quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15302: (Ex)citações (297): Quem disse que "100 pesos era manga de patacão" no nosso tempo? Em 1960, mil escudos (da metrópole) valiam hoje 428 euros; e em 1974, 161 euros, ou seja, uma desvalorização de c. 266 %... Recorde-se por outro lado que 100 pesos só valiam 90 escudos...


Guiné > Nota de 50 escudos (pesos), frente e verso. Banco emissor: BNU - Banco Nacional Ultramarino. No câmbio e no comércio, em relação ao escudo da metrópole, emitido pelo Banco de Portugal, havia uma quebra de 10%... Ou seja: 100 pesos (escudos do BNU) só valiam 90 escudos (do Banco de Portugal)... Recorde-se que o BNU foi criado em 1864 como Banco Emissor para as ex-colónias portuguesas (, tendo também exercido funções de banco de fomento e comercial no país e no estrangeiro; vd,. aqui a sua história).

Foto: © Sousa de Castro (2005). Todos os direitos reservados.



1. E se fosse hoje, em euros ? Quanto ganhávamos ? Quanto gastávamos ?  (*) Fui encontrar um conversor de escudos para euros, que nos permite fazer conversões desde o ano de 1960... Está disponível na página Pordata - Base Dados Portugal Contemporâneo:

"A funcionalidade permite converter um determinado montante (em euros ou em escudos) de um ano em preços de 2014, utilizando o deflator do Índice de Preços no Consumidor (IPC) 'base 2012'. Trata-se de transformar os valores a preços correntes (ou nominais, com inflação) de um determinado ano em valores a preços constantes (reais, sem inflação) de 2014."

Em matéria de comes & bebes, por exemplo, podemos ver quanto custaria hoje, em euros, os alguns dos artigos que consumíamos na Guiné por volta de 1969/70 (**):

(i) um quilo de camarões tigres ou lagostins, do rio Geba Estreito, comidos na tasca do  Zé Maria, em Bambadinca  custava 50 pesos ou escudos da Guiné, o quilo, cozidinhos)= 14,79 € (em 1969);

(ii) uma arrafa de whisky novo (J. Walker Juanito Camiñante de 5 anos, rótulo vermelho, JB): 48,50 pesos = 14,35 € (em 1969);

(iii) uísques mais caros: 12 anos, J. Walker rótulo preto, Dimple, Antiquary: 98,50 [=29,14 €]:  15 anos, Monkhs, Old Parr: 103,50 [=30,52 €] (estou a confiar na memória do Humberto Reis, acho que eram mais caros, os uísques velhos] (, em 1969);

(iv) um bife com batatas fritas e ovo a cavalo na Transmontana, em Bafatá, custava 25 pesos, vinho ou cerveja aparte = 7,40 € (em 1969);

(v) uma vaca raquítica, em Sonaco, comprava-se (quando fui gerente de messe, em 1970) 950 pesos = 269,36 €;

(vi) nas tabancas, fulas, por onde passávamos e onde ficávamos uma semana ou mais, de cada vez, em reforço do sistema de autodefesa, era costume comprar, mesmo a custo, galinhas e frangos, a sete pesos e meio por bico [= 2,22 €]:

(vii) um parto de ostras em Bissau, numa esplanada á beira rio,  em meados de 1970, custava 20 pesos [= 5,67 €];

(viii) um relógio da prestigiada marca suiça Longines, na loja libanesa Taufik Saad, Lda, em Bissau, custou ao Valdenar Queiroz, em 16/12/1970, 2950 pesos [=836,45 €].

(ix) coisas miúdas do dia a dia: um maço de SG Filtro 2,5 pesos [=0,74 €];  um uísque, no bar da messe, eram 2,50 pesos sem água de sifão [= 0,74 €]  e com água eram 3,00 pesos [= 0,89]; era mais barato que a cervejola...

(x) quanto à lerpa, ou ramim, uma noite boa, ou má, poderia dar (valor médio) 200 a 300 pesos para a lerpa e 50 a 100 para o ramim (, garantia um jogador como o Humberto Reis);

(xi) uma queca, dependia: 50, 100, 150 pesos... "Quando em Bissau, no Pilão, frequentei várias vezes a Fátima, que não era caboverdiana mas sim fula, e dava-lhe 50 pesos de cada vez" (, confessa o nosso camarada A.Marques Lopes, que é de 1967/68)...

2. O Sousa de Castro, por seu turno, diz-nos que "no meu tempo (1972/74) não era muito diferente: os preços que se praticavam eram mais ou menos os mesmos"... 

Quanto ao que o exército nos pagava... "Puxando um pouco pela memória, eu como 1º cabo radiotelegrafista ganhava 1.500$00, sendo 1.200$00 por ser 1º cabo e mais 300$00, de prémio de especialidade." [, tudo somado, 1500§00 em 1973  =305,10 €].

Segundo a mesma fonte, o Sousa de Castro, "a dita queca, se a memória não me trai, creio que era assim: para os soldados cinquenta pesos; para os cabos sessenta pesos; a partir daqui não me lembro quanto pagavam os mais graduados... Quanto às cabo-verdianas, a coisa era de facto mais cara, em final de comissão paguei cento e cinquenta ou duzentos pesos, isto em Fevereiro de 1974" [mais ou menos 24 ou 32 euros]...

"Por lavar a roupa, como cabo pagava 60 pesos [, em 1973]", informa o Sousa de Castro.[=12,20 ]

Em 1969, recordo-me que os soldados da CCAÇ 12 (que eram praças de 2ª classe, oriundos do recrutamento local), recebiam de pré 600 pesos/mês [=177, 51 €], além de mais uma diária de 24$50  [=7,25€] por  serem desarranchados. 600 pesos deviam dar para comprar duas sacas de arroz de 100 kg cada...

3. E um capitão miliciano, comandante de companhia, quanto é que recebia ao fim do mês? (Sabemos que um parte dos nossos vencimentos era depositado na metrópole)...

Temos as memórias (e os papéis) do Jorge Picado:

 (...) "Apontamento que resistiu ao tempo, referente ao mês de junho [de 1970]: Total abonos:13900$00; total descontos; 8967$00; a receber 4932$00. Nos abonos estão incluidos 4000$00, relativos aos abonos de família (já tinha os 4 filhos), de março, abril, maio e junho. [de 1970]". (...)

(...) "Vencimentos a receber em agosto em virtude do aumento: março-julho [1970]: 10500$00;
 Fev 1326$00; total 11826$00; descontos Cx Geral Aposentações; 710$00; Imposto de selo -12$00; a receber (líquido): 11104$00 [=3148,45€]...

