sábado, 6 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10489: Convívios (476): 4.º Convívio anual dos ex-Combatentes do Ultramar do Concelho de Gondomar, ocorrido no passado dia 29 de Setembro de 2012 em Valbom (Jorge Teixeira - Portojo)

4.º CONVÍVIO ANUAL DOS EX-COMBATENTES DO ULTRAMAR DO CONCELHO DE GONDOMAR, LEVADO A EFEITO NA FREGUESIA DE VALBOM NO PASSADO DIA 29 DE SETEMBRO DE 2012

REPORTAGEM DE JORGE TEIXEIRA (PORTOJO), EXTRAÍDA, COM A DEVIDA VÉNIA, DO BLOGUE DA TABANCA DOS MELROS


Os Ecu's foram de abalada até Valbom, agora Cidade - mais uma - dentro da Cidade (?) e  Concelho de Gondomar. Nossa referência convivencial. Nascidos e/ou residentes ou simples passantes, é daqui o motivo-origem da nossa (re)união. Gondomar.

Coisas que não interessam nada para o caso dentro do contexto Tabanca'uístico dos Melros, que mesmo em crise de presenças não querem esquecer como tudo começou há quatro anos em Medas, território do famoso régulo de Mampatá, o Carvalho Mano Novo.

Seguiram-se Jovim - ó Presidente que já não apareces há manga de chuvas, que é feito de ti ? - S. Cosme (mais deserções no nosso exército, especialmente dos manos Martins, esses músicos fadistas que tanta falta nos fazem),  e o impulso do Presidente-Secretário-Tesoureiro-1º Vogal-2º Vogal-Secretário- apresentador/publicista que ninguém ouve, museologista (?)  Carlos Silva, o Gondomarense Mouro I.

Pois, como diria o poeta, foi na antiga Escola Primária de Rossamonde, agora sede do Grupo Etnográfico de Valbom, que o camarada Silva - não o Mouro mas o Bigodes - escolheu para nos receber na sua freguesia, bem acoitado pela direcção e voluntários do Grupo. A todos o meu obrigado, que não é representativo (mas acho que assinarão por baixo) dos presentes na dita e referida reunião dos Ecu's. 

Claro que para ir descobrir Valbom precisava de amigos. Eles não faltaram ao meu help, mas acabei por escolher o Cibrão. Não por nada, mas sempre é mais seguro viajar numa Mercedes-Chaimite, do que por exemplo no Seat-Unimogue do Neca. No vermelhão Jipe 4x4-Amaro Barbosa é que nunca.
A rapaziada foi chegando mas as preocupações eram outras.

Olhar o porquinho ao sol e às brasas de sobreiro, pinho ou louro. Não sei, a madeira é importante, mas para mim o bronze do bicho é que me interessava

Temperatura escaldante e enquanto o Quim Soares se abriga do Sol, o Presidente Bandalho J.Teix.45 está meio friorento.

Vamos olhando para fora da cerca, mas o que está dentro dela é que interessa.

E para a posteridade, aqui ficam os "arranjos" do alegorismo do Grupo Etnográfico, com o presidente Bandalho em destaque.

Não sei como nem de onde apareceram umas chouriças e morcelas e uns canapés, coisa fina a que os Melros se foram habituando lá no Choupal. E também umas iscas de bacalhau que por qualquer motivo não tiveram direito a foto de promoção. Mas que estavam boas, não houve dúvidas.

Ainda hoje não entendo a razão porque é que onde há ex-militares se formam bichas (sim bichas, não estou a denegrir ninguém ...) chamadas desde tempo longínquos, de pirilau.

Para os e as jovens desconhecedores(a)s, aqui fica o esclarecimento: essas bichas formavam-se em três ocasiões especiais: para o Rancho-da- fome, para receber o Pré-miserável e para Saltar ao Galho. O mais pequeno, para mim, era o de Vendas Novas, o maior o das Caldas.

