MISSÃO À ÍNDIA (2)
Por Maria Arminda
Ninguém no grupo sabia da nossa missão, que ia chegar um avião da Índia Portuguesa e o que transportava. Carachi era uma cidade de espionagem intensa e estava em guerra há anos com a União Indiana, por integração do território de Caxemira, cuja posse ambos reivindicavam. Se o governo indiano soubesse desta missão, da ajuda e das facilidades de manobra que o governo paquistanês nos tinha concedido, por certo nos teriam abatido, daí todo o grande secretismo à volta deste voo.
A Maria do Céu quando viu chegar o avião e este se imobilizou, disse ao Dr. Tender: “parece a Maria Arminda que vem ali à janela, mas não pode ser, porque ela está, em Angola”. Foi um espanto para todos a nossa chegada - os homens pareciam pertencer a grupos desportivos, até transportavam alguns sacos de rede com bolas, o que eu e a Nazaré não tínhamos visto, na paragem em Beirute e ficámos espantadas e convictas de que se tratava de uma missão secreta.
Aquela noite foi um pesadelo, não nos deitámos, apesar do alojamento disponibilizado ser nas instalações do aeroporto, num piso térreo, que as várias companhias estrangeiras que nele operavam tinham para descanso das tripulações. O nosso era da Companhia da KLM. Apesar de muito cansadas permanecemos por ali a fim de sabermos mais algumas informações através dos paquistaneses, porque de Lisboa ainda menos se sabia e de Goa, nem pensar. Mais nada se soube e foi com forte angústia que por ali fomos ficando, em alerta a novos acontecimentos.
Entretanto encontrava-se ali estacionado outro avião da TAP que iria transportar algumas crianças e as últimas mulheres e que aguardava partida para Lisboa; entre elas estava uma grávida, em fim de gestação. Foi decidido que seguiriam nesse voo a Céu e a Ivone e que ficaríamos nós, Nazaré e eu com os restantes elementos da missão, até chegarem ordens de Lisboa. A ansiedade que nos tomou, também tomou a parturiente, que começou a dar sinais evidentes de que o parto podia ocorrer a qualquer momento - o que teria acontecido, se o avião tivesse ido para o ar. Foi de imediato acompanhada pela Maria do Céu e internada numa clínica obstétrica local, tendo nascido uma menina. O pai, um Sargento Enfermeiro do Exército, foi, como todos os outros militares, feito prisioneiro e só veio a conhecê-la, meses depois, quando da sua libertação.
No dia seguinte continuávamos sem notícias, nem de Goa nem de Lisboa. Nessa tarde o Dr. Tender foi confrontado com telefonemas anónimos, em que o interlocutor perguntava se ele era militar, bem como o restante grupo. Essa ocorrência deixou-nos a todos um pouco apreensivos, pois tínhamos sabido que algum tempo antes uma hospedeira da TWA tinha sido assassinada. Quando o avião estava prestes a sair, o Comandante foi avisado de que deveria aguardar, porque estavam a caminho dois aviões, que conseguiram descolar de Goa, em condições muito desfavoráveis e escapar ao controle dos radares indianos.
Maria Arminda Santos e Maria Ivone Reis (do lado direito) > "1ª Missão a Angola. Partida da Portela a 22/8/1961"... Ambas conheceram bem a Guiné... A Maria Arminda faz parte desta grande família virtual que se senta debaixo do poilão da Tabanca Grande... A Ivone Reis, infelizmente, está doente...
Fonte: Arquivo Enfermeiras Pára-quedistas / Álbum de Quem Vai à Guerra (Facebook)... (Com a devida vénia...)
Foi com grande alegria que vimos chegar a tripulação, com o avião que nos transportara, bem como o dos TAIP, que não tinha podido anteriormente descolar de Goa, trazendo o pessoal civil que trabalhava no aeroporto e o director da Emissora de Goa. Com os novos acontecimentos ficámos todos em Carachi, até a senhora ter alta; no dia vinte à tardinha, o avião dos TAIP (ainda com marcas dos estilhaços de bombas) iniciou a viagem de regresso, transportando-nos a nós e a todas as pessoas que tinham conseguido fugir, as restantes mulheres e crianças e a nossa nova passageira recém-nascida.
O avião da TAP ficou no aeroporto, para reparação, tinha sofrido mais estilhaços que o nosso. O que nos trouxe, pilotado pelo Comandante Solano de Almeida, era um DC4, muito mais lento, um quadrimotor a hélice, enquanto a primeira aeronave era turbo-hélice e mais rápido. Soubemos de imediato, que seria uma viagem muito mais demorada e com escalas pelo meio. Preocupava-nos além dos condicionalismos existentes, o bem-estar de todos os que estavam a bordo, até porque alguns dos passageiros estavam psicologicamente abalados. Tinham embarcado à pressa, apenas com a roupa que traziam na altura vestida. Acima de tudo preocupava-nos a recém-nascida e a sua mãe. Passámos desde então a assumir o papel de enfermeiras hospedeiras, o que teve a virtude de nos trazer distraídas e ocupadas.
Cockpit de um DC-4
Saímos na noite do dia vinte e a primeira paragem foi na Síria, em Damasco, apenas para reabastecimento; daí seguimos para o Líbano rumo à cidade de Beirute, onde pernoitámos, sobretudo para descanso da tripulação, que era única para toda a viagem. Este percurso, segundo o que os pilotos nos disseram, foi mais demorado porque o avião tinha que subir lentamente acima dos montes da cordilheira do Líbano, que separa este país da Síria, não sendo as condições as mais favoráveis, pelo que teve que subir em espiral até atingir a altitude de segurança.
No dia seguinte, vinte e um à noite, descolámos para mais um percurso; mas a paragem na cidade de Beirute tinha-me permitido visitá-la, pois era linda e com duas zonas distintas: uma parte mais antiga, no centro, e outra, nova, de enormes edifícios, que lhe valeu pela sua imponência a designação da “Riviera do Oriente”.
Aterrámos em Beirute já era escuro, com mau tempo e chuva intensa; e foi debaixo desta, que a Nazaré e eu deixámos o hotel onde estávamos alojados e procurámos uma farmácia próxima para comprar, material de penso a fim de tratarmos o cordão umbilical da bebé, que ainda não tinha caído. Escusado será dizer que sem qualquer protecção e a água a entrar no pescoço e a sair nos calcanhares, nos deixou molhadas até aos ossos, mas foi por uma boa causa.
Aproximava-se o Natal e a cidade com enfeites alusivos ao mesmo, com cedros e pinheiros de montanha, fascinou-me. Actualmente e com o grau de destruição que caiu sobre a mesma, a paisagem deve ser muito diferente e alguns daqueles imponentes edifícios da zona moderna, penso que foram em parte destruídos nos conflitos mais recentes, a avaliar pelas imagens televisivas que nos têm sido mostradas nos últimos anos.
Na permanência em Carachi, também fui, mas sozinha, ao centro da cidade, tendo utilizado um riquechó, tipo lambreta com capota de lona, onde o dono levava uma esteira. Era cerca do meio-dia e para meu desespero, chegou a um local onde se encontravam vários veículos iguais, mandou-me descer e apontou-me a zona para onde eu me deveria deslocar a pé. Dito isto, puxa pela esteira e virou-se ao que julguei ser para Meca e com os outros, ficou a fazer as suas orações.
Eu ficara num local onde se situavam os Bancos e assim vestida à ocidental a cruzar-me com os naturais, as mulheres de saris e lenços na cabeça, os homens de calças largas e de turbantes, fizeram-me ter algum receio, até porque me veio ao pensamento a história da hospedeira raptada e assassinada, anteriormente à nossa chegada.
Achei a cidade suja; uns vendedores ambulantes nuns carros do tipo dos da venda de castanhas em Portugal, comercializavam um caldo espécie de sopa, ao mesmo tempo que mascavam uma pasta encarnada, que muitas vezes cuspiam para o chão, o que me enojou fortemente e me fez retardar a saciação da fome, que começava a sentir. O trânsito era caótico, com carros sempre a apitar no meio de veículos motorizados, onde também passavam como meio de transporte, vacas e camelos. Uma verdadeira babilónia, que gostei de apreciar, pela sua excentricidade.