4. E a viagem de férias à metrópole, na nossa querida TAP ?  

O António Tavares pagou, em meados de 1971,  à Agência Correia, em Bissau, um total de 6 430$80 [ = 1643,21 €]  pela viagem "Bissau- Lisboa.- Porto -Lisboa -Bissau "... Diz que pagou em três prestações "a importância total, que não ganhava, como explico: 4.430$80 em 03-08-71; 500$00 em 22-09-71 e finalmente 1.500$00 em 21-10-1971"... Na cópia do bilhete (que ele juntou, no poste  P15216] consta uma taxa de 110$80.... O pagamento foi em pesos. "O Escudo era trocado com uma agiotagem de 10%."...

É difícil fazer comparações com os preços dos bens e serviços que se pagavam nessa época, na metrópole, para não falar dos salários médios nos diferentes ramos de atividade...  No blogue A Nossa Quinta de Candoz tenho um pequeno apontamento sobre a estrutura e a evolução dos salários, num ramo muito específicio, a "construção civil de ramadas", nas décadas de 1950 e 1960, no Douro Litoral...

Numa pequena empresa que podia empregar em média meia dúzia de homens, pagos ao dia, o patrão, o "ramadeiro", podia ganhar no máximo 50 escudos (=21,41 €), o oficial mais qualificado 30 escudos (=12,84 €) e os serventes 20 escudos (=8,56 €). Fizemos esta conversão para os valores nominais de 1960.. Uma década depois (em 1970), com a inflação, estes valores (a preços constantes de 2014) seriam 14,18 €, 8,51 € e 5,67 €, respetivamente...

Vinte escudos (!) era quanto um assalariado agrícola, jornaleiro, não qualificado, podia ganhar no norte do país, durante os anos 50/60... Claro que os salários na agricultura vão começar a subir com a rarefação da mão de obra rural, devido ao êxodo do interior (industrialização e urbanização, emigração, guerra colonial)...

Enfim, e para acabar por hoje, lembro-me que em 1972, cá na metrópole, um carrinho Fiat 127 custava 62 contos [= 14.256,05  €], o que era muita massa...(1972 foi antes da grande crise de 1973, em que os salários levaram uma machadada de 25%!)...

 Mais massa ainda eram 200 contos, que dava para comprar um apartamento no final da década de 1960 (, arredondando, cerca e 60 mil euros, hoje): alguém me contou que foi quanto pagou uma avozinha,  a um oficial general médico,  para livrar o querido netinho da obrigação de ir defender a Pátria, "lá longe onde o sol castiga(va) mais"... Éramos todos iguais, todos os portugueses (menos as portuguesas...), mas havia uns mais iguais do que outros!... (Sempre foi assim, e sempre será assim, dizem os mais cínicos ou os mais realistas...).

Mas podemos fazer um apelo à memória dos nossos leitores; quanto custava, na época da guerra colonial, cá na metrópole, uma bica ("cimbalino" no Porto), o jornal "A  Bola", um maço de cigarros SG, um bilhete de cinema, uma imperial ou um fino, um uísque marado numa "boite" da  Reboleira,   o aluguer de um quarto em Lisboa ou Coimbra, um quilo de bacalhau e por aí fora  ?... E quanto é que a malta ganhava, em média, nas fábricas e nos escritórios, antes de ir conhecer os "resorts" turísticos, as rias, os rios, as matas e as bolanhas da Guiné ?...  LG














Fonte: Cortesia de Pordata - Base Dados Portugal Contemporâneo... O conversor é interativo... Brinquem um bocadinho com ele,,, e façam as vossas comparações entre o hoje e o antigamente... 

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Notas do editor:



12 de setembro de  2011 > Guiné 63/74 - P8767: O que se comprava em Bissau com o patacão da guerra? Os produtos e as marcas que não havia em Lisboa... ou eram "proibitivos" (3) (Augusto Silva Santos / Hélder Sousa / Juvenal Amado / Luís Borrega / Luís Dias / Rui Santos)

15 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8780: O que se comprava em Bissau com o patacão da guerra ? Os produtos e as marcas que não havia em Lisboa ou eram "proibitivos" (4) (Joaquim Peixoto / Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15301: Parabéns a você (978): Mário Vasconcelos, ex-Alf Mil TRMS do BCAÇ 4612/72 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de Outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15298: Parabéns a você (978): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72) e Luís Marcelino, ex-Cap Mil, CMDT da CART 6250 (Guiné, 1972/74)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15300: Os nossos seres, saberes e lazeres (121): Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Há bem 15 anos que não deambulava calmamente por esta soberba cidade. A gare ferroviária é um luxo, faz parte do tempo em que as nações industriais mais poderosas faziam destas raras espaços sumptuosos, com a ostentação do ferro e da pedra. Há a Antuérpia com a sua arquitetura ostensiva, a suar prosperidade, há a Antuérpia das ruelas de negócios, comércio de curiosidades e há a Antuérpia do próprio Escalda.
Passei, regra-geral, os dias embiocado numa espécie de conferência, tive que m escapar à sorrelfa para captar imagens com luz. Em Bruxelas apanhara bom tempo, aqui começou a chuviscar e o céu enegreceu, não havia condições para captar a beleza dos parques e destes monumentos tão sombrios, tão requintados. Fica aqui uma lembrança de alguns dos primores que esta cidade oferece.

Um abraço do
Mário


Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (4)

Beja Santos




Tinha muitas saudades de Antuérpia, e asseguro que não venho nem à procura de diamantes, nem comprar chocolates nem andar de batelão no rio Escalda, que alberga um dos maiores portos do mundo. Em 1991, e já me tinha passeado algumas vezes por aqui, no âmbito da Europalia portuguesa visitei no Museu de Belas Artes de Antuérpia, uma exposição portentosa “No tempo das feitorias”. Muitas vezes, precisamos do confronto das nossas obras de arte para perceber por onde passam as encruzilhadas de latitudes e longitudes em temos andado metidos. O Infante D. Pedro deve ter andado por Bruges a recrutar flamengos para a Madeira e Açores. No século XVI viemos aqui abastecer-nos, daqui saíram toneladas de mercadoria, incluindo cavalos, para o tráfico de escravos e para o comércio asiático. A cidade mantém a sua opulência, chega-se à gare central e é este espetáculo de grande palácio para quem anda de caminho-de-ferro. Seja bem-vindo à mais importante cidade da Flandres, esteja à vontade, e se quiser compre pedras preciosas!





A cidade está marcada pela sua esplendorosa arquitetura, pela majestosa catedral e pela vida à volta do rio Escalda. Cidade de grandes negócios, cada vez mais atrevida no mundo da moda, da inovação arquitetónica. Dois pintores de culto aqui pontificaram, van Dyke e Rubens. Mas são só dois dos nomes sonantes, por aqui cirandaram Dürer e Mozart, mas há mais gente célebre, caso de Jean Moretus, genro de Christophe Plantin, são os pais da tipografia, é por isso que o museu Plantin Moretus está inscrito no património mundial da UNESCO. Sai-se da Gare Central e é este festival de fachadas nobres, de estátuas solenes, o crisol da afirmação do poder e do espavento.



Alto lá, anunciam que neste edifício há um templo dedicado ao chocolate, à partida não é novidade nenhuma, os belgas têm fama mundial como chocolateiros, lá entrei placidamente, de certeza que isto foi casa de aristocrata ou burguês muito rico, conforme a gravura junta, e não resisti a fotografar este chocolate vendido como na farmácia, os preços é que não se equiparam aos dos medicamentos genéricos…




Já cheguei ao centro da cidade, hoje não tenho tempo para uma visita cuidada à magnífica catedral dedicada a Nossa Senhora, depois falaremos dela. Vejam a magnificência da Grand-Place, imagem do triunfalismo, e temos a estátua do mítico Brabo e a homenagem ao trabalhador, neste caso o escultor Constantin Meunier deixou-nos aqui uma das suas obras-primas, tenho encontrado este trabalhador em vários museus. E justifica-se, é impressionante. Para primeiras impressões, considero-me rendido.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15277: Os nossos seres, saberes e lazeres (120): Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15299: Selfies / autorretratos (4): quem vê caras, (nem sempre) vê corações (Torcato Mendonça, ex-alf mil art, CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69)



Foto nº 1 



Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4




Foto nº 5



Foto nº 6



Foto nº 7




Foto nº 8




Foto nº 9



Foto nº 10


Foto nº 11



Foto nº 12


Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) >  Fotos do álbum do Torcato Mendonça, coleção "Fotos Falantes II".

Fotos: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados Edição: LG]


1. Selfie é uma palavra que entrou há tempo no nosso vocabulário... Resulta da junção do substantivo self (em inglês "eu", "o próprio") e o sufixo ie. Designa  um tipo de fotografia de autorretrato, normalmente tirada com uma câmara digital de mão ou telemóvel com câmara. Foi considerada a palavra internacional do ano de 2013 pelo Oxford English Dictionary. Tornou-se "viral", como muitas outras modas... 

Em 2014 demos iníício a uma série chamada "selfies / autorretratos". Não teve muito sucesso. Publicámos até agora três. O Vasco Pires deu o pontapé de saída... No nosso tempo, na Guiné, não havia tempo nem pachorra para a gente de se ver ao espelho, quanto mais tirar uma "selfie"!... Um ou outro de nós tinha máquina fotográfica ou fotógrafo de serviço (que ganhava algum patacão tirando "chapas" ao pessoal), pelo que até há algumas belíssimas fotos e alguns bons álbuns fotográficos... 

É material, de grande interesse documental, não só para alimentar e desenvolver as nossas memórias como para enriquecer o acervo dos que hão de fazer, com rigor, honestidade, isenção e objetividade, a história daquele período de Portugal (bem como da Guiné-Bissau)... 

Enfim, a par das nossas memórias escritas, é um material  que andamos, há anos, desde pelo menos 2004,  a tentar salvar das garras do esquecimento, do  abandono, da destruição, dos alfarrabistas, da incineradora e do caixote do lixo...

Um desses álbuns, que veio enriquecer a fototeca da Tabanca Grande é o do Torcato Mendonça, ex-alf mil art, CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69), senador da nossa tertúçia, e uma dos mais ativos e produtivos colaboradores do nosso blogue (com cerca de 240 referências). É também, de há muito, um dos nossos conselheiros e colaboradores permanentes.

Nos últimos anos, porém, e até por razões de saúde, o Torcato Mendonça tem andado muito mais discreto, remetendo-se ao silêncio, ou intervindo uma vez por outra com um breve comentário. Sei que ele continua nosso fiel leitor. Respeito o seu silêncio, mas fico feliz sempre que o vejo vir à janela da sua morança...(Desculpem a metáfora: a Tabanca Grande não tem, propositadamente, portas e janelas).

Há muitos camaradas, mais novos, "periquitos" no blogue, que não puderam na devida altura acompanhar a sua vasta produção (postes, fotos, comentários), sempre de grande qualidade. São hoje uma referência incontornável...

Sabemos que não é "confortável" para os ex-combatentes falar, para os seus "pares", num blogue como o nosso, com a audiência que o nosso tem, sobre as "questões do foro íntimo", "ver-se ao espelho", e devolver, sob a forma de escrita, os seus "selfies", os seus "autorretratos... Ou partilhar fotos mais íntimas, retratos em grande plano, que mandávamos às esposas,  às namoradas, aos pais, à família, às madrinhas de guerra... DE um modo geral, preferimos as fotos de grupo... Estamos a falar dos nossos "verdes anos", à distância de meio século..

De qualquer modo, e de acordo com o subtítulo deste poste, quem vê caras, (nem sempre) vê corações... Daí a razão de ser  desta seleção de retratos do nosso querido amigo e camarada que vive no Fundão. São da da sua coleção "Fotos Falantes II"... A numeração, arbitrária, é nossa. Bem como a sau edição... E intencionalmente não lhe acrescentámos legendas... Fica o desafio para os nossos leitores... (LG)


O nosso "senador" no Fundão, em 2007. Foto de LG.
2. Excerto de um depoimento do Torcato Mendonça, publicado em 28/2/2015:

(...) "Sim, mudei muito"!  Digo-te porquê. Antes de ser militar, fui estudante e nalguns intervalos fiz 'diversos'. Caçado, sem esperar, pela tropa, aí talvez na especialidade comecei a sofrer uma metamorfose. Aos poucos, e já mais na Guiné, o rapaz alegre e 'bon vivant' foi-se ou, porque não, apagou-se mesmo. (...)

Quando vim, nada ou muito pouco restava do outro. Deram-me várias opções de escolha de vida.

Fui sentindo os anos passarem por mim, os meus filhos crescendo. A guerra estava guardada e, de quando em vez, saltitava para o presente e depois de amansada ia-se. Tratava-a com cuidado e sentia que nunca mais voltara de todo, em grande parte talvez. Nem isso. Fisicamente fui envelhecendo, como é natural. Apressado por “aquilo” e pelas cicatrizes físicas.

Optei, já o tinha feito em parte, e deixei a adaptação correr. O meu mentor, o meu companheiro- amigo, esse meu melhor amigo, esse homem que me deu o ser e muito saber, um dia morreu-me. Chorei nesse dia e compreendi que ainda sabia chorar. Mas tinha mudado muito.