Este blogue (e este secretário que gosta de reviver Os Meus (Nossos) Vinte Anos) arroja-se a ser um manancial histórico-didáctico que faria raiva ao Oliveira Martins ou mesmo ao Hermano Saraiva, se ainda fossem vivos. Mas sei que o coordenador museológico Carlos Silva tem em conta este futuro arquivo. Mai'Nada.

Não são precisos oficiais e sargentos de dia para organizar e manter em ordem os camaradas.

As Bichas - Pirilau, claro - formam-se naturalmente. A frente pela esquerda, à retaguarda pela direita. A velhice continua a ser um posto. 

O Gil aviador, nosso anfitrião no Choupal e zelador do Museu,  toma a sua aperitiva lourinha. Mas em que estará a pensar ? O Porquito está sob meu cuidado e segurança.

Contradizendo as reportagens de ditos e desavenças em que a última semana foi fértil, nos Ecu's, verdes ou vermelhos - Barbosa e Neca - só têm o trabalho de mastigar. Mas algo se passou que não lhes agrada. Será que houve um azul ao vento? Mistérioooo...

O tal dito cujo Porco, salvo seja, bronzeava-se mas logo era aparado, saltando para o meio dos moletes deliciando os apreciadores da boa fêvera.

Mais bichas

Finalmente, chegaram as Tripas. Confidicialmente contou-me o Silva de Catió que quando se chegou à frente, o tacho estava vazio. Esperou pelo segundo, coisa que nunca se deve fazer, mas quando lá foi espreitar, nicles, também não havia. Ora isso é coisa em que não acredito.

A malguinha em primeiro plano foi cheia duas vezes. Adivinhem de quem era... E não foi preciso ir duas vezes para a bicha. Bem sei que há quem tenha regalias, mas que diabo, temos de fazer por elas. Olhem só os Catrogas, os Borges, os Marcellos, os Coelhos, etc e tal, embora nada disso venha aqui para o caso, mas é como que uma explicação e prontos. Por sinal, o tinto foi errado. Era para ser maduro mas saiu verde. Mas também nada se perdeu.

E cada um se amanhou com as cordas que teve. Eles pela experiência de vida, elas por terem aprendido.

Só eu sei, como diria o cantor brasuca, quantas andanças fiz. Mas parece que houve meninos que não se mexeram (ou será mecheram ??) do mesmo sítio desde que entraram em cena.

Ora aqui está a prova de que o Silva de Catió mentiu e enfardou e bem sobre as Tripinhas. Lá por estar a explicar ao Cibrão como é que os canoístas conseguem trazer umas medalhitas para Portugal, nunca perdeu de vista o objectivo. Mas nos entretantos em que estaria a pensar o Fernando Súcio ? O azul, não sei se raparam, é a cor dominante. Lindo.

Claro que no meio de tanta gajada há sempre quem se aproveite e o santinho do Carlos Vinhal é um aproveitador...

E o Lobo uuuuuu parece que se andou a fazer ao cargo de secretátio fotógrafo. Só a D. Germana destoa do azul. 


Para complemento umas fatias de melão e melancia. Do primeiro ainda comi uma pequennininhhaaa. Sério. Mas desde uma célebre semana de campo em Vendas Novas que não provo melancia. Mas isso são outras histórias. E o azul continua da cor do céu.

Até que ficam bem no prato. Mas não sei para onde se sumiram. Bá, verde e vermelho...

Uma caneca perdida, mas achada à posteriori. Não devemos quebrar o sigilo de a quem pertencia. Mas o dono dela andava lá por longe, despistado como habitualmente.

Um belo coração em filigrana de ouro, ex-libris de Gondomar. Pertence a uma componente do Grupo Etnográfico que mais tarde actuaria para nós. E aqueles cordões, que dariam para pagar uns tantos jantares de marisco...

Os nabos de S. Cosme ganhariam a estes, mas isso também são outras histórias.

