1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2023:
Queridos amigos,
Devo inúmeras atenções ao Dr. João Horta, bibliotecário na Liga dos Combatentes, informa-me regularmente da chegada de publicações como esta alusiva às notas esparsas de um antigo combatente, foi alferes do 4.º pelotão da CART n.º 1689, a sua edição de autor insere um bom número de imagens dos diferentes locais por onde andou, poderá dizer-se que como companhia de intervenção teve uma invulgar itinerância por toda a Guiné. Usa da maior discrição quanto à atividade operacional desenvolvida por esta unidade militar, saltita entre as suas memórias angrenses e alguns episódios vividos na guerra da Guiné e não se furta a emitir opiniões críticas à vida política portuguesa. Acho que nos deixa um conjunto de pistas que outros camaradas da CART n.º 1689, nossos confrades no blogue, bem podiam desenvolver, pessoalmente fico curioso com que eles andaram a fazer por Missirá, como é referido no documento alusivo ao ex-1.º Cabo José Maria Silva Ribeiro, onde fui buscar uma súmula da atividade operacional da unidade militar.
Um abraço do
Mário
Um terceirense, alferes da CART n.º 1689, que andou por meia Guiné, entre 1967 e 1969
Mário Beja Santos
Na Tenda do Mestre Isaías, é uma edição de autor de Emídio Vieira Soares, que comandou o 4.º pelotão da CART n.º 1689, 2004. São recordações de um terceirense, notas avulsas da sua vivência na Ilha Terceira, fala-se da Terra-Chã, dos locais e costumes da terra, gente que chegava e partia para o Canadá e para o Brasil, inevitavelmente uma referência aos touros e à tourada à corda, as zangas entre o sr. Bispo de Angra e as populações por causa da administração do dinheiro dos Impérios, recorda o sr. Padre Saramago que nasceu no Corvo e estudou no seminário de Angra, e nestes seus apontamentos onde coligiu memórias informa-nos que em 1967 foi para a Guiné. Na medida em que toda a sua narrativa é saltitante entre o passado remoto, os tempos da guerra e as suas observações críticas sobre a vida política portuguesa, procurei saber um pouco mais sobre esta CART n.º 1689, de que há felizmente referências no nosso blogue. Vejamos em primeiro lugar o que se escreve na apresentação do ex-1.º Cabo José Maria Silva Ribeiro no “Dos Veteranos da Guerra do Ultramar”:
“Partem no navio Uíge, em 26 de Abril de 1967, chegam a Bissau em 1 de Maio de 1967. Logo após a chegada, embarcam de imediato na lancha BOR, em direção a Bambadinca, tendo como destino final a localidade de Fá Mandinga.
A Companhia ficou em regime de intervenção, às ordens do Comando do Agrupamento de Bafatá, responsável pela zona leste da província.
Durante a permanência na referida região, realizou várias operações na zona do Xime, (Ponta do Inglês e Ponta Varela), zona de Enxalé e Missirá a norte do rio Geba, bem como na vasta região do Oio, a norte do destacamento de Banjara.
Em Julho de 1967, a Companhia embarcou em Bambadinca, a bordo de três lanchas LDM, com destino a Catió, sector sul da província, para onde fora transferida, tendo ficado em regime de intervenção.
Nesse sector foi desenvolvida intensa atividade operacional, bem como nos subsectores de Cufar, Bedanda, Empada, implantação do destacamento de Gubia, na península do Cubisseco, e Gandembel, (Operação Bola de Fogo) também para implantação de um aquartelamento, no chamado corredor de Guileje, junto à fronteira com a Guiné-Conacri. Em Junho de 1968, a Companhia rumou para o subsector de Cabedu, para onde foi transferida, tendo aí desenvolvido intensa atividade operacional.
O aquartelamento foi atacado em 13 de Julho de 1968, tendo falecido o Alferes da Academia Militar, Henrique Ferreira de Almeida, que era então o Comandante da Companhia.
Em 30 de Julho desse ano, a Companhia foi transferida para Canquelifá, sector de Nova Lamego (Gabu), zona nordeste da província, na confluência das fronteiras do Senegal e Guiné-Conacri.
Um grupo de combate ficou sediado no destacamento de Dunane, sito a meio do percurso entre Pitche e Canquelifá.
A parte restante da companhia ficou instalada no aquartelamento de Canquelifá, tendo aqui desenvolvido ações de natureza operacional e psicossocial.
Finda a sua comissão de serviço, a Companhia de Artilharia 1689 regressou à Metrópole, tendo embarcado em Bissau no navio Uíge, em 03 de Março de 1969 e desembarcado no cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, no dia 09 do referido mês.
A CART n.º 1689 percorreu muitas localidades: Bambadinca, Fá Mandinga, Xime, Enxalé, Missirá, Bafatá, Banjara, Catió, Ganjola, Cufar, Bedanda, Cachil, Bolama, Gubia, Empada, Fulacunda, Buba, Aldeia Formosa (Quebo), Chamarra, Gandembel, Cabedu, Nova Lamego (Gabu), Pitche, Dunane, Canquelifá e finalmente Bissau.”
