1. Mensagem do nosso camarada Mário
Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 29 de Agosto de 2014:
Caros Camaradas e Amigos
Envio um texto de algo que estava já escrito a que acrescentei informações que recolhi entretanto.
Trata-se de uma situação que me tem preocupado, e que vive comigo diariamente. O Vítor José Correia Pestana, que também me influenciou a escrever o meu livro - e não só ele, porque tive em atenção todos que combateram principalmente na Guiné, isto porque foi lá que cumpri a Comissão de Serviço - como dizia o Pestana era um grande amigo, não querendo melindrar ninguém. Mas estive com ele em períodos das nossas vidas em que não tínhamos dinheiro nem para cantar um fado. O que era dele era meu. Com o tempo que tínhamos de serviço militar cheguei a pensar que não éramos mobilizados. Em Penafiel ao darmos a Especialidade ao pessoal da nossa Companhia chegámos a alugar um quarto. Como descrevo no texto pode-se ver os quartéis que percorremos. Nos princípios de 1966 prestámos provas para os Comandos.
Mas Camaradas, foi complicado escrever este texto, e tive o cuidado de colocar os nomes das pessoas. O Major que chamo de "Gordo", porque ele era mesmo gordo acho que apanhou uma "porrada" do Spínola. Se considerarem que não pretendem publicar agradeço que mo devolvam.
Trabalhei muito para o fazer. Parte conhecem já do primeiro texto que enviei para o Blogue, mas desta vez vão os nomes das pessoas. E arrependido estou de não ser mais eu quando escrevi o livro. Desta vez punha "boca no trombone".
A Guerra Colonial para mim não é uma novidade. Estive desde 1994 a 2005 na APOIAR, falei com muitos combatentes, digo combatentes porque nós somos combatentes. Aí o General Chito Rodrigues tem toda a razão.Conheço muita gente, tenho amigos, e foram eles que adquiriram o livro. Que apoios tive? A edição é minha e não tenho nem quero distribuidor. Enviei mais de 200 e-mails, mas foi com o telemóvel que cheguei às pessoas.
No dia 28 de Outubro vou fazer uma Apresentação do Livro na ADFA pelas 15H30. Esta vai publicitar a Apresentação no Jornal ELO; nas Delegações e Núcleos, por Cartazes e a própria ADFA vai enviar mensagens aos Associados que moram perto de Lisboa. Para a Mesa espero somente a presença de 2 convidados meus. Falei com o José Arruda já e pessoalmente e convidei já a Professora que fez a Apresentação no Lançamento. Vou fazer mais uma na Academia de Seniores de Lisboa e fui convidado para fazer uma Apresentação em Alhandra com o apoio da Junta de Freguesia e faço ainda uma outra na APOIAR. Excluindo o de Alhandra penso fazer todas as outras até fins de Novembro.
Se vender todos os livros - que não é muito provável - vou tentar fazer uma outra edição, revista e sem o capítulo da APOIAR. Aí vou poder introduzir novos textos que já escrevi, acrescentar mais umas fotos e entregar a uma Editora. Como já reúno as condições exigidas pela FNAC coloco-o à venda em todo o país. Estou em condições já de pôr a FNAC no assunto, mas o preço do livro é elevado, e tinha de ser vendido por um valor entre 26/27 euros o que é muito.
Aguardo uma resposta sobre este texto. Se vai para o Blogue digam, e se não vai digam na mesma.
A venda do livro em Monte Real prometia, mas às horas que iniciei os autógrafos é impensável. Devia ter começado mais cedo e os livros que levei nem chegavam. Muitos desistiram. A culpa é minha porque escrevi lá autênticos testamentos. E a fila de 20 pessoas transformava-se na venda de 3/4 livros. Na ADFA vou vender os livros antes da Apresentação.
Um abraço do Camarada da Tabanca Grande
Mário Vitorino Gaspar
A questão é que foi mais complicado escrever sobre o meu grande amigo Pestana do que escrever o livro.
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Os Mortos da CART 1659 – “ZORBA”
Mário Vitorino Gaspar
A Guerra que Aflige com seus Esquadrões
“Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.”
Alberto Caeiro, in “Poemas Inconjuntos”
Dia 12/13 de JAN67 na Messe de Sargentos - No topo da mesa, de óculos escuros, o Furriel Miliciano Pestana que morreria a 12 OUT67
Fins de Outubro. Eu e o Furriel Miliciano Manuel Ferreira Jorge íamos de avião rumo a Bissau. As nuvens alvas não se desviavam e multiplicavam-se. Atreviam-se a desafiar o azul mais carregado das águas do mar, lá bem no fundo. Construções de castelos aqui e acolá. Mais à frente, montes enormíssimos de algodão branco sem forma. Umas outras, borradas de cinzento levíssimo, marchavam para o infinito do horizonte. Se não fosse o azul do céu mais límpido que inundava o avião, dir-se-ia ser a imagem de um pisa papéis, onde só destoava o avião. Um daqueles objectos, não só ornamento de escritório, com borboletas, flores, executados pelas mãos do homem. O Belo pincelado de arte poética. Acarinhemos os seus dons.
Deixáramos o aeroporto da Portela há pouco. Os trinta e cinco dias de licença, haviam terminado. Contabilizara-os, segundo a segundo. A guerra e seu espectro estacionavam lá em baixo. Avistava Bissau. Calado. A simetria arquitectónica das ruas e avenidas, davam um ar de arrumação, correspondia à assimetria de tudo o que se passava no meu interior.
Naquela terra morava a guerra. Ela estava lá, sentia-a novamente. A guerra borrou-me a mente e apossou-se de mim. Senti a tristeza inundar-me. Arrepiei-me. Queria chorar. As lágrimas escorriam por dentro. Senti ter os olhos vermelhos de choro engolido, tendo a angústia feito estremecer os pés, as mãos e todo o meu ser.
Fui atingido no coração que palpitava como o trote do cavalo na espera de touros em Vila Franca de Xira, ou como o matraquear da “costureirinha”. Rebentava-me o peito. Era um poço de lágrimas. Sentia ter deixado a vida para ir a caminho da morte.
A força de viver, aquela ânsia de viver jazia derrotada prostrada entre ruínas. Ia até às profundezas do oceano a meus pés, porque ora passava pela cidade ora pelo mar.
Embora estivesse o Jorge ao meu lado, senti-me só. Só. A dor era eu. Senti que se apropriava de mim sem pré-aviso. Comia-me. Mastigava-me e engolia-me. Saboreava-me trincando-me e eu devia ter o sabor de morte.
Bissau magoava-me e jazia a meus pés. Morri. O Boeing aterrou. Pensei, mas mal, que o desassossego ficasse encerrado no avião. Mas não. Transportei-o. O Jorge, ao contrário do que seria de esperar mantinha o silêncio.
Não sei por onde passámos, só recordo o Quartel-General, onde me apresentei, tendo de seguida me dirigido ao Hotel Portugal. Normalmente na esplanada existia sempre pessoal da minha Companhia que havia sido evacuado para o Hospital Militar, ferido ou doente. As mesas estavam cheias, como era hábito. Ouvi alguém em altos berros gritar:
– Meus Furriéis, ó meus furriéis!
Olhei encantado. Havia alguém para dar notícias de Gadamael Porto e Ganturé. Não vislumbrei ninguém, continuando a olhar em todos os sentidos. Olhos de combatente, atentos a tudo.
Vi então de onde partia aquela voz que não sabia de quem era. Era para mim, muito embora só tivesse ouvido “meu furriel”. Havia mais que um militar da minha Companhia.
- O Furriel Pestana e o Soldado Costa morreram! – Escutei da boca de não sei bem quem.
O Pestana era um grande e grande amigo. Um verdadeiro amigo. Partilhámos desde JAN66 o mesmo percurso. Fiquei parado. Estagnei. Hipnotizado. Junto à mesa de cervejas vazias. Senti a boca seca, passando a língua queda e seca pelos lábios. Não sabia o que dizer. Os meus camaradas estavam calados, olhando-me como que compreendendo aquela minha paragem no tempo. As lágrimas não saíam, entravam. Parecia mais um ente sobre a terra fabricado de pedra. Uma estátua de pedra...
