Foto: © Jorge Cabral (2005)
1. Gostaria que continuássemos a falar do cacimbo, dos cacimbados, dos apanhados do clima, dos nossos comportamentos de risco, das nossas loucuras, diabruras, bravatas... Todos nós fizemos coisas de que hoje temos algum pudor em falar... Imputamo-las ao clima, à situação de guerra, mas também aos verdes anos, ao sangue na guelra ou até ao stresse pós-traumático de guerra...
Cacimbo, por exemplo, é o título do blogue do Manuel Basto, de Coimbra, e que tem curiosamente como subtítulo Transtorno Pós-traumático do Stress de Guerra... É um dos mais antigos e pessoalíssimos blogues dedicados à guerra colonial, remontando a sua origem a Novembro de 2003. No primeiro post, Prefácio, o autor dá a sua definição do conceito de cacimbo e explicita a natureza do seu blogue:
Chamavam (es)gaseados aos ex-combatentes da Grande Guerra e cacimbados aos da Guerra Colonial, associando os seus traumas, no primeiro caso às bombas de gás e no segundo ao clima de África. O povo sempre soube o que os peritos e as autoridades teimaram em ignorar durante tanto tempo: alguns ex-combatentes sofrem do Transtorno Pós-traumático do Stress de Guerra. Para eles a guerra não acaba nunca no armistício.
Aqui compilarei os artigos publicados no jornal Elo da Associação dos Deficientes das Forças Armadas. Respeitarei o texto original mas acrescentarei algumas fotos que aqui ganham outra dimensão.
Confesso a pretensão literária destes textos, pelo que deve ser tomada em conta a intenção de transmitir sensações em vez de veicular informações, isto é, a verdade que transmito não é tanto a dos factos, como a dos sentimentos.
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, cacimbado, em Portugal, em sentido figurado e na linguagem informal é sinónimo de "um tanto maluco".
O termo cacimbo é de origem angolana. No blogue do Jorge Santos, operador cripto no leste de Angola, pode ler-se:
O termo 'cacimbado' era, para os militares, a forma simpática de dizer que o indivíduo estava mesmo 'marado da tola' ou de forma mais clara e entendível, que estava a ficar doido pela pressão do dia a dia.
2. Escreveu o Joaquim Mexia Alves, que foi em tempos Alf Mil de Operações Especiais lá para as bandas da Guiné por onde eu também tinha andado dois anos (e que é hoje um conhecido empresário ligado ao turismo), o seguinte (1):
"Quando estava no Pel Caç Nat 52, junto a Bambadinca, tinha uma forte ligação à CCAÇ 12, não só operacional mas de amizade com todos eles, especialmente o Capitão Bordalo e os seus Alferes (...).
"Para além das operações e outras actividades que iamos fazendo,sobrava-nos tempo para algumas loucuras, resultantes de algum cacimbo e do cansaço provocado pelo stress permanente, e por alguma incompetência, de quem deveria ser competente.
"Entre algumas de que lembro, fomos uma vez à noite, o Capitão Bordalo, os seus Alferes e eu, armados até aos dentes, de Unimog, jantar ao Xime, pela estrada de todos conhecida e que naquela altura só se fazia em coluna protegida, mercê das emboscadas que nela tinham acontecido.
"Quando regressávamos, num alarde a roçar a loucura, talvez também ajudados por uns uísques, parávamos na estrada, no sítio das emboscadas, e voltados para a mata, aliviámos as bexigas (2).(Itálicos de L.G.)
"Foi um momento hilariante, mas muito intenso, que nos uniu ainda mais na amizade e companheirismo. (Itálicos de L.G.)
"Escusado será dizer que o caso foi conhecido e muito comentado, tendo recebido, como é lógico, olhares de reprovação de quem de direito, mas não mais que isso, porque os gajos das tropas africanas são doidos e isto bem o prova.
"Claro que não foi nada de muito importante ou heróico, mas apenas um modo de aliviar a tensão, com uma tensão ainda maior" (...)(Itálicos de L.G.).
