Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.
Marcelino da Mata, ao lado de Almeida Bruno, Hélio Felgas, Rebordão de Brito, etc., depondo no livro Os Últimos Guerreiros do Império (ed. lit. Rui Rodrigues). Amadora: Editora Erasmos. 1995. (Colecção Memória do Tempo). 290 páginas.
1. Mensagem, com data de 26 de Dezembro de 2006, enviada por João S. Parreira, ex-furriel miliciano comando (Brá, 1964/65):
Caro Luís,
Depois de enviar recentemente alguns dados sobre o Marcelino, decidi pôr mãos à obra e começar a copiar algumas passagens da vida dele (e todos nós sabemos aquilo por que passámos, pois há sofrimento e sofrimento).
No caso dele, além da guerra e das condecorações, teve a paga final traduzida em injustiça e sofrimento, e que julgo que nenhum de nós poderá ficar insensível, independentemente do que pensa sobre a guerra do Ultramar.
A mim, pelo que lhe fizeram no nosso país, deixa-me ficar sempre com lágrimas nos olhos.
Um abraço
João
Caro Luís,
Com o intuito de dar a conhecer à Irene Rodrigues Marcelino (1), e não só, através do nosso blogue, mais pormenores de parte da vida de seu pai, transcrevo alguns extractos da vida militar do Tenente-Coronel Graduado Comando Marcelino da Mata (na reforma) que, de entre outros condecorados, foi publicado num livro intitulado Os Últimos Guerreiros do Império [Amadora: Erasmo, 1995].
2. Marcelino da Mata, o último guerreiro do império
[Texto seleccionado por João S. Parreira; subtítulos da responsabilidade do edior do blogue]
O Marcelino, da etnia papel, nasceu na vila de Ponte Nova, no distrito de Tite, em 7 de Maio de 1940 e tirou apenas o Ciclo Preparatório porque naquela altura, na Guiné, um preto não podia estudar no liceu.
O seu pai Martinho da Mata, e a sua mãe Marcelina Vaz tinham uma quinta e uma loja que vendia de tudo. Em Ponte Nova não havia brancos e só havia um cabo-verdeano que também tinha uma loja.
Fez a tropa, em 1960, em vez do irmão
Quando foi para Bissau matriculou-se numa escola particular onde tirou o 7º ano liceal. Na escola em Bissau andavam todos juntos, brancos e pretos e não havia discriminação – nunca a houve na Guiné, nem da parte dos brancos nem dos pretos.
De regresso a casa o irmão mais velho tinha um postal para ir para a tropa e mandou-o ir a Bolama ver o que se passava. O Marcelino lá foi com o postal e como resultado ficou incorporado pensando que estavam a incorporar o irmão – ficou assim com o nome do irmão.
Na altura não havia médico e quem fazia a inspecção era um sargento enfermeiro. 'A inspecção foi assim: ele deu-me um murro no estômago, eu encolhi-me e ele disse: é bom'... e como tal foi incorporado em 3 de Janeiro de 1960.
Quando acabaram os dois anos de serviço militar do irmão, feito por ele, foi à sua terra buscar uma certidão de nascimento e apresentou-a no Quartel e o Capitão de Artilharia que lá estava disse que ele tinha cumprido os dois anos do irmão e agora ia cumprir os dele.
Quando acabaram mais este 2 anos, estava-se no ano de 1964 altura que já havia guerra pelo que foi para a escola de Cabos.
Era condutor, mas como falava muitos dialectos, qualquer tropa branca que ia para o mato em operações levava-o como intérprete. Fala balanta, mandinga, fula, mandeco, mancai, um pouco de nalu e de diefaga, porque na vila onde nasceu havia gente de todas as etnias e ele tinha-as aprendido a brincar com os miúdos, cujos pais trabalhavam na quinta do pai dele.
Quando se apanhava alguém no mato, ele ou ela dizia logo que não falava português e então ele perguntava de que etnia era, e interpretava para o oficial comandante.
Voluntário para os comandos
Foi nessas operações em que servia de intérprete que se habituou a estar debaixo de fogo, e que começou a ganhar prática.
Nesse ano de 1964 apareceu um Tenente chamado Maurício Saraiva a pedir voluntários para formar um grupo de comandos e ele ofereceu-se.
Uma vez alistado voluntariamente no Exército Português, foi de imediato tirar o curso de Comandos, em Angola - onde a preparação foi muito dura – e ingressou nos comandos.
O regresso determinou o início da sua marcante carreira militar, tendo embarcado para a ilha do Como, onde durante 75 dias esteve adstrito ao Batalhão de Cavalaria 490 (2).
A batalha da Ilha do Como
A ilha, diz ele, tinha árvores muito cerradas, com mais de 100 metros de altura (isso causava problemas com os bombardeiros, porque as bombas rebentavam nas copas). De dia, a um metro, não se via ninguém. Só davam conta do inimigo quando ele abria fogo. A ilha estava toda cheia de pântanos, de lodo até aos joelhos e de água até à cintura.
