alguns pesos, eu consegui tirar 3 ajudantes meus que não possuíam um documento em como trabalhavam para a Tecnil.
Isto é, aquele pessoal era recambiado para as tabancas de origem pois, quer fosse rural ou não, soubesse ler ou analfabeto, se não tivesse trabalho ia para a tabanca. Sem mais comentários.
Passados alguns tempos, Luis Cabral foi substituído. Para melhor? para pior? Melhor, sem comentários, tal a situação a que chegou a Guiné.
Luis, parece que a RTP, com o programa sobre A Guerra, não conseguirá sair do óbvio de há 30 anos para cá. Talvez dê para umas achegas nesta tertúlia.
Um abraço,
António Rosinha
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Nota dos editores:
(1) Vd. posts de:
22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2201: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (2): Eu estava lá em 1961 e lá fiquei até 1975 (António Rosinha)
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1358: Nostalgias (1): No cais do Xime, dois velhos Unimog pedindo boleia a algum barco (António Rosinha, ex-topógrafo da TECNIL)
29 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1327: Blogoterapia (7): Furriel Miliciano em Angola, em 1961; topógrafo da TECNIL, em Bissau, em 1979 (António Rosinha)
(2) Vd. posta anterior desta série > 1 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2234: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (5): Os bons, os maus e os vilões (Torcato Mendonça)
Guiné 63/74 - P2273: E As Nossas Palmas Vão Para... (1): Sara Peres Dias e o seu microfilme Dizer a Guiné-Bissau em Três Minutos
Um numeroso público interessado e atento, muitos deles participantes activos dos dois lados do conflito, sentaram-se lado a lado a recordar o seu passado enquanto jovens envolvidos na guerra. No dia seguinte, em toda a tabanca esse foi o tema dominante das conversas.
Foto: © Victor Ramos / AD - Acção para o Desemvolvimento (2007)
Mensagem da Sara Dias:
Gente della mia vita:
Ele há um vídeo que eu fiz aqui (1), que é muito curto muito rápido e é um mergulho na Guiné-Bissau .
Vão lá ver e se gostarem dele toca a votar que o prémio é bom e é para o ISU - Instituto de Solidariedade e Cooperação Universitária que foi quem nos mostrou e deixou conhecer este país bonito (2)
ijos, abraços e saudades
Autora: Sara Peres Dias
Data: 15/11/07
Duração: 2' 53''
Feito com: Máquina fotográfica
Sinopse: Ests são memórias ainda frescas de uma terra imensa, muito maior que trê minutos. Aui um mergulho pouco enxugado neste país de contrastes. Um país com a força das ondas que nos fica na pele como o sal. Depois de um banho de mar.
Vota neste vídeo
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Notas de L.G.:
(1) Sítio do Festival de Microfilmes de Lisboa
(2) Vd. também o blogue do ISU
Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)
sexta-feira, 16 de novembro de 2007
Guiné 63/74 - P2271: Tabanca Grande (40): Joaquim Gomes de Almeida, O Custóias, bazuqueiro, CCAÇ 817 (Canquelifá e Dunane, 1965/67)
Joaquim Gomes de Almeida
Soldado
CCAÇ 817
Canquelifá e Dunane
1965/67
Guiné> Canquelifá> O nosso camarada Joaquim Almeida em concorrência desleal e descarada ao nosso companheiro Joaquim Mexia Alves, pois em Canquelifá as condições Termais eram péssimas, embora os preços fossem económicos.
1. Mail de 7 de Novembro de 2007 dirigido ao nosso Editor
Exmo. Sr. Luís Graça,
Venho por este meio prestar uma grande homenagem ao incondicional serviço de informação que o seu blog presta a todos os ex-combatentes.
Passo a apresentar-me: Chamo-me Joaquim Gomes de Almeida, conhecido entre os camaradas por Custóias, sou residente em Guifões-Matosinhos.
Fiz parte do pessoal da CCAÇ 817; soldado de infantaria; operador de bazuca.