3. Conheci bem aquela estrada, Bambadinca-Xime ou Xime-Bambadinca. Tratava-se de um troço que toda a malta da zona leste conhecia: era a via estreita, obrigatória, para se chegar a qualquer ponto da região de Bafat ou do Gabu (Nova Lamego)!), vindo de Bissau, de LDG, pelo Rio Geba acima, até ao Xime...
No meu tempo, já no final da minha comissão, a estrada, com um novo traçado construído pela Tecnil, estava praticamente pronta para ser alcatroada... Julgo que o Joaquim Mexia Alves só já conheceu o troço alcatroado...
No meu tempo, o único troço alcatroado que existia era o de Bambadinca-Bafatá, uma autêntica autoestrada onde não foram poucos os acidentes, com viaturas militares, e pesadas baixas, devidas apenas ao excesso de velocidade...
Nunca houve qualquer emboscada nesse troço, na época em que lá estive (Junho de 1969/Março de 1971)... O mesmo não acontecia no troço Xime-Bambadinca ou Bambadinca-Xime... A Ponta Coli, entre o Xime e Amedalai, era um dos sítios fatídicos.
O que é interessante é que eu, num gesto quase automático de cumplicidade e solidariedade, fui logo evocar uma loucura que eu também fiz, pelo menos uma vez, e que poderia ter tido graves ou até trágicas consequências... Eis o meu comentário:
"Obrigado, camarada... Andámos pelos mesmos sítios, fizemos as mesmas loucuras, como essa de ir de Bambadinca ao Xime, beber um copo... Fi-lo de Daimler, sozinho, eu e o condutor, em finais de 1970, quando a Tecnil ainda estava a abrir a estrada, mais tarde alcatroada...
Devo acrescentar que não fui sozinho, com o condutor da autometradalhadora Daimler (e ainda por cima sem a competência autorização ou o simples conhecimento do Alf Mil Cav, o J.L. Vacas de Carvalho, nosso tertuliano!)... Fui ao Xime beber um copo, desenfiado, cacimbado... E, o mais grave, levei comigo a mascote da messe de sargentos de Bambadinca, que era um puto africano, órfão, gordinho, de alcunha o Tchombé... Um puto de quatro ou cinco...
4. Evoco aqui esta minha loucura (hoje nunca o faria!!!), apenas para corroborar a ideia de que os operacionais (metropolitanos) das unidades de recrutamento local - a nova força africana tão acarinhada por Spínola - eram tão (ou mais) cacimbados dos que viviam em estado de sítio, bunkerizados, confinados ao perímetro do seu aquartelamento, rodeados de arame farpado e de minas... Exemplos não faltam destas unidades de quadrícula onde o pessoal vivia debaixo do chão como toupeiras: Mansambo, Gandembel, Guileje ou Banjara são apenas alguns dos sítios bunkerizados, já aqui evocados no nosso blogue...
Após alojado e alimentado,
Acerquei-me da cerca de arame
E pelo que vi, constatei, arrepiado:
- Isto aqui era o nosso Vietname (2).
5. Acho que é um exercício inútil, idiota mesmo, esse de tentar avaliar quem eram os mais cacimbados, os mais doidos, os mais irresponsáveis, os mais cobardes ou os mais corajosos... Já aqui, em tempos, referi os nossos comportamentos de bravata, as nossas praxes, os nossos rituais de guerra, as nossas formas de lidar com o medo, o risco, o perigo, a morte...
O Magalhães Ribeiro tem um notável texto que é revelador do estado de insanidade mental das NT, a que chegaram as NT, mesmo já depois do 25 de Abri e da descompressão que foi o fim da guerra anunciado... Aqui fica o relato da recepção, perfeitamente surreal, da sua companhia, de periquitos, pelos velhinhos de Mansoa... em Agosto de 1974 (2):
"Para eles, nós – os periquitos ou piras -, éramos, para todos os efeitos, os mais reles, insignificantes e desprezíveis piras de toda a tropa da Guiné e do mundo inteiro.Viam-se cartazes com diversos escritos alegóricos:
"- Bem-vindos, periquitos, ao inferno dos vivos!
"- Aqui, morrer é o único meio de voltares para casa mais cedo.
"- Aqui entras de pé e vais pró Continente deitado num caixote, etc.