Conseguiram várias vitórias, numa delas ficaram junto a uma povoação, o IN atacou outra unidade à qual causou mortos e quando voltou à povoação estava lá a nossa emboscada – deixaram alguns mortos. Na noite seguinte voltaram lá, eles passaram, começaram a apanhar com o nosso fogo e começaram a retirar. 'Mas conseguimos limpar a Ilha. Nós sofremos bastantes mortos, mas eles sofreram três ou quatro vezes mais.
Foi durante esta operação que fizemos a preparação do IAO, que era à bruta, com tiroteio que até fazia suar'.
Herói do 10 de Junho
Foi condecorado pelo Brigadeiro Sá Carneiro com duas Cruzes de Guerra, uma de 1ª Classe e outra de 2ª. Foi recebê-las ao Terreiro de Paço, em Lisboa, em 1967. Quem o condecorou foi 'Salazar que lhe disse que era um herói nacional, e que por aquilo que tinha lido de mim, merecia as medalhas que tinha ao peito'.
Foi a primeira vez que foi ao Continente e não chegou a ver Lisboa (foi desembarcar no aeroporto, dormir, ir à parada e voltar a apanhar o avião)e isto porque estava em preparação uma operação de grande envergadura na Cumbamori, no Norte, com 3 companhias e o seu Grupo.
No Senegal, resgatando uma companhia inteira aprisionada pelo PAIGC
Quando chegou ao aeroporto de Bissau estavam á espera dele, pelo que vestiu o camuflado, meteu-se numa avioneta directamente para Farim, e como já estavam a arrancar para o mato foi com eles. Esta operação foi efectuada a 40 kms. dentro do Senegal, e o seu grupo sofreu 4 mortos, 2 pretos e 2 brancos.
Regressaram a pé para a Guiné tendo os 21 inimigos capturados carregado o material apanhado. Voltou ainda mais 2 vezes ao mesmo local.
A última foi em 1967 quando o Comandante o chamou e lhe disse que a Companhia do Capitão Caraça que estava a fazer operações de patrulhamento na zona da fronteira com o Senegal fora toda apanhada à mão pelo PAIGC na véspera – 150 homens apanhados à mão! – e que ele tinha que lá ir buscá-los.
Na vila para onde os levaram, além do PAIGC havia um batalhão de pára-quedistas senegaleses. Foram 19 homens, todos muito bem armados, menos ele que ia vestido
com uma tanga igual às que os senegaleses usam naquela zona.
Conseguiu resgatar a nossa tropa, que se encontrava apenas de cuecas, nem as meias lhes tinham deixado, pelo que foi difícil chegar à fronteira porque os brancos não estavam habituados a andar descalços.
A tropa senegalesa fugiu rapidamente mas o PAIGC vinha em perseguição. Iam nove do seu Grupo à frente a escoltar os nossos e dez atrás a aguentar o tiro do inimigo – foi assim até à fronteira e ainda eram mais de 40 quilómetros. Puseram os nossos na fronteira e ainda voltou com o Grupo para trás para repelir o PAIGC.
Torre e Espada e outras condecorações
Nesta operação ganhou a Torre e Espada.
Condecorações: 'Ganhei duas cruzes de guerra na ilha do Como, duas em Farim, uma em Quencum e uma em Conacri (foi o Spínola que ma deu) e outra na operação de Cumbamori'.
Mais tarde comandou um grupo de brancos e era a pessoa de quem os soldados mais gostavam. Se o Comandante lhe ia pedir para arranjar voluntários, ele ia à caserna
e toda a companhia se oferecia.
Quando construiu a sua casa foram quatro soldados brancos que foram fazer os trabalhos e no fim fizeram uma grande farra.
'Havia alguns brancos que não ligavam muito aos pretos; com os outros dávamo-nos muito bem; às vezes sabiamos que iam para operações em zonas arriscadas, iamos
com eles voluntariamente, faziamos as partes mais dificeis da operação, atacávamos o inimigo, apanhávamos armamento e entregávamos a essas unidades que depois faziam os relatórios a dizer que tinham sido eles – faziamos isto por camaradagem, para evitar que eles morressem. Quando as familias deles mandavam presuntos, chouriços, laranjas, fazíamos grandes farras, pretos e brancos'.
Na Guiné havia muita confiança entre pretos e brancos, até nos negócios. Se um branco tinha um estabelecimento e um empregado preto, era o preto que fazia as contas, fazia as compras, administrava e no fim do mês não faltava um tostão.
Grupos especiais: os Roncos e os Vingadores
Na Guiné, os Grupos que teve foram os Roncos, que eram 15 pretos e 15 brancos e davam-se todos como irmãos ('comigo tinha que ser assim' e os Vingadores, que eram só pretos. E depois foram sempre grupos de brancos integrados em companhias.
No dia 25 de Abril de 1974 estava na base do PAIGC em Kandiafara, que se situava em território da Guiné-Conacri, armado em enfermeiro para obter informações. Pensou atacar Kandiafara no dia seguinte, porque tinha desaparecido da base e eles iam começar a desconfiar rapidamente. E atacou.
Em Portugal, no Regimento de Comandos
Depois esteve no Palácio de Belém, como Adjunto do Chefe da Casa Militar do Presidente da República (foi o Almeida Bruno que o levou para lá) e em fins de 1974 foi para o Regimento de Comandos.
O Jaime Neves pô-lo a dar instrução, mas dois meses depois alguns tipos foram queixar-se que ele puxava muito por eles e assim deixou de dar instrução – passou a não fazer nada.
A instrução que pretendia dar, e que não existia, era de guerrilha urbana e guerra convencional de cidades.
Depois, passava os dias a jogar às cartas.
1975: Do RALIS a Caxias
Foi preso em Maio de 1975. Foram à sua casa enquanto andava a passear com a filha mais nova.
Num café ouviu dizer na rádio que estava preso o alferes Marcelino da Mata por estar ligado a um grupo fascista chamado ELP. Foi ao regimento e o Ribeiro da Fonseca ('que foi um bom combatente') que lhe disse que tinham recebido uma mensagem para o prenderem e para o levarem para o RALIS.
Disse-lhes que isso não se fazia assim, que devia ser preso e ouvido na sua unidade. O Ribeiro da Fonseca ligou ao Jaime Neves e na presença dele disse para o levarem para o RALIS para ser ouvido e trazerem-no de volta.
Quem o levou foi um Sargento (devia ter sido um tenente ou um alferes mais antigo) que tinha ordens do Ribeiro da Fonseca para assistir ao interrogatório e levá-lo de volta, mas que quando o entregou foi se embora.
Apareceu um aspirante e dois sargentos que perguntaram que ligação tinha com o ELP, e disse-lhes que tinha sido a primeira vez que ouvira falar nisso e que não sabia o que era e eles explicaram-lhe.
Depois, apareceram mais dois, e um deles, que tinha uma barba postiça, identificou-se como sendo o segundo-comandante do ELP. Mandaram-no despir a camisa e encostar à parede. Um deu-lhe uma bofetada, ele deu-lhe um murro e o tipo caiu.
Entraram soldados, agarraram-no, puseram-lhe três algemas nos braços e nos pulsos, encostaram-no à parede e começaram a bater-lhe com cadeiras de ferro. Partiram 13 e partiram-lhe a bacia e quatro costelas e aleijaram-no seriamente na coluna – 'às vezes não posso respirar nem urinar'.
A seguir mandaram-no para Caxias onde esteve sete meses. Primeiro, durante três meses, incomunicável. Uma vez, já estava com os outros presos fez qualquer coisa que eles não queriam e puseram-no num buraco muito pequeno e sem luz durante dois dias.
Quando o libertaram de Caxias, na mesma noite foram a casa dele – veio a saber depois que era para o raptarem e mandarem para a Guiné – mas quando eles perguntavam por ele desceu por uma corda do segundo andar até ao chão.
Em Portugal em 1980 fizeram-no assinar um documento a dizer que queria sair da tropa, houve algumas dificuldades com a percentagem de incapacidade que lhe queriam dar ('eu sou alferes graduado em capitão e nessa altura era preciso ter 60 por cento de incapacidade para se manter o posto de reforma), mas deram-lhe 64 por cento e veio-se embora da tropa'. A diferença de salários é muito importante quando se tem 14 filhos.
Instrutor militar ao serviço do MPLA em 1993
Em 1993 foi para Angola dar instrução à tropa do MPLA, e estava lá há seis meses quando o Expresso publicou uma notícia a dizer que o Marcelino da Mata que estava a dar instrução em Angola era o que tinha combatido contra o PAIGC.
O chefe dos serviços secretos militares foi falar com ele e disse-lhe que todos gostavam muito do seu trabalho, mas que não podiam continuar a tê-lo lá. 'O Expresso deu-me cabo da vida'.
Durante os seis meses formou duas companhias, uma em cada três meses. O Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas de Angola foi lá visitá-lo três vezes e o Chefe do Estado-Maior do Exército, duas.
'As minhas companhias, como eles viram que eram boas, puseram-nas na guarda presidencial. No fim, quando me mandaram embora – pagaram-me tudo – levaram-me de carro ao aeroporto (se calhar também para terem a certeza que eu embarcava).
'Nessas idas a África, já voltei à Guiné duas vezes clandestinamente. Os ferimentos das torturas do Ralis doem-me menos em África'.
Abraço e até breve.
João Parreira
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Notas de L.G.
(1) Vd. posts de:
21 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1389: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (5): Comandos A. Mendes & João S. Parreira
20 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1385: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (4): Nasceu e quer morrer português (Mário Dias)
10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1357: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (3): Nem a cruz nem o altar (Mário Dias / Luís Graça)
(2) Vd. post de 20 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1385: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (4): Nasceu e quer morrer português (Mário Dias)
10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1355: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (2): Orgulho-me de o ter conhecido em Guileje (José Carvalho)
10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)