A Nazaré aproveitou o dia para visitar uma religiosa sua amiga, que se encontrava num convento no deserto, a uns quilómetros de distância, tendo feito também só, o percurso num táxi que alugou no aeroporto. Finda a visita, a religiosa com outras Irmãs, veio trazê-la na sua viatura por receio e porque era preciso chamar da cidade, um novo transporte.
Na véspera à tarde ela e eu já tínhamos andado num táxi da marca Gogomobil, que era pequeníssimo, conduzido por um homem, muito alto e com um mau aspecto, que dizia saber onde ficava o convento, mas na realidade não sabia. Quando o vimos sair da estrada e meter para um bairro da periferia quase sem luz, onde os homens nas soleiras das portas e fumando os seus cachimbos, descansavam acompanhados de alguns camelos, começamos a ter receio de prosseguir a viagem. Estava prestes a anoitecer e o condutor por informação que outro lhe dera, dizia-nos que esse convento ficava no meio do deserto. Pedimos-lhe então a conta e apanhamos outro carro, que ali estava e regressámos ao aeroporto, felizmente sem mais incidentes. Esta missão foi um misto de aventuras e emoções, mas ainda não tinha terminado.
Microcarro Goggomobil
Imagem Vikipédia, com a devida véniaDescolámos então de Beirute, no dia vinte e um de manhã, desejosos de chegar a Lisboa; nesse percurso apanhámos tanta turbulência que julgávamos que o avião ia cair. Alguns passageiros começaram a ficar assustados e o nosso médico, o Dr. Tender, quase que desmaiou. O susto por que passámos foi tão grande, que resolvemos fazer o baptismo da menina, “sob condição”, fórmula existente na Igreja Católica para situações de urgência, como morte iminente, não invalidando um baptismo, a posteriori, por um sacerdote. A menina a partir daquele momento foi por nós, considerada nossa afilhada.
Após muitas horas de voo, aterrámos debaixo de chuva intensa em Palma de Maiorca, conscientes do perigo que tínhamos corrido, sabendo dos buracos feitos pelos estilhaços na fuselagem do avião na sequência do bombardeamento do aeroporto de Goa. Na viagem um dos tripulantes de nome Vinhas, com quem mais tarde viemos a contactar de perto e com quem voámos muitas vezes, porque era um navegador da Força Aérea, mostrou-nos um estilhaço de uma das bombas lançadas, que tinha apanhado antes de fugir.
Nessa noite pernoitámos na ilha, de onde saímos no dia seguinte, vinte e dois, com um sol radioso, que nos permitiu desfrutar a linda vista aérea e nos animou o espírito. Lisboa estava mais próxima e até já sentíamos o cheiro do Natal.
No final desse dia, avistámos a nossa capital e todos nos animámos; porém, ao sairmos do avião fiquei impressionada com o mar de gente que aguardava a nossa chegada, na ânsia de saberem mais notícias dos acontecimentos e de familiares que tinham sido feitos prisioneiros. A televisão mostrou no noticiário essa chegada e a minha família viu-me aparecer na saída e desfez as dúvidas com que tinha ficado na semana anterior.
Quando em Portugal se soube da invasão dos nossos territórios na Índia, a minha cunhada, tinha dito para o meu irmão: “A tua irmã não voltou para Angola, foi de certeza para a Índia”. E tinha razão, foi por um acaso que não fui lá parar, porque talvez não tivesse tido a sorte de regressar.
Também em Angola, quando se soube do sucedido e o que acontecera ao nosso avião, a Zulmira e Lurdinhas, foram nessa tarde à igreja do Carmo mandar rezar uma missa pelas nossas almas, convencidas que tínhamos morrido nessa ocasião. Contaram-nos depois que a Zulmira dizia para a Lurdinhas, ”Como é que vai ser agora, que grande responsabilidade só ficámos as duas e ainda por cima perdemos as nossas grandes amigas”, respondendo a outra que haveriam de se arranjar; e choravam ambas copiosamente, até que o Dr. Varela - que as acompanhara - lhes disse que ia procurar saber mais notícias, para as tranquilizar; não era fácil, pois as notícias não chegavam a Luanda tão rapidamente, só pela comunicação oficial, por meio dos chamados “Rádios”.