Morte de Vítor Correia Pestana
12 OUT67
Morte de António Lopes da Costa
12 OUT67
Ao verem-me, pensariam decerto não ter sentimentos.
Seria possível. O Costa e o Pestana? - Pensei, olhando-os com ar espavorido. O Costa conhecia-o desde Penafiel, mas o Pestana, já há mais tempo, desde Janeiro de 66 na Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas.
Fizera o mesmíssimo percurso militar que eu: Vendas Novas na EPA; RI 14 em Viseu; Rangeres, em Lamego no CIOE; Curso de Explosivos, Minas e Armadilhas na EPE em Tancos; Escola de Quadros no GACA 2, em Torres Novas; RAL 5 em Penafiel e RAC em Oeiras.
Começaram a falar:
– Meu furriel foram mortes estúpidas.
Tínhamos os dois primeiros mortos da Companhia. Os outros dez que haviam tombado, no dia 4 de Julho num rebentamento, todos civis, e que eu assistira.
- Mas como foi? - Perguntei, quebrando o silêncio...
- A malta da Companhia, destacada em Ganturé foi fazer aquela patrulha que é habitual, até à fronteira da Ex-Guiné Francesa, e faz o regresso pelo outro lado. Sabem o percurso. O Furriel Pestana recebeu ordens para armadilhar a zona e montou umas armadilhas. O Alferes Luís Alberto Alves de Gouveia decidiu que o regresso seria pelo mesmo percurso. O croqui foi feito só na ida, e não no sentido contrário. No regresso o furriel Pestana não queria vir por aquele percurso, expondo os seus argumentos, mas o alferes insistiu. O Costa ofereceu-se para acompanhar o nosso Furriel.
- Nunca tal se faz, é um princípio primário em Minas e Armadilhas. - Disse eu.
Senti repulsa. Entendi a amargura que me assaltara no avião. Era como tivesse sido alvejado. Não ia perdoar a asneira do Alferes Gouveia. Uma dor. Era importante que chorasse. Naquele momento era um nada. Uma escumalha repugnante. Um simples ser sem fado.
O Pestana e o Costa deveriam estar vivos.
Escrevi numa carta que bem exemplifica o que sentia: -
“Estou farto de estar em Bissau, aqui só se fala em guerra”.
Partimos de imediato numa avioneta fretada porque queria conhecer a verdade. Chegámos a Gadamael Porto. Notava-se uma tristeza naqueles meus camaradas de armas. Mas a vida não parava e as operações não cessavam.
Havíamos de sair dali vivos, nem que para tal tivéssemos que matar. Matar sempre. Aguardei a visita do Alferes Gouveia, depois de me informarem que o Vítor José Correia Pestana e o António Lopes da Costa tinham morrido no dia 12 de Outubro de 1967.
Avistei finalmente o Alferes Gouveia, o único culpado. Estava com um ar triste. Fez-me um sinal com a mão. Olhei-o nos olhos, e sem raiva disse-lhe, sem sequer o cumprimentar:
- Matou o Pestana e o Costa. Você é o culpado da morte deles...
Não me respondeu.
Morte de Manuel Ferreira da Silvanum ataque a Ganturé
26MAR68
Em 26 de Março de Março de 68 morreu num ataque a Ganturé o Soldado Manuel Ferreira da Silva, sendo atingido com estilhaço na cabeça encontrando-se dentro de um abrigo.
Vim de licença em 1968 – por altura do Carnaval – e fui levar a Abitureiras, Santarém sua terra natal, alguns haveres dele à família. Um dia para esquecer porque toda a família conhecia os laços de amizade que nos unia. Fui por momentos, o filho, primo ou outro ente querido. As suas lágrimas verteram-se sobre o meu rosto. Regressei com urgência depois de ser chamado ao Quartel-General, e fui transportado numa avioneta das NT.
