sábado, 6 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1405: Antologia (56): Marcelino da Mata, "o último guerreiro do Império" (João Parreira)

Lisboa > Belém> 10 de Junho de 2003 > Marcelino da Mata, tenente-coronel graduado na reforma.

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.




Marcelino da Mata, ao lado de Almeida Bruno, Hélio Felgas, Rebordão de Brito, etc., depondo no livro Os Últimos Guerreiros do Império (ed. lit. Rui Rodrigues). Amadora: Editora Erasmos. 1995. (Colecção Memória do Tempo). 290 páginas.



1. Mensagem, com data de 26 de Dezembro de 2006, enviada por João S. Parreira, ex-furriel miliciano comando (Brá, 1964/65):


Caro Luís,

Depois de enviar recentemente alguns dados sobre o Marcelino, decidi pôr mãos à obra e começar a copiar algumas passagens da vida dele (e todos nós sabemos aquilo por que passámos, pois há sofrimento e sofrimento).

No caso dele, além da guerra e das condecorações, teve a paga final traduzida em injustiça e sofrimento, e que julgo que nenhum de nós poderá ficar insensível, independentemente do que pensa sobre a guerra do Ultramar.

A mim, pelo que lhe fizeram no nosso país, deixa-me ficar sempre com lágrimas nos olhos.

Um abraço
João


Caro Luís,

Com o intuito de dar a conhecer à Irene Rodrigues Marcelino (1), e não só, através do nosso blogue, mais pormenores de parte da vida de seu pai, transcrevo alguns extractos da vida militar do Tenente-Coronel Graduado Comando Marcelino da Mata (na reforma) que, de entre outros condecorados, foi publicado num livro intitulado Os Últimos Guerreiros do Império [Amadora: Erasmo, 1995].


2. Marcelino da Mata, o último guerreiro do império

[Texto seleccionado por João S. Parreira; subtítulos da responsabilidade do edior do blogue]


O Marcelino, da etnia papel, nasceu na vila de Ponte Nova, no distrito de Tite, em 7 de Maio de 1940 e tirou apenas o Ciclo Preparatório porque naquela altura, na Guiné, um preto não podia estudar no liceu.

O seu pai Martinho da Mata, e a sua mãe Marcelina Vaz tinham uma quinta e uma loja que vendia de tudo. Em Ponte Nova não havia brancos e só havia um cabo-verdeano que também tinha uma loja.


Fez a tropa, em 1960, em vez do irmão

Quando foi para Bissau matriculou-se numa escola particular onde tirou o 7º ano liceal. Na escola em Bissau andavam todos juntos, brancos e pretos e não havia discriminação – nunca a houve na Guiné, nem da parte dos brancos nem dos pretos.

De regresso a casa o irmão mais velho tinha um postal para ir para a tropa e mandou-o ir a Bolama ver o que se passava. O Marcelino lá foi com o postal e como resultado ficou incorporado pensando que estavam a incorporar o irmão – ficou assim com o nome do irmão.

Na altura não havia médico e quem fazia a inspecção era um sargento enfermeiro. 'A inspecção foi assim: ele deu-me um murro no estômago, eu encolhi-me e ele disse: é bom'... e como tal foi incorporado em 3 de Janeiro de 1960.

Quando acabaram os dois anos de serviço militar do irmão, feito por ele, foi à sua terra buscar uma certidão de nascimento e apresentou-a no Quartel e o Capitão de Artilharia que lá estava disse que ele tinha cumprido os dois anos do irmão e agora ia cumprir os dele.

Quando acabaram mais este 2 anos, estava-se no ano de 1964 altura que já havia guerra pelo que foi para a escola de Cabos.

Era condutor, mas como falava muitos dialectos, qualquer tropa branca que ia para o mato em operações levava-o como intérprete. Fala balanta, mandinga, fula, mandeco, mancai, um pouco de nalu e de diefaga, porque na vila onde nasceu havia gente de todas as etnias e ele tinha-as aprendido a brincar com os miúdos, cujos pais trabalhavam na quinta do pai dele.

Quando se apanhava alguém no mato, ele ou ela dizia logo que não falava português e então ele perguntava de que etnia era, e interpretava para o oficial comandante.



Voluntário para os comandos

Foi nessas operações em que servia de intérprete que se habituou a estar debaixo de fogo, e que começou a ganhar prática.

Nesse ano de 1964 apareceu um Tenente chamado Maurício Saraiva a pedir voluntários para formar um grupo de comandos e ele ofereceu-se.

Uma vez alistado voluntariamente no Exército Português,  foi de imediato tirar o curso de Comandos, em Angola - onde a preparação foi muito dura – e ingressou nos comandos.

O regresso determinou o início da sua marcante carreira militar, tendo embarcado para a ilha do Como, onde durante 75 dias esteve adstrito ao Batalhão de Cavalaria 490 (2).


A batalha da Ilha do Como


A ilha, diz ele, tinha árvores muito cerradas, com mais de 100 metros de altura (isso causava problemas com os bombardeiros, porque as bombas rebentavam nas copas). De dia, a um metro, não se via ninguém. Só davam conta do inimigo quando ele abria fogo. A ilha estava toda cheia de pântanos, de lodo até aos joelhos e de água até à cintura.

Conseguiram várias vitórias, numa delas ficaram junto a uma povoação, o IN atacou outra unidade à qual causou mortos e quando voltou à povoação estava lá a nossa emboscada – deixaram alguns mortos. Na noite seguinte voltaram lá, eles passaram, começaram a apanhar com o nosso fogo e começaram a retirar. 'Mas conseguimos limpar a Ilha. Nós sofremos bastantes mortos, mas eles sofreram três ou quatro vezes mais.

Foi durante esta operação que fizemos a preparação do IAO, que era à bruta, com tiroteio que até fazia suar'.



Herói do 10 de Junho

Foi condecorado pelo Brigadeiro Sá Carneiro com duas Cruzes de Guerra, uma de 1ª Classe e outra de 2ª. Foi recebê-las ao Terreiro de Paço, em Lisboa, em 1967. Quem o condecorou foi 'Salazar que lhe disse que era um herói nacional, e que por aquilo que tinha lido de mim, merecia as medalhas que tinha ao peito'.

Foi a primeira vez que foi ao Continente e não chegou a ver Lisboa (foi desembarcar no aeroporto, dormir, ir à parada e voltar a apanhar o avião)e isto porque estava em preparação uma operação de grande envergadura na Cumbamori, no Norte, com 3 companhias e o seu Grupo.


No Senegal, resgatando uma companhia inteira aprisionada pelo PAIGC

Quando chegou ao aeroporto de Bissau estavam á espera dele, pelo que vestiu o camuflado, meteu-se numa avioneta directamente para Farim, e como já estavam a arrancar para o mato foi com eles. Esta operação foi efectuada a 40 kms. dentro do Senegal, e o seu grupo sofreu 4 mortos, 2 pretos e 2 brancos.

Regressaram a pé para a Guiné tendo os 21 inimigos capturados carregado o material apanhado. Voltou ainda mais 2 vezes ao mesmo local.

A última foi em 1967 quando o Comandante o chamou e lhe disse que a Companhia do Capitão Caraça que estava a fazer operações de patrulhamento na zona da fronteira com o Senegal fora toda apanhada à mão pelo PAIGC na véspera – 150 homens apanhados à mão! – e que ele tinha que lá ir buscá-los.

Na vila para onde os levaram, além do PAIGC havia um batalhão de pára-quedistas senegaleses. Foram 19 homens, todos muito bem armados, menos ele que ia vestido
com uma tanga igual às que os senegaleses usam naquela zona.

Conseguiu resgatar a nossa tropa, que se encontrava apenas de cuecas, nem as meias lhes tinham deixado, pelo que foi difícil chegar à fronteira porque os brancos não estavam habituados a andar descalços.

A tropa senegalesa fugiu rapidamente mas o PAIGC vinha em perseguição. Iam nove do seu Grupo à frente a escoltar os nossos e dez atrás a aguentar o tiro do inimigo – foi assim até à fronteira e ainda eram mais de 40 quilómetros. Puseram os nossos na fronteira e ainda voltou com o Grupo para trás para repelir o PAIGC.



Torre e Espada e outras condecorações


Nesta operação ganhou a Torre e Espada.

Condecorações: 'Ganhei duas cruzes de guerra na ilha do Como, duas em Farim, uma em Quencum e uma em Conacri (foi o Spínola que ma deu) e outra na operação de Cumbamori'.

Mais tarde comandou um grupo de brancos e era a pessoa de quem os soldados mais gostavam. Se o Comandante lhe ia pedir para arranjar voluntários, ele ia à caserna
e toda a companhia se oferecia.

Quando construiu a sua casa foram quatro soldados brancos que foram fazer os trabalhos e no fim fizeram uma grande farra.