Passei maior parte do tempo da comissão em Canquelifá e Dunane, embora tivesse passado anteriormente por outras unidades.
Cheguei à Guiné em 26 de Maio de 1965 tendo regressado à Metrópole em 8 de Fevereiro de 1967.
Faço uma correcção ao que escreveu o camarada Francisco Palma: a CCAÇ é a 817 de 1965/1967 da qual eu fiz parte e não a CCAÇ 187 de 1965/1966 como por lapso mencionou o camarada Francisco Palma (*).
Em relação ao brazão, confesso que fiquei triste por saber que a CCAÇ 1623 destruiu o nosso em favor do deles.
Anexo uma fotografia com informação: Canquelifá-Termas, placa informativa para todo o pessoal que por lá ia passando e entrando para o tratamento adequado.
Sem outro assunto de momento,
Joaquim Almeida (Custóias)
2. Em 7 de Novembro, o co-editor CV respondia:
Caro Joaquim Almeida:
Estou a escrever-te na qualidade de co-editor do Blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné.
Recebemos a tua mensagem e registamos a homenagem que prestas ao Luís Graça. Na verdade, é unânime o reconhecimento do seu imenso trabalho para manter vivo o Blogue.
Queremos convidar-te a fazeres parte da nossa Tabanca Grande. Para tal deverás enviar uma foto do teu tempo de guerra (se possível com mais qualidade daquela que já enviaste) e outra actual para figurares na nossa fotogaleria.
Se quiseres e puderes podes mandar estórias que se passaram contigo e com a tua Unidade, assim como fotografias devidamente legendadas para as podermos enquadrar nos teus textos.
As fotos deverão vir em formato JPEG ou, em última hipótese, em Word para as podermos trabalhar.
Poderás consultar a página da nossa Tertúlia onde estão escritos os princípios fundamentais da nossa conduta e convivência. Poderás ver lá também a fotogaleria.
Aqui na Tabanca não há Exmos Senhores nem postos militares. Tratamo-nos todos por tu como deve ser entre camaradas.
Já agora na próxima mensagem dá mais pormenores sobre ti e a tua Unidade e usa preferencialmente o endereço luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com
Antes de terminar quero dizer-te que temos cá no Blogue um teu conterrâneo de Guifões, o Albano, que é fotógrafo e que tem o seu ateliê em frente à Igreja. Eu moro em Leça da Palmeira e ainda há mais gente do concelho de Matosinhos entre nós.
Recebe um abraço da parte do Luís. De mim o mesmo
O camarada
Carlos Vinhal
3. Em 8 de Novembro o camarada Albano Costa escrevia, em resposta a um mail de CV:
Caro amigo Carlos Vinhal:
Conheço o Custóias há muitos anos, é quase meu vizinho. Durante muitos anos sempre falamos de tudo, menos da Guiné.
Há bem pouco tempo, encontramo-nos e ele falou-me do blogue onde tinha navegado, dizendo que me tinha encontrado lá. Depois desse dia passamos a falar mais vezes e muito sobre a Guiné e o blogue.
Ele por acaso já tinha comentado comigo que ia chamar atenção do Francisco Palma sobre as imperfeições que tinha visto. Eu incentivei-o, porque a função do blogue é contar sempre e só a verdade, e que este era o sítio certo para o fazer, que neste caso era só para rectificar.
Quanto ao apelido Custóias, eu já lhe perguntei como é que sendo ele natural de Guifões, gosta que o tratem assim, ainda hoje no meio guineense. Ele respondeu-me que quando foi para a tropa, tinha ocorrido o desastre ferroviário no lugar das Carvalhas (**), em Custóias, e então o seu comandante possou a chamar-lhe assim. Ele aceitou com agrado e em todo o seu tempo de tropa e ainda hoje pelos seus colegas é tratado por Custóias. Quanto ao entrar no blogue já lhe falei e o Joaquim Gomes está a ganhar coragem, visto que não passa um único dia sem lhe fazer uma visita.