E mesmo que passem encostados com a barriga ao balcão, há camaradas a quem ela nunca se esvai.

O camarada Súcio, que me conhece de ginjeira, ajudou a montar a segurança ao Bicho Porco.

Mas como é muito versátil e dá para todas as especialidades, veio juntar-se ao Quim na segurança aos pipos.

Esta história nunca mais acaba porque o Porco dura e dura e dura...

Alguns dos nossos anfitriões fizeram o favor de "pousar". Só não sei que lata era aquela e o que continha...

O Carlos Silva só está bem quando lhe dão alguma coisa para a mão. Mesmo que ninguém o ouça, o microfone tem de estar próximo. Quer esteja desligado ou não. Para ele tanto faz. E para nós também. Mas o bolo comemorativo estava bom mesmo, até para os diabéticos.

A D. Germana ajudou o Silva organizador da Festa a partir e distribuir o dito.

Os primeiros lateiros não podiam ser outros. Um Bandalho e um Lobo.

Ó p'a eles - e elas - desconsoladinhos, esperando como pobres a esmola.

O Bicho Porco estava finalmente à maneira para se lhe deitar o dente. O Presidente Bandalho já estava com pena dele. Não foi por nada, é que depois do bolo é proibido comer porco.

Mas quem não comeu bolo, come porco e a sua costelinha. Demorou umas horas, mas valeu a pena.

Para terminar a confraternização, o mestre de cerimónias foi buscar alguns elementos do Grupo Etnográfico para a rapaziada acabar o dia em beleza.

Música a rolar, Grupo a ensinar e a rapaziada a dar ao pé.

"Prontos"... é tudo por hoje.
Agora já comia mais umas costelinhas, mas esqueci de levar a marmita.

Rapaziada, até ao dia 13 na nossa sede, O Choupal dos Melros
____________

Notas de CV:

- Ecu's - Ex-combatentes do Ultramar
- Bandalhos - Ex-combatentes pertencentes à tertúlia do Bando dos Melros/Tabanca dos Melros

Vd. último poste da série de 20 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10412: Convívios (475): I Encontro do pessoal do Pel Rec Daimler 2208 (Mansoa/Mansabá e Bissau) ocorrido no passado dia 28 de Julho de 2012 em Porto Alto (Ernestino Caniço / Carlos Pinto)

Guiné 63/74 - P10488: Do Ninho D'Águia até África (15): O "Caneta" (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (15)

O Caneta

O carro da “Psico-Social” foi um invento, creio que do comando da unidade militar a que o Cifra pertencia, pelo menos era o que constava na altura, mas talvez não, talvez fosse um invento de Lisboa ou do comando militar da província, que na altura era comandado por um general cujo segundo nome, era Schulz, difícil de pronunciar, parecendo que este nome, não era de origem portuguesa. Alguns até brincavam com a situação e diziam:
- Este nome, deve de ser de origem alemã, ou de descendentes muito antigos, daquelas princesas germânicas, que se intrometeram na família real inglesa, herdou este território e o governo de Portugal o mandou para aqui, para olhar pelos bens que os seus antepassados lhe deixaram.

Ao que outros logo respondiam:
- Mas se isso é verdade, não tinha nada que me mandar para aqui, pois eu não sou seu escravo porque não lhe pertenço, o meu pai e a minha mãe tinham cédula de nascimento e não carta de alforria.

Enfim, coisas para rir, que não têm qualquer senso, mas quem sabe, se lermos com alguma atenção, as diversas versões, algumas contraditórias, que foram publicadas em todo o mundo, contando a história do continente Africano, moralmente, talvez tivessem só um bocadinho, mesmo muito pequenino, de razão, pois no caso de Portugal, não nos podemos esquecer que era a Companhia Ultramarina, não se sabia com que capitais, com armazéns, barcos e cais de embarque, nas principais vilas ou lugares importantes, que negociava e transportava, quase todos os produtos que saíam da então província da Guiné.