"Também não faltava uma câmara de TV (uma imitação feita com um velho caixote de madeira), e as respectivas entrevistas fúnebres, extensas e desconexas.
"Os efeitos do álcool e dos vinte e muitos meses de mato faziam das suas (Itálicos de L.G.). Os festejos eram ambíguos, umas vezes alegres, outras tétricos. Alguns soldados riam e choravam dizendo coisas macabro-hilariantes, com piadas de todos os tipos: disparatadas, indignificantes e, por vezes, insultuosas.
"A imaginação vagueava por ali, vendo-se várias urnas fechadas (mais caixotes com cruzes desenhadas em cima) e simulações de funerais que, eventualmente, seriam dos nossos cadáveres…
"Isto tudo passou-se já depois do 25 de Abril de 1974! Já a guerra tinha sido dada como finda! Isto não é ficção! Aconteceu mesmo!" (...).
6. O álcool!!!... Era a droga mais barata, ao alcance do soldado do contingente geral e do miliciano, praticamente os únicos a quem, a par dos nharros, competia combater, de armas na mão... Tirando honrosas excepções, os oficiais (superiors) e os sargentos do quadro não pegavam na G-3, não saíam para o mato, dormiam - uns melhor, outros pior - na sua cama... Era humanamente compreensível: a meio da guerra, em finais da década de 1960, muitos deles já estavam a caminho da terceira comissão no Ultramar (Índia, Moçambique, Angola, Guiné...)três comissões em cima do corpo!!!
7. Tive a ocasião de comentar estes estranhos comportamentos dos nossos camaradas, já depois do fim da guerra, com o seguinte texto:
"Este testemunho do nosso ranger [, o Magalhães Ribeiro,] é muito interessante, obrigando-nos a reflectir e a especular sobre o estranho comportamento que atingia a velhice, completamente apanhada pelo clima, na hora da rendição pelos periquitos... Muitos de nós passaram por estas cenas, enquanto periquitos, e voltaram a repeti-las, enquanto velhinhos...
"São uma extensão das violentas praxes dos militares, fundamentais para a criação do espírito de corpo e reforço da capacidade de resistência à exposição ao perigo, à captura pelo IN, à morte, à humilhação, à derrota... Julgo que do outro lado, do lado dos combatentes do PAIGC, também as havia: faz parte das culturas guerreiras (dos índios da América do Norte aos felupes do Cacheu)... A ideologia (revolucionária) não chegava para os homens (e as mulheres) do PAIGC darem a vida, arriscarem a sua integridade física, perderem a sua liberdade no caso de captura pelos tugas... Os tipos do PAIGC usavam mezinhos tal como os meus soldados fulas da CCAÇ 12...
"Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné...
"São também ritos de passagem: os mais velhos inciando os mais novos, transmitindo-lhes valores como solidariedade, coragem, determinação, sacrifício, desprezo pelo perigo, audácia, inconsciência, bravata... Todos fomos heróis e cobardes, velhinos e periquitos, deuses e homens... O problema é que, quando desembarcámos no cais de Alcântara, em Lisboa, já não éramos mais os mesmos... Não se foi impunemente para a Guiné, para o mato, para a guerra, para aquela guerra... Recorde-se que muitos de nós tiveram, no mínimo, 36 meses de tropa... Ora três anos representam (ou representavam na época) 6% do tempo da nossa vida activa (dos 15 aos 65)...
Como diz o Joaquim Mexia Alves, no seu blogue, apresentando-se ele próprio à comunidade bloguista: (...) "Pai e Avô. Português sem dúvidas. Serviço militar cumprido e comprido"....
8. Sobre a violência, mais ou menos ritualizada no quotidiano das nossas casernas, há já vários posts no nosso blogue, cuja releitura sugiro (3)... Retenho aqui uma expressão usado pelo João Parreira: "brincadeiras de mau gosto, diabruras ou disparates, tanto faz".
Luís Graça
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 13 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)
(2) Vd. post de 15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVIII: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra
(3) Vd por exemplo os seguintes posts (lista exemplificativa, não exaustiva):
12 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P868: Diabruras dos comandos (João Parreira)
13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá