sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7134: História do BART 6523. Pequena resenha histórica (António Barbosa)


1. O nosso Camarada António Barbosa (ex-Alf Mil Op Esp/RANGER do 1º Pelotão da 2.ª CART do BART 6523, Cabuca, 1973/74, enviou-nos em 14 de Outubro a seguinte mensagem:

Camaradas,
Como foi dito que pouco sabiam da história do BART 6523, lembrei-me de enviar uma pequena resenha histórica desta unidade.
Como podem ver são cópias da HU - Caixa 122 2ª Div/ 4ª secção do AHM -, penso que daqui poderão extrair a informação que procuravam.










 


Um Grande Abraço,
António Barbosa
Alf Mil Op Esp/RANGER da 2.ª CART do BART 6523

Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2010). Direitos reservados.
Documentos: © António Barbosa (2010). Direitos reservados.

Guiné 63/74 - P7133: Descoberta do Senegal e da Guiné, pelos Portugueses (2) (Arménio Estorninho)

1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381,Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 22 de Agosto de 2010:

Caro amigo e camarada Carlos Vinhal, saudações guinéuas.
Escrevendo sobre o Infante D. Henrique, enaltecendo o homem que, vencendo o poder da superstição e dai advêm o iniciar das tentativas dos seus navegantes dobrarem o Cabo Bojador, assim como, as pretendidas chegadas ao Senegal e à Guiné.

Arménio Estorninho



Descoberta do Senegal e da Guiné, pelos Portugueses (2)

Parte 2

Criara-se uma escola naquele promontório na solidão agreste de Sagres, como num laboratório secreto, ia D. Henrique recolhendo e coordenando todos os elementos que o conduzissem a um único fim o de atingir a Índia. Esses elementos eram-lhe trazidos pelos navegadores que, de cada viagem, observavam mais algum pormenor.

Foto 10 > Sagres> Promontório e seu Observatório> D. Henrique com os cartógrafos, astrónomos e especialistas. Gravura extraída de uma antiga História de Portugal, com narração até 1910.

Por isso, não custará imaginar-se quanto, sob o seu ar fleumático e inalterável, não se teria alegrado D. Henrique, quando Antão Gonçalves lhe trouxe o respeitável Adahu, um homem viajado, conhecedor do “Sara” em todas as direcções e que, ainda, por cima, falava arábico.

Tratou Adahu com toda a deferência que se deve a um cavaleiro respeitável, pois este bem mostrava em sua “contenenca” (porte) e ter a vantagem da nobreza sobre os outros ao tempo também apanhados. Interrogou-o miudamente sobre aquele Mundo de onde vinha e de cuja existência a Europa nem sequer suspeitava. Que estranhas notícias ele trouxe do interior da África misteriosa.

Adahu tinha percorrido esse deserto, o “Sara,” em todos os sentidos e falara-lhe das caravanas que cruzavam em jornadas de meses, levando e trazendo mercadorias que ninguém sabia de onde vinham, nem para onde iam, cada caravana percorria umas tantas léguas, muitas léguas de areal sem fim, desde um certo ponto, um oásis ou uma povoação perdida algures, até outro local, onde entregava os seus fardos a outra caravana que partia e se sumia no deserto ao encontro de mais outra caravana, que por seu turno, tomava a mesma carga e, embalada pela “guizalheira” monótona dos camelos, desaparecia na lonjura e no silêncio.

Mas, onde principiavam e onde acabavam essas carreiras? Havia cruzamentos e términos. Adahu citou um delas, um nome lendário que soava por vezes na Europa, mas que ninguém sabia ao certo onde ficava Tambucotu. O nobre berbere explicava que era um porto na margem do grande rio Níger que sulcava o deserto. Ali se cruzavam caravanas vindas de vários quadrantes. Só de uma vez Adahu vira uma caravana de trezentos camelos carregados de ouro. Era de entontecer, D. Henrique disse que seria o bastante para fazer de Portugal o reino mais rico da Europa.

Mas donde vinha esse ouro? Desapontamento de Adahu porque não sabia. Porém sabia a maneira como se obtinha, permutando-o com sal. Sal, uma coisa que andava quase aos pontapés pelo reino lusitano, que até exportava para o Norte da Europa.
E pensar que tão rendoso comércio estava nas mãos dos Árabes e foi o que raciocinaria

Foto 11 > Sagres> Praia da Mareta e Ponta de Sagres. Extraída da Colecção História de Portugal – Publicações Alfa, e com a devida vénia.

D. Henrique acumulava Adahu de perguntas sobre os povos que viviam para além do grande “Sara” e onde acabava este. Na Guiné asseverou o nobre cativo. Adahu descreveu-lhe essa região como sendo coberta de profundas florestas verdes, onde os homens do deserto raramente se aventuram e porquanto a selva era povoada de negros selvagens. Falou também de um grande império Mandingo de Mali, também se referiu ao Nilo, que nasce nas montanhas da Lua, onde viviam homens de cabeça de cão e cauda comprida.
Não se pode duvidar de que D. Henrique teria analisado com seu irmão D. Pedro as importantes revelações de Adahu. Ponde de lado inverosimilhanças como as dos homens de cabeça de cão e longa cauda, havia dados perfeitamente aceitáveis.

Em despeito de ser muito bem tratado em Portugal, o nobre Adahu começou a sentir grandes saudades da sua África. Era um berbere habituado à vida nómada do “Sara,” ao calor “esbraseante” e não teria em apreço as paisagens verdejantes e risonhas de Portugal. Parece que se estabelecera uma certa cordialidade entre ele e Antão Gonçalves, e, dois anos decorridos sobre a sua chegada ao Algarve, pediu ao jovem Capitão que o levasse de regresso ao rio do Ouro. Prometia indemnizá-lo e foi logo lembrado que também dois dos seus companheiros de exílio também o dariam. D. Henrique já não precisava do nobre Adahu, em dois anos, espremera dele como um limão todas as informações úteis até à última gota e a seu pedido foi-lhe concedido o regresso ao rio do Ouro. Deu uma roupa nova e vistosa a Adahu e, anuindo à proposta de Antão Gonçalves. E, com os três cativos largou de Portugal para o rio do Ouro e onde se efectuariam as indemnizações acordadas.
Chegados, pôs Antão Gonçalves o nobre Adahu em liberdade, apenas sobre palavra, pois, “dele fiava, pensando que a nobreza que mostrava seria seu principal constrangimento de não quebrar sua fé.” Os outros cativos ficaram, porém, a bordo.

Adahu internou-se tranquilamente no deserto e, uma semana depois ainda não voltara com o seu resgate. Faltara à sua palavra, traíra a sua fé. Mas Adahu não fora totalmente nocivo, porque teria avisado os parentes dos outros dois cativos, porquanto, ao oitavo dia de espera, surgiu um mouro montando um camelo branco, seguido de outros homens para ultimar o negócio.

Antão Gonçalves considerou-se muito bem compensado da perda do resgate do respeitável Adahu e regressou à Europa indo aportar a Lagos.
E ali, funcionava pela primeira vez, em Portugal, um mercado de escravos. É uma data a assinalar este ano de 1443. Ainda lá está em Lagos, o histórico local. Cheia de curiosidade por aquele espectáculo inédito, ali acorreu a população, a ver os seres estranhos. D. Henrique, montado no seu cavalo, trajando ainda o seu negro fato de luto e na cabeça o amplo chapéu com a larga fita pendente, assistia, com a sua impassibilidade habitual, ao movimento do quadro e naquele mesmo ano em que morria seu irmão D. Fernando no cativeiro, em Fez.

Foto 12 > Infante D. Henrique> Extraída do livro sobre o estudo do seu itinerário no Algarve, da Delegação do Algarve para as Comemorações Henriquinas de 1960.

Estamos no ano de 1444, D. Henrique, enviou Antão Gonçalves pela terceira vez ao rio do Ouro, e agora com fins puramente mercantis. Quando partiu na caravela, levava consigo um escudeiro de D. Henrique chamado João Fernandes e chegados ao lugar, este ai ficou na companhia dos berberes que tinham vindo fazer algum negócio.

João Fernandes ao desembarcar ficou com uma provisão de biscoito e de farinha, que os berberes apreciaram tanto que ele a cedera quase toda. Simpatizaram muito com este homem muito dado e tomaram-no à sua conta. Vestiram-lhe uma túnica semelhante às que usavam, na qual se sentiu muito divertido.

Depois de vagabundear por algum tempo pelas proximidades da costa, em companhia dos rudes pastores, apareceram-lhe certo dia dois homens montados em camelos e vinham da parte de um grande senhor Ahude Meymon, que, sabendo da sua presença naquelas terras o convidava a visitá-lo. João Fernandes muito cortês, apressou-se logo a declarar: “Bem me praz, porque hei novas que é nobre senhor e quero-o ir ver para o conhecer.”

Montados em camelos, internaram-se no deserto, percorreram léguas e léguas por aquela desolação sem fim. Finalmente chegaram ao acampamento de Ahude Meymon, que recebeu o forasteiro na sua tenda e o regalou com leite fresco.

Sabe-se que ao fim de sete meses de vagabundagem por aquelas terras, observando tudo e tudo inquirindo, regressou à costa e ao ponto de desembarque onde viriam buscá-lo. Ahude Meymon, o patriarca daquele país sem cidades, nem aldeias, dignou-se a vir acompanhá-lo. E quando, ao cabo de alguns dias de espera impaciente, João Fernandes viu surgir, enfim, ao longe no vasto oceano verde e deserto, as velas da caravela.

A chegada da caravela foi uma festa para aquela gente que nunca vira coisa assim. Ahude e seus sequazes estavam encantados. Realizou-se bom negócio. Convidados a entrar na formosa embarcação os berberes hesitaram. Exigiram reféns, para as tendas de Ahude para onde foram enviados dois portugueses e passaram todo o dia inquietos na companhia de mulheres indígenas que, na ausência dos seus homens não faziam senão lançar-lhes olhares provocantes. Mais confiantes os berberes acabaram por ir buscar as mulheres e passaram todo um dia em rija festa à portuguesa, a bordo da caravela cujas entranhas os maravilharam. Por último quando a embarcação levantou ferro, enfunou as velas ornadas da grande cruz de Cristo e se perdeu na lonjura do mar, os pastores “azenegues” ficaram a chorar por João Fernandes. Gente ingénua e simples. Como o Mundo seria delicioso, se a Humanidade fosse toda assim!
De regresso, Antão Gonçalves não se dirigiu a Lagos, como de costume, talvez por saber que D. Henrique se encontrava em Lisboa e fez rumo ao Tejo.

É preciso dizer-se, em abono da verdade, que o tráfico de escravos não era o principal objectivo das explorações marítimas em que o Infante D. Henrique se empenhara de alma e coração. Era a Índia que ele queria atingir, embora no percurso o interessasse a organização de um sólido comércio com várias regiões e a fim de obter ouro.
O que o Infante queria era que os seus mareantes fossem sempre mais além, até se encontrar a Guiné.

Nem todos os mareantes descoravam totalmente as ordens de D. Henrique. Havia alguns com outro espírito, que tinham em mais apreço a “honra” do que o “proveito”. E neste número deve-se incluir Diniz Dias. Naquele mesmo ano de 1444, ultrapassando os últimos pontos conhecidos da costa deserta e continuando a avançar sempre para Sul até que começou a “enxergar” uma linha costeira muito escura, na qual sobressaíam no horizonte duas palmeiras. Aproximou-se de terra, esta enviou-lhe uma aragem fresca e perfumada de jardim. Que maravilhosas coisas esta aragem parecia anunciar! À orla da praia acorria multidão de homens negros, que se quedavam maravilhados a contemplar aquela estranha coisa, monstro marinho e/ou gigantesca ave de asas brancas. Que deslizava airosamente ao longo da costa e que, contornando um escuro promontório, ao qual Diniz Dias pôs o nome do Cabo Verde.

Os navegadores no regresso, contando a verdade o que nem sempre acontecia e revelavam coisas fabulosas. Os papagaios, periquitos, passarinhos de bico vermelho e deslumbrantes plumagens, que as tripulações traziam e vendiam por altos preços, era a demonstração de que realmente tinham atingido regiões até então nunca vistas.

Foto 13 > Sagres> Ponta de Sagres> Extraída do Almanaque Bertrand, datado de 1934, e com a devida vénia.

Uma missão inteligente e uns caçadores caçados. Companheiros aconselham Gonçalo Cintra a retomar o batel em que desembarcaram e regressar a bordo.