Em Bissau falava-se de uma grande operação na zona de Guileje. Era a Guerra do Raúl Solnado. Quem comandou essa operação foi o Capitão Cadete, que conheci no CISMI em Tavira como Alferes. Esta operação foi “escondida a 7 chaves”.
Inicialmente a CART 1659 – como estava no final da Comissão – foi montar segurança a Mejo, após alguns dias e devido às evacuações e muitas insolações tivemos de avançar. A Artilharia e a Força Aérea estiveram uns dias a bombardear o objectivo. Existia a informação que o PAIGC se tinha reforçado, e segundo me disse o Capitão Cadete tinham 20 canhões sem recuo apontados para a bolanha.
O Exército era a primeira força a avançar, e a minha Secção – também reforçada estaria na frente – Paraquedistas, Comandos e Fuzileiros entrariam no objectivo. Uma avioneta andava sobre as nossas cabeças, e o Capitão Cadete não gostou e informou qual o estado de espírito das NT. O Major gordo (tenho ideias do seu nome mas não arrisco) aterrou com um camuflado acabado de sair do Casão e verificou que não tínhamos comida nem água. Deu ordens para abandonarmos a operação. Segundo dizem o Spínola não gostou.
Entretanto em Gadamael sempre que encontrava o Alferes Gouveia – e era quase diariamente – repetia que ele matara o Pestana e o Costa. Nunca me respondia. Vi que sofria. Falei com todos para saber pormenores sobre o sucedido, e todos se calavam, talvez por saberem que o Pestana era um amigo de peito. Terminada a Comissão tentei saber o que se passara. Pior ainda. Após o 25 de Abril de 74 voltei à carga.
Como a CART 1659 não realiza almoços convívios foi sempre complicado falar com alguém que tenha assistido ao sucedido. Enviei um e-mail a Joaquim Ferreira Alves, mas não obtive resposta e, um dia estava no Hospital dos Lusíadas e falei com ele. Calou-se, mas depois de insistir disse-me que tinha participado nessa patrulha e contou-me com emoção que tinham regressado da fronteira pela mesma via da ida. Nunca tal se fizera. O Pestana após se opor porque o croqui estava feito com referências da ida para a fronteira acabou por avançar. O Costa ofereceu-se para o ajudar a encontrarem as armadilhas.
Tudo isto já eu sabia. Quanto à sua morte, o Pestana quando vê a granada armadilhada já é tarde. Para tentar salvar a vida dos camaradas mais próximos, lança-se sobre a granada. O Costa é atingido e fica sentado – julgo que encostado a uma árvore – e quando todos o julgam vivo, verificam que morrera, sem notarem sinais de ter sido atingido. O Pestana praticamente sem braços e pernas e com um buraco na barriga, não morrera. Pedem evacuação e um Médico que por mero acaso estava na zona ainda o apoiou. O Pestana pedia aos seus camaradas para lhe darem um tiro na cabeça. Morreu com o Costa a 12 de Outubro de 1967, curiosamente no dia que eu fui dado como morto e abatido ao Serviço por falecimento.
Na História da Unidade consta: Morto por Acidente (os dois casos). No Arquivo Histórico-Militar – no Tomo “Mortos em Combate” pode-se ler:
- Causa da Morte: Acidente com arma de fogo
- Observações: Na instalação de uma armadilha.
Isto em ambos os casos. Julgo que escrevem para estúpidos. Foi um Acidente com uma arma de fogo, na instalação de uma armadilha? Como pode ser? O Pestana não instalava uma armadilha, ela estava lá instalada e por ele, e quem manuseia explosivos não está com a arma de fogo.
Depois o Costa que não montava nem desmontava – isto porque na CART 1659 só quem manuseava minas e armadilhas eram os Especialistas – come pela mesma medida.
Na minha opinião Morreram em Combate – e é por tal que luto – e que seja reposta a verdade.
Quanto ao Alferes Miliciano Gouveia a informação que possuo é que se suicidou na Madeira.
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de Junho de 2014 >
Guiné 63/74 - P13248: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (13): T/T Uíge: ementa dos sargentos no dia 2 de novembro de 1968, e o filme "Negócio à italiana" com o Alberto Sordi