Mais forte, a parte psicológica foi de certeza a de estabilização mais difícil. Nunca estabilizará. Por isso hoje, velho aos 70 anos, com a saúde (ou falta dela) a mostrar os rombos na carcaça nada tem a ver com a hipotética entrada normal na velhice. (...)

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Nota do editor:

Ùltimos postes da série:

30 de setembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13669: Selfies / autorretratos (3): Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses (Juvenal Amado)

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav,

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P15298: Parabéns a você (978): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72) e Luís Marcelino, ex-Cap Mil, CMDT da CART 6250 (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 20 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15269: Parabéns a você (977): Fernando Súcio, ex-Soldado Condutor Auto do Pel Mort 4275 (Guiné, 1972/74) e Rogério Cardoso, ex-Fur Mil da CART 643 (Guiné, 1964/66)

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15297: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (26): De 29 de Janeiro a 26 de Fevereiro de 1974

1. Em mensagem do dia 25 de Outubro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 26.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

26 - De 29 de Janeiro a 26 de Fevereiro de 1974

Das minhas memórias: 

29 de Janeiro de 1974 – (terça-feira) - A morte do Jerónimo

Estávamos a almoçar quando nos chegou a triste mensagem: o Jerónimo sofrera um acidente em Bissau e morrera. Foi um choque para mim, porque tinha grande estima por ele e porque era soldado do meu grupo de combate. Era uma pessoa afável, sempre com um sorriso e sempre pronto para o que desse e visse. Nunca lhe ouvira uma queixa ou uma recusa, nunca protagonizou um incidente.

Não recordo o que o levou a Bissau mas tenho uma vaga ideia de que fora para obter a carta de condução. Morreu de acidente de viação. Tanto quanto recordo, foi por ter caído de uma viatura militar que transportava uma equipa que ia levar lixo para algures. Era um problema recorrente: ia-se a Bissau tratar de assuntos mais demorados e entrava-se logo numa escala de serviço qualquer.

O Jerónimo foi o único morto da nossa Companhia (a 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513). Era natural de Cruz-Atães, localidade do concelho de Guimarães, onde está sepultado.

Foto 1: Jerónimo de Freitas Martins, Soldado do 4.º GCOMB da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4513 
(Faleceu em 29-01-1974) 

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Fevereiro de 1974 iniciou-se com nova dança dos pelotões. Era necessário adequar as bases das tropas ao evoluir das obras da estrada Aldeia Formosa-Buba, que prosseguia a bom ritmo e cujas frentes de trabalho se encaminhavam ao encontro uma da outra.

A actividade da guerrilha deixava vestígios um pouco por todo o lado, mas apenas concretizou dois ataques às nossas tropas logo no início do mês, nos dias 2 e 6. Das minhas escassas notas desse período, ressalta uma referência ao ataque que sofreu o pessoal da CART 6250 de Mampatá. É uma nota breve de 09-02-74: “Há umas noites, pessoal de Mampatá foi atacado no mato por grupo inimigo. E Nhala aqui tão perto”. Numa nota de 24-02-1974 (domingo), refiro uma notícia que me deixou os pêlos eriçados: “De Bissau, o Comandante-Chefe pede relação de todos os elementos do Batalhão com o curso de Minas e Armadilhas. Mais um sobressalto quanto ao futuro”.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

FEV74/01 – A fim de reajustar o dispositivo da protecção aos trabalhos de Engenharia na frente de BUBA, foram transferidos de BUBA para NHALA, os GR COMB da 2.ª CCAÇ/4513 e 3.ª CCAÇ/4513. (...).

FEV74/02 – (...) Pelas 17h45 o GEMIL 405, emboscado próximo do MISSIRÃ, foi flagelado por GR IN não estimado, com 40 granadas de CanhSRC 82, com base de fogos provável na região de BOLOLA. NT sem consequências. (...).

FEV74/04 – (...) Para reforçar as forças de segurança dos trabalhos de Engenharia, foi deslocado do CUMBIJÃ para NHALA 1 GR COMB da CCAV 8350. Pela mesma razão, foi deslocado de NHALA para A. FORMOSA o GR COMB da 3.ª CCAÇ/4513. (...).

FEV74/06 – Pelas 21h00 quando 1 GR COMB da CART 6250 se deslocava de MAMPATÁ para a zona dos pontões (XITOLE 4 H 1-27), para evacuar um elemento doente do GR COMB da mesma CART, em contra-penetração na referida região, foi emboscada por GR IN estimado em 30/40 elementos em região (XITOLE 4 I 0-42) com RPG, MORT 60, MORT 82 e armas ligeiras. As NT reagiram à emboscada com armas ligeiras apoiadas pelo fogo de MORT 81 cm e ART. NT sofreram 3 feridos ligeiros e o IN feridos prováveis. Em reconhecimento posterior, ao local da emboscada, foram capturadas 5 granadas de MORT 82, 8 granadas de RPG-7, 3 granadas RPG-2, várias cargas de RPG-2 e 7, 4 carregadores de Kalashnikov, 1 cantil, 2 sacholas e uma pá. O IN retirou na direcção de SAMBA SEIDI-MISSIRÁ. No local de emboscada foram detectados 26 ninhos de atiradores deitados. (...).


Histórias marginais (5): A vingança das abelhas e a máquina despeitada

Foi numa manhã esplendorosa e fresca, ainda sem pó e sem o braseiro que havia de vir, que se iniciaram, em mais uma etapa, os trabalhos da estrada na frente de Buba. Davam-me sempre imenso prazer estas primeiras horas na frente de trabalhos, onde terminava a recta longa e já desmatada e começava a mata fechada, sempre cheia de surpresas e espaços virgens. Também gostava de apreciar de perto a perícia dos operadores das máquinas brutas da Engenharia, e sentir o avanço da estrada pela mata dentro, lento e difícil mas definitivo.

Desta vez não fomos para a “pedreira” fazer a protecção do troço de estrada já a funcionar. Levava a indicação de emboscar mesmo ali, onde começava a desmatação. Instalado o grupo em redor, alguns elementos à vista, eu fiquei em campo aberto não muito longe de um dos Caterpillar que, resfolgando, derrubava árvores de grande porte em três penadas. Primeiro levantava a pá, a dois ou três metros do chão, contra a árvore a abater e, com as lagartas bem fincadas no chão, em esforço, dava várias sacudidelas violentas e a árvore vibrava até à copa, ao mesmo tempo que soltava as raízes da terra. Depois recuava para enfiar a pá no solo contra as raízes, subia-a um pouco, e fazia tombar a árvore com fragor sobre as outras. Restava empurrá-la pela raiz, ao comprido, e ela entrava na mata fechada como se fosse um palito.