Graças a Deus que cheguei a esta data para recordar todas as emoções vividas nessa missão, tendo todas nós sido condecoradas, pelo então Ministro do Ultramar, Professor Adriano Moreira, com o Grau de Cavaleiro de Benemerência. No dia seguinte depois de cumpridas as formalidades militares, fui à Baixa comprar um casaco por causa do frio, mas tinha dificuldade em caminhar a direito, parecia embriagada por efeito de tantas horas de voo.
No dia vinte e quatro passei no barco para o outro lado do Tejo e com a chuva a cair, vi partir a última camioneta que me levaria para Setúbal. Não podia ali ficar parada mais tempo naquele lamaçal, isto porque o cais de embarque de Cacilhas, era de terra batida. Felizmente apareceu um conterrâneo que estava nas mesmas condições, alugámos um táxi e dividimos a meias a despesa e cheguei a casa. Foi o melhor presente que tive: bater à porta dizer que era eu e não, o Pai Natal, abraçar os meus irmãos e festejar essa quadra com a minha família. Depois do Ano Novo, apanhei com a Nazaré outro avião, de regresso a Luanda.
Esta missão estava cumprida e foram muitas as que realizei ao longo de quase dez anos de vida militar, a maioria nos ex-territórios ultramarinos, de Angola, Guiné e Moçambique, entre outros.
Passados meses sobre a nossa missão, em Maio dá-se início ao repatriamento dos prisioneiros, tendo sido para eles uma eternidade o período em que ficaram privados da liberdade. Foram então nomeadas para essa nova missão, a Maria Zulmira, e a Maria Ivone que rumaram para Carachi. Porém, foi à Ivone que coube o papel de ir ao campo de prisioneiros, como hospedeira da companhia francesa da UAT e acompanhar, entre outros, o General Vassalo e Silva no seu regresso.
Começava outro capítulo da Nossa História Colonial. Tínhamos perdido os territórios do Estado da Índia, a nossa “Jóia do Império”, que tantas tormentas tinham dado aos nossos valorosos navegadores. Confesso que tive pena, nós ficámos mais pobres, sentimentalmente e culturalmente, foi uma perda que a muitos de nós deixou marcas, mas todos sabemos, não ter sido possível, pelas armas, virar os acontecimentos, a nosso favor.
“FOI O COMEÇO DO FIM, DA NOSSA EXPANSÃO ULTRAMARINA, NO ORIENTE E EM ÁFRICA E DO FIM DO NOSSO IMPÉRIO COLONIAL”.
Todos os anos, quando chega o dezoito de Dezembro, recordo e revivo esta missão sem nunca ter esquecido aquela criança, que hoje tem quarenta e nove anos. Algumas vezes perguntei à Ivone por ela e manifestei vontade, de a procurar. Por parte da Ivone tinha havido um contacto entre ambas, mas posteriormente, perdera-se. Nesta data, através de felizes acasos, a minha amiga e colega enfermeira pára-quedista Rosa Serra conseguiu o seu contacto e deu-mo. Finalmente sabia do seu paradeiro. Pude por isso falar-lhe, dar-lhe os parabéns, por mais este aniversário, saber que se chama Ivone Cruz, que é casada, tem uma filha e um filho e vive no Caramulo. A sua mãe já faleceu, mas o seu pai embora idoso, ainda vive.
Assim como eu sempre digo,” A VIDA É OS DIAS QUE NOS LEMBRAMOS”.
Espero que Deus me permita por mais alguns, lembrar-me desta data, que para muitos, foi dolorosa e lhe possa continuar a dar os parabéns.
Maria Arminda Santos
Ex: Tenente Enf. Pára-Quedista
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 1 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8976: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (26): Missão à Índia (I parte) (Maria Arminda)