'Havia alguns brancos que não ligavam muito aos pretos; com os outros dávamo-nos muito bem; às vezes sabiamos que iam para operações em zonas arriscadas, iamos
com eles voluntariamente, faziamos as partes mais dificeis da operação, atacávamos o inimigo, apanhávamos armamento e entregávamos a essas unidades que depois faziam os relatórios a dizer que tinham sido eles – faziamos isto por camaradagem, para evitar que eles morressem. Quando as familias deles mandavam presuntos, chouriços, laranjas, fazíamos grandes farras, pretos e brancos'.

Na Guiné havia muita confiança entre pretos e brancos, até nos negócios. Se um branco tinha um estabelecimento e um empregado preto, era o preto que fazia as contas, fazia as compras, administrava e no fim do mês não faltava um tostão.



Grupos especiais: os Roncos e os Vingadores


Na Guiné, os Grupos que teve foram os Roncos, que eram 15 pretos e 15 brancos e davam-se todos como irmãos ('comigo tinha que ser assim' e os Vingadores, que eram só pretos. E depois foram sempre grupos de brancos integrados em companhias.

No dia 25 de Abril de 1974 estava na base do PAIGC em Kandiafara, que se situava em território da Guiné-Conacri, armado em enfermeiro para obter informações. Pensou atacar Kandiafara no dia seguinte, porque tinha desaparecido da base e eles iam começar a desconfiar rapidamente. E atacou.



Em Portugal, no Regimento de Comandos


Depois esteve no Palácio de Belém, como Adjunto do Chefe da Casa Militar do Presidente da República (foi o Almeida Bruno que o levou para lá) e em fins de 1974 foi para o Regimento de Comandos.

O Jaime Neves pô-lo a dar instrução, mas dois meses depois alguns tipos foram queixar-se que ele puxava muito por eles e assim deixou de dar instrução – passou a não fazer nada.

A instrução que pretendia dar, e que não existia, era de guerrilha urbana e guerra convencional de cidades.

Depois, passava os dias a jogar às cartas.



1975: Do RALIS a Caxias


Foi preso em Maio de 1975. Foram à sua casa enquanto andava a passear com a filha mais nova.

Num café ouviu dizer na rádio que estava preso o alferes Marcelino da Mata por estar ligado a um grupo fascista chamado ELP. Foi ao regimento e o Ribeiro da Fonseca ('que foi um bom combatente') que lhe disse que tinham recebido uma mensagem para o prenderem e para o levarem para o RALIS.

Disse-lhes que isso não se fazia assim, que devia ser preso e ouvido na sua unidade. O Ribeiro da Fonseca ligou ao Jaime Neves e na presença dele disse para o levarem para o RALIS para ser ouvido e trazerem-no de volta.

Quem o levou foi um Sargento (devia ter sido um tenente ou um alferes mais antigo) que tinha ordens do Ribeiro da Fonseca para assistir ao interrogatório e levá-lo de volta, mas que quando o entregou foi se embora.

Apareceu um aspirante e dois sargentos que perguntaram que ligação tinha com o ELP, e disse-lhes que tinha sido a primeira vez que ouvira falar nisso e que não sabia o que era e eles explicaram-lhe.

Depois, apareceram mais dois, e um deles, que tinha uma barba postiça, identificou-se como sendo o segundo-comandante do ELP. Mandaram-no despir a camisa e encostar à parede. Um deu-lhe uma bofetada, ele deu-lhe um murro e o tipo caiu.

Entraram soldados, agarraram-no, puseram-lhe três algemas nos braços e nos pulsos, encostaram-no à parede e começaram a bater-lhe com cadeiras de ferro. Partiram 13 e partiram-lhe a bacia e quatro costelas e aleijaram-no seriamente na coluna – 'às vezes não posso respirar nem urinar'.

A seguir mandaram-no para Caxias onde esteve sete meses. Primeiro, durante três meses, incomunicável. Uma vez, já estava com os outros presos fez qualquer coisa que eles não queriam e puseram-no num buraco muito pequeno e sem luz durante dois dias.

Quando o libertaram de Caxias, na mesma noite foram a casa dele – veio a saber depois que era para o raptarem e mandarem para a Guiné – mas quando eles perguntavam por ele desceu por uma corda do segundo andar até ao chão.

Em Portugal em 1980 fizeram-no assinar um documento a dizer que queria sair da tropa, houve algumas dificuldades com a percentagem de incapacidade que lhe queriam dar ('eu sou alferes graduado em capitão e nessa altura era preciso ter 60 por cento de incapacidade para se manter o posto de reforma), mas deram-lhe 64 por cento e veio-se embora da tropa'. A diferença de salários é muito importante quando se tem 14 filhos.



Instrutor militar ao serviço do MPLA em 1993


Em 1993 foi para Angola dar instrução à tropa do MPLA, e estava lá há seis meses quando o Expresso publicou uma notícia a dizer que o Marcelino da Mata que estava a dar instrução em Angola era o que tinha combatido contra o PAIGC.

O chefe dos serviços secretos militares foi falar com ele e disse-lhe que todos gostavam muito do seu trabalho, mas que não podiam continuar a tê-lo lá. 'O Expresso deu-me cabo da vida'.

Durante os seis meses formou duas companhias, uma em cada três meses. O Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas de Angola foi lá visitá-lo três vezes e o Chefe do Estado-Maior do Exército, duas.

'As minhas companhias, como eles viram que eram boas, puseram-nas na guarda presidencial. No fim, quando me mandaram embora – pagaram-me tudo – levaram-me de carro ao aeroporto (se calhar também para terem a certeza que eu embarcava).

'Nessas idas a África, já voltei à Guiné duas vezes clandestinamente. Os ferimentos das torturas do Ralis doem-me menos em África'.



Abraço e até breve.
João Parreira

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Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:

21 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1389: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (5): Comandos A. Mendes & João S. Parreira

20 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1385: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (4): Nasceu e quer morrer português (Mário Dias)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1357: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (3): Nem a cruz nem o altar (Mário Dias / Luís Graça)

(2) Vd. post de 20 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1385: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (4): Nasceu e quer morrer português (Mário Dias)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1355: Testemunhos sobre o Marcelino da Mata a pedido de sua filha Irene (2): Orgulho-me de o ter conhecido em Guileje (José Carvalho)

10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1354: Testemunhos sobre Marcelino da Mata, a pedido de sua filha Irene (1): De 1º Cabo Comando a Torre e Espada (Virgínio Briote)

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1404: Um pequena estória dos Magriços de Guileje (CCAÇ 2617) (Tino Neves)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1970 > CCAÇ 2617 > O emblema dos valorosos Magriços de Guileje, "que pertenciam ao meu Batalhão" (1) (Tino Neves)


Foto: © Tino Neves (2006). Direitos reservados.

Uma pequena estória dos Magriços de Guileje
por Tino Neves.

Estavam instalados em Pirada [, zona leste, junto à fronteira com o Senegal], mas em Março de 1970 (apenas 4 meses depois do início da comissão), foram substituídos pela CCAÇ 2571, e destacados para o Guilejee, por castigo. Na altura, Guileje era flagelada quase todos os dias.

Os Magriços ficaram famosos pelo facto de, enquanto estiveram no Guileje (10 meses e 18 dias, conforme, vi num gráfico) (1), limparam a zona, por 10 km ao redor do aquartelamento, e por esse facto, o restante tempo de comissão foi passado em Bissau, como prémio desse feito.

Tiveram um único morto e não foi em combate, foi electrocutado, agarrado à lâmpada da caserna, após ter tomado banho.

Vivam os Magriços !

Um abraço
Tino Neves
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1146: Constantino Neves, ex-1º Cabo Escriturário da CCS do BCAÇ 2893 (Lamego, 1969/71).

(2) A CCAÇ 2617 esteve em Guileje desde 20 de Março de 1970 a 7 de Fevereiro de 1971). Vd. post de 11 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P864: Unidades aquarteladas em Guileje até 1973 (Carlos Schwarz / Nuno Rubim)

Unidades aquarteladas em Guileje (1964/73). Gráfico elaborado por Nuno Rubim.

Fonte: © Nuno Rubim (2006). Direitos reservados.

Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira foi alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). É médico e vive em Pombal.

Texto enviado pelo Vitor Junqueira, em 15 de Novembro de 2006.

Luís,
A continuação de um excelente trabalho nesta tarde chuvosa e triste, são os meus votos.

Tenho reparado que a nossa tertúlia foi até agora capaz de elaborar excelentes textos sobre a participação das respectivas unidades nas campanhas do Ultramar. Mas de uma maneira geral, pouco ou nada se tem dito sobre os antecedentes pré-mobilização dessas unidades, cuja existência começou muito antes da chegada ao teatro de operações. Parece-me importante que se fale dessas origens e dos laços que a elas nos ligam, assim como do papel que desempenhamos na sua formação.

De facto, e exceptuando os casos de rendição individual, à data de embarque a nossa Companhia já era para muitos de nós uma espécie de segunda família. Tínhamo-nos conhecido meses antes e o treino daqueles rapazes fora responsabilidade nossa. Então, haverá certamente muita história para contar, montes de peripécias ...

Neste sentido, mando-te um texto que poderás editar e publicar no Blogue se achares que tem qualidade para tal.