Estava a uns trinta metros do Caterpillar, no momento em que o operador fazia vibrar uma árvore de grande porte quando, inesperadamente, desce sobre ele uma nuvem de abelhas que o envolvem de imediato. Ele, por certo calejado no ofício, saltou da máquina como uma mola e mergulhou no pó, embrulhando-se nele, rolando e berrando, enquanto uma parte dispersa do enxame zumbia em toda a área, à caça de corajosos em que pudesse descarregar a ira vingativa. Berrei ao meu pessoal para que todos se mantivessem quietos onde estavam. Dando o exemplo, mantive-me imóvel no mesmo sítio e assisti, impotente, ao suplício do maquinista. Nem uma me picou. Só quando me pareceu que as abelhas já se afastavam do pó e o homem se levantava a sacudir-se e a praguejar, corri para ele para ver se precisava de ajuda. Enquanto ia arrancando umas cabeças de abelha das partes mais expostas, foi-me dizendo que já estava habituado e que era sempre assim. E seria sempre assim.

Insólito foi que, quando olhou para o lado não viu a sua máquina. E eu, tanto quanto recordo, também não me apercebi que ela se tivesse ido embora. Talvez pelo despeito de ter sido abandonada pelo seu dono, ela continuou a andar e penetrou na mata profunda. Por solidariedade (e também por curiosidade), acompanhei o inconsolável operador, mata dentro, à procura da máquina mas percebendo logo que esta surpresa não fazia parte dos ossos do ofício dele. Fomos seguindo o rasto das lagartas da máquina e das árvores derrubadas, não tinha nada que saber, ela devia estar logo ali. Mas não estava e, à medida que avançávamos, íamos ficando um pouco atónitos, porque nem mesmo lá no fundo da mata a máquina se via. Ficámos um pouco sem jeito para gracejos mas, por fim, lá estava ela silenciosa e amuada, embicada numa árvore de grande porte. Como fora possível que, desde a entrada na mata, tivesse passado sempre ao lado de árvores imponentes, passando por cima das mais fracas, até onde estava? Calhou. A verdade é que parecia uma manhã tão fresca e rotineira...

Foto 2: Caterpillar: máquina escondida com chaminé de fora. Ao fundo, a base da estrada Aldeia Formosa-Buba, lado de Buba. 


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

FEV74/12 – Esteve de visita a A. FORMOSA o CHERNO YUSSUF SY da REP SENEGAL, que tendo vindo visitar a família do CHERNO RACHID, veio a este Comando apresentar cumprimentos salientando que desde que se encontra em Território Nacional, estava encantado com o apoio e as deferências de que fora alvo. Referiu ainda, que o clima em que as populações vivem aqui, é muito diferente do que se diz por lá, vendo-se em todos a determinação de continuarem Portugueses. Acompanhado do Comandante, visitou MAMPATÁ, e o reordenamento de ÁFIA, assim como a frente dos trabalhos da estrada.

FEV74/13 – (...) – Com vista à substituição do GC COMB da 1.ª CCAÇ/4513, empenhados na protecção dos trabalhos de Engenharia, e para que os mesmos fossem desviados para a acção (OURIÇO) com início em 14FEV74, deslocaram-se para BUBA, 1 GR COMB da 2.ª CCAÇ/4513 e 1 GC COMB da CCAV 8351.

FEV74/15 – Acompanhado pelo Exmo. Major CARVALHO FIGUEIRA visitou este Sector o jornalista finlandês MARTTI VALKONEN.
- Os contactos com a população, as várias deslocações feitas de Jeep, sem escolta, os reordenamentos em curso e fundamentalmente as obras de construção da estrada A. FORMOSA-BUBA, foram argumentos altamente positivos a nosso favor.

FEV74/16 – (...) – Prosseguem os trabalhos de Engenharia nas duas frentes da estrada A. FORMOSA-BUBA, embora não se estejam a asfaltar por falta de asfalto. [A falta de alcatrão voltaria ainda a ser referida nos dias 20 e 28 do corrente mês. Nota minha].

FEV74/26 – Continuam os trabalhos de Engenharia na estrada A. FORMOSA-BUBA. Na frente de BUBA já atingiram a região de NHALA e na frente de A. FORMOSA, atingiram a região da antiga tabanca de UANE.


Das minhas memórias: O FORNILHO

Como refere a História da Unidade, a frente de Buba dos trabalhos da estrada nova, em 26 de Fevereiro de 1974, estava na região de Nhala. Mas a estrada passaria a, aproximadamente, 500 metros do aquartelamento e da tabanca, sendo necessário rasgar a mata para realizar um troço de ligação. Caso único em todo o percurso da estrada, desde A. Formosa a Buba.

Num dia de finais de Fevereiro, manhã cedo ainda, dormia eu descansado quando o Capitão Braga da Cruz me veio acordar com uma notícia que me deixou sobressaltado. “Oh Murta, tem que se levantar porque tem aí um trabalhinho especial. Os homens da Engenharia querem vir por aí a baixo com as máquinas e vieram perguntar se há obstáculos nossos nas imediações. Você tem aquele monstro ali fora do arame farpado, virado para a mata por onde eles vêm e, se calhar, já não vai ter tempo de o desmontar”. Por instantes não percebi a que é que ele se referia, mas ele continuou: “Como calculei que você quererá rebentar aquilo, já mandei evacuar a população daquele lado da tabanca e o nosso pessoal está todo avisado”. Era o fornilho, porra!... Não imaginei que tivesse de o accionar tão depressa. Como andam céleres os homens da Engenharia... “Vou já tratar disso, Capitão”. Acho que nem tomei o pequeno-almoço.

Mas o fornilho tinha uma história: Não fora montado naquele sítio, com uma carga brutal, ao acaso ou por mero cálculo estratégico.

Numa noite que mal começara, muito tempo atrás, a sentinela do posto de vigia da parte de trás da tabanca, (se se entender que a parte da frente era a do campo da bola e da picada para Buba), dá o alarme (com tiros?) de que vira vultos a moverem-se quase na orla da mata em frente, que, naquele ponto, era muito próxima. Alerta geral. Imaginámos um ataque ao arame e não seria de estranhar, já que o aquartelamento de Nhala era dos poucos que continuava poupado a ataques e flagelações. Recordo que estava uma noite de breu. Imagine-se a situação logo que desligou toda a iluminação. Enquanto se preparava o morteiro 81 no espaldão, aquela zona da mata foi passada a rajadas de metralhadora e batida com o morteiro 60. Depois bateu-se a zona mais afastada com o morteiro 81, mas sem grande insistência, tenho ideia, de modo a aguardar qualquer reacção. Mas tudo ficou por ali. Admitimos que fossem elementos a estudar um possível ataque, aqueles que a sentinela viu ou julgou ter visto, mas isso deixou-nos alerta daí para a frente e, no seguimento, o Capitão Braga da Cruz teve uma conversa comigo sobre o estudo de pontos ainda vulneráveis à volta da tabanca e do aquartelamento, mormente aquele em que ocorrera o anterior sobressalto, pela proximidade da orla da mata e porque, nessa zona, a mata era muito “aberta”. Podia, com facilidade, ser usada como porta para um assalto. Para aí, concretamente, o capitão sugeriu-me a instalação de fornilhos.