Um grande abraço,
Albano Costa
4. Em 9 de Novembro o Almeida voltava ao nosso contacto
Caro Carlos Vinhal:
Acuso a recepção do teu e-mail de 7 de Novembro de 2007.
Em relação ao Albano Costa, somos amigos e vizinhos. Ele mora na Lomba e eu em Gatões.
Todos os fins-de-semana, nos falamos no seu estabelecimento. Ele foi um grande impulsionador para que eu me metesse nestas andanças.
Relativamente a material fotográfico do tempo da minha estadia na Guiné, é relativamente pouco, porque há uns anos atrás, quando eu fui deslocado para o estrangeiro em serviço, foram-me assaltados os anexos de minha casa e levaram-me tudo, fotografias, o díário da minha Companhia, o diário do meu pelotão e um caderno de apontamentos pessoal. Tudo isto se encontrava dentro de um baú. Todas as fotografias que eu possuo, foram recolhidas na minha família, e alguns amigos.Assim que possível, enviarei as ditas fotografias para o blogue.
Um abraço virtual deste ex-combatente.
Joaquim Gomes de Almeida - Custóias
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Notas de CV:
(*) - No Post de 5 de Novembro de 2007> Guiné 63/74 - P2242: Tabanca Grande (39): Francisco Palma, ex-Condutor Auto, ferido em combate, CCAV 2748/BCAV 2922, Canquelifá (1970/72), o nosso camarada Francisco Palma referia:
(...) Aproveito para informar que a mensagem atingiu o alvo e tenho estado em contacto com o Custóias, operador de bazuca, ex-combatente da CCAÇ 187_(?), Canquelifá 1965/66, que terá sido o obreiro da construção do brazão da sua Companhia. O brazão foi posteriormente aproveitado pelos que vieram a seguir, a CCAÇ 1623 (Canquelifá, 1966/68), tendo sido alterados os dados (...)
(**) - No dia 26 de Julho de 1964, ocorreu um terrível desastre ferroviário na Linha da Póvoa (Porto/Trindade - Póvoa de Varzim), onde houve um número de mortos nunca especificado, pois na única carruagem sinistrada, superlotada, morreram oficialmente 96 pessoas.
O acidente deu-se porque a última de duas carruagens da automotora se soltou da primeira, presume-se que por excesso de peso, e em aceleração livre e desgovernada, ao descrever uma curva apertada, inclinou-se e foi de encontro a um muro suporte de uma passagem superior, que funcionou como uma lâmina. A carruagem foi literalmente cortada ao meio no sentido do comprimento, ferindo e matando principalmente que se encontrava daquele lado.
Guiné 63/74 - P2270: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (9): E de súbito uma explosão, uma emboscada, um caos...
A NT, que seguiam em coluna de reabastecimento ao destacamento de Missirá, sofreram um morto (sold condutor Manuel Guerreiro Jorge, da CCS do BCAÇ 2852) e quatro feridos (1º cabo Alcino Barbosa e o sold Cherno Suabe, ambos do Pel Caç Nat 52; 2º Sarg Milícia Albino Mamadu Baldé, do Pel Mil 101; Sold Trms Arlindo Guiomar Bairrada, do Pel Mort 2106/CCS do BCAÇ 2852).
O Pel Caç Nat 52 será transferido para Bambadinca, sendo substituído, em Novembro de 1969, pelo Pel Caç Nat 54, comandado pelo Alf Mil Correia, devido ao grande desgaste a que tinha estado sujeito nos últimos meses.
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Pel Caç Nat 52 > O Beja Santos mais alguns militares da sua unidade, num burrinho conduzido por um dos condutores da CCS do BCAÇ 2852, o Manuel Guerreiro Jorge ou o Setúbal (não posso precisar) (LG).
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Envelope de luto, com a carta que enviou ao Beja Santos em 10 de Novembro de 1970 o pai do infortunado soldado condutor Manuel Guerreiro Jorge, morto em Canturé - "o Sr. Jesuíno Jorge que tanto esperou por uma visita que nunca lhe fiz" (BS).
Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
Mensagem do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2007:
Luis, estou para saber como é que ganhei coragem para estas confissões. Felizmente, foi a única mina anticarro que tive com tão trágicas consequências. Tens aí várias fotografias da mina de Canturé, vou juntar o relatório, o louvor do Mamadu Djau, e acho que é um bom momento para mostrares a carta do Sr. Jesuino Jorge, que tanto esperou por uma visita que nunca lhe fiz. Pareceu-me descabido falar de leituras num episódio como este. Não há problema, em Bissau li e li muito, estava tão triste que não queria ver ninguém. Haverá muitas leituras para a semana. Recebe um abraço do Mário.
PS - Luis, esta é a versão definitiva. O texto que te enviei ontem tinha gralhas imperdoáveis. Para a semana haverá mais um episódio. Recebe um abraço do Mário.
Operação Macaréu à vista - Parte II > Seis da tarde quando a formiga sacode a pólvora
por Beja Santos (1)
Este seria o nosso último abastecimento em Bambadinca
A 16 de Outubro [de 1969], a coluna que parte de Missirá para Bambadinca vai à procura de mantimentos e combustível, para que não haja problemas logísticos momentosos para quem nos vem substituir. Prevê-se a chegada iminente do Pel Caç Nat 54, um grupo de combate da CCaç 12 vai nesse dia a Mato de Cão, as populações civis de Missirá e Finete estão sem arroz, muitos dos soldados do Pel Caç Nat 52 andam à procura de quartos em moranças na tabanca de Bambadinca, passo horas a apresentar-me junto dos senhorios e dos comerciantes locais como fiador na compra de camas e colchões.
Como que por milagre, arrebito das minhas mazelas, está a desaparecer-me o líquen das costas, secam as feridas dos pés, durmo melhor, vou digerindo o colapso nervoso do Casanova, atiro-me com energia à contabilidade, aos autos, aos livros de abate, aos cadernos onde registamos todas as munições. Fazemos gala, o Pires e eu, em entregarmos toda a escrita em dia, toda a transparência no deve e haver, seja nas folhas de pagamentos seja nos abastecimentos que deixamos nos armazéns de víveres.
É uma manhã que pronuncia o fim das chuvas, um céu azul de cobalto e despido de quaisquer nuvens caindo ao fundo na cobertura vegetal cor garrafa escuro, as picadas estão secas, o capim ergue-se louro como se fosse trigo. O meu estado de espírito renovou-se com optimismo.
No entanto, antes de partir, enquanto engulo um leite achocolatado com pão e marmelada, oiço um pouco de “Um Requiem Alemão”, de Brahms, o coro da RIAS de Berlim entoa “Bem aventurados os que estão em aflição, porque eles serão consolados”. É um requiem profano, muito plangente, e é quando eu desligo o gira-discos que tenho a primeira premonição da tragédia que se avizinha. Mas a azáfama é tanta e tantas andanças nos esperam em Bambadinca que a mente saúda e esvoaça na bela manhã, rendendo-se à serenidade envolvente.
Passa-se por Canturé, há árvores em flor, os picadores estão prudentes tal a densidade da vegetação, tal a poeira que se levanta no estradão. Em Finete, há dois dedos de conversa sobre as obras, os mais feridos sobem para a caixa do 404, Bacari Soncó apresenta a lista dos sacos de arroz que urge comprar. O alvoroço do mercado de Bambadinca está no auge, toda a estridência dos encontros nota-se nos tons que se elevam a volumes quase impossíveis. Paro sempre impressionado com a alegria esfuziante desses encontros, as mãos dadas, as perguntas, os olhos cheios de contentamento.
Passamos a manhã numa roda viva, sou fiador não sei quantas vezes, subo ao quartel, há conversas na engenharia, requisitam-se peças para o burrinho, discute-se a substituição do radiotelegrafista, os bidões de petróleo e gasóleo sobem para uma viatura e daqui são transportados para o cais de Bambadinca, depois é a compra de comida, deixo o Alcino Barbosa a regatear com os vagomestres, sigo para a secretaria onde deixo ofícios assinados, passo pelo serviço de justiça e entrego ao Valentim vários autos.