Um abraço

PS - Eu não esqueci a receita do cabrito-pé -di-rocha (1). Mas antes, ainda quero falar-te do leitão de S. Tomé e do rato que andava à boleia!


A Tropa e o Direito de Opção

A História da formação da Companhia a que tive a honra e imenso orgulho de pertencer, merece ser contada. Até onde o meu conhecimento pode chegar, tratou-se de caso único no longo rol de treze anos de mobilizações com o envolvimento de perto de um milhão de homens.

Esta unidade, como centenas (ou milhares?) de suas irmãs, terá sido concebida num Estado Maior qualquer lá para os lados de Lisboa. Mas foi numa bela ilha açoreana (2) que viu a luz do dia, mais concretamente no Batalhão Independente de Infantaria nº 17, sediado em Angra do Heroísmo, ilha Terceira.

Consta do seu BI que foi oficialmente registada a 9 de Maio de 1970, no Anexo VI à Ordem de Serviço Nº 110 daquela unidade, tendo-lhe sido atribuído o nome de Companhia de Caçadores nº 2753 e o apelido OS BARÕES (3). No crachá, viria a ostentar a legenda NOBLESSE OBLIGE.

Da sua meninice, pouco há a dizer. A não ser que foi educada com mais duas irmãs gémeas, por uns estarolas a quem as famílias açoreanas entregaram os filhos na incorporação de Janeiro de 1970. Para o efeito, aspirantes e cabos milicianos, foram os senhores de serviço. Era pessoal que se dava bem, e de uma maneira geral já se conheciam do COM e CSM [ Cursos de Oficiais e Sargentos Milicianos]. Haviam chegado uns dias antes e foi a eles que muitos pais pediram que tomassem bem conta daquelas prendinhas. Os capitães, todos de aviário, estavam ainda em Mafra a frequentar o CPC [ Curso de Preparação de Capitães] e só se juntariam a nós praticamente no momento do embarque. Por isso, os chavalitos recém-alistados ficaram entregues aos bichos.

A instrução decorreu em ambiente real , muito bélico! Pautou-se por uma regra bastante incomum nas nossas FA, ... a ausência de regras! Ou quase. Não quero dizer que a tropa se encontrava em autogestão. Ainda não, naquela altura. Aquilo que porventura terá feito a diferença relativamente a outras escolas de recrutas daquela época, foi a enorme liberdade de acção que nos foi concedida em matéria de instrução. O limite estava apenas na capacidade e imaginação de cada um. Era a fórmula percursora do dois em um, trabalho sério e muito divertimento em simultâneo.

Eu próprio caçava gaivotas em voo a tiro de Mauser. Ou lagartixas, nas encostas do Monte Brasil com uma Manelicher .22, montado numa vaca tourina, propriedade do departamento de pecuária do quartel. Os graduados espicaçavam-se mutuamente na mira de que os respectivos pelotões fossem reconhecidos como os melhores. Muita adrenalina e uns cagagésimos de testosterona a bater forte na mioleira e eis que do olímpico lema Mais rápido, mais longe, mais forte, se resvalou bem cedo para o alentejaníssimo Olha sem mãos, olha sem pés, olha sem olhos, olha sem dentes ...!

Não se fique no entanto com a ideia de que era a desbunda completa. Muito pelo contrário, havia a consciência nítida de que todos acabaríamos por ter de participar na guerra a sério. Daí a crença de que através de uma instrução dura e realista (?) se poderiam superar futuras dificuldades do combate.

Por falar em crença, eu acredito que se Nosso Senhor não gostasse de malucos não tinha feito tantos. Neste caso porém, Deus deve ter-se descuidado, porque além de fazê-los, juntou-os. Claro está que nos dias de hoje, com tanto realismo, teria ido tudo parar à pildra! E porque é que não foi? Não sei explicar, mas suspeito que os maiores gostavam do que viam.

Imagine-se que até fomos parabenizados por termos conseguido resolver um problema complicado que o tenente lateiro (sem ofensa!) responsável pela metralha, tinha entre mãos: Uma sobredotação de milhares de munições para todo o tipo de armas em uso no EP que haviam sido abatidas ao stock, no papel, mas continuavam amontoadas nos paióis. Um perigo! Rebentamos com o que era para rebentar e queimamos o que era para arder, limpámos a despensa. E mais que houvesse!

De nada valeram as muitas queixas que as forças vivas da terra dirigiram ao Cmte. Ele eram os rebentamentos da instrução nocturna que não deixavam dormir ninguém, ou os vidros das janelas que tremiam tanto que alguns até caíam, ou os projecteis que se despenhavam sobre os telhados. Ou ainda os familiares dos rapazinhos que achavam que estes estavam a ser puxados em demasia, e disso davam conta ao comando. O capitão director de instrução avisava a maltosa para ter cuidado mas, ... nada a fazer. Era daquilo que o nosso povo gostava! Certo é que, sem grandes incidentes embora com alguns infelizes acidentes, recruta e especialidade chegaram ao seu termo.

Não me recordo qual o número exacto de jovens incorporados. Mas sei que eram em número suficiente para constituírem três companhias de instrução que foram dadas como prontas em finais de Abril ou princípio de Maio de 1970. A partir dessa altura, entrou-se em regime de serviços mínimos enquanto se aguardava a ordem de mobilização. Nesta fase, já o Alf Junqueira, a minha modesta pessoa, sabia que o seu destino era a Guiné, pois tinha-me voluntarizado ainda em Mafra. Para os outros, e como se pode calcular, o suspense era enorme. Finalmente, a 9 de Maio de 1970 é afixada no placard a tão ansiosamente esperada OS nº 110 que no seu Anexo VI decreta que as Companhias 2753 e 2754 seguem para a Guiné enquanto a 2755 vai até Moçambique.

Tínhamos então uma pool de prontos que, tendo terminado a instrução, iriam integrar as Companhias mobilizadas. E então? Qual o critério a seguir na distribuição daquelas centenas de homens por cada uma das companhias? Desconheço o modus operandi em uso nas outras unidades mobilizadoras. Posso contudo presumir que, a superior inteligência de algum burocrata elaboraria listagens apropriadas com base em classificações disto ou daquilo. Não foi o caso. A questão resolveu-se de uma forma muito mais simples, directa e sobretudo democrática! Note-se que o 25 de Abril de 1974 só chegaria uns anos mais tarde! E foi assim: Numa data que não posso precisar, mas que situo na segunda semana de Maio de 1970, reuniu-se todo o pessoal na parada e perguntou-se à cambada:
- Quem quer ir com os alferes tal e tal, para a Guiné? Tá a formar.
- E quem quer pertencer à Companhia dos alferes fulano, sicrano e... , que também vai para a Guiné? Tá a formar daquele lado.

E a mesma treta para os desgraçadinhos que iam para Moçambique, que por exclusão de partes foram os que não couberam na 2753 e 2754.

Lindo trabalho! Durante uma semana, houve quem estivesse oficiosamente mobilizado ora numa ora noutra das companhias que iam para a Guiné, acabando por decidir viajar até Moçambique, e vice versa! Devo acrescentar, embora me custe porque volto a dizê-lo, sou uma pessoa modesta (!), a 2753 foi obrigada a rejeitar alguns candidatos ou teria de embarcar com um efectivo muito superior ao que determinavam as NEP.

Aproveitando a liberdade de escolha que lhes era oferecida, os rapazes organizavam-se em grupos com afinidades tão diversas como a amizade, a conterraneidade, o parentesco ou a existência de algum conhecido já a prestar serviço em algum daqueles Territórios. E como grupo, optaram. Até à estabilização final, estes grupos fizeram-se e desfizeram-se ao sabor da intuição, do impulso momentâneo ou até do convite do camarada da companhia do lado.

Olhando para todo o processo com o distanciamento de mais de trinta anos, acho que o modelo funcionou muito bem, a todos os níveis. O resultado foi a meu ver excelente, já que conferiu a estas unidades uma coesão e espírito de corpo que seriam muito mais difíceis de alcançar através da mobilização formal e burocrática.

Do ponto de vista operacional, as coisas não poderiam ter corrido melhor. No plano pessoal e humano, basta dizer que embora nos encontremos espalhados pelos quatro cantos do mundo, e lembremo-nos que os açoreanos são emigrantes congénitos, continuamos tão unidos quanto uma família. Cada um de nós sabe e interessa-se pelo destino dos outros. De dois em dois anos, encontramo-nos numa das ilhas dos Açores para compartilhar pedaços das nossas vidas.
Acho que foi bonito. E valeu a pena, sem dúvida!

Vitor Junqueira (3)
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Notas do V.J. :

1 - Este texto foi elaborado com base em dados retirados do volume História da Unidade.

2 – A CCAÇ 2753, embarcou para a Guiné a 8 de Agosto de 1970 onde desembarcou a 17, ficando provisoriamente nas instalações do Batalhão de Serviço de Material.

3 - A Companhia 2754, sua gémea, assentou arraiais em Bula, tendo sido posteriormente destacada para o Sector Leste (Piche ou Pirada ?).