Emídio Soares refere o choque que sentiu quando o levaram a visitar a cadeia do Quartel-General em Santa Luzia, teria 30 metros de comprimento e 15 de largura: “Havia um corredor desde a porta de entrada, até ao fundo, as paredes do corredor eram grades de ferro de um lado e outro. E de um lado e outro estavam os presos em pé, sem espaço para se sentarem no chão. O cabo que me convidara para ver a cadeia deu-me determinados pormenores do destino daquela gente. Abandonei o edifício. O cabo seguiu-me e estava estupefacto com a minha reação, depois começou a chorar, interveio um Furriel, eu expliquei-lhe o que se estava a passar. De imediato o Furriel pegou no braço do cabo, numa atitude de conforto moral. Senti a minha cobardia em não falar disso a ninguém, teria pisado terrenos proibidos. Soube que o General Spínola, uns meses depois de chegar à Guiné pusera termo à cadeia do Quartel-General.” Veio à frente da sua Companhia, e depois embarcou no Pidjiquiti em direção a Bambadinca num barco com o nome de “Vencedor”, sentiu muito a inquietação quando o barco entrou no Geba estreito e passou a navegar em meandros até Bambadinca, a bordo seguiam a mulher do comandante e a mulher do médico.
Faz uma referência genérica a uma operação no Oio, foram cercados pelos guerrilheiros e sujeitos a tiroteio. No princípio, não houve reação das nossas forças até que um Furriel a peito descoberto começou a disparar, o que deu ânimo a todos. Fala-nos depois de Catió e da Operação Tridente, não regateia a admiração ao Capitão João Bacar Djaló, à sua bravura, ao seu heroísmo. Segue-se uma outra referência a uma operação que se efetuou a Cabolol, tinha o nome de código de Vassourada Final, na região do Como. O batalhão estava em Catió, em Cabolol havia uma população controlada pela guerrilha. Entraram em Cabolol sem um tiro, a população fugira para o tarrafe. Quando regressaram ao quartel, o comandante estava à porta de armas, ninguém percebia porque é que ele gritava “Eles levaram uma sova! Eles levaram uma sova! E se quiserem mais, é só dizer”. Fala das baixas em Gandembel, como o Soldado Nadir e o Furriel Belmiro.
Imprevistamente voltamos à Boa-Hora, uma localidade que faz parte da freguesia de Nossa Senhora de Belém, mais conhecida por Terra-Chã, a 8 quilómetros de Angra, novas recordações. Tece considerações sobre a colonização e a descolonização, volta à Terra-Chã, estamos agora na Lisboa em 1963, o Emídio Soares veio fazer exame de admissão ao Instituto Superior Técnico e passamos para Dunane, onde esteve destacado o seu pelotão, dá-nos a localização e fala-nos na lepra:
“Num dia de coluna Canquelifá, Dunane, Pitche, Nova Lamego, as tropas pararam em Dunane. Dirigiram-se à enfermaria, eu estava à porta do meu abrigo, notei um certo nervosismo na multidão e o Furriel Enfermeiro estava zangado. Aproximei-me da multidão e verifiquei que havia muitos leprosos. Eram militares. Homens sem mãos, com uma guita agarrada à zona do cotovelo, seguravam, com o que restava do braço e do antebraço, uma arma encostada ao peito. Aguardavam que lhes dessem os comprimidos, a que cada um tinha direito. Eram as milícias de Canquelifá. Percebi a função da guita amarrada ao cotovelo. Reparei bem na guita e vi que ela estava também agarrada ao gatilho da arma. Era assim que eles disparavam.”
Há referências ao Tenente Bajana em Canquelifá, teria ligações ao PAIGC, o tenente foi fuzilado depois da independência. Deixa-nos uma extensa referência ao Alferes Monteiro morto em Gandembel, o oficial já tinha concluído a sua missão, mas veio na coluna de Aldeia Formosa a Gandembel, para abastecimento. No regresso, rebentou uma mina anticarro, saíram dois pelotões de Gandembel e deparou-se-lhes o horror, o corpo desfeito do Alferes Monteiro entre muitos soldados africanos mortos.
Voltamos à ilha Terceira, Emídio Soares tem as suas observações à economia das décadas de 1940 e 1950. E vemo-lo já em 1979 a dirigir obras na ilha de S. Jorge. É dentro desta miscelânea de recordações que lembra a canoa que transportava as gentes da CART n.º 1689 de Ponta Varela para o Enxalé: “Não havia barcos de borracha como os fuzileiros tinham, ou lanchas ligeiras. Os 120 homens da 1689 foram transportados de uma margem para a outra em canoa. Era arrepiante, o soldado entrava na canoa, sentava-se no lugar que lhe indicavam e não se podia mexer mais. A altura da canoa fora de água não tinha 10 centímetros. A sensação era de quem entrasse naquela água deixava de ser visto.” Faz também uma observação crítica às colunas de abastecimento de Madina do Boé e à natureza do transporte no rio Cheche, uma jangada tosca. E ficamos por aqui. Bom seria que os nossos confrades da CART n.º 1689 adiantassem mais pormenores sobre a história desta companhia que teve uma inusitada vida itinerante em zonas de indiscutível risco, em que não faltou Gandembel.
Entrega da Flâmula de Honra à CART n.º 1689, em Catió, imagem pertencente ao ex-1.º Cabo Atirador, José Maria Silva Ribeiro, constante do blogue Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, com a devida vénia
Museu do Guiledje - Uma antiaérea do PAIGC
____________Nota do editor
Último poste da série de 13 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23979: Notas de leitura (1542): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (12) (Mário Beja Santos)