Colagem de comentários do Antº Rosinha e do nosso editor LG ao poste P16074 (*):
[ Antº Rosinha é um dos nossos 'mais velhos', andou por Angola, nas décadas de 50/60/70, do século passado, fez o serviço militar em Angola, foi fur mil, em 1961/62, diz que foi 'colon' até 1974... 'Retornado', andou por aí (, com passagem pelo Brasil), até ir conhecer a 'pátria de Cabral', a Guiné-Bissau, onde foi 'cooperante', tendo trabalhado largos anos (1987/93) como topógrafo da TECNIL, a empresa que abriu todas ou quase todas as estradas que conhecemos na Guiné, antes e depois da 'independência'; é colunista do nosso blogue com a série 'Caderno de notas de um mais velho']
A. Escreveu o nosso editor LG, em comentário ao poste P16074 (*):
Pessoalmente, acho estranho que esta brutal emboscada na
estrada de Piche-Nova Lamego, em pleno coração da zona leste, em pleno
"chão fula", o dos nossos leais e bravos fulas, envolvendo forças da
nossa cavalaria (com as famosas e, afinal, dececionantes
"chaimites"), a um mês do 25 de abril de 1974, seja tão pouco falada,
comentada, divulgada...
Quem poderia e deveria escrever, não escreve, por razões que
desconhecemos... Se calhar, inibição, pudor, raiva... Eu sei lá!... Resta-nos este relato de antologia, de um obscuro furriel
miliciano de engenharia, o Manuel Pedro Santos, que temos de pôr na galeria dos
nossos mártires e heróis... Felizmente ele sobreviveu (e espero que ainda
esteja vivo!) para nos contar como foi o inferno, às 8 e meia da manhã, desse
trágico dia 22 de março de 1974, no troço Bentem-Camabajá da estrada
(alcatroada) de Piche-Nova Lamego...
Mesmo assim, com 200 e tal atacantes, "entrincheirados",
e armados de RPG, o PAIGC tinha a "obrigação" de massacrar todos os
"tugas" e os seus "cães" que iam na coluna... "Guerra
é guerra, camaradas"... E foi feia, brutal, essa maldita guerra...
Ainda dizem que foi uma guerra de "baixa intensidade", a da Guiné,
dizem os senhores historiadores engravatados da nossa universidade que nunca
sentiram, nas "putas das narinas", o cheiro da carne humana assada...
Por favor, camaradas, tragam mais testemunhos sobre estes e
outros momentos marcantes do nosso calvário de 13 anos!... Quantos de vocês não
passaram, tranquilamente, quase em passeio turístico, por este troço da estrada
de Nova Lamego - Piche!...
Acrescentem estes topónimos ao nosso martirológio: Bentém,
Camajabá... Ninguém mais vai lembrá-los dentro em breve!
Resta-nos honrar a memória dos nossos camaradas,
metropolitanos e guineenses, que lá ficaram, na estrada alcatroada de Piche -
Nova Lamego, a 10 km depois de Bentém, antes de Camabajá, às 8h30 do dia 22 de
março de 1974... Lembremos aqui os nomes desses bravos camaradas: (i) do Esquadrão de Reconhecimento de Cavalaria, EREC
8840/72 (Bafatá, 1973/74): os fur mil cav José António da Costa Teixeira,
natural de Lousada, e Manuel Joaquim Sá Soares, natural de Santo Tirso; os 2
sold cav, João da Costa Araújo, natural de Ponte Lima; e Victor Manuel de Jesus
Paiva, natural de Castelo Branco; (ii) e ainda, os soldados, do recrutamento local, Bailó
Baldé, natural de Nova Lamego, sol at inf, CCAÇ 21; e Bambo Nanqui, natural de
Fulacunda, sold at art, 12º Pel Art / GAC 7.
Guiné > s/l > 1972 > Uma
viatura blindada Chaimite V200. Foto de António Rogério Rodrigues Moura [ARRM], 1972.
Fonte: P
ortal Prof 2000 > Aveiro e Cultura > Arquivo Digital (Com a devida vénia...)
B. Agora comento eu, Antº Rosinha, ex-topógrafo da TECNIL, que conheci a Guiné-Bissau do Luís Cabral e do 'Nino Vieira', de 1987 a 1993:
"110 abrigos e outra grande quantidade de guerrilheiros
em cima de mangueiros. O número de guerrilheiros estimou-se entre duzentos e
duzentos e cinquenta elementos..."
Uma concentração desta envergadura naquele lugar fula, e
naquela data, algo já estava a "falhar" das chefias.
Já perto dessa altura, na mesma estrada em construção, uma
camião da TECNIL foi atingido por uma bazucada, "tipo brincadeira", do
PAIGC. Contaram depois os guerrilheiros que alguns disfarçados à
civil pediram boleia no fim do dia para o Gabu, foi-lhe negada pelo motorista,
e na hora de partir, uma bazooka acertou na porta do mesmo motorista guineense,
que "muri".