Logo a seguir ao almoço vou a Afiá comprar arroz, regresso com oito sacos. Junto do paiol, pegamos em vários cunhetes de munições, as nossas operações logísticas estão finalmente concluídas. Levo a promessa que na próxima semana haverá a transferência. O comandante não me deixa de avisar:
-Você fica mais uma semana em Missirá, até porque vão chegar as duas secções de milícias. Não se esqueça de patrulhar tudo, não quero tropa instalada só dentro do arame farpado. Procure melhorar as relações entre as autoridades civis que não vêem com bons olhos o regresso do Pel Caç Nat 54 a Missirá.
A travessia da bolanha é penosa, o 404 vai ajoujado com bidões, sacos de arroz, caixas de tudo, desde cerveja a esparguete. O entardecer encaminha-se perigosamente para o ocaso. O condutor, Manuel Guerreiro Jorge, que veio esbaforido desde o Geba até Finete, sempre a fintar os buracões da bolanha com um peso anormal de mercadorias, fuma nervosamente um cigarro e pede-me para partirmos cedo, estamos mesmo a entrar no lusco-fusco.
A energia renascida leva-me a comportamentos impulsivos de distribuir recomendações e ver as obras em curso. A viatura vai tão pesada que sobe a resfolegar a rampa íngreme, toda a gente a pé até lá acima, depois é a paródia de nos anicharmos nos espaços possíveis e impossíveis. Estou descansado com a segurança da estrada, duas secções da milícia passaram por aqui perto do meio dia.
A explosão, a emboscada, a reacção, o caos, de novo a reacção
No guincho à frente está Cherno Suane, sigo ao lado de Manuel Guerreiro Jorge,[o condutor,] estamos ladeados por Alcino Barbosa e Arlindo Bairrada. No alto, sentado no bidão mais protuberante vai Mamadu Djau com a bazuca nas pernas. Levamos quatro crianças, Mazaqueu quer vir a meu lado, mando-o para o pé de Albino Amadu Baldé, o comandante da milícia de Missirá.
O condutor está cada vez mais nervoso com a semiescuridão que desce, inexoravelmente. Apaga o último cigarro e pergunta-me:
-A que velocidade vamos, meu alferes?
Peço-lhe, atendendo à segurança que julgo existir, que vá a toda a velocidade até um pouco depois de Canturé, a seguir é que temos problemas, a picada está escorregadia até ao pontão de Caranquecunda. E a viatura parte à desfilada. Não se ouve o piar das aves, a lua recorta-se dentro do arvoredo que se vai sumindo rapidamente. É um anoitecer suave onde o rodado do 404 se sobrepõe à vozearia de quem vai na caixa. Exactamente quando a recta de Canturé está no fim, um estrondo medonho levanta o 404, os fios eléctricos silvam, a viatura afocinha na agonia, oiço o primeiro urro do condutor que pisou a mina anticarro, há a surpresa dos transportados, sou cuspido, sinto os óculos voarem, uma massa quente e ácida cega-me o olho direito, quer o destino que eu salte de escantilhão com a G3 na mão direita.
Tive muita sorte, os emboscados não dimensionaram devidamente a zona de morte, o 404 entrou de roldão fora da picada, terão recuado espavoridos, limitei-me a despejar rajadas, o que também terá surpreendido quem esperava uma carnificina fácil. E mais sorte tive porque Mamadu Djau deu novo sinal da sua valentia, do seu destemor, desferindo duas bazucadas que troaram naquela floresta em reboliço.
Manda o pudor que vamos encerrar por aqui a descrição desta emboscada incongruente e até pensar que um homem vestido de caqui amarelo que avançou para mim como que para me esganar e a quem enfiei o tapa-chamas da G3 no frontal não existiu, se bem que tenha deixado a arma ensanguentada. O importante era reagir um pouco mais, medir o desastre e ir pedir auxílio, passado o perigo de vida para todos nós.