E assim, também naquele ano fértil de 1444, D. Henrique incumbira um moço audacioso, Gonçalo Cintra, de navegar a partir do Cabo Verde, o ponto mais longínquo que se tinha atingido até se encontrar a Guiné e que já não devia achar-se muito longe. Depositara o Infante muita esperança em Gonçalo Cintra, “que era moço de boa estatura e de bom coração,” veio a demonstrar que era ainda mais alguma coisa o de ambicioso e de indisciplinado. Em vez de seguir sempre até à Guiné, como lhe tinham recomendado quis fazer uma diversão pelo trajecto. Desembarcou numa ilha nas proximidades do Cabo Branco, à procura de indígenas para escaramuças e ao regressarem ao batel foram emboscados por um grupo de duzentos negros e só cinco dos mareantes salvaram-se nadando para a embarcação. Grande lição de um caçador que vai à caça e é caçado! Perderam-se aquelas vidas, malogrou-se a projectada viagem à Guiné.

Foto 14 > Sagres> Fortaleza de Sagres> Exemplar de um Padrão> em 1973.

João Gonçalves Zarco, descobridor da Madeira, que, sabendo com que idealismo e sacrifício se iniciara a obra dos descobrimentos, expediu do Funchal “uma muito nobre caravela,” construída e tripulada inteiramente à sua custa. Deu o comando a seu sobrinho Álvaro Fernandes, recomendando-lhe que não tivesse respeito em outro ganho, senão ver e saber qualquer coisa nova que pudesse. Como pioneiro, Álvaro Fernandes ultrapassou em 1445, os servidores do Príncipe seus contemporâneos, após visitar a foz do rio Cenega (Senegal), dobrando o Cabo Verde e chegou às proximidades do arquipélago do Bijagós da actual Guiné-Bissau, mas, ao atingir o décimo grau de latitude, Fernandes não quis ir mais além receoso de que se lhe acabassem os mantimentos, regressou ao Funchal e daqui rumou a Lisboa da qual D. Henrique andava tão ávido de notícias.

Estamos no ano de 1446, Álvaro Fernandes fez a sua segunda viagem à Guiné. Passando pela actual Guiné-Bissau e sendo o primeiro Europeu a visitá-la, depois atingiu a maior distância até então percorrida de cento e dez léguas para além de Cabo Verde, e, talvez chegando às proximidades da actual Conacri.

Devido a um ferimento de uma flecha envenenada numa perna, o que motivou de estar em risco de vida, assim, Álvaro Fernandes regressou a Portugal. Encantado com esta façanha, o Regente D. Pedro, que seguia a par e passo o progresso dos descobrimentos, deu-lhe um prémio de duzentas dobras e o D. Henrique adicionou mais cem.

Foto 15 > Bissau> Praça Nuno Tristão> Monumento que lhe dá o nome> em 1970.

Ingenuidade branca, ingenuidade negra e mais uma tragédia.

Por esta mesma época de 1446, não admira que Nuno Tristão, um dos melhores navegantes do seu tempo, (depois de em 1445, ter navegado até às proximidades das regiões de Cenega (Senegal) e da Guiné), agora, que ultrapassada a costa árida e desolada do “Sara,” tomava os primeiros contactos com os países negros, já as viagens à África se revestiam de outra sedução.

Tendo lançado ferro na foz de um rio desconhecido (delta do rio Geba), desembarcado nas proximidades da actual cidade de Bissau e havendo a curiosidade de conhecer a África que era cada vez maior. Nuno Tristão e alguns tripulantes, fascinados pelo mistério do local, em pequenos batéis e ajudados pela maré enchente subiram esse rio maravilhoso.
A densa vegetação, que crescia nas margens e tecia sobre as suas cabeças deliciosos túneis de verdura.

Iam encantados, mas, bruscamente, partiu do fundo da selva uma chuva de pequeninas frechas (setas), aparentemente inofensivas, picando como vespas, mas molestando como víboras. Quatro tripulantes já não chegaram vivos à foz, os outros quase não tiveram forças para remar até à caravela, que os recolheu e levantou ferro em seguida. Os feridos levavam no corpo um veneno que não perdoava. Toda a tripulação se encontrava mortalmente ferida, excepto Aires Tinoco, escrivão do navio, ainda muito novo e dois pequenos pajens. Aires Tinoco, criado no ambiente de Sagres, junto de D. Henrique e por isso conhecia pelo menos em teoria muitas coisas do mar. Tomou ele corajosamente o comando do navio, coadjuvado pelos outros rapazotes traçou a rota da viagem de regresso e assim vieram velejando.

Após uma longa viagem, avistaram um navio e tremeram de susto. Podiam ser piratas mouros, que os levariam para o cativeiro em Marrocos e não havia forma de escapar.

Chegaram à fala, usaram um idioma de cristãos. O Capitão um corsário galego chamado Pêro Falcão, logo os informou que estavam nas costas de Portugal e por alturas de Sines. E levou a sua gentileza ao extremo de os pilotar até Lagos, onde se apresentaram ao Infante D. Henrique e mostrando-lhe as flechas “ervadas,” única recordação tangível daquela trágica viagem. Diz Azurara que D. Henrique experimentou grande desgosto com a morte de Nuno Tristão e seus companheiros, “porque quase os criara todos.”

Foto 16 > Guiné> Rio Geba> Porto Gole> Marco com referência de ali estar Diogo Gomes. Sendo solicitado e gentilmente cedido o seu uso, “na foto estão os amigos e camaradas ex- Alferes Jorge Rosales e o Capelão Navário, em 1964.”

Ainda no mesmo ano de 1446, o senhor Infante armou uma caravela de Lagos chamada Piconso, e fez Diogo Gomes Capitão dela, e armou também outras duas caravelas para que fossem além. E mandou que Diogo Gomes fosse capitão destas caravelas e que fossem avante quanto pudessem.

E assim passaram pelo rio S. Domingos e outro rio grande que se chama Fancaso, para lá do Rio Grande Geba e tiveram ali grandes correntes do mar, e na enchente faz grande ímpeto, o que chamam macaréu, porque então não há âncora que possa aguentar
Por este motivo outros capitães e homens deles temiam muito, julgando que era assim todo o mar além e, rogavam que voltasse.

No outro dia tomaram o caminho de regresso a Portugal, viram a grande foz de um rio, que tem três léguas de largura, onde entraram, e pela grandeza logo pensaram que aquele rio era o Gâmbia, e assim era. Os navios comandados por Diogo Gomes subiram o rio e mandou um capitão com a sua caravela para um certo porto chamado “Olimansa” e outro ficou em “Animais.” E ai subiu o rio quanto pôde, e achou Cantor, que é uma grande habitação junto daquele rio. Ai foram tomadas informações sobre o comércio em abundância de ouro, em Tambucotu, Serra Gely e Quioquum, e que ali passavam as caravanas de camelos, dromedários e asnos, levando mercadorias de Cartago ou Tunes, de Fez, do Cairo, e de toda a terra dos sarracenos levando ouro, porque ai há em abundância.