Só que o terreno era completamente plano e, para instalar vários fornilhos que disparassem os projécteis para a frente – excluí outras hipóteses -, exigia um empreendimento desmesurado. Optei por instalar um apenas, mas de grande potência e com uma “carga de efeito dirigido”, inspirando-me no princípio das granadas de bazuca anticarro e de certos mísseis perfurantes. A ideia era que todo o efeito da explosão e projecção de material se desse apenas para a frente já que, por trás, ficavam muito próximas alguma palhotas da tabanca. Isso exigia um bom apoio para a base do fornilho, de modo a suportar o “coice” da explosão. Como no local, mesmo defronte da zona vulnerável, havia as ruínas do que fora um bagabaga imponente – uma massa sólida de grande resistência -, idealizei instalar ali o fornilho, de maneira que a sua base ficasse soterrada em 2/3 (aproximadamente) no solo e 1/3 apoiada no bagabaga.

Para um fornilho assim grande, o primeiro invólucro que me ocorreu, e que foi adoptado, foi um bidão de 200 litros desses que abundavam por lá. Era penoso fazer um buraco para albergar um bidão inteiro. Para facilitar, depois de se cortar a tampa a maçarico, mandei cortar-lhe cerca de 20 centímetros na boca, reduzindo-lhe o comprimento. Mesmo assim, ainda foi penoso abrir o buraco no chão, tal como o meu trabalho de montagem dos materiais no seu interior, já com ele no sítio. Dada a proximidade, já referida, do fornilho às palhotas da população ali junto ao arame farpado, confesso que, até ao seu rebentamento, vivi possuído por incertezas – logo, ansiedade -, quanto à segurança dessas palhotas. Se algo não corresse como calculei, dada a carga explosiva que decidi usar, elas simplesmente voariam.

Para conseguir dispor a carga explosiva de forma a obter o efeito dirigido, precisava de algo no fundo do bidão que mantivesse os explosivos sempre com o mesmo ângulo até à frente. Para tanto, mandei fazer um cone com ripas, obedecendo a determinado ângulo. Mal-empregado... Ficou tão bem feito que parecia um chapéu de palha vietnamita.

No paiol enchi um carro-de-mão com todo o material velho disponível: granadas não rebentadas de todo o tipo e objectos metálicos inúteis que se foram acumulando. Como explosivo escolhi o TNT a granel em pequenos sacos (de 1 Kg?), por ser mais adaptável à configuração cónica e ao aproveitamento do espaço no bidão. Não recordo o total de quilos usados nem encontro os apontamentos feitos na altura, mas creio que eram mais de quinze e menos de vinte. Foi tudo montado como mostro a seguir, num croquis sem preocupações de escala. No espaço sobrante entre o material e a “boca” do bidão, ainda coloquei uma “cortina” de garrafas de cerveja. Só então se recolocou a tampa do bidão, atando-a com arames. Cobriu-se de terra a frente da tampa, mantendo-se o aspecto que tinha anteriormente o bagabaga. À cautela, no interior do explosivo, coloquei três detonadores eléctricos ligados em paralelo. Abriu-se uma vala estreita mas profunda, por onde passaram os fios eléctricos desde o bidão até a um ponto estratégico nos limites do aquartelamento onde, numa caixa a que só eu tinha acesso, cravada na parede de uma vala, ficaram os terminais desses fios. De passagem, refiro que no lado oposto do aquartelamento, tinha uma caixa semelhante para accionamento de uma série de minas de superfície Claymore, que enfileiravam ao longo do arame farpado.

Nos primeiros tempos passava pelo bagabaga a certificar-me de que tudo se mantinha oculto e inalterável mas, aos poucos, deixei de passar e quase me esqueci daquilo. Até essa manhã de Fevereiro quando fui confrontado com a necessidade de accionar o fornilho. Não havia tempo para desmontar. De qualquer modo, ainda que tivesse, eu preferia accioná-lo apesar dos riscos, para não ficar eternamente com dúvidas sobre o bom desempenho do dispositivo e, logo, do meu trabalho.

Tudo a postos, vou para vala com uma pilha eléctrica na mão. Antes de fazer a ignição, soergui-me de modo a ficar a ver de longe o bagabaga. Fosse das circunstâncias ou da sugestão, tudo em redor parecia mergulhado no vácuo, tal era o silêncio e a quietude. Esperava, confesso, uma explosão de ensurdecer, ver as árvores da mata vergadas pelo sopro, enfim..., não aconteceu nada disso. O que aconteceu foi um “buuuum” prolongado, seco e profundo, telúrico, como se tudo se tivesse passado na pirosfera. Em simultâneo o ar encheu-se de terra e pó. Deixei de ver a tabanca e a mata, tudo em redor era pó amarelo. O Capitão Braga da Cruz chegou perto de mim com uma expressão de grande preocupação e não disse nada. Aguardámos o desanuviamento atmosférico para irmos ver. Foram-se juntando outros curiosos.

No local, apenas grandes torrões circundavam a base do bagabaga, nada tendo passado para o lado da tabanca. Respirámos de alívio e fomos aos pormenores. Do que restava do bidão, o fundo, estava lá no sítio mas, das suas paredes apenas restavam tiras retorcidas, com as pontas em caracol. Na mata, tudo o que pertencera ao bidão estava reduzido a tiras longas, de igual modo retorcidas, e espalhadas com o conteúdo por uma área tão vasta que não a vimos toda. Muitas das árvores tinham cravados estilhaços das granadas e de muitos metais já não identificáveis. Vidros, não encontrámos. Podia-se concluir que fora um sucesso, e como seria eficaz em termos defensivos. Ainda bem que nunca precisámos dele. Agora havia que dar sinal aos homens da Engenharia para que avançassem em segurança e em paz...

Este foi o único fornilho que montei. O dispositivo mais pequeno que havia montado, fora uma armadilha, (trabalho de casa), como prova final do Curso de Minas e Armadilhas de Tancos: era uma caixa de fósforos que explodiria nas mãos de quem a tentasse abrir, quer para um lado, quer para o outro. O interior continha estearina a fazer de explosivo, e nela mergulhava uma lâmpada minúscula a representar o detonador e a comprovar o funcionamento, bem como uma pilha pequena (de tipo AAA?), para a alimentar. Nas paredes interiores da caixa estava o segredo dos contactos, feitos com cabeças de alfinete e tiras de ouro-mouro. Tudo bastante óbvio, agora...