Com todo este blá, blá, blá, o Cifra não está querendo associar a Companhia Ultramarina, à “Royal African Company”, nem pensar, longe de nós, semelhante comparação. Mas continuando com a narrativa, pois já estamos a ir longe de mais com pormenores, pois o Cifra, está a falar única e simplesmente pelo que na altura em que lá se encontrava e todos nós tivemos oportunidade de observar, e que não deve ter nada a ver com a guerra que todos nós, antigos combatentes, estivemos envolvidos e que ainda hoje, os que têm o privilégio de estar vivos, recordam e continuam a sofrer com algumas dessas malditas recordações. Portanto vamos continuar, esta viatura era um Unimog, coberto com uma cobertura de pano oleado, tanto na cabine como na zona de carga, tinha instalado uma aparelhagem sonora, com quatro altifalantes, colocados no topo da viatura, tipo funil, tal como se usava nos arraiais das festas e romarias, nas aldeias e vilas de Portugal.

A missão desta viatura era percorrer algumas aldeias, nas redondezas do aquartelamento e não só, distribuindo panfletos, alguns com a fotografia de um militar, com uma arma à tiracolo e com uma criança africana ao colo, dizendo, num português acrioulado, que os militares estavam ali para proteger, ajudar, ensinar, curar feridas, dar medicamentos, enfim, fazer tudo o que o Criador ainda não tivesse feito.

Algumas vezes, o “Pastilhas”, o tal cabo enfermeiro, que fazia de doutor, ia na viatura, com uma mala à tiracolo, com uma cruz vermelha desenhada na frente, onde levava, entre outras coisas, comprimidos, álcool medicinal, tintura e ligaduras, e desinfectava com álcool, depois pincelava com mercurocromo, deitando em seguida um pó branco, envolvendo com ligaduras, algumas feridas nas pernas e nos pés, que alguns africanos, já com idade avançada, tinham principalmente dos joelhos para baixo, dizendo mais ou menos isto:
- Mézinho do sinhô dotô, faz manga di bom

Era só o que o “Pastilhas” sabia dizer em português acrioulado.

Quase todos sabiam, que após a viatura abandonar o local, as ligaduras eram removidas, para os mais novos enrolarem e fazerem uma pequena bola de futebol, sendo as feridas lavadas com água, às vezes suja, e as moscas e outros insectos iriam poisar de novo nelas.

A aparelhagem sonora era utilizada por um africano em quem os militares confiavam, que falava em crioulo, ou outro dialecto, dizendo o que só ele entendia, pois os militares não percebiam.

Esta viatura, depois de fazer a sua viagem, quase diária, ficava estacionada, dentro do aquartelamento, perto do local onde o Cifra dormia, e era aí que o “Caneta”, pegando no colchão, no travesseiro e no rádio portátil, ia dormir, quando os ataques de tosse contínua, o apoquentavam, e ele não queria acordar, ou molestar, com os ruídos da sua tosse, os seus companheiros.

O Caneta era um cabo escriturário, de estatura média, cara de criança, pois quase não tinha barba, com uma madeixa de cabelo preto, caída para a frente, que lhe cobria os olhos e parte do nariz, que ele arredava para os lados com a mão, segurando sempre um lápis ou uma caneta, de onde, talvez daí lhe viesse o nome. Era ele quem fazia as “ordens do dia”. Fazia cinco cópias, que distribuía por diversas repartições do aquartelamento e arquivava o original, às vezes fazia mais uma cópia, quando algum militar era louvado ou qualquer outra coisa digna de registo e entregava por mão própria a esse militar. Também escrevia, e lia, os aerogramas e as cartas a alguns militares menos habilitados para o fazerem, portando sabia coisas privadas, desses militares, que confiavam nele e gostavam da maneira com ele escrevia, porque começava sempre os seus escritos com uma letra maiúscula cheia de floreados, pois tinha alguma habilidade para o desenho, e às vezes fazia o rosto de alguns, mais populares, como era o caso do Curvas, alto e refilão, com uma arma na mão.