Feita a paz com os de Cantor, porque os homens se fatigavam com o calor, e assim, voltaram para procurar as outras duas caravelas. Na caravela que ficou em Olimansa encontraram 9 homens mortos e o Capitão Gonçalo Afonso bastante enfermo, e assim como outros homens. E na outra caravela, mais abaixo contra oceano 50 léguas e na qual estavam mortos cinco homens.

Foto 17 > Bissau> Praça da Amura> Monumento de Diogo Gomes> em 1970.

Saíram em direcção ao mar e foram a um lugar, onde tomaram conhecimento de um grande senhor chamado Batimansa, do lugar de Alcuzet e senhor desse país. E assim, também fizeram paz com este rei e ele ficou muito contente.
E ali soube Diogo Gomes a verdade, que todo o dano feito aos Cristãos que estavam nas duas caravelas o fizera um certo rei, chamado Nomimans, que possui a terra que jaz neste promontório.
Diogo Gomes, depois que deixou o rei da Gâmbia, seguiu caminho de Portugal, levando informações interessantes ao Infante D. Henrique.

O que o Infante pretendia era fundar um império mercantil ao longo da África, no caminho da Índia. Por isso, Diogo Gomes, velho criado muito da sua “privança,” asseverava: “O senhor Infante dizia que, para o futuro, não brigassem com aquela gente naquelas regiões, mas que travassem alianças e tratassem do comércio.
Os enviados, porém, não compreendiam o problema da mesma maneira e, sempre dispostos a responder à violência com violência, “olho por olho, dente por dente.

Contudo, episódios desta natureza já não conseguiam refrear o entusiasmo e assim, os navegadores se lançavam em novas aventuras.


Nota:
O vocabulário em português arcaico e a pontuação, foram escritos de forma que em parte estejam conforme o extraído da literatura analisada para a feitura deste trabalho. Continuando assim, a dar um certo cunho e de conservar particularidades da época.

Fontes de Bibliografias e de fotografias:
- Vitorino Magalhães Godinho, Documentos sobre a Expansão Portuguesa – Ano de 1956;
- Mário Domingues, O Infante D. Henrique, O Homem e a sua Época – Ano de 1957;
- Alberto Iria, O Itinerário do Infante D. Henrique no Algarve – Ano de 1960;
- Almanaques Bertrand - anos de 1933, 1934 e 1939.
- Outras Literaturas avulsas.

Com um Abraço,
Arménio Estorninho
Ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas
CCaç 2381, Os Maiorais de Empada
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 14 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7127: Descoberta do Senegal e da Guiné, pelos Portugueses (1) (Arménio Estorninho)

Guiné 63/74 - P7132: Notas de leitura (158): Na Guiné com o P.A.I.G.C., de Georgette Emília (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,
Almocei ontem com o Henriques da Silva e o Duarte Silva, emprestaram-me aí uns 10 quilos de papel, graças a eles tenho leituras infatigáveis para as próximas semanas.

Comecei por esta Georgette Emília que foi até à Guiné em tempos exaltantes, para ela e para os revolucionários. É despiciendo fazer comentários, parece-me. O essencial é juntar todos estes tijolos para deixarmos uma casa onde os historiadores encontrem os múltiplos depósitos da memória.

O Jaime Machado pede-me para eu levar uma encomenda para Bambadinca; o coronel Jales Moreira quer que eu tire fotografias ao cemitério de Bambadinca, parece que a Liga dos Combatentes pretende actuar.
Por favor, não se esqueçam que levo roupa e outras coisas essenciais, livros para oferecer.
Procurarei satisfazer o vosso desejo em levar lembranças para os entes queridos.

Um abraço do
Mário


Naqueles memoráveis primeiros meses da República da Guiné-Bissau

Beja Santos

Uma jornalista, devota da ditadura do proletariado, decide ir assistir aos primeiros meses da vida da República da Guiné-Bissau e escreveu um relato que concluiu em Novembro de 1974. As reportagens valem pelo que valem, o olhar de Georgette Emília é muito útil, à distância destes cerca de 36 anos. Ela vê e procura retratar uma gesta, algo que a reconcilia ou a consola depois das divisões profundas do marxismo. Di-lo abertamente, em jeito de introdução: “Parti para a Guiné para viver de perto a experiência de uma frente de batalha contra o imperialismo, convicta da crise que irá abalar as velhas estruturas de classe na Europa… na Guiné, a luta de libertação nacional é ao mesmo tempo uma revolução social anti-imperialista, o que torna impossível uma via neo-colonialista.

Portanto, para nós portugueses, a via africana para o socialismo revela-se uma experiência carregada de esperança” (“Na Guiné com o PAIGC”, por Georgette Emília, edição do autor, 1974).

Começa a sua viagem por Bissau, vê os últimos soldados portugueses a gastar as derradeiras reservas em dinheiro e a comer marisco. A fotografia de Amílcar Cabral é bem visível nas montras e nas paredes. Conversa com um jovem, ele está pronto a viver a revolução, está cheio de vontade para correr os riscos que correram os combatentes, a luta armada acabou mas a revolução continua. O jovem, de nome António dos Santos, fala cheio de vivacidade e vai dizendo alguns disparates nos entretantos: “O cerco feito pelo PAIGC com os armazéns do povo e, mesmo, a devastação da guerra, obrigaram os portugueses a importar todos os produtos para a alimentação. Vinham de Portugal a fruta, a hortaliça, a carne de porco, os frangos e a pescada congelada, a sardinha. O nosso povo que não habitava nas zonas libertadas, ou que não se encontrava retido nas aldeias estratégicas, fugiu em massa para as cidades”. António dos Santos tem sentimentos de cruzado: as mulheres estão a ser libertadas graças ao pensamento de Amílcar Cabral, nas zonas libertadas tinham os mesmos direitos que os homens; manda saudações aos revolucionários portugueses, também eles se libertarão da opressão e do fascismo.

A autora regista frases de desânimo dos comerciantes, despolitizados e desorientados. Depois assiste a uma sessão de esclarecimento onde se fala da justiça popular, do abastecimento e da vigilância revolucionária. E parte para o Gabu onde conhece Mamadou Dabou, comissário político do PAIGC. Ele diz-lhe logo nas boas vindas: “A nossa vitória deve-se ao sacrifício de milhares de vidas. Desde que nasci só conhecia a fome, o sofrimento, a opressão e a miséria. Decidi-me então pela luta partidária. Nós sabíamos que a salvação estava na vitória”. A autora aproveita para reflectir sobre os abanões que são necessários na sociedade portuguesa para que a revolução triunfe e recita um extenso e belo poema de Blaise Cendrars dedicado à mulher africana. O comissário político explica à visitante a nova organização social, a partir do comité de base em cada tabanca. A autora exulta: “Na ditadura do proletariado o povo é livre; tem sempre possibilidade de expressão através das organizações de massas. A burguesia enquanto tal, isto é, enquanto classe exploradora, é que não é livre. E do Gabu parte para Piche. Aqui Mamadou conta à jornalista que mandava todos os dias uma carta ao capitão a pedir que não saísse do quartel para não semear a morte entre o seu povo. E quando a guerra acabou, o capitão abraçou-o dizendo que aquelas cartas lhe tinham salvo a vida, mostrando-lhe como a guerra era injusta. A jornalista conhece Ansumane Mané, então um jovem comandante da base, que tinha destruído “tanques” na estrada entre Piche e Gabu. Depois refere os antigos funcionários do Estado português, os colaboradores do colonialismo e esclarece: “A táctica do PAIGC em relação à destruição do aparelho colonial consiste na formação de estruturas paralelas, pois havia levado a cabo uma experiência de administração colectiva através da criação de comités, o que desde logo excluía o tipo tradicional de funcionários públicos”.

Falando do administrador com quem almoça chama-lhe um cadáver adiado. A descrição que faz de Bafatá é bem curiosa: é uma pequena cidade província à beira do rio. O Geba corre arrastando uma longa cauda de nenúfares. É um rio largo e lento cujas águas parecem prender-se na rede nervosa das plantas aquáticas. A cidade desce de uma colina suave e o seu contorno é redondo. A proximidade da água profunda e espelhada e o verde dos matagais dão-lhe, apesar do calor, um ar fresco. As casas com varandins acolhedores, semelhantes aos de Trás-os-Montes, têm, contudo, uma bonomia quase francesa. Bafatá é elegante e inesperada como uma dama de fim de século deposta na savana africana.

A viagem prossegue de Bafatá até Mansoa. Param em Mansabá para descansar. Em Mansoa, são recebidos por António Borges, presidente do comité de Estado da região de Oio. Fala da sua luta no Morés ao lado de Osvaldo Vieira e Chico Té. Vão todos até um comício no Jugudul. No caminho, Borges explica à autora que o problema mais sério que tinha no momento era da prostituição infantil. À noite discutem a via guineense para o desenvolvimento socialista. E na manhã seguinte partem para Nhacra, aproveitando a autora para dissertar sobre a situação da mulher na Guiné.

Seguiram depois para Candjambari, temos novas reuniões políticas e comícios. Em Bissorã, há mensagens ameaçadoras. Alguém diz: “A nossa guerra só terminará quando todos os colonialistas saírem da nossa terra, assim como todos os africanos inimigos da nossa libertação e independência. Os antigos combatentes que tinham estado ao lado dos portugueses são vistos com comiseração. Um político do PAIGC comenta: “Muitos deles têm a saúde arruinada. Nós passámos durante a guerra as maiores privações, suportámos os maiores sacrifícios, mas temos hoje saúde e alegria. Eles ganharam muito dinheiro mas têm os pulmões rebentados pelo álcool e andam por aí a cair, sem terem encontrado uma razão para viver. Finalmente, em Candjambari, a autora percorre no antigo acampamento do PAIGC, é confrontada com o modo de organização durante a fase da luta armada. A interiorizar a epopeia que lhe fora dado ver, despede-se com melancolia: “Escrevo-vos de um país longínquo. Um país de homens cor de canela, cor de areia, cor da noite, cor de marfim. Vou de novo partir. Inconscientemente no meu bloco de notas eu escrevo o teu nome – FRATERNIDADE”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7105: Notas de leitura (157): O P.A.I.G.C. e o futuro: um olhar transversal, de Ricardo Godinho Gomes (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7131: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (3): Oficial e cavalheiro: Cruzeiro até à Madeira, no paquete Funchal



O paquete Funchal, da Companhia Insulana de Navegação. Era uma das jóias da coroa  nossa Marinha Mercante. Inaugurado em 1961, levava caerca de 400 passageiros.  Luís Miguel Correia recorda-o aqui, com saudade, no seu blogue. E o nosso camarada  L.J. Mendes Gomes fez nele o primeiro cruzeiro da sua vida, antes de ser mobilizado para a Guiné. Foi comprado por um armador grego.  

Foto: Postal da época. Fonte desconhecida.



1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, repartindo actualmente o seu tempo entre Lisboa, Aveiro e Berlim e, por fim, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66.




OFICIAL E CAVALHEIRO: Cruzeiro até à Madeira, no paquete Funchal


por J.L. Mendes Gomes




Depois da viagem nocturna de comboio até Lisboa, Santa Apolónia, os felizardos tinham o paquete Funchal, na Rocha de Conde Óbidos, à espera. A saída seria às 12h.


Lisboa nunca lhe pareceu tão bonita. Parecia adivinhar o contentamento que o tomava, a si e seus camaradas, todos na casa dos 22/23 anos, coberta de um radioso dia de sol. O Tejo imenso e azul à esquerda e o casario esbranquiçado da cidade mourisca, à direita, em escadinha, até aos cumes altaneiros do Castelo de São Jorge. O Terreiro do Paço, imponente, voltado para o além …-…Tejo, num abraço fraterno. O Cristo Rei, lá em cima, a tocar as nuvens brancas do céu azulíneo. Tudo parecia associar-se à alegria que parecia envolver o mundo inteiro.


Largados do táxi que os levou até à beirinha do esbelto barco, todo de branco, ali ancorado, subiram, leves, a escada, de mala na mão, até ao portaló, onde os aguardavam, risonhos e garbosos, os oficiais da marinha mercante. 

Mais parecia um sonho. Um verdadeiro palácio se franqueava, no seu ventre. Salas imponentes, de ricos riposteiros e muitos sofás harmoniosamente distribuídos  pelo chão ricamente alcatifado, à volta de mesas de madeira luzente, com  vasos de plantas viçosas; vários bares, recheados de uma profusão de garrafas, sobre as prateleiras de madeira lustrosa como o mel, copos em vidro refulgente.


Longos corredores desaguavam em escadarias que davam para o imenso labirinto de fidalgas suites sobrepostas, nos diversos pisos que enchiam aquele enorme vaso, poisado nas águas mansas do Tejo, muito maior do que parecia, visto de fora.