Os acontecimentos sucedem-se em catadupa, lembro avulsamente que o guincho estava retorcido e que logo pensei que o Cherno ficara pulverizado, as crianças estavam estiradas na berma da picada, o tiroteiro, os dilagramas e as granadas defensivas eram a resposta da sobrevivência. Depois, o fogo arrefeceu, aquela estranhíssima emboscada deixou de dar sinal de vida, o que se ouvia até ferir os tímpanos eram os gritos lancinantes de Manuel Guerreiro Jorge que perdera as pernas e entrara em estado de choque. O Alcino queixa-se, há mais feridos, a caixa do 404 cedeu, como num naufrágio os bidões e todas as mercadorias estão espalhadas à nossa volta.
Se existe inimigo perto, penso, está a reagrupar-se. Falo com Mamadu Djau, dando-lhe a saber que ele vai ficar ali com todos os homens e que vou até Finete e levo as crianças, vou buscar reforços e mesmo auxílio a Bambadinca. Nunca mais esquecerei a resposta de Mamadu:
-Pode confiar, não me entrego, juro-lhe que vamos aguentar até regressar.
A cambalear, agradecendo a Deus só ter perdido o olho direito, como suposera, rodeado de crianças que me seguem no mais absoluto silêncio, demoro menos de uma hora até chegar a Finete. A povoação espera-me na porta de armas, naquela mesma rampa por onde há pouco passei com uma viatura carregada, nós desejosos de chegar a Missirá, tomar banho, jantar, dormir um pouco para, pelas quatro da manhã, partirmos para Mato de Cão.
Bacari Soncó recua quando me vê com o rosto escurecido. Peço-lhe um balde água que ele me atira brutalmente sobre os olhos. Afinal não ceguei, mesmo com o olho cheio de dores vejo ao longe o bruxulear das luzes no porto de Bambadinca. Estou especado, ergo a cabeça para os céus, rezo o Credo. Seguem-se as ordens, os civis acompanham os milícias, eu parto para Bambadinca. Peço insistentemente a Bacari que me lave o tapa-chamas. Ele não faz perguntas.
Aqueles grandes momentos de solidariedade (2)
Mesmo com a noite enluarada, atravesso a bolanha aos trambolhões, não fora aquele recuperar de energias dos últimos dias e o suplício da caminhada não teria chegado ao fim. Mufali Iafai atravessa-me de novo para Bambadinca, não faz perguntas, ouviu o suficiente à distância de seis quilómetros para saber que houve uma grande desgraça. É o Zé Maria quem me leva até ao quartel e também não faz perguntas, limita-se a olhar a minha cara queimada e a roupa desfeita.
O Ismael Augusto e o Fernando Calado, décadas depois, lembraram a minha entrada na messe de oficiais, nessa noite de 16 de Outubro, à hora do jantar:
-Mal se abriu a parte de vai-vem e tu apareceste completamente chamuscado, percebemos a desgraça. Toda a gente se levantou, tu falaste na mina anticarro e numa emboscada, disseste que havia feridos graves, o major Cunha Ribeiro tomou imediatamente as decisões necessárias. Parecia que o desastre era completamente nosso.
E assim foi. O Reis partiu com um pelotão, veio o David Payne com ajudantes, aparecerem rapidamente as viaturas, Bambadinca actuava em uníssono. Teve aqui lugar um gesto afectivo inesquecível. O major Cunha Ribeiro sentiu que os meus nervos estavam á beira de rebentar. Pegou-me num braço e disse-me ao ouvido:
-Tigre, vamos lavar a cara, tem que fazer pela noite inteira, o Gomes vai preparar-lhe umas coisas para comer e beber, uma boa parte do nosso jantar segue consigo.
Quando nos reencontrámos em 1994, em Fão, ele tinha esquecido o seu gesto e até mesmo a organização daquela emergência. Foram momentos inesquecíveis de solidariedade que me fizeram suportar a dor física e moral.