Croquis do fornilho em corte. 
Legenda: Aspecto da localização do fornilho: A – Fornilho; B – Fiada do arame-farpado. 
Fornilho em corte: 1 – “Cortina” de garrafas de cerveja na boca do bidon; 2 – Material para funcionar como projéctil; 3 – Carga explosiva: TNT a granel em sacos; 4 – Cone de madeira para assentar o explosivo; 5 – Ruínas de um bagabaga.

Foto 3: Nhala, finais de Fevereiro de 1974. Eliminado o fornilho, a Engenharia rasgou este trecho da mata para a construção do troço de ligação da estrada A. Formosa-Buba (nas costas do fotógrafo) à tabanca e ao aquartelamento de Nhala, lá ao fundo.

(Continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Poste anterior da série de 20 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15271: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (25): De 6 a 26 de Janeiro de 1974

Guiné 63774 - P15296: (Ex)citações (296): "A ternura dos 20 anos", vídeo de Armando Ferreira, grã-tabanqueiro nº 704: seleção de comentários (António Murta, Cherno Baldé, José Sousa Pinto, Mário Vasconcelos e Tony Levezinho)

Armando Ferreira (ex.-fur mil cav, 
CCAV 8353, Cumeré, Bula, Pete
Ilondé e Bissau (1973/74)
1. Seleção de comentários ao poste P15291 (*), sobre o vídeo "A ternura dos 20 anos", de Armando Ferreira, grã-tabanqueiro nº 704 [foto à esquerda].





(...) A foto nº 7 deve ter sido tirada entre junho a agosto de 1974, no período de euforia do pós-25A74, nela estão elementos da guerrilha e jovens simpatizantes do PAIGC.

Sobre este período de transição escrevi no Poste (P6864 - A (mu)danca das bandeiras em Fajonquito em 1974) de 17/08/10 o seguinte:

"Pela forma como os recebiam e se congratulavam, trocando pequenos presentes e 'lembranças', os soldados portugueses pareciam muito mais satisfeitos com o fim da guerra do que os guerrilheiros. Talvez pela primeira vez na história dos conflitos armados, um dos beligerantes que, para todos os efeitos, tinha perdido a guerra, parecia estar feliz por não ter vencido. Era compreensível mas nem por isso deixava de ser intrigante."




(...) Inevitável não nos revermos em muitas das passagens do texto declamado. No entanto, perdoem-me a franqueza, o tom demasiado teatral da declamação, a querer imitar um Ary ou um Mário Viegas, belisca a sinceridade do contexto do estado de alma que levou o seu autor a sentir a necessidade de dar a conhecer o seu grito.

Não dexa por isso, em meu entender, de ser mais um contributo para a história coletiva de um Portugal colonial em agonia, ainda que, aqui e ali, possamos ter visões diferentes do pesadelo em que todos os combatentes se viram envolvidos.

Saúdo o Aramando Ferreira com um abraço, extensivo a todos os camaradas. (,,,)


(...) Visionei o vídeo do Armando Ferreira. Respeito o sentimento que ele exteriorizou, mas depois dos meus 27 meses passados no teatro de operações e já casado com 4 filhos, [não] deixei em algum momento, de sentir que cumpria uma missão Patriótica, para bem de Portugal e sobretudo para bem das populações autóctones,( neste caso da Guiné), pelo que, de forma alguma, me revejo nessas palavras.

Já voltei à Guiné por 3 vezes para participar em estudos de projectos para o desenvolvimento daquela Terra. Encontrei-me 2 vezes com o Presidente Nino, antes da sua morte e falamos do que eu fiz como militar de Portugal e do que eu pensava à cerca do que teria sido melhor para a Guiné. Compreendemos ambos as situações e fizemos amizade.

Não dou, de todo. como perdido o tempo que permaneci na Guiné, apesar do atraso que isso me provocou no arranque da minha vida profissional e foi muito, mas valeu a pena por Portugal.

As maiores felicidades e muita saúde para todos os Camaradas, Tanbanqueiros , ou não. (...)


(...) Ao Armando Ferreira, militar no teatro de operações da Guiné e ao cidadão português que transporta a raça que cumpre e sofre, endereço a minha saudação de amizade.

Sendo a escultura uma arte representativa de relevos, ela vive-se aqui na ilustração de sentimentos e vivências passadas, mas nunca esquecidas. Um clamor pessoal que a todos envolve.
Um abraço sentido, que abarca todos os camaradas. (...)


(...) Tem toda a razão o Cherno Baldé quando diz que um dos beligerantes parecia estar feliz.

Mas está completamente enganado quando diz que "parecia estar feliz por não ter vencido". Não, camarada Cherno, não era por não ter vencido, (que disparate!), era por ter sobrevivido àquela guerra, por não ter sido dilacerado por ela e, razão não menos importante, saber que podia regressar a casa e à Pátria, coisa que, até ao fim das hostilidades, nunca teve como certo.

De passagem refiro que a fotografia nº 3 deste poste  (*) foi tirada no Uíge, dado que é referida a partida em 16-03-1973. Eu também vinha nele e devo-me ter cruzado com o Armando Ferreira, mas os nossos destinos tiveram rumos diferentes após a chegada à Guiné no dia 22-03-1973: em fui direitinho a Bolama com o meu BCAÇ 4513 e o Armando foi para o Cumeré com a sua CCAV 8353.

Aproveito para lhe dar as boas vindas e um grande abraço de "periquito" para "periquito", com a certeza de que os "periquitos" já não irão mais para o mato, mas que a "velhice" pode ir no Bissau quando quiser. (...) (**)

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Notas do editor:

(*) 26 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15291: Vídeos da guerra (12): "A ternura dos 20 anos", de Armando Ferreira, natural de Alpiarça, escultor de profissão, ex-fur mil cav, CCAV 8353 (Cumeré, Bula, Pete, Ilondé, Bissau, 1973/74): uma emocionante e emocionada homenagem aos seus camaradas mortos e feridos, há 42 anos, no "batismo de fogo", em 5/5/1973, em Bula, em que "deixei de ser eu" (sic)

(**) Último poste da série > 4 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15200: (Ex)citações (295): Fui advogado e amigo de Luís Cabral, e até agora não encontrei uma explicação racional para o assassinato (gratuito) dos 4 oficiais portugueses no chão manjaco nem para o fuzilamento, no pós-independência, de muitos ex-militares guineenses que serviram lealmente as NT (António Martins Moreira, ex-alf mil inf, CART 1690, Geba, 1967/69)

Guiné 63/74 - P15295: Agenda cultural (432): Integrada no 14.º Ciclo das Tertúlias Fim do Império, dia 28 de Outubro, pelas 15 horas, apresentação dos livros "A Guerra", de Fernando Reis Lima e "Não Sabes Como Vais Morrer", de Jaime Froufe Andrade, no Palácio da Independência, em Lisboa

1. Em mensagem do dia 22 de Outubro de 2015, o nosso camarada Manuel Barão da Cunha, Coronel de Cav Ref, que foi CMDT da CCAV 704/BCAV 705, Guiné, 1964/66, dá-nos conta da próxima tertúlia do Fim do Império, a levar a efeito no próximo dia 28 no Palácio da Independência, em Lisboa:


14.º CICLO DAS TERTÚLIAS FIM DO IMPÉRIO 

LISBOA/SHIP/Palácio da Independência (em princípio, 4.ª feira, 15h00; 20% das vendas revertem para a SHIP): 

28 de Outubro de 2015 - 122.ª Tertúlia: 

Apresentação de livros já apresentados na tertúlia do Porto, nomeadamente:

"A Guerra", de dr. Reis de Lima (Alferes Miliciano Médico em Angola, BCaç 114, 1961/63, Presidente da Assembleia Geral do Núcleo do Porto da Liga dos Combatentes); e 

"Não sabes como vais morrer", 7 mais 1 histórias de guerra, do jornalista Jaime Froufe Andrade (1945; Alferes Miliciano Ranger, Moçambique 1968/70). 
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15294: Agenda cultural (431): Lançamento do livro "Modelo Político Unificador - Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau", da autoria do Dr. Livonildo Francisco Mendes, Licenciado e Mestre em Sociologia e Doutor em Ciência Política, Cidadania e Relações Internacionais, levado a efeito no passado dia 19 de Outubro de 2015, nas instalações da UNICEPE, no Porto

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15294: Agenda cultural (431): Lançamento do livro "Modelo Político Unificador - Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau", da autoria do Dr. Livonildo Francisco Mendes, Licenciado e Mestre em Sociologia e Doutor em Ciência Política, Cidadania e Relações Internacionais, levado a efeito no passado dia 19 de Outubro de 2015, nas instalações da UNICEPE, no Porto

Em mensagem de 21 de Outubro passado, o Dr. Livonildo Francisco Mendes, Licenciado e Mestre em Sociologia e Doutor em Ciência Política, Cidadania e Relações Internacionais, enviou-nos uma Nota de Imprensa do lançamento do seu livro "Modelo Político Unificador - Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau", levado a efeito no passado dia 19 de Outubro, nas instalações da UNICEPE, no Porto.


Novo livro sobre a política da Guiné-Bissau apresenta propostas nunca dantes vistas

No dia 19 de Outubro de 2015, realizou-se nas instalações da UNICEPE - Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto (Portugal), uma sessão de apresentação da obra "Modelo Político Unificador - Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau", do sociólogo e politicólogo guineense, Livonildo Francisco Mendes.

A obra foi lançada no passado dia 25 de Julho e promete mexer com todos os que se interessam pela política. Nesta sessão, para além do autor e do representante da UNICEPE, o Dr. Rui Vaz Pinto, foram oradores convidados, o Dr. José Manuel Pavão, Cônsul Honorário da Guiné-Bissau no Porto, Arnaldo Baldé, presidente da Associação de Guineenses do Porto, e o Professor Doutor António José Fernandes, da Universidade Lusófona do Porto.


Livonildo Francisco Mendes, formado Licenciado e Mestre em Sociologia e Doutor em Ciência Política, Cidadania e Relações Internacionais, apresenta propostas inovadoras para o desenvolvimento e a estabilização da Guiné-Bissau.
Esta é uma obra de extrema importância para todos os que se preocupam com a Guiné-Bissau e com os guineenses, e que pretendem aí construir os alicerces para um futuro melhor.

Nos próximos meses, seguir-se-ão apresentações em Lisboa, Coimbra e Aveiro (a confirmar) e também, brevemente, em Bissau, onde o autor pretende regressar definitivamente para trabalhar como professor universitário e comentador político.

O livro está disponível nas livrarias portuguesas e brasileiras, e também através da página da Chiado Editora, que comercializa online para todo o mundo.

Atentamente,
Livonildo Francisco Mendes


2. Sobre o autor:

Livonildo Francisco Mendes (Ildo) nasceu a 28 de Julho de 1974 em Cacheu (Guiné-Bissau), cidade que é considerada o berço da civilização dos guineenses e a primeira capital da Guiné-Bissau.
Conheceu muitas zonas da Guiné-Bissau, graças ao trabalho que o pai, empregado comercial, exerceu desde o período anterior à luta armada até a década de 1990. 
Terminou o secundário e foi convidado pelo Ministério da Educação para dar a sua contribuição ao país. Trabalhou na Região de Cacheu como Professor de Língua Portuguesa no Liceu Regional Hô-Chi-Minh, em Canchungo e como Professor contratado de Filosofia no Liceu Unidade Escolar 23 de Janeiro, em Bissau. Frequentou até ao terceiro ano a Licenciatura em Direito na Faculdade de Direito de Bissau. Em 2001 foi apurado para uma Bolsa de Estudo para Portugal. Estudou o 12.º ano na Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro (Caldas da Rainha). Foi depois para Coimbra, onde concluiu a Licenciatura e o Mestrado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra – com uma Dissertação de Mestrado intitulada “Democracia na Guiné-Bissau: por uma mudança de mentalidades” (que conta já com cerca de 2000 downloads). Depois do Mestrado, sentiu necessidade de complementar a sua formação na área da Ciência Política e, por esta área de formação não existir em Coimbra, mudou para a Universidade Lusófona do Porto. Em 2014, terminou o Doutoramento em Ciência Política, Cidadania e Relações Internacionais pela Universidade Lusófona do Porto, com uma Tese intitulada “Modelo Político Unificador - Novo Paradigma De Governação Na Guiné-Bissau”. A Dissertação e a Tese serviram de base a este livro.

Com a devida vénia a Chiado Editora
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15253: Agenda cultural (430): Conferência de António Graça de Abreu, "Entender a China 2015. Viajar pelo mundo chinês”, sábado, dia 17, pelas 11h30, em Lisboa, na sede da AFAP - Associação da Força Aérea Portuguesa, nas comemorações do seu 32º aniversário

Guiné 63/74 - P15293: As nossas mulheres (13): Só se pode falar do passado porque o futuro começa amanhã (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 20 de Outubro de 2015:


SÓ SE PODE CONTAR COISAS DO PASSADO, PORQUE O FUTURO É SÓ A PARTIR DE AMANHÃ.

Mais uma para a nossas