Não tardou muito que um rugido cavo se fizesse ouvir, vindo lá das profundezas do  bojo, seguido de um grosso e forte silvo de corneta, atirado para os ares.  O barco começou a baloiçar levemente e o cais a afastar-se dele, saudoso. Mais uns minutos e as gentes, buliçosas, já pareciam distantes e minúsculas, a afastar-se, mais e mais…

Lisboa surgia deitada sobre as encostas suaves, ao longo das sete colinas, enquanto o paquete deslizava à tona das águas frescas do Tejo, como se fora uma larga avenida azul, à vista das margens ridentes de casario, à direita e altas escarpas amareladas de barro nú, à esquerda, em cortejo lento.

Mais um pouco e o oceano imenso aparecia à frente, sedutor, convidando-os para uma aventura, no segredo da suas ondas mansas, tecidas pela brisa branda, que vinha dos longes, da cortina de céu pendente do infinito. Dentro, uma população de pessoas desconhecidas para conhecer. O barco estava ao serviço das carreiras habituais de transporte marítimo, em trabalho e em recreio,  para quem o preferia à rapidez e às alturas dos voos em aeronaves…

O almoço aguardava-os num faustoso refeitório, com largas janelas pintadas pelo  azul natural do céu exterior, sempre renovado. Muitas mesas redondas, largas, cobertas de toalhas de brancura alvinitente. Ricos serviços de loiça e talheres prometiam uma cozinha deliciosa, nas breves horas que se iriam passar.

E foi verdade. O almoço mais parecia um banquete de reis e princesas. Empregados vestidos a rigor, de elegantes fatos brancos, bem brunidos, giravam graciosos, por entre as mesas, deixando os pratos a fumegar diante dos olhos regalados, enquanto outros iam enchendo os copos finos de dourado vinho branco ou de fogoso tinto, puro.

O navio sulcava já o largo oceano e um ligeiro baloiçar fazia desaparecer das mesas, ora nesta, ora naquela, alguns dos comensais mais desafortunados. Foi o caso do camarada Teixeira Lima, antigo colega, bexigoso, de Arouca e do pequeno Ribeiro Gonçalves, alentejano ratinho, das raias de Campo Maior. Ali seguiam com ele, na mesa dos que iam para o Funchal. De repente, levantaram-se e desapareceram porta fora… antes que fosse tarde, disseram-no depois. Felizardos os que aguentaram. Deles foi o reino dos … céus!
Ao jantar, já as coisas correram bem. Com todos à mesa, foi a desforra.


A tarde foi passada na amurada ampla, como largo terreiro, onde toda a gente ia aparecendo, curiosa e repetia os mesmos gestos de plenitude, perante o surpreendente deslumbramento da  vastidão das águas, sob a abóboda azul. Predominavam os nórdicos, lácteos, de meia idade, sedentos de sol e, de vez em quando, flausinas pintalgadas, de olhar indiferente, aparentemente, distante e castigador. Estratégias…

O barco seguia no seu ritmo certo, de manso alazão, rasgando a mole ingente de águas profundas e um largo manto revolto de espuma ficava-lhe atrás, perdurando em rendilhados brancos, cada vez mais ténues, até se perderem, desfeitos, na ondulação esverdeada.

Algumas gaivotas acompanhavam-no, teimosas, talvez à procura dos peixes batidos ou estonteados pelo rodar potente da hélice… Durante a tarde, cada um entregou-se, naturalmente, ao que mais preferia desfrutar. À noite, no jantar, já havia  histórias desmedidas de aventura amorosa, na boca de alguns camaradas…difíceis de encaixar em tão curto pedaço de tempo.

Ao Quim Luís, nada disso interessava, para já. Sorver a frescura da brisa carregada de iodo que se desprendia daquele caldeirão refervente, em salpicos de espuma, olhar para os longes do mar infinito, imaginar o que iriam ser os próximos tempos nas imaginárias paragens da ilha bela e desconhecida, era tudo o que lhe perpassava por detrás dos olhos, a partir da amurada alta da nave baloiçante. Só a meio do dia seguinte estariam defronte da ilha. Se tudo corresse bem.

Faltava pouco, pensando que a maior parte do tempo seria passado a dormir numa das suites de 1ª classe, reservada para os oficiais… Antes, porém, de se irem deitar, ainda haveria o serão festivo e dançante, ao ritmo da orquestra especial de bordo, no amplo salão, iluminado por faustosos candelabros e lustres faiscantes de luz irizada.

Toda a gente que ali seguia irradiava satisfação, nos rostos, em troca gratuita de sorrisos, como se se conhecessem há muito tempo…Foram poucos os que não deram o seu contributo de dança, tão descontraída, quanto possível, naqueles tempos. Sem saberem, estavam a despedir-se dos ventos ingénuos do romantismo…

Os Beatles endiabrados já tinham lançado os primeiros lagidos de revolução no seu imprevisto de sons e de ritmo. As primeiras horas do 2º dia de viagem já eram passadas, quando o nobre salão ficou deserto e o barco, em silencioso baloiçar, conseguiu adormecer a miríade de hóspedes aconchegados no seu ventre...

Era um enxame  de destinos desconhecidos e separados que seguia ali. Uma teia entrelaçada de sonhos. Sonhos a nascer, sonhos a crescer e sonhos a  cumprir-se… Antes de ir deitar-se, não resistiu à tentação de subir à proa do barco. Nunca vira coisa assim.   Sublime e esmagadora solidão. Debruçado e cotovelos na grade húmida, apoiou a cara nas mãos em concha e caíu em êxtase, irresistível.

Aquela visão não lhe parecia deste mundo. Um espelho imenso resplandescente reflectia a chuva densa e transparente de um luar banhado de leite que caía de uma enorme bola, inesgotável, recortada no firmamento longínquo, profundo e escuro, salpicado de luzinhas trementes.

Apenas ouvia o borbulhar, lá em baixo, da água cortada pela quilha do barco que seguia afoito, logo abraçado por abundantes madeixas  de espuma e a frescura da brisa a entrar pelas narinas. Só a baforada de fumo negro que se desprendia da gorda chaminé, saliente da crista do navio e as pálidas janelas iluminadas da torre de comando, davam sinal de vida.

Para trás, ficava um imenso ermo coberto pelo mesmo manto diáfano e fosforescente. Ficaria ali a noite inteira, inebriado, não fosse um súbito arrepio de frio que lhe percorreu a espinha da cabeça aos pés. Em passos lentos, deixou o deslumbramento e dirigiu-se para o seu quarto nº 444. Fácil de fixar, ao meio do corredor, do lado esquerdo    (a bombordo, como se dizia na língua dos mares). Acendeu a luz do quarto e ficou dentro de uma verdadeira suite, de hotel de 5 estrelas. Estava saciado e certo de que o seu caminho passava por aquelas horas de encantamento.