4- O B.I.I. 17 já não existe. Deu lugar a uma Unidade chamada R.I.A. (Regimento de Infantaria dos Açores?). Julgo ter ouvido dizer que é uma das Unidades que vai ser desactivada.

5 - Nesta Unidade existe um memorial dedicado à CCAÇ 2753.

6 - A maioria dos elementos que constituíram esta Companhia era de origem açoreana, estando representadas todas as ilhas. Os restantes eram de origem continental, só não havendo nenhum ribatejano. Existia um elemento guinéu.

7 - No I.A.O. que decorreu na região de Caneças e Serra da Carregueira, um GC da Companhia “obteve folgadamente o 1º lugar no campeonato de Tiro de Combate da Região Militar de Lisboa”.

8 - A Companhia 2753 representou o Exército no desfile militar das comemorações do 10 de Junho de 1970, no Terreiro do Paço.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

(2) Grafia de açoriano: a forma correcta é esta, embora também exista a variante ortográfica açoreano, usada aqui neste e noutros posts. Vd. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.

(3) Vd. posts de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim2

7 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

Guiné 63/74 - P1402: Um bom ano de 2007 a partir de Mejo, Guileje (Patrício Ribeiro)

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Mejo > "Frutos do sul", é a legenda do fotógrafo...

Foto: © Patrício Ribeiro:o (2007) . Direitos reservados


Mensagem do nosso amigo e visitante Patrício Ribeiro:

Sempre que posso, passo por aqui para ler os vossos comentários e ver as fotos de lugares onde andaram noutros tempos. A maioria destes, tenho-os também percorrido com paz e em trabalho nos últimos 20 anos.

Por este motivo envio a foto em anexo tirada em Julho 2006, uma das muitas do sul da Guiné em viagem a Guiledje, Jemberém, Cabedú, Cacine, Gadamel Porto etc.

Cumprimentos

Patrício Ribeiro

Comentário de L.G.:

Caro Patrício: Obrigado por este gesto de simpatia e de apreço por nós, amigos e camaradas da Guiné. Vinte anos de Guiné-Bissau é muito. É quase uma vida. Faço votos, em meu nome e da nossa tertúlia, para que o ano de 2007 seja bom em todos os planos, a começar pela saúde e pelo trabalho. Para si, para os seus, para o nosso querido povo da Guiné. Vou convidá-lo a fazer parte da nossa tertúlia. Gostaria que aceitasse.

Guiné 63/74 - P1401: Com a CART 3492, em Bolama, no Reino dos Bijagós (Joaquim Mexia Alves)

Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 1972 > Hotel Turismo


Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > 1972 > Pessoal da CART posando juntamente com um grupo de bajudas e crianças. Da direita para a esquerda, entre as "beldades locais": Alf Gonçalves Dias, (4º Pelotão), Furriel Duarte (4º Pelotão), Alf Mexia Alves (1º Pelotão), Alf Barroso (3º Pelotão), Furriel Pires (1º Pelotão), "homem da minha confiança" (JMA)

Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 1972 > O Alf Mil Mexia Alves junto à porta do Hotel Turismo.

Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados
Continuação da publicação das memórias do Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, que de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973 passou por três unidades no TO da Guiné: pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e depois na CCAÇ 15 (Mansoa ). A CART 3492 pertencia ao BART 3873 (1).

Mensagem de 15 de Novembro de 2006:

Caro Luís:

Envio mais um escrito e respectivas fotografias, que poderão seguir em mensagens diversas.


A estadia na Ilha de Bolama, ou no Reino dos Bijagós

E assim foi (como relatava na última história sobre o Cruzeiro no Niassa) (1): desembarcámos para uma LDG e fomos transportados ao cais de Bolama, onde fomos recebidos por uma multidão de militares, que alegremente cantavam o Periquito vai no mato, para além de outros mimos de fino recorte linguístico, que aqui me escuso de colocar, mas sei que a vossa imaginação preenche sem dificuldades.

Ao que me lembro, (ai esta minha memória), subimos uma avenida no seguimento do cais e fomos instalar-nos no Hotel Turismo de Bolama, o que, se pelo nome poderia parecer que estávamos de férias, era totalmente desmentido pelas instalações, que pareciam estar ao abandono há já largo tempo.

De qualquer modo, como a estadia era paga pelo Estado, não convinha muito reclamar!!! Que saudades haveria de ter dessas luxuosas instalações.

A vida corria pacata e tirando uns ruídos ao longe, que os residentes identificavam como embrulhanços (palavra que passaria a fazer parte do nosso léxico), a locais de nomes estranhos para nós como Tite e outros quejandos, e que vinham acompanhados de histórias para meter medo, de bombas a cair, balas tracejantes, etc, e que logicamente, eu, (santa ingenuidade), pelo menos não acreditava, (porque raio haveria de existir alguém com interesse em dar cabo da minha vidinha), parecia-nos ou parecia-me que a coisa se faria sem grandes dificuldades.

Alegremente, ingenuamente, depois dos variadíssimos exercícios militares para nos prepararem para o enquadramento no teatro de guerra (sempre detestei esta expressão), passeávamos pela localidade, apreciando as belezas naturais, quer as da natureza propriamente dita, quer as com duas pernas, novidade total para quase todos nós.

Num desses passeios descobrimos uma árvore muito curiosa! Era uma árvore grande, alta e muito larga e dos seus ramos, lá no alto, quase sem folhas, pendiam umas centenas ou talvez mais, de frutos estranhos com muito mau aspecto.

Trocámos diversas opiniões sobre o assunto e, não chegando a nenhuma conclusão, perguntámos ao pessoal antigo, com certeza já conhecedores da flora local, qual era o nome da referida árvore e seus frutos.

A gargalhada foi geral, pois a árvore era um Embondeiro e os seus frutos eram...morcegos!!!

Visitámos praias e outras belezas da Ilha de Bolama que, a meu ver, poderia ser um óptimo destino turístico.

Numa das tabancas onde estivémos, quando passámos uns 5 dias acampados, seria Calege ou em Punjunguto, reparamos que os Bijagós estavam a fazer uma espécie de bebida, que viemos a saber era vinho de cajú.

Na Ilha havia muitas matas de cajú, outra revelação, pelo menos para mim, pois não fazia a mais pequena idéia que aquilo que eu comia na Metrópole, beberricando os meus uísques, era afinal a parte de baixo de uma espécie de maçã, que tinha um sumo adstringente, que retirava a sede durante horas, e que muito haveria de servir mais tarde.

Com o meu hábito de tudo experimentar, pedi para beber um pouco daquele líquido de muito mau aspecto e que se revelou intragável, tendo-me para além do mais, provocado uma valente diarreia!!!

Fizemos ainda uma excursão nocturna, alguns de nós, para ouvir umas tais cobras, (surucucus?), que nos diziam, assobiavam, cantavam, na areia das praias, nas noites de luar. Não ouvi nada e apesar de me terem jurado a pés juntos que era verdade, ainda hoje tenho a sensação de ter sido gozado!!!

Fomos estreitando relações entre nós, encontrando métodos de trabalho, adaptando-nos uns aos outros e ao clima e preparando-nos para assumirmos aquilo para que tínhamos sido mandados para a Guiné: substituir a companhia que estava no Xitole (2) e que tem neste blogue alguns muito dignos e valentes representantes, que ainda não me agradeceram o facto de os ter mandado para casa!!!

Esta última parte é brincadeira, obviamente!!!

Seguir-se-á quando houver tempo e disposição, a estadia no Xitole, na Ponte dos Fulas, no Rio Udunduma, em Mato de Cão, Bissau (5 dias) e finalmente Mansoa.

Abraço forte, que estou quase a entrar na guerra!!!


Abraço amigo do
Joaquim Mexia Alves

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)

(...) "O calor, quando entrámos no Golfo da Guiné, era insuportável, e somado ao barulho constante das máquinas do navio e ao cheiro a vomitado que tomava conta dos corredores, tornou o Natal a bordo algo de inesquecível, dando razão àqueles que, preocupados com o nosso bem estar, nos fizeram embarcar naquela data para a Guiné.

"Chegados ao largo de Bissau, descemos directamente para as LDG, que nos transportaram para a ilha de Bolama, (pelo menos o meu Batalhão), onde fomos recebidos com cânticos do folclore autóctone, nomeadamente, a por demais conhecida canção Periquito vai no Mato. Ficámos em Bolama cerca de um mês, mas isso é estória para depois.(...) ".

(2) CART 2716 (Xitole, 1970/72) a que pertenceu, por exemplo, o ex-furriel miliciano David Guimarães, um dos nossos mais antigos tertulianos.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1970 > O Guimarães e a Helena. O Xitole era, tal como Bambadinca, sede de concelho ou circunscrição administrativa. A povoação que lá vivia era, no entanto, menos numerosa do que a de Bambadinca, sede do BART 2917 (1970/72). No início de 1972, chegou a CART 3492, a que pertencia o Joquim Mexia Alves.
Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1400: Questões politicamente (in)correctas (14): Os Zés da Desordem deste País (Albano Costa / Torcato Mendonça)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Guidaje > Novembro de 2000 > O regresso (do Albano Costa) e a descoberta (pelo Hugo Costa, seu filho). O Albano foi 1º cabo da CCAÇ 4150 (1973/74).