Estávamos a chegar a Finete quando a coluna de milícias e civis descia a rampa com os feridos, à luz de archotes. Não sei porquê, voltei a recordar os sons que ouvira ao amanhecer de “Um Requiem Alemão” e sempre que oiço esta obra-prima regresso a Finete e ao sofrimento dos meus homens. O Manuel Guerreiro Jorge morreu nos braços do David. O Alcino Barbosa coxeava, e ainda não sabíamos que era uma fractura de calcâneo. O Arlindo Bairrada tinha estilhaços num saco lacrimal. Albino Amadu Baldé tinha várias fracturas nas pernas.
O caso mais grave era o de Cherno. Ele foi descoberto milagrosamente perto de um morro de baga-baga, com o deflagrar da explosão fora atirado pelo sopro a vários metros de distância. Estava deformado, ensanguentado, irreconhecível. Com o maqueiro, lavamo-lo até aparecer um rosto tumefacto, sulcado de feridas, lábios rasgados, sangue a escorrer dos ouvidos, sempre a gemer, a suplicar água, a denunciar o calvário das dores. De madrugada, deitado a seu lado, procurando-o acalmar, ele disse baixinho:
-Alfero, agradeço a Deus morrer depois de o ter visto.
E pela primeira vez na minha vida vi o Cherno a chorar em silêncio. Na manhã seguinte, morto e feridos foram resgatados por um helicóptero. Como se sabe, Cherno não morreu, teve um traumatismo craniano profundo, é hoje um deficiente das forças armadas portuguesas. Despeço-me do Reis e David Payne, eles regressam a Bambadinca e eu a Missirá.
De Missirá a Bissau
Queta Baldé ficara em Missirá e contou-me depois:
-A minha secção estava de faxina, tínhamos que apanhar lenha, ir buscar água, dois quilómetros para lá e dois quilómetros para cá a rebolar os bidões, três horas no reforço, três horas a descansar, três horas no reforço. Ouvimos a explosão e os tiros, pressentimos uma grande desgraça. Estávamos em Missirá com os furriéis Pires e Pina. Esperámos toda a noite, os homens foram à mesquita pedir a Deus para que ninguém tivesse morrido. Ao amanhecer viemos com o segundo comandante da milícia de Missirá, Bubacar Baldé, em direcção a Finete. Quando vimos a viatura desfeita, tudo espalhado, muitas marcas de sangue, suspeitámos o pior. Não pode imaginar a nossa alegria quando vimos uma coluna vinda de Finete e nosso alfero a mancar à frente.
Em Missirá, fui lacónico na descrição dos acontecimentos mas prolífico na resposta. Combinara com o alferes Reis que a viatura ficaria armadilhada, depois de se trazer os víveres e os combustíveis. Tínhamos que nos preparar para tempos sem viatura já que o 404 ficara completamente destruído (felizmente não foi assim, a solidariedade dos desempanadores mostrou-se logo, o burrinho recuperou forças a 18 de Outubro, fez serviço à água e até Gã Joaquim, onde vinha receber os abastecimentos do Sintex).
Carta do pai do Manuel Guerreio Jorge, com data de 10 de Novembro de 1970, já com o Bej Santos a viver na Metrópole.
Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
O Pires foi fazer o patrulhamento à volta de Canturé, os resultados foram inconclusivos quanto à força emboscada, encontraram-se cartuchos, granadas de RPG2, pensou-se que terão retirado por Canturé até Chicri. Segundo relataram os que estavam em Missirá a 16 de Outubro, foram ouvidos tiros de pistola, pelas duas da tarde, ali perto, poderá ter sido uma força que estava à espera do grupo emboscado ou montara emboscada perto de Morocunda. Não interessava, tratava-se de um grande desastre, eu tinha o sentimento de culpa, houvera várias negligências, baixara irresponsavelmente as guardas, as gentes de Madina foram extremamente hábeis, aproveitaram-se bem dos nossos gestos automatizados, as nossas idas diárias a Mato de Cão, talvez a euforia da transferência.
Tenho que ir a Bissau a vários médicos. Perdi os óculos, seguramente que aconteceu alguma coisa ao meu olho direito, o ouvido dói-me e não há analgésico que abrande a dor, o David Payne sugere que eu vá amanhã.