O roncar soturno que vinha da casa das máquinas até ao travesseiro fresco onde poisou a cabeça e o embalar suave e ritmado,do barco, para cima e para baixo, ajudou-o a desprender-se, feliz, daquele dia tão intenso de vivências.A Madeira não lhe aconteceria, também, por mero acaso. Amanhã, já estaria a pisar de novo, terra. Terra estreita, cercada de água por todos os lados, assim se aprendia na 4ª classe. Madeira, Porto Santo e Desertas, formam aquele arquipélago onde a gente se sente e é português. Com todas as vastas possessões ultramarinas, espalhadas pelo mundo inteiro, recordou as horas passadas, com os colegas, vaidosos, diante do mapa, na escola primária.No dia seguinte, ia sentir ao vivo essa experiência mítica. Depois, ainda viria certamente, a mesma sensação por terras de África. Oxalá, não. Naquelas circunstâncias. Não. Não queria pensar nisso. Cada dia, no seu dia…Era o lema de vida que elegera.

 
[Continua]



[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7130: (Ex)citações (101): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (Vasco da Gama / José Brás)

1. Continuação da publicação dos comentário do Grupo do Cadaval, a propósito do Poste 7117 do nosso camarada José Manuel Matos Dinis

Chegou a vez dos camaradas Vasco da Gama e José Brás


2. Vasco da Gama

Quando recebi o comentário do Hélder ao teu texto, de pronto lhe disse desconhecer do que se tratava pois não havia recebido nada vindo da tua parte.
Estava errado e peço desculpa pois descobri, perdido não sei onde, o teu escrito sobre "A Formação do Conhecimento".

Recebi também os comentários do Zé Brás e do Belarmino, trazendo este último apenso o teu texto, o que facilita imenso a análise.

Eu li o texto apenas e só sob o ponto de vista teórico, como ponto de partida para uma troca de impressões sobre um assunto altamente interessante e de grande complexidade para o qual gostaria de contribuir, mas repito, como forma de aprendizagem no âmbito do que a Ciência Cognitiva pretende explicar, já que na prática a linguagem ou o raciocínio ou a inteligência ou a Lógica ou a Epistemologia ou mesmo a inteligência artificial e a cibernética terão de ser tidas em conta para a abordagem da "questão".

Vejo agora, caro JD, que pretendias que o eco do teu escrito bem como os comentários dos camaradas chegassem à Tabanca Grande. Não me parece que aproveite à esmagadora maioria dos nossos camaradas que, tal como temes, vão achar na "coisa" intelectualidade a mais e Guiné a menos, para além de não teres o direito, no sentido de obrigação, de impor o "caminho aos que não querem aprender", obviamente neste contexto.

Sei bem que para crescer como pessoa e como cidadão do mundo tenho de ter acesso ao conhecimento, tenho de ter essa consciência, esse querer, essa vontade, como sei que o conhecimento não dá poder a ninguém, mas sim a utilização do que dele fazemos.

Que sorte eu tive em ter sempre quem me transmitisse informação paralela à que a escola me fornecia, mesmo na universidade onde a aprendizagem e a consequente aprovação em qualquer que fosse o curso era tão só o "decorar" o que se ouvia, sem necessidade de qualquer interpretação ou raciocínio, duas palavras perigosas para a altura; também quase todos os universitários do meu/nosso tempo não passávamos de netos do Zé Dinis.

Querer entrar no Blogue por esta porta, parece-me perigoso e de duvidosos resultados.

Não vou passar os olhos pelo que escrevi.
Fi-lo com o coração de vosso amigo.
Vasco da Gama


3. José Brás

Meus amigos
Já dizia o outro… “penso, logo existo”, tentando acabar com a velha discussão do ovo e da galinha, perdão, do corpo antes da alma; da existência antes da consciência, está visto que em tentativa frustrada para além da profundidade eloquente da afirmação.

E se não pensar? Quer dizer, se eu não tiver uma réstia de consciência que existo porque penso?

E se não fosse mais do que uma célula que, sem cérebro nem consciência, contém em si o sinal claro da organização da vida?

Nem sei, juro, nesta semi-insanidade que já me vai ocupando, nem sei se o papagaio do Belarmino pensa ou não pensa sobre o que diz e o que faz.

Se o compararmos a uma criança quase bebé, começamos a meter os pés pelas mãos e acabamos às voltas com as nossas próprias contradições.

Pensar por si próprio, pela sua cabeça, sem manipulações nem interferências do dito saber acumulado, isso o que é?

Será que é verdade mesmo que homem alfabetizado é homem livre, como em tempos se quis (honestamente) convencer o povo?

Voltando à criança, sei que a maior parte, na casa dos dois, três anos, tem crises de existência tremendas, parecendo horrorizados com qualquer coisa que nos escapa e não conseguimos, nem controlar nelas, nem entender.

Dizem que são restos de memórias que carrega quem nasce no centro da natureza que é o ventre de mulher; do encontro dos fluidos de homem e de mulher, sem compromissos, ainda, com a informação organizada pela sociedade; instinto puro de ser novo de nascença e velho de milénios não-mortos.

A partir daí, começa a aprendizagem, a moldagem dos sentidos e da memória. Memória sensorial, base de dados, memória curta, memória longa, centro de decisões e feed back

Seremos pela vida fora o que a sociedade organizou para sermos, quer dizer, seremos o que pensarmos… e pensamos o que somos uns sacanas, uns santos, e uns nem sim nem sopas, dependendo, está visto, das capacidades diferentes de ser para ser, e mesmo isso, mesmo isso… não sei, não.

Com isto, ainda me apanharão a defender a ideia de que melhor mesmo, seria não ter recebido qualquer informação da cidade e ter atravessado a vida apenas com a soma das experiências milenares dos antecessores, como os pássaros ou como os elefantes.

E aí, bem sei, sugerindo isso, constituo-me de imediato o objecto privilegiado da vossa chacota e riso.

Pensar pela minha cabeça, a sério, não acredito que pense porque, nascido em aldeia atrasada, num sítio onde os paisanos batiam no burros e nos filhos, ainda assim, nela saquei sintomas de pensamento, de conceitos sobre burros e filhos; sobre galinhas e canja; sobre cerejas e melros.