Foto: © Albano Costa (2005). Direitos reservados.



1. Mensagem do Albano Costa:

Caro Jorge Cabral:

Obrigado, por teres trazido esta notícia para o nosso blogue, e ao Luís por a ter inserido (1). É bom que se chame atenção dessa guerra que, depois do 25 de Abril e ainda hoje passados 32 anos, a querem apagar da mente dos mais jovens, esquecendo-se que é preciso olhar para muitos Zés da desordem, os quais realmente é preciso morrerem para que a sua guerra acabe.

Esta tua chamada de atenção fez-me lembrar o que se passou em Guidage, em Maio de 73: quantos colegas ainda hoje têm dificuldade em esquecer o que se passou naquela altura!... Aiinda há bem pouco tempo estive a falar com um ex-combatente que esteve naquela guerra, e ainda hoje tem muita dificuldade em falar, só a muito custo foi contando alguma coisa do que lá se passou...

Obrigado mais uma vez, Jorge.

Um abraço Albano Costa

2. Mensagem do Torcato Mendonça:



Fundão: Torcato Mendonça (ex-Alf Mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69)

Fto: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.

Caro Luís: Depois das ditas Festas, voltas a aparecer. Bom Ano de 2007.

Senti a tua falta, do blogue, da leitura…mantive o hábito da abertura… da busca…finalmente aparece um post, dois, enfim o regresso.

Mas hoje, meu caro Luís, neste fim de tarde com o Sol já por detrás dos montes escondido, a geada a descer para os vales, o frio lentamente chega pé ante pé. É cedo ainda mas regresso a casa. Venho procurar um assunto na Net. Abro o Blogue, leio o escrito e poema do Jorge Cabral. Paro.

Os escritos dele são diferentes, direi desconcertantes. Releio devagar, a emoção ainda presente, o pensamento a ir-se, o Desassossego (não do Pessoa, o meu) a instalar-se, lentamente, tristemente a entender o Zé da Desordem… Tantos Zés que se afastam desta merda de ordem imposta... Porque regressaram, não regressando. Vivem na diferença e na indiferença que lhes foi é imposta, até um dia, meu caro Luís, até um fim adiado, igual ao do Zé ou mesmo em casa ou hotel de cinco estrelas, que interessa.

O Zé, os tantos Zés, terminam sós… Talvez se sintam noutro lugar, ou sintam o desejo ou o medo do regresso, não tendo nunca de lá partido totalmente…

Os Américas fazem a (s) bandeiras do nossos País. A nossa bandeira tem que ser diferente, urgente, tem que ser a bandeira para o(s) Zé (s) que ainda tantos existem, em desordem, em desassossego, nesta incompreensão de ordem que não é a deles (2)…

Nota: não tenho escrito. O tempo não é propício. Penso. Tomo alguma nota, em apontamento e guardo em reserva nas meninges. Mesmo para escrever isto, parei e não vou ler… Tenho cá um CD de fotos (50/60), não totalmente acabado, para enviar. Depois irá outro de outros tantos slides.


Um abraço,
Torcato Mendonça
Apartado 43
6230-909 Fundão

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1398: Poema de Natal: Só agora, camarada, te mataram (Jorge Cabral)

(2) Vd. último post desta série Questões politicamente (in)correctas:

12 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1363: Questões politicamente (in)correctas (13): Combatentes e desertores não cabem no mesmo saco (Amaral Bernardo)

quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1399: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (27): Sinopse: os meus primeiros 150 dias

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "A minha cubata a partir da cantina (fotografia de Luis Casanova)... O Luis Casanova gostava de instantâneos, disparos ao sabor do quotidiano. Ele registou a minha cubata a partir de um local que era o fórum dos dias quentes, a cantina. A minha cubata fora o refúgio do Prof. Armando Cortesão, um dos mais eminentes cartógrafos mundiais. O cientista viveu alguns meses em Missirá, acompanhando na região do rio Gambiel uma plantação extensa de palmeiras de Samatra. Fui várias vezes a Gambiel, e lá terá lugar, na primeira semana de Janeiro de 69, um rencontro com uma força do PAIGC. Dormi até Março na cama do cientista, com um colchão de folhelho".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "Paulo Ribeiro Semedo a hastear a bandeira. Ao fundo, conserta-se arame farpado (fotografia de Luis Casanova. O Paulo Ribeiro Semedo, em pose orgulhosa, hasteando a bandeira. Deu-nos a todos uma grande lição de protocolo, exigindo luvas brancas. A fotografia terá sido tirada às escondidas, tal a naturalidade. A bandeira era hasteada pelas 7h da manhã, no início do turno de trabalho (quem ficava em Missirá e não ia a Mato de Cão, alinhava em todas as tarefas, fosse quem fosse)".



Texto e fotos: © Beja Santos (2006). (Com a devida vénia ao ex-furriel miliciano Luís Casanova). Direitos reservados.

Texto enviado pelo Mário Beja Santos em 19 de Dezembro de 2006:


Caro Luís, por pura coincidência, e de acordo com as minhas contas, este texto que agora envio corresponde ao final do ano de 1968/2006. Comunico-te que tomei algumas decisões para o espólio do blogue: toda a correspondência que tenho da Cristina para mim ficará ao teu cuidado, poderá dar-se o caso de um dia longínquo alguém queira estudar as relações de um casal que se corresponderam cerca de 26 meses; como te disse, escrevi um folhetim no Jornal de Notícias (SPM 3778) em 1984 que ficará também ao teu cuidado.

Para ilustração deste texto, cheio de rememorações, a Bissau da época ou a Bambadinca do tempo ou posterior parece-me acertada. Envio-te igualmente pelo correio o livro A Estufa de Luis Cajão, referido nas minhas leituras. Impressionou-me o cais de Bambadinca, que recentemente reproduziste, em todo o seu abandono no fim dos anos 90. Apeteceu-me desfiar muitas recordações mas temo ser prolixo. Fica para outra oportunidade. Recebe um grande abraço do Mário.


Estes primeiros 150 dias
por Beja Santos


Toda esta movimentação em torno do Natal foi muito gratificante. Tratou-se do segundo Natal vivido fora da família. Em 1967, passei-o nos Arrifes, na ilha de S. Miguel, na companhia de soldados marienses que, a pretexto do muito mau tempo no canal, não poderam abandonar a ilha. Então , em escassos dias, pus-me em movimento e pedi ajuda para a consoada e a realização de uma festa com distribuição de lembranças.

Aqui, em Missirá, foi mais impressionante: cercados pela guerra, por uma população islamizada que não podia comungar a fundo as nossas alegrias e saudades, com falta de tudo, a festa ergueu-se e atingiu todos.

Balanço dos primeiros cinco meses do ano de 1968


Procedo agora a um balanço de tudo quanto aconteceu desde o momento em que entrámos no canal do Geba, na madrugada de 29 de Julho (1).

Saí de Santa Luzia à procura de uma cidade que provoca sentimentos contraditórios: é colonial nos seus símbolos, na sua arquitectura (a Baixa de Bissau lembra uma vila como Penacova ou Mortágua), na presença do branco nos ponto chave da decisão; é África multicolorida nos seus mercados, na festiva comunicação, nas canoas que circulam à volta do cais, no envolvimento dos palmares que convocam a atmosfera dos trópicos; é o caos urbano dos últimos anos que as autoridades coloniais controlam a custo com os inúmeros refugiados que pululam por toda a península de Bissau e que vão crescendo à volta de Quinhamel e Nhacra.

Quando desço a avenida em direcção ao cais paro à porta de um cinema que anuncia Operação Zanzibar. Mais tarde, nas noites de cinema de Bambadinca ao ar livre, recordarei este momento quando for ver Operação V2, com uma máquina de cinema que me parecia puxada por um tractor, tal o barulho e cheiro a gasóleo.

Fiquei triste com a riqueza das peças do museu, mal expostas e ilustradas, tratando-se de património de valor gigantesco (em 1993, recordo as salas do Museu Metropolitano de Nova Iorque onde encontrei arte Nalu e Bijagó, oferta de um Rockfeller).

Logo escrevi postais à família e visitei o Eugénio Cruz Filipe e mulher, por recomendação do Emílio Salgueiro. Comprei música de intervenção e livros proibidos em Portugal. No início de Agosto, despeço-me de camaradas que vão para locais que são difíceis de soletrar. Disseram-me que vou para Enxalé, afinal é uma terra chamada Missirá.


A desertificação do Cuor


Em Bambadinca, avisam-me de perigos e a missão mais importante que recebo é patrulhar diariamente Mato de Cão, de acordo com as marés e a extensão dos comboios de navios. Em nenhuma circunstância posso faltar ou falhar, trata-se da via fundamental dos abastecimentos para todo o Leste.

Gradualmente, descubro o posicionamento do PAIGC, as suas vias de abastecimento tanto para os Nhabijões como Santa Helena e Mero. O armamento de Missirá é incompatível com a missão ofensiva e defensiva e Finete, se o PAIGC quiser, não resistirá maior a uma tempestade de fogo.
Missirá tem os abrigos podres, vive-se num desconforto absoluto e em Finete o arame farpado está praticamente por terra.

Em meados de Agosto, estabeleci prioridades embora já não tenha interlocutor para as validar: batalhão sai, batalhão entra. Em 1963, todo o regulado do Cuor é atingido pela guerra de guerrilhas, as povoações são abandonadas, Enxalé tem competências sobre Missirá enquanto Caranquecunda, Canturé, Malandim e Gambaná desaparecem do mapa. O régulo e a sua família recusam-se a partir para a guerrilha e saem de Sansão para Missirá.

Esse ano de 1963 não é esquecido pelas populações devido a um massacre em Gambaná de gente indefesa arrebanhada pelo PAIGC. A estrada Enxalé/Missirá é abandonada em 1966, após várias minas anticarro e pesadas emboscadas entre Malandim e Canturé. Missirá passa para o sector de Bambadinca e reinventa-se um destacamento em Finete para tornar mais defensável a periclitante posição de Missirá.


A burocracia kafkiana do Exército

Se hoje recordo estes dados é porque em Janeiro de 1969 o Brigadeiro António de Spínola e o tenente-coronel Hélio Felgas gritam furiosos com a falta de meios defensivos e de segurança, como se eu não soubesse e responsabilizam-me pela situação. Como era ilógico utilizar-me como bode expiatório, irei receber dois dias de prisão em Fevereiro por "ter apresentado o aquartelamento em fracas condições de defesa e em deplorável estado de limpeza, arrumação e asseio".

Para quem acompanha o desenvolvimento destes episódios a punição é surrealista, irei reagir exclusivamente por motivos e honra, já que estava desinteressado das chicotadas psicológicas do comandante-chefe e do seu colaborador em Bafatá. Aliás, na segunda visita do comandante-chefe a Missirá, em Fevereiro, estou num patrulhamento ofensivo em Quebá Jilâ, donde traremos um prisioneiro. São outras histórias que aqui serão contadas.

Devido a essa punição, jamais gozarei férias e as três vezes que irei a Bissau serão para ser operado, em Março, para remover estilhaços, tratar a queimadura da cara e comprar novos óculos depois da mina anticarro em Outubro, e para casar em Abril de 70. A punição foi uma indignidade para quem ma aplicou, a par dos remorsos de quem sabia da sua injustiça: no mesmo dia em que o Comandante-Chefe me alterava o teor da punição, em Agosto de 69, o mesmo algoz, o tenente-coronel de Bafatá, louvava-me considerando que o meu comportamento militar era digno de ser apontado como exemplo em todos os teatros de operações (e esse mesmo louvor seria dado pelo Comandante Militar).

Vários abrigos foram sujeitos a obras, pediram-se equipamentos, encontrou-se um professor para dar aulas às crianças e aos soldados, depois da flagelação de Setembro as moranças afectadas foram rapidamente reconstruídas. A burocracia é infernal: processo da granada de fumos que sinistrou Abudu Cassamá, em Finete, processo da granada incendiária que sinistrou Fatu, uma mulher, ocorrências de 1964 e 1966; abro o correio e tenho uma nota de um capitão de artilharia de Porto Gole a informar que não há nessa unidade duas camas do nosso pelotão... e ninguém sabe a que duas camas se refere o dito oficial; a todo o momento a CCS de Bambadinca manda fazer inventários abarcando capacetes, petromaxes, jerricãs, camas e o mais que se sabe.

O ferro-velho de Malandim


Caçadores nativos e milícias têm o dia ocupado, sete dias por semana. Por exemplo, não chega ir a Mato de Cão montar segurança. Pode muito bem encalhar uma lancha e ali ficarmos, esfomeados, até que suba a maré do Geba e as hélices vençam a prisão da lama. A guerra devasta os ânimos, corrói as energias mas aguça o engenho. É o que se passa quando o Furriel Luís Casanova me entra pela morança adentro, eufórico, dizendo:
- Meu Alferes, já tenho resposta para refazer o meu abrigo. Vamos desfazer a casa de Malandim e eu aproveito todos os ferros para a cobertura.

Vamos a Malandim e o guincho do Unimog 404 faz tais prodígios. Na data, escrevo emocionado para Lisboa, nesse final de ano:

"Escrevo-te cheio de saudades no auge de um virulento inverno africano. Uma bruma quase líquida paira a 5 metros do solo, isto quando ao mesmo tempo há um arco-íris sobre o Geba que dá imensa beatitude aos campos lavrados para lá dos Nhabijões, sob um fundo opaco da linha do horizonte. Tu não acreditas, mas esta é a natureza equatorial. Fomos hoje a Malandim onde o guincho da viatura extraiu as vigas metálicas de uma casa arruinada. Trouxemos também madeira preciosa para os abrigos de Finete e Missirá. O Casanova não pára, aproveita todos os ferros de chassis, tampas enferrujadas de poços, rodas de destiladores, varões de uma bomba hidráulica... A casa de Moussá, chefe de tabanca em Missirá, vai também ser uma maravilha com este madeirame de Malandim. O Casanova aproveitou tudo: alambiques, telhas e portas sem caixilhos, chapas de bidões, do abandonado se faz vida".


O helicóptero do PAIGC nos céus do Cuor

Das recordações da época, vacilo quanto à sua autenticidade. Então telefono ao Queta e peço-lhe ajuda:
- Ouve, tu lembras-te do helicóptero que depois do Natal pairou sobre Missirá e quis mesmo aterrar? Informei Bambadinca e disseram que eu delirava, helicópteros portugueses nunca circulam de noite. Lembras-te?

O Queta lembra-se de tudo, se bem que me tenha prometido, aproveitando as noites de segurança, para pôr em sequência as duas visitas do comandante-chefe a Missirá, já que tem as suas dúvidas:
- Nosso alfero, eu sei que não acredita mas aquele helicóptero era do PAIGC e andava à procura de Sarauol, o grande hospital da região Centro. Estou à vontade pois em 1973 destruímos o hospital que tinha um grande heliporto. Aquele helicóptero não tinha nenhuma identificação . Depois de sobrevoar Missirá, vimo-lo bem iluminado a 15 km de distância. Eu não sei o que teria acontecido se eles tivessem aterrado na nossa parada!


O ódio aos cabo-verdianos

Falo-lhe então do episódio doloroso do acidente do Paulo Semedo e da reacção de Mamadu Silá que recusou ajuda ao ferido:
- Nosso alfero, Paulo era cabo-verdiano e cristão de Geba. Nós gostávamos do Paulo mas nascemos a odiar os cabo-verdianos que mandavam em tudo, desprezavam-nos, para eles éramos animais. Lembra-se a conversa do chefe de posto de Bambadinca, um cabo-verdiano, na loja do Zé Maria? Eu estava lá!

A conversa a que o Queta se refere tem a ver com a apresentação do chefe de posto fez numa altura em que eu comprava pregos no estanco do Zé Maria. Pareceu-me um homem afável, tentou sacar informações de Missirá e insistia nos problemas disciplinares e que eu devia ser implacável. Respondi-lhe que não havia problemas disciplinares e não percebia a que tratamento implacável se referia. Com um sorriso largo respondeu-me:
- Estes pretos de merda são preguiçosos e têm que ser tratados com chicote de hipopótamo!


A biblioteca de Missirá


Deixemos agora de lado este tabu do racismo e as maravilhas da reciclagem que nós fazíamos. O ano está a acabar e posso dizer que li algumas das obras primas que marcaram a minha formação. Eu não queria acreditar que depois do Carlos Oliveira se seguia o José Cardoso Pires e depois Emily Brontë. Em 1964, conheci o Luís Cajão quando eu fazia apontamentos para a Crónica Feminina. Foi graças a este pequenino part-time que entrevistei, por exemplo, Elena Suliotis e conversei com Cajão que me despertara interesse por ter escrito um romance passado na ilha do Príncipe.



Capa do romance O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë (Lisboa: Portugália Editora, 1965) (Colecção Romances Universais, XXXV).


Capa do romance A Estufa, de Luís Cajão. 2ª edição. Lisboa, Editorial Escritor, 1996. (Edição original, 1964).



Nestas noites de Inverno equatorial releio esta prosa admirável de A Estufa. Admirável e corajoso: jamais a realidade santomense fora descrita com tanto fulgor e com imagens tão fortes e com tanta autenticidade: os podres da administração, os agentes corruptos, a gesta do trabalho roceiro, os desastres afectivos no meio de uma natureza genesíaca. Ninguém resiste a comover-se com o despedaçamento de uma tartaruga, esquartejada viva, o colorido do porto de Príncipe, a discrição do dia de S. Vapor e dos registos identitários dos protagonistas.

Cajão ofereceu à literatura luso-africana uma obra imorredoira, injustamente esquecida mas que naquele preciso instante do final de 1968 me permitia ver com clareza os desaires do nosso colonialismo.