Estou derreado, Ussumane Baldé veio prontamente avisar-me que é o substituto temporário do Cherno. O régulo pede para ser recebido, abraça-me com calor, longamente e a custo retenho as lágrimas. A seguir ao jantar, depois de ter ido buscar a morada dos pais do Manuel Guerreiro Jorge, escrevo uma carta onde, de forma abreviada, falo da mina anticarro e da morte do condutor que não queria viajar de noite.
Mal sabia eu que se iria iniciar uma troca de correspondência que durou largos meses. O que me surpreendeu na carta que recebi, dias depois, do Sr. Jesuino Jorge, do Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique, era a pretensão que me pareceu mórbida: o pai pedia-me insistentemente que lhe descrevesse o sofrimento e os últimos momentos do seu filho, sem faltar à verdade. Vim a aprender que é um pedido natural de quem não viu, não acompanhou, o desaparecimento físico do ente querido. Prometi visitá-lo um dia, faltei à promessa, a essa e a outras ainda mais graves: por exemplo, nunca visitei, nunca mais soube do paradeiro do Alcino Barbosa, que me fora tão devotado.
Estou no meu abrigo, é mais uma noite suave onde os coágulos de sangue nos meus joelhos e nos braços me impedem de dormir. Arrastando-me até à secretária, a pretexto de escrever ao Carlos Sampaio, arremedo uma prosa poética:
Efeméride: seis da tarde quando a formiga sacode a pólvora.
No fragor, sangue e alabastro nos olhos espalmados, vazos.
Seis da tarde à medida de um potro selvagem que soube ludibriar
o corno da morte. Ao sacudir a pólvora, abriu-se uma cratera
que engoliu feridos e mortos, todos inocentes.
Assim chegou o Outono da doce vinha, aqui uma época seca.
Aprendi com esta efeméride: pelas seis da tarde, Deus estava na lua,
para uns, a fortuna era uma rosa de betão, momentos de perdição,
para mim a fortuna tornou-se vida quando Cherno Suane
regressou à vida nestes trópicos de fúria e fetos aborígenes.
Deus seja louvado.
Fecho o aerograma, venho à porta do abrigo ver o céu, todo estrelado. Depois parto para Bissau. Ainda não sei, vou ser tratado por um médico oftalmologista açoriano, que se tornará num grande amigo. E até irei estudar um pouco da história da Guiné. Por favor, sigam comigo até Bissau.
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Notas de L.G.:
(1) Vd.posts de 9 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2251: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (8): Cartas que levam saudade(s) das terras e das gentes do Cuor
(2) Vd. também sobre este episódio, os seguintes posts:
24 de Junho de 2006> Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio (Luís Graça)
26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)
(...) Era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o tigre de Missirá, tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto (...) (Vd. post de 24 de Junho de 2006):
A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos (...).
Mário: Não foi a 15, mas sim a 16 de Outubro de 1969, como já ficou esclarecido entre nós. Na lista dos mortos do Ultramar, da Liga dos Combatentes, é também esta a data da morta do Manuel Guerreiro Jorge.
Na história da CCAÇ 12, também consta essa data:
"Registe-se ainda a intervenção do 2º GR Comb que, com o Pel Rec Inf da CCS [do BCAÇ 2852], foi em socorro duma coluna do Pel Caç Nat 52 que em 16 [de Outubro de 1969], já ao anoitecer, caiu numa emboscada com mina A/C comandada, no itinerário Finete-Missirá, próximo de Canturé, sofrendo um morto e três feridos graves".
O mais importante é que o Corca Só não te levou para Madina/Belel o teu escalpe. E hoje estás vivo, e está entre nós, partilhando connosco as alegrias e as tristezas de um tempo e de um espaço que nos coube em sorte, nos nossos verdes (e loucos) vinte anos... Mas sei do que falas: ser vítima da explosão de uma mina anticarro é uma situação-limite por que nem todos passaram:
2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)
23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)