Queridos amigos,
Foi como meter o Rossio na Betesga. Surpreendentemente, teve um final feliz. Aterra-se em Bilbau, no dia seguinte parte-se para Logroño, a capital de La Rioja, e no dia seguinte Burgos, mais adiante Léon, depois Monforte de Lemos e Vigo até ao Porto-Campanhã.
Não podia ter enchido mais as medidas com aquele pedacinho do Norte de Espanha, que inteiramente desconhecia. E confirma-se que por melhor que se prepare o indivíduo para compreender o outro, para amortecer as novas sensações, etc. e tal, há sempre um denominador que acaba por ganhar – a surpresa. É a surpresa, mas suas múltiplas formas de contemplação, a mola de arranque para a viagem bem sucedida. E para o gozo do viajante.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (10)
Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau e o indispensável museu Guggenheim
Beja Santos
Admitia na minha cabeça que só se justificava ir a Bilbau para conhecer o colosso de titânio e vidro desenhado por Frank O. Gehry, o arquiteto genial que Pedro Santana Lopes, então à frente da autarquia de Lisboa, convidou para apresentar um novo figurino do Parque Mayer. Beneficiei da minha ignorância para ser surpreendido por uma Bilbau, capital económica do País Basco, dinâmica, aprazível, moderna, e com um espantoso equilíbrio entre o passado e o presente. Pensava que Bilbau fora profundamente afetada pela Guerra Civil. Talvez tenha sido, mas os edifícios significativos do século XIX, caso do Teatro Arriaga, lá estão para testemunhar o triunfo da burguesia bilbaína com as suas empresas siderúrgicas navais, a recordar que já houve o esplendor mineiro e a exportação de lãs e curtumes. Estava impaciente por conhecer com os meus olhos o Guggenheim, aterrei, apanhei o autocarro para a cidade, pus os pertences na hospedaria, ala que se faz tarde, nada de conhecer o metro de Norman Foster nem a ponte que saiu do traço de Santiago Calatrava. A suar estopinhas (36 graus e uma humidade guineense), lá fui cirandando pela esplanada junto ao rio Nervión, e com a língua encortiçada cheguei ao deslumbrante Guggenheim.
Caminhei para a entrada da arquitetura mais vanguardista que conheço, fui ver o menu, as exposições que me esperam: Richard Serra e uma exposição admirável de Georges Braque. Toca a descer a escadaria, de boca à banda, não conheço nada de tão audaz e para lá do tempo. Pelo caminho, escolhendo recatadas sombras, vou disparando para as imagens dos séculos futuros, digam lá se eu não tenho razão
Os reformados têm sorte, naquele dia podia-se entrar por 6,50€ e até às 20h. Mas pouco antes de ingressar no interior do templo de arte retive esta imagem de uma face da modernidade, ao princípio chocou-me a seguir cativou-me:
Qual Richard Serra qual Georges Braque, quais exposições temporárias, primeiro quero andar na vida airada, a confirmar o que se escreve no prospeto de boas-vindas: “O edifício está composto de uma série de volumes interconectados, uns de forma octogonal e recobertos de pedra e outros curvados e retorcidos, cobertos por uma pele metálica de titânio. Estes volumes combinam-se com paredes de vidro que dotam de transparência todo o edifício. Devido à sua complexidade matemática, as sinuosas curvas de pedra, vidro e titânio foram desenhadas por computador. O calcário foi a pedra escolhida, devido à sua tonalidade, funde-se perfeitamente com a fachada da Universidade de Deusto”. E sigo embasbacado, já vi este miolo dezenas de vezes em livros e revistas, mas isto é como a Praça Vermelha ou a Pirâmide do Louvre ou ao Centro Georges Pompidou, é preciso ver claramente visto com os nossos olhos, naquele dia e àquela hora, é com satisfação que vos dou as imagens que iam empolando o meu estado de espírito, sentia-me muito feliz:
E mais adiante:
Já estou mais relaxado, petisquei o suficiente para poder conversar com as obras de arte, à nossa espera, antes de ir ver uma mostra da coleção Guggenheim Bilbau fixei esta instalação de Jenny Holzer, perturba a vista, avançamos e recuamos, não há dúvida que é vistoso, parece-me mais uma guloseima visual, nem sempre o que enche o olho provoca descarga estética, o deleite contemplativo vejam só:
Pronto, enveredei por salas enormes, parece que estou no CCB, não desfazendo. Dos vários autores expostos nesta mostra, dou-vos conta de José Manuel Ballester, alguém que escolheu para a sua arte a combinação da pintura e da fotografia, e acabei por concordar com o que li nos textos fixados acerca de Ballester. Ele interessa-se por espaços vazios, investiga a solidão do indivíduo e as contradições do mundo moderno através da arquitetura, transformando espaços em cenas artificiais. É um jogo entre o claro-escuro, entre o oculto e o visível, o público e o privado. A imagem que vos mostro vem da série Espaços Ocultos, reinterpretações da história de arte, no caso presente Ballester pegou num ícone do romantismo francês, a Jangada da Medusa, de Géricault, retirou-lhe as pessoas, a representação fotográfica de Ballester mostra os restos da jangada depois do resgaste dos sobreviventes e do desaparecimento dos cadáveres. Achei uma beleza.
Saí da mostra e fui até à instalação permanente onde estão oito esculturas em aço de Richard Serra, autor que conheci numa visita ao Museu Berardo. A instalação chama-se a matéria do tempo, tratar-se-á de uma reflexão à volta dos aspetos físicos do espaço e da natureza da estrutura. Richard Serra pretende estabelecer uma relação direta com o espetador, como se a experiência com o objeto passasse a formar parte essencial do seu significado. Andamos por aquelas elipses, à medida que as percorremos elas transfiguram-se, gera-se uma sensação de espaço em movimento. Vi gente aturdida com aquelas massas de aço, as espirais e as elipses, paredes que aprecem desabar, andamos à volta com se andássemos num labirinto até se chegar ao vazio. E quando se vê a exposição de um ponto alto acaba-se por concordar com o autor: temos ali matéria do tempo, e a cor terrosa daquelas toneladas de aço como se girassem desarticuladas, levam-nos a supor que a escultura contemporânea não se assemelha ao torvelinho fabril, é um maquinismo silencioso onde se passeia o indivíduo na era do vazio:
Não vos vou hoje estafar com o prato de substância, a esplendorosa exposição de Georges Braque, há muito que estava com apetite para ver algo de tão grandioso, multidimensional. Faz de conta que vou sair e depois volto, hoje ou amanhã, venho novamente ao exterior do Guggenheim. Um dos símbolos mais vistosos de Bilbau é o Puppy, concebido por um dos artistas mais conceituado da atualidade, Jeff Koons. É vistoso, não contesto. Mas dou comigo a pensar se este Puppy não faz parte do estado líquido da nossa modernidade, esta arte engraçadinha, tão engraçadinha como as telenovelas broncas e a imprensa porno soft, tão engraçadinha como os romances históricos escritos às três pancadas e com um mínimo de vocábulos. É assim também o nosso tempo em que se força a mistura entre Frank O. Gehry como Jeff Koons e fica tudo numa boa. Mas é engraçadinho, não há dúvida:
Mais tarde falaremos do Georges Braque, e do casco histórico de Bilbau e do seu Museu de Belas Artes onde referenciei santos do meu culto como El Greco e Francis Bacon. Bilbau enche-me as medidas. Ainda não parti e apetece-me voltar, juro.
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Nota do editor
Último poste da série de 24 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13643: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (9): Dentro do Peak District, a vasculhar belezas incomparáveis