Há uma coisa que sempre me intrigou e para a qual não tenho qualquer explicação. Desde que me conheço (lá estou eu a dar na burra), sem ter tido alguma vez, dos que me rodeavam, qualquer indução sobre a arte das aves, sempre me fascinou a possibilidade de voar; sempre me prenderam as luzinhas a acender e a apagar que via no horizonte cruzando o lusco-fusco do fim de tarde, evoluindo num sentido qualquer que me escapava e me encantava.

Agora, quanto à corrente anti-pensamento que, de quando em quando, perpassa com maior ou menor vigor na Tabanca… é chão que para mim já deu uvas, sobretudo depois da edição daquele trabalho que mandei ao Carlos e foi editado (Colonização Portuguesa – Particularidades), porque concordando ou discordando, não abandono na picada quem comigo a suporta, embora continue a rejeitar convictamente os ecos, conscientes ou não, do General Mola.

Nunca conseguiria afirmar que aquela gente não pensa pela sua cabeça. Acho, isso sim, que cresceu no pensamento que o é, com uma cabeça que talvez nem seja (que grande embrulhada), de resto, como a minha que o é e não é.

Naturalmente que aceito a ideia de que anda por aí muita gente que discorda de mim radicalmente, a uns, reconhecendo-lhes cabeças brilhantes (e não perigosas apenas porque sem tempo), e a outros apenas… o não porque não.

A uns e a outros desejo o melhor da vida e aos que, mesmo discordando, me respeitam, o meu abraço sempre disponível.

Desculpem qualquer coisinha pelo imediatismo desta, e recebam abraços
José Brás
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Notas de CV:

Vd. postes de:

12 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7117: (Ex)citações (97): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (José Manuel Matos Dinis)

13 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7123: (Ex)citações (98): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (Hélder Sousa / Belarmino Sardinha)
e
14 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7126: (Ex)citações (99): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (Carlos Cordeiro)

Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7129: (Ex)citações (100): Do alto dos poilões da Amura, séculos de história nos contemplam... (Nelson Herbert)

Guiné 63/74 - P7129: (Ex)citações (100): Do alto dos poilões da Amura, séculos de história nos contemplam... (Nelson Herbert)







Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura > 100 anos separam estas duas fotos, 1908-2008... O poilão até podia  ser o mesmo, mas seguramente não  é. A foto mais antiga, proveniente do Arquivo Histórico Militar, é de 1908 (*). A foto mais recente foi tirada em 7 de Março de 2008, junto ao mausoléu Amílcar Cabral, aquando da minha visita a Bissau, no âmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008). O poilão da foto de  hoje poderia estar  "mais enterrado": de facto, a base da árvore, em 1908, parece ser maior, e o tronco mais largo... De qualquer modo, há ainda  bastantes poilões seculares na Amura, seguramente contemporâneos das "campanhas de pacificação" da Guiné e do capitão Teixeira Pinto (1913-1915)... Este foi apenas o único que fotografei e que me inspirou um poema (*)... E a propósito, dizem que o maior poilão é de Maqué, no Oio, e o mais tristemente famoso o de Brá, em Bissau...(LG).


Foto (de cima): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados




1. Comentário do nosso amigo Nelson Herbert, ao poste P7125 (**)


A longevidade ! E que longevidade ! O poilão (polon) que serve de fundo/cenário a algumas das fotos deste post... fotos essas por sinal datadas de 1908... Será a mesma robusta árvore que ainda hoje, de ramos longos e multiformes qual tentáculos de um polvo gigante, se espraia, sob o Mausoléu  Amilcar Cabral e dos heróis nacionais, no forte da Amura...uma aprazível e fresca sombra !


Da minha última visita ao local ainda retenho a imponência de uma árvore similar "prostrada" sobre o mausoléu...


Um poilão com pelo menos um século de contemplação da história ?


Mantenhas


Nelson Herbert
Washington DC,USA (***)
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Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 25 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3669: Blogpoesia (27): A velha Amura dos tugas (Luís Graça)


(...)


A velha Amura dos tugas
agora cercada de guinéus
por todos os lados.
Ilha de areias movediças
num mar de belugas,
foi rampa de lançamento de lançados.
Dizem que aqui nasceu Bissau.
De linhas tortas,
as ruas direitas da capital.

Saúdo os ilhéus,
figuras de museu de cera,
de faces mortiças:
à frente, o capitão-diabo,
o bigode farfalhudo,
espadeirando a torto e a eito,
de peito feito
ao fogo do canhangulo.
Mais os seus soldadinhos de chumbo,
que eram uma ternura:
em linha,
em formatura,
nas suas fardas multicolores,
coloniais,
do tempo dos Cabrais.
Davam vivas à Pátria
e à Rainha.
Aqui como em toda a parte,
onde o Império tinha engenho e arte.

Ah! A velha Amura,
inútil baluarte,
com os seus canhões
de bronze,
incandescente...
Casamata,
prisão,
dormitório,
agora panteão,
nacional,
coberto de poilões.

Eram onze
os soldadinhos,
como no jogo de matraquilhos.
E combatentes da liberdade da Pátria,
contei-os pelos dedos da mão.

Que fazes aqui, Amílcar,
que já te mataram, Cabral ?
E de que traições podias falar,
se fosses vivo,
tu, Osvaldo ? E tu, Vieira ?

E quanto a ti, Titina,
que incendiavas paixões
pelo Oio ?
Que fazes também aqui,
jazida entre os poilões,
debruados de branco,
da triste Amura ?
Cuidado, Silá,
que os tugas montaram-te a cilada
na cambança do Rio Farim.

Vejo mais à frente o Domingos,
O valente Ramos,
herói de banda desenhada,
que irá morrer de morte matada
em Madina do Boé.

E tu, Rui Demba Djassi,
de quem eu não sei nada,
a não ser que morreste em 1964,
depois do mítico Congreso de Cassacá ?
Sei ainda que tens nome de rua,
suja e esburacada,
na capital da tua terra...

E o camponês balanta,
Pansau Na Isna,
herói do Como,
guerrilheiro-cowboy,
enfrentando as naves loucas dos tugas
com a sua Kalash de contrafacção ?

Na Amura fez-se história,
diz-me o guia.
Ou a história dos vencedores
que contam a história
de como venceram
os vencidos.

Luís Graça
Bissau, 7 de Março de 2008 (...)



(**) Vd. poste de 14 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7125: Historiografia da presença portuguesa (38): António Silva Gouveia, fundador da Casa Gouveia, republicano, representante da colónia na Câmara dos Deputados, na 1ª legislatura (1911-1915) (Parte IV) (Carlos Cordeiro)


(**) Último poste da série (Ex)citações >  14 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7126: (Ex)citações (99): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (Carlos Cordeiro)