O Caneta não comia quase nada, quando a comida vinha para a mesa, ele procurava uns bocaditos de qualquer coisa, que colocava na boca, mastigava e raras vezes engolia, só gostava de pão, bebia muita água, por vezes quando lhe apertava a sede, bebia dos bidons de água, que estavam a arrefecer dos três furos que havia ao fundo do aquartelamento, de onde saía água quente, mesmo muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida, por vezes com pó e insectos mortos ao de cima, onde ele soprava a superfície, mergulhando a sua cara de criança, incluindo a madeixa de cabelo preto, bebendo por alguns segundos, levantando a cara e com alguma satisfação dizia:
- É suja, mas é boa.

Mais ou menos aos treze meses de estadia na província, começou-lhe aquela tosse. Primeiro era só um catarro, depois era mesmo tosse, ficava aflito quando alguém estava a fumar perto dele e a tosse quase o sufocava, os olhos ficavam vermelhos, colocando a mão na garganta em sinal de aflição.

Os colegas sabendo dessa situação, não fumavam junto dele. Foi ver o “Pastilhas”, o tal cabo enfermeiro, que o analisou, mandou-lhe abrir a boca, escutou-lhe o peito e logo lhe disse:
- Tens que ir amanhã, no carro dos doentes, a uma consulta ao hospital da província, estás a ficar muito “infezado”.

Lá foi à consulta, onde o doutor o analisou, lhe mandou tirar algumas radiografias e o mandou embora de regresso à unidade militar, e que fosse de novo à consulta na semana seguinte, para mais detalhes.

Vai à consulta na semana seguinte e muitas outras. Anda com uns comprimidos e com um frasquito de xarope no bolso, de onde toma uns goles, sempre que é atacado pela tosse contínua. A tosse agora, prolonga-se por minutos, fica com cor vermelha no rosto, os olhos chorosos, e passado uns minutos de tosse, na sua boca, aparece alguma saliva com uma cor vermelha, que limpa a um farrapo, restos de uma camisa do Cifra, pois o Caneta já tinha gasto todos os farrapos da sua farda.

Na próxima sexta-feira vai de novo ao hospital da capital da província, no carro dos doentes, vê um novo doutor, pois o antigo tinha ido para Portugal, faz novas radiografias e regressa à unidade militar, dizendo no dormitório, para quem o quisesse ouvir:
- Não comam nem bebam por objectos que eu tenha tocado, pois estou tuberculoso.

Todos os presentes ficaram tristes e admirados com a informação, guardando silêncio, excepto o Curvas, alto e refilão, que num ataque de fúria diz:
- Filhos da puta, são todos uns filhos da puta!

A guerra para o Caneta acabou.

Começou outra guerra, agora não combatia guerrilheiros, combatia uma doença que naquela época era quase mortal. Recolhe todos os seus haveres, que coloca no saco do exército e numa malita, incluindo o seu rádio portátil, onde ouvia entre outras coisas, o relato de futebol do seu clube em Portugal. Na semana seguinte vem para a metrópole, como então se dizia, para um sanatório numa montanha, no centro de Portugal. O Cifra, não mais teve notícias do Caneta, mas nunca o esqueceu, e quando regressou a Portugal, como a sua aldeia ficava não muito distante dessa montanha, vai um dia de bicicleta, a essa região de hospitais sanatórios para tentar encontrar o Caneta.

Encontrou um velho, com cara de criança. Magro, muito magro, o cabelo raro e cinzento, uns olhos iguais, com algum brilho, as orelhas finas e saídas, trazia vestido uma bata branca que lhe cobria o corpo até aos pés, estava sentado na borda da cama, com um lápis na mão direita e um bloco de papel branco na mão esquerda, tentando desenhar a cara de um militar com uma arma na mão, cercado de arame farpado, talvez lembrando o seu antigo aquartelamento, na província de onde foi evacuado, já doente. O rádio portátil, estava lá.