Luís Graça, eu digo sempre, há uns anitos, que este blogue vai
ajudar a contar a história do princípio, do meio e do fim da Guerra do Ultramar,
a guerra que nós fizemos.
Sobre esta estrada de Piche, já aqui já foi mencionado este
caso do único ataque às máquinas da TECNIL, praticamente em toda a guerra.
Luís Graça, só por negligência, propositada ou intencional
ou casual, estes casos podiam acontecer. É coincidência apenas, ou as Forças Armadas só já estavam preocupadas
com outros valores?
Claro que andamos aqui, também para compreendermos quem
fomos, quem somos, e quem viremos a ser.
C. Novo comenatário do editor LG:
Quem somos nós para "julgarmos" os nossos
camaradas ?... Admito que, nessa altura, com estrada alcatroada, a malta
andasse mais "descontraída"... Fiz muitas vezes
Bambadinca-Bafatá-Bambadinca também "numa boa"... Não aconteceu nada
no meu tempo, para além de desastres rodoviárias, por excesso de velocidade...
Enfim, já cá tenho o Perintrep com informação sobre o dia
22/3/1974, facultado pelo meu amigo cor art ref Nuno Rubim... A emboscada foi às 7h45 (e não 8h30). Tivemos 5 mortos (e não 6...), 5 feridos
graves e 11 feridos ligeiros... (Menos feridos do que é relatado pelo fur mil
do BENG 447. o Manuel Pedro Santos, que ia na coluna)... Foram destruídas 3
viaturas: 1 Chaimite, 1 White, 1 Berliet...
Concordo contigo, Rosinha: 200 gajos de farda amarela a movimentarem-se
em "pleno coração fula", deviam dar muito nas vistas... São 5 ou 6
bigrupos!... O PAIGC andava desfalcadíssimo, uma operação destas implica também
uma grande logística...
Suspeito destes números que podem estar inflacionados pelo
comando do batalhão, o BCAÇ 3883... Era preciso "arranjar"
explicações fáceis, que os trutas em Bissau "engoliam"; quem estava
no mato também tinha os seus trunfos, ou seja, maneiras de "sacudir a água
do capote"; por certo que o ten cor do
BCAÇ 3883 (**) não foi fazer o reconhecimento
"in loco"... Também apanhei uma violenta emboscada, no mato, com 6
mortos e 9 feridos graves (26/11/1970, no Xime)... Foi preciso arranjar
"bodes expiatórios" e explicações mirabolantes... para descartar erros
de comando...
De qualquer modo, o desguarnecimento do leste, a sul da
estrada Piche-Nova Lamego, a ausência de uma zona tampão (perdida com a
retirada de Beli, Madina do Boé, Cheche, e tabancas em autodefesa como Padada,
Madina Xaquili, etc.), a par da proximidade com a fronteira, podem explicar
também as facilidades de aproximação do IN a colunas de rotina, como esta...
Depois da emboscadas, a força atacante teve por certo que
dispersar, por causa da aviação, que deve ter vindo em socorro das NT... A
força inimiga veio fortemente armada, com armas automáticas, RPG2, RPG7 e
morteiro 60...
Mas a lealdade dos fulas do Gabu não era a mesma dos fulas
de Bafatá, dos regulados de Badora e Cossé... A CCAÇ 21 andou pelo nordeste
nesta fase e havia indícios de que o PAIGC estava intimidar e a dividir os fulas... E
havia fulas (do Gabu e do Senegal) na guerrilha... No meu tempo, era
impossível: nunca soubemos de nenhum, nunca apanhámos nenhum, no setor L1
(Bambadinca): eram balantas, mandingas e beafadas...
Tenho que ver quando foi
o ataque ao pessoal e máquinas daTecnil, no troço Piche-Buruntuma... Nas vésperas do natal de 1970, na
construção do troço anterior, Nova Lamego-Piche, a TECNIL já havia sofrido 9
mortos...
A malta que estava na
Ponte Caium (3º Gr Comb, os"Fantasmas do Leste", da CCAÇ 3546, Piche, 1972/74) também sofreu, no
troço entre a Ponte e Piche, uma violenta emboscada em 14/6/1973, tendo morrido
5 camaradas nossos, em condições atrozes: o 1º cabo Torrão, e os sold Gonçalves
["Charlot"], Fernandes, Santos e Dani Silva. Ainda está de pé (!), na
ponte, o monumento erigido pelos sobreviventes à memória dos camaradas
mortos...
Guiné > Zona leste > Região de Gabu >
Pormenor do mapa geral da província > Escala 1/500 mil (1961) > O traçado da antiga estrada Nova Lamego - Piche - Buruntuma. A distância entre Nova Lamego e Piche seria de 30/35 km. A emboscada de 22/3/1974 (na época seca) deu-se na nova estrada, alcatroada, construída pela TECNIL, e cujo traçado não era muito diferente do antigo, A emboscada deu-se a meio caminho entre Piche (sede do BCAÇ 3883, 1972/74) e Nova Lamego, no troço Bentem - Cambajã (,não confundir com Camajabá, entre Piche e Ponte Caium).
Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)
D. Comentário final de Antº Rosinha
Luís, eu não julgo ninguém, jamais me ouvirás julgar seja
quem for. Eu sou daqueles que assumo que fomos nós todos que fomos
revolucionários, reaccionários. que fomos simultaneamente salazaristas e
anti-salazaristas, colonialistas e anti-colonialistas.
Imagina que eu era de armas pesadas, mas cheguei a fazer[, em Angola,] de
vagomestre, e até "gamei" como os outros que não se livram da fama,
portanto também sou corrupto!
Mas, factos são factos, e temos que analisar os factos.
Como vi a guerra aqui no blogue, melhor do que se estivéssemos
lá, porque aqui é desbobinada em câmara lenta, e durante 13 anos vivi a guerra
em Angola, de barraca de campanha às costas de carregadores
"contratados", daqueles que "comiam fuba podre, peixe podre", como diz o poeta/colonialista/transmontano/revolucionário [, António Jacinto,][***),. tenho, ou melhor
temos, que deixar cair as nossas asinhas, e analisar friamente os factos.
E digo isto, se queremos respeitar a memória principalmente,
daqueles que morreram sem nunca vestirem uma farda da mocidade portuguesa,
alguns nem aprenderam o que eram as cinco quinas da camisa verde, nem
aprenderam qual era a capital da Guiné, quando tinham 10 anos e nem sabiam quem
foi Camões, ao contrário dos Comandantes.
Luís Graça, estamos a falar de um lugar de mata
relativamente esparsa, a pouco mais de meia hora de Gabu, penso que era sede de
Batalhão, já não haveria serviço de informações ao menos? Sem Spínola já se
teria começado a desistir sem responsabilidades assumidas?
Luís Graça, como estamos a falar dos "finalmentes, chegaram a cair mísseis sobre Bissau perto da Dicol e da Central Eléctrica,
falava-se que Manuel dos Santos (Manecas) teria lançado esses objectos a partir
de Cumeré, será que se chegou a um ponto que por lá por cima se tinha caído já
na total desistência irresponsável?
É que tanto para avançar como para recuar, os comandantes
têm que o fazer com as devidas responsabilidades, e cautelas, e até para
improvisar que é a nossa tradicional competência, tem que ser bem feito.
Se insinuo aqui que já poderia haver relaxamento, mesmo que
em vez de duzentos e cinquenta fossem só cinquenta guerrilheiros, num lugar
plano e bastante aberto, com uma estrada em construção, uma pista de aviação no
Gabú, junto a uma sede de Batalhão, e parece que nem teria havido resultados de
uma (inexistente) reacção, o que é que podemos, a sangue frio, sentados ao
computador, e depois de tudo o que se seguiu militarmente passados um mês ou
dois, quem é que me pode alcunhar de "má língua", de "fala
barato", "armado em juiz"?
Estou só a tentar ligar os acontecimentos.
Antº Rosinha (****)
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Notas do editor:
(*) 10 de maio de 2016 >
Guiné 63/74 - P16074: Na festa dos 12 anos, "manga de tempo", do nosso blogue (11): Honrando os nossos "mais velhos": Fernando Valente (Magro), cap mil art, BENG 474 (Bissau, 1970/72), que faz hoje 80 anos... Tem 60 meses / 5 anos de serviço militar, e mais 5 manos que serviram a Pátria em Angola, Guiné e Moçambique... Recorda-se também aqui o relevante papel da engenharia militar na Guiné, através do BENG 447
(**) O BCAÇ 3883 foi mobilizado pelo RI 2, tendo partido para a Guiné, de avião, em Março de 1972 (o comando e a CCS em 19/3/1972; a CCAÇ 3544, a 20; a CCAÇ 3545, a 22; e a CCAÇ 3546 a 23). A CCS ficou sediada em Piche.
O comandante de batalhão era o Ten Cor Inf Manuel António Dantas. O comandante da CCAÇ 3546 (Piche, Cambor, Ponte Caium e Camajabá) era o Cap QEO José Carlos Duarte Ferreira. As outras companhias do BCAÇ 3883 eram a CCAÇ 3544 (Buruntuma e Piche; teve dois comandantes: Cap Mil Inf Luís Manuel Teixeira Neves de Carvalho; Cap Mil Inf José Carlos Guerra Nunes) e a CCAÇ 3545 (Canquelifá e Piche; comandante, Cap Mil Inf Fernando Peixinho de Cristo).
Naquela roça grande
não tem chuva,
é o suor do meu rosto
que rega as plantações;
Naquela roça grande
tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue,
feitas seiva.
O café vai ser torrado,
pisado, torturado,
vai ficar negro,
negro da cor do contratado.
Negro da cor do contratado!
Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo?
Quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém,
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinquenta angolares,
"porrada se refilares"?
Quem?
Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer?
Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?
Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande,
ter dinheiro?
Quem?
E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- "Monangambééé..."
Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras,
deixem-me beber maruvo
e esquecer diluído
nas minhas bebedeiras.
- "Monangambéé...'"
António Jacinto (1924-1992) (Poemas, 1961)