Não quero terminar o ano sem falar sobre o que aconteceu em Chicri. Matei pela primeira vez e nos anos seguintes voltarei a matar com a minha própria arma. Eu não sabia, mas a nossa vida muda radicalmente de importância.

Amanhã é dia de paz e nem me passa pela cabeça o que me vai trazer 1969: Missirá praticamente destruída em Março irá renascer e em nenhum momento da minha existência voltarei a ter a obstinação e o denodo em ver a vida sair das cinzas; haverá patrulhas, desastres e sucessos efémeros; Corca Djaló (ou Corca Só, como era conhecido no PAIGC) vai-me declarar guerra sem quartel. Quase que ganhou. E um dia, em finais de Outubro, os meus soldados vão pedir para partir para Bambadinca.

A nossa vida vai conhecer outro rumo e será nessa altura que irei conhecer o Luís Graça e enfrentarmos juntos as asperezas e as contingências do dia a dia num batalhão. Tudo isto será aqui rememorado.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:
22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1392: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (26): Missirá, 1968, um Natal (ecuménico)

18 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1376: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (25): O presépio de Chicri

13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas

5 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1341: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (23): Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)

30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1276: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (20): A (má) fama do Tigre de Missirá em Bambadinca

6 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1252: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (19): O Soldadinho de Fogo em Missirá

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1229: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (18): Não fujam, nós não somos bandidos!

19 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1191: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (17): A visita a Missirá do Coronel Martiniano

11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1165: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (16): O meu baptismo de fogo

4 de Outubro de 2006> Guiné 63/74 - P1149: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (15): Exmo Sr Alferes: Quero ir para Lisboa

29 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1129: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (14): Procurar em vão a nossa alma

26 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1118: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (13): Rebelo, meu rapaz, ninguém nasce soldado!

22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete

16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido.

8 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1058: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (9): Kaputt

7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P0157: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (8): Os meus novos amigos de Missirá

6 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1050: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (7): O espectro de Kafka nas guerras do Cuor

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

10 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1032: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (5): Uma carta e um poema de Ruy Cinatti

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1021: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (4): A minha paixão pelo Cuor

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1004: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (1): o pudor das nossas recordações

Guiné 63/74 - P1398: Poema de Natal: Só agora, camarada, te mataram (Jorge Cabral)

Correia da Manhã > S/d [Dezembro de 2006] > A recorte de jornal dando a notícia de que "um ex-combatente na Guiné, de 60 anos, foi encontrado morto na barraca que lhe servia de casa, em Ponte da Barca, Nazaré (...)". Segundo informações da GNR, não havia suspeita de crime e o cadáver estava já em adiantado estado de decomposição. "O ex-combatente, que era conhecido na vila piscatória como o Zé da desordem , era divorciado e tinha dois filhos já adultos"... Ultimamente afastara-se da família, vivendo sozinho numa barraca, "sem quaisquer condições de dignidade". Diz ainda a notícia que trabalhava esporadicamente na construção civil e sofria de diversos problemas de saúde, tendo já estado hospitalizado.

Foto e texto: © Jorge Cabral (2006). Direitos reservados.

1. Mensagem do Jorge Cabral, datada de 28 de Dezembro de 2006:

Luís Amigo,

A notícia comoveu-me! Um dia falarei da Alegria-Tristeza do regresso, e da dificuldade de voltar a ser eu. Envio poema ao Camarada Abandonado.

Abraço Grande

P.S. - Anexo também a notícia.


2. Esclarecimento posterior do Jorge:

A notícia chocou-me! Este Zé da desordem tinha sessenta anos e esteve na Guiné. Quantos como ele, afinal nunca regressaram? Tenho encontrado alguns - presos, doentes, alcoolizados, sem-abrigo.

Quando li no Jornal (Correio da Manhã), recortei a notícia. Era minha intenção deslocar-me à Nazaré para saber quem foi o Camarada.

Com o Natal, deu-me para pensar nele, e em todos os outros...

Não sei a data certa da publicação (talvez em princípos de Dezembro).

Bom Ano, Amigo!
Abraço Grande
Jorge

Natal
Só agora, Camarada, te mataram
Abandonado e só no teu Abrigo.
Finalmente, os pesadelos cessaram.
Não tens mais Inimigo!
A Paz foi sempre Guerra,
Porque jamais esqueceste,
Nem nunca regressaste à tua terra,
Pois foi ainda lá, que tu morreste.
Que te matou, Irmão?
Uma mina? Um tiro? Uma granada?
Ou foi a Solidão,
Que transformou a vida em emboscada?

Nunca te conheci, oh! Meu Amigo,
Apenas li a notícia no Jornal,
Mas hoje estarás comigo,
Na ceia de Natal.


Lisboa, 25/12/06

Jorge Cabral

Guiné 63/74 - P1397: Ataque ao destacamento de Beli em Maio de 1965 (António Pinto, BCAÇ 512)

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Guiné > Zona Leste > Triângulo de Madina do Boé > Beli > Destacamentro de Beli > BCAÇ 512 > Cópia do relatório do ataque ao destacamento em 20 de Maio de 1965, em que foi ferido o nosso camarada António Pinto.

Fotos: © António Pinto (2006). Direitos reservados.

Imagens alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Mensagem do António Pinto que esteve na Guiné entre 1963 e 1965, na Zona leste, como alferes miliciano (1):

Amigo Luis Graça

Espero que o teu Natal e a entrada neste novo Ano fosse o melhor possível.

Vou tentar enviar um documento (cópia), em tempos considerado confidencial e que fui descobrir na minha papelada. Dá-me a impressão que está em letras muito pequenas, mas se não conseguires ler....paciência! Refere-se ao relatório do ataque ao Destacamento de Beli em Maio de 65, elaborado e assinado por um Capitão, salvo erro, Veiga Santos, que era, na altura o comandante da Companhia a que pertencia.

Tenho tido dificuldade em mandar mais fotos pois ainda me baralho muito em lidar com o computador.

Agradeço-te para, se puderes e tiveres disponibilidade, me informes se recebeste em condições, ok?

Desculpa a minha ignorância.


Um grande abraço

António Pinto

2. O José Martins (2) deixou o seguinte comentário:

Caro Pinto: Votos de que as festas, como se diz no norte, tenham decorrido em paz e harmonia com aqueles que te são queridos.

Fiquei encantado com os documentos reproduzidos no blogue. Finalmente começa a haver história, especialmente daquelas unidades que, devido à sua condição de filhos menores, por serem formadas por indígenas, foram ficando no esquecimento dos Grandes.

Continua a vasculhar, pois tudo será pouca para legarmos aos vindouros. Temos que ser escritores de história, como me intitula o meu neto.

Um abraço e continua.

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

terça-feira, 2 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1396: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (11): 1969, na Missão do Sono, em Bambadincazinho (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento de Nhabijões > 1970 > O furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12. Ao fundo, o reordenamento de Nhabijões, a que na época chamei etnocídio (1) (LG).

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadincazinha (D), a sudoeste de Bambadinca, a escassas centenas de metros do centro (A)...

Em primeiro plano, a estrada nova (C) para o Xime (posteriormente alcatroada) e, mais acima, a antiga estrada (B), paralela à pista de aviação.... Atravessando a tabanca de Bambadincazinho (D), seguia-se em estrada (picada...) até aos aquartelamentos de Mansambo, Xitole e Saltinho (E). Vê-se ao fundo a bolanha de Bambadinca...

Era em Bambadincazinho que ficava a antiga Missão do Sono, em cujas instalações estava de serviço, todas as noites, um Grupo de Combate para velar pelo bom sono dos seus senhores oficiais superiores do batalhão que dormiam no quartel, a menos de um quilómetro... (LG).


Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.



Bambadinca, 24/25 de Dezembro de 1969...

1. É o nosso primeiro Natal na Guiné (2). Estamos em guerra. Não há feriados. Não se respeitam calendários, religiosos ou civis. No dia de Natal haverá um almoço, condigno, na messe de sargentos. Para nos fazer esquecer o tempo (miserável) que é o nosso. O sacana do vagomestre irá esmerar-se para nos trazer algumas iguarias que nos façam lembrar o Natal das nossas casas.

Em 24 de Dezembro de 1969, nas vésperas de Natal, logo de manhãzinha, vou integrado num dos dois grupos de combate da CCAÇ 12, que vão realizar uma rusga com cerco à tabanca de Mero, uma aldeia balanta, junto ao Rio Geba. Em cooperação com a autoridade administrativa de Bambadinca, dizem-nos. Não dei conta da presença do chefe de posto, caboverdiano, e bem dos seus odiados polícias administrativos.

Guardo, na memória, a hostalidade passiva om que a população nos recebe, a nós, tugas, e aos soldados fulas… Que pensará esta pobre gente balanta que não tem outro remédio senão fazer o jogo duplo ? De dia, acatam (mal) a autoridade administrativa de Bambadinca; à noite, recebem os seus parentes que estão no mato...

Apesar de alguns indícios suspeitos aos olhos do comandante da força, não foram detectados elementos IN que habitualmente vinha de Madina/Belel abastecer-se aqui. Para efeitos de controlo populacional, completou-se e actualizou-se o recenseamento dos habitantes de Mero. Acção Guilotina foi o nome de código da operação.

Nas duas semanas anteriores, o IN tinha desencadeado várias acções de intimidação (para usar um chavão das NT) contra as populações de Canxicame, Nhabijão Bedinca e Bissaque, a última das quais levada a efeito por um grupo que teria sido enquadrado por brancos (!) e que retirou para a região de Bucol, cambando o Rio Geba (o que é estranho, nunca detectámos as canoas eventualmente utilizadas pela guerrilha ou as populações sob o seu controlo).

2. Por outro lado, prevendo-se a possibilidade de o IN atacar os aquartelamentos das NT durante a quadra festiva do Natal e Ano Novo, foi reforçado o dispositivo de defesa de Bambadinca.

Assim, além da emboscada diária até às 1 a 3 horas da noite, a nível de secção reforçada num raio de 3 a 5 km (segurança próxima), passou a ser destacado 1 Gr Comb para Bambadincazinho (então em fase de reordenamento), todas as noites até às 6h da manhã, constituindo uma força de intervenção com a missão de fazer malograr o eventual ataque ao aquartelamento e/ou às tabancas da periferia, actuando pela manobra e pelo fogo sobre as prováveis linhas de infiltração e locais de instalação das bases de fogo do IN, ou no mínimo detê-lo e repeli-lo pelo fogo (este paleio é retirado da história da CCAÇ 12...).

A 26 de Dezembro de 1969, forças da CART 2520 (a unidade de quadrícula do Xime), reforçadas por um 1 Gr Comb da CCAÇ 12, realizam um patrulhamento ofensivo na região do Xime, Madina Colhido, Chacali, Colicumbel e Amedalai, sem detectacterm vestígios do IN (Op Faca Húmida).

A 30, SEXA COM-CHEFE, o Comandante Chefe, General António de Spínola, visita Bambadinca para apresentar cumprimentos de Ano Novo a todos os oficiais, sargentos e praças do CMD e CCS/BCAÇ 2852, e sub-unidades adidas, incluindo a CCAÇ 12.


3. 24 de Dezembro: Hoje é noite de Natal... Natal nos trópicos! Não consigo imaginá-lo sem aquela ambiência mágica que me vem do fundo da memória. É que do cristianismo terei apenas captado o sentido encantatório do Natal e a sua antítese, que é o universo maniqueísta da Paixão. Mas decididamente não vou fazer flash-back. Cortei o cortão umbilical a frio e da infância resta-me apenas a sensação do salto mortal.

Há, porém, certas imagens poéticas, recalcadas no subconsciente ou guardadas no baú da memória, que hoje vêm ao de cima. Por um qualquer automatismo. Ou talvez por ser Natal algures, far from the Vietnam, longe da Guiné, e eu passar esta noite emboscado. O que não tem nada de insólito: é uma actividade de rotina.

Mas é terrivelmente cruel a solidão deste tempo em que os homens se esperam uns aos outros nas encruzilhadas da morte, os dentes cerrados e as armas aperradas, em contraste com o bando alegre de crianças cabo-verdianas que, não longe daqui, da Missão do Sono (uma estrutura sanitária, agora militarizada, transformada em local de emboscada!)(3), entoam alegres cânticos do Natal crioulo ao som do batuque pagão.

No aquartelamanto, de que vejo as luzes ao fundo, ninguém se desejou boas festas porque também ninguém tem sentido de humor. Nem por isso deixou de celebrar-se a Consoada da nossa terra: um pretexto para se comer (o tradicional prato de bacalhau com batatas e grelos.. desidratados) e sobretudo para se beber (muito)....

- Hoji, festa di brancu, noite di Natal, manga di sabe! - lembra-me um dos meus soldados africanos, enquanto ao longe a artilharia do Xime e de Massambo faz fogo de reconhecimento.

E eu fiquei a pensar neste tempo de silêncio, de cobardia e de cumplicidade. Mas também de raiva. Como o Manuel Alegre, eu gostaria de poder dizer neste dia, todos os dias:

Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não
(4).


___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos

(...) "Nhabijões, 20 de Dezembro de 1969:

"Nhabijões: um conjunto de tabancas, ao longo do Rio Geba, habitadas por balantas (uma delas por mandingas), sob duplo controlo (a expressão é das NT) e agora em fase de reordenamento (outro eufemismo: para mim, trata-se de puro etnocídio sociocultural, o que se está aqui a fazer, obrigando os pobres dos balantas e mandingas de Nhabijões a transferir-se da beira rio para uma zona de planalto, sobranceira ao Geba, e a viver em casas desenhadas e construídas por europeus) (...)".

(2) Vd. post anterior, de 22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1390: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (10): Os Maiorais de Empada, 1969 (Zé Teixeira)

(3) Vd. post de 5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1047: Alá não passou por aqui (Luís Graça)

(...)

Senhores e senhoras,
respeitável público
do Circo de Imbecilburgo:
Simplesmente, neste caso,
este homem não é um homem
é um palhaço,
é um soldado,
fardado,
de camuflado,
verde oliva, desbotado,
um número mecanográfico,
uma peça da engrenagem,
que na sua essência
cumpre ordens,
às vezes com coragem,
outras com medo,
é isso que lhe dói,
neste cenário
que não é cinematográfico,
mas também pouco conforme
com o RDM:
não é um mercenário,
nem um caso psiquiátrico,
não é o homem-aranha
nem o super-homem,
não é nenhum deus do Olimpo,
nem nenhum herói
da resistência
nem muito menos do 10 de Junho:
saíu, de noite, (mal) armado,
com os pés descalços dos seus nharros,
para a impossível Missão do Sono,
em Bambadincazinh0,
guardar as costas
dos senhores
de Bambadinca,
que dormem na cama,
em lençóis lavados,
fazendo p’la sua vidinha
(...).


(4) Do poema Trova do Vento que Passa, de Manuel Alegre (Praça da Canção, 1965), musicado por Adriano Correia de Oliveira.

Guiné 63/74 - P1395: A vigília da Capela do Rato há 34 anos (A. Marques Lopes / Paulo Raposo)

1. Mensagem do A. Marques Lopes, enviada em 29 de Dezembro último:

Neste fim de ano, lembro que há 34 anos, em 30 e 31 de Dezembro de 1972, um grupo de católicos se juntou na Capela do Rato, em Lisboa, para uma vigília e greve de fome contra a guerra colonial (1).

A vigília foi organizada pelo capelão, o padre Alberto Neto, a pretexto das comemorações, em 1 de Janeiro, do Dia Mundial da Paz instituído pelo Papa Paulo VI. A vigília terminou com a invasão da polícia e com a detenção de cerca de 20 pessoas, que foram soltas passados quinze dias, sem julgamento e sem caução.

Porquê? Porque tinha sido a invasão de uma igeja, "o que punha em causa as relações do Estado com a Igreja". Mas o Cardeal de Lisboa, D. António Ribeiro, viu-se obrigado a afastar o padre, que só voltou a ter voz activa na Igreja em 1981 (em 1987 apareceu morto com um tiro na nuca, por motivos ainda desconhecidos), e os funcionários públicos que lá estiveram presentes foram expulsos dos seus empregos.

Bom Ano Novo... e melhor (estou cheio de boa vontade, claro).

A. Marques Lopes

2. Esclarecimento do Paulo Raposo (e-mail enviado ao A. Marques Lopes com conhecimento a alguns dos nossos tertulianos, pertencentes aos BCAÇ 2852 e 2851, 1968/70)... Julgo que o assunto interessa à generalidade da nossa tertúlia:


Não foi bem assim, rapaz.

O Pe Alberto Neto foi meu professor e meu amigo e o Pe. António Janela (hoje Cónego da Sé de Lisboa) que também foi preso pela Pide na Capela do Rato, é um grande amigo meu.

Conheço todos os detalhes (1). Estás a passar um atestado de menoridade a D. António Ribeiro. Nunca por nunca, D. António afastou ninguém nem ninguém o forçaria a fazer tal coisa.

Votos de um bom 2007.
Paulo Raposo
______________

Nota de L.G.:

(1) Sobre os acontecimentos da Capela do Rato, ver entre outros os seguints sítios na Net (na altura a notícia dada na imprensa portuguesa foi largamente censurada):

Associação 25 de Abril > Vigília da Capela do Rato > Ficha do Dicionário da História do Estado Novo – Fernando Rosas, J.M Brandão de Brito

Centro de Documentação 25 de Abril Universidade de Coimbra > Era uma vez um Milénio > Em tempo de mudança a História do século XX: O Marcelismo e a Economia > Transcrição da entrevista ao Arq Nuno Teotónio Pereira à Antena 2, 15 de Maio de 1998

Correia da Manhã > Polícias e Ladrões - Um tiro na nuca (1987): O mistério da morte do padre Alberto Neto

Expresso > Dossiê sobre o 25 de Abril > Expresso amordaçado