Assim que viu o Cifra, levanta a cara, larga o bloco de papel, que caiu no chão, fica com o lápis na mão direita, levanta-se com algum custo da cama, dá uns passos para o Cifra, dizendo:
- Só podias ser tu, mais ninguém. Ainda nenhum militar do nosso comando me veio ver.

E abraça-se ao Cifra, chorando, com alguns soluços, tentando conter-se. Dava a impressão que lhe custava chorar.

Conversaram, fez algumas perguntas a custo, pois não dizia duas palavras seguidas, sem abrir a boca e tentar pôr algum ar dentro de si, tinha mesmo muita dificuldade em falar, o Cifra respondeu-lhe a tudo o que se lembrava, incluindo o regresso, mas o Caneta sempre lhe perguntava:
- Mas... morreu mais alguém?

E por fim diz, com bastante dificuldade:
- Olha se não tens receio de comer a comida tocada por um tuberculoso, aceita estes figos, que a minha mãe que ontem esteve aqui, me deixou.

O sabor dos figos da mãe do Caneta são a última recordação que o Cifra, nessa altura o To d’Agar, guarda do colega de guerra que foi o Caneta, pois passado algum tempo, foi de novo para o visitar, mas já lá não se encontrava, informaram-no que mesmo débil, foi embora, queria regressar à sua aldeia, porque queria morrer na sua aldeia, junto da sua família. O Cifra, nessa altura o Tó d’Agar, nunca mais soube nada do Caneta, que era oriundo de uma aldeia próximo da Guarda, junto à fronteira com a Espanha, para onde mandou duas cartas, uma pelo Natal e outra pela Páscoa, nunca obtendo resposta.

Oxalá esteja vivo e possa ler este texto, mas, se já não está neste mundo, esta é a sentida homenagem do amigo e combatente “Cifra”.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10467: Do Ninho D'Águia até África (14): O herói "Curvas" (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10487: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (6): Cacine e o Rio Cacine, deslumbrantes (dezembro de 1969)


Foto nº 49


Foto nº 55


Foto nº 53


Foto nº 54



Foto nº 47


Foto nº  48

Foto nº 51

Foto nº 50

Foto nº 52

Guiné > Região de Tombali > Cacine > Pel Caç Nat 51 > Dezembro de 1969 > Álbum fotográfico do Armindo Batata, ex-alf mil, que esteve em Guileje de  janeiro de 1969 a janeiro de 1970...  De cima para baixo: fotos nºs 49,  55, 53, 54, 47,  48, 51,  50, 52... 

Não sabemos - mas ele vai explicar-nos - o que ele e o pelotão vieram aqui fazer a Cacine, em dezembro de 1969... Possivelmente fizeram a viagem de LDM, de Gadamael a Cacine, uma vez findo destacamento em Guileje, seguindo depois para Cufar. Terá sido assim ?

Temos de reconhecer, até por experiência própria, que o Rio Cacine  é magnífico, que a viagem de barco é emocionante e que a vila de Cacine deveria ser uma terra encantadora em finais de 1969, com os seus altos poilões e cabaceiras...  Continua a ser hoje, apesar da sua decadência, um dos mais lugares mais exóticos e belos da Guiné. Estive lá em março de 2008, tendo atravessado o rio entre as duas margens (Cananima / Cacine). Cananima não existia no nosso tempo, é hoje um porto e aldeia piscatória.

Fotos: © Armindo Batata (2007). / AD - Acção para o Desenvolvimento Todos os direitos reservados [Fotos editadas por L.G.]







Guiné > Mapa da província (1961) > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Guileje, Gadamael  Porto e Cacine, no sul, região de Tombali.

_________________________

Nota do editor:

Último poste da série > 2 de outubro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10465: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (5): Guileje: a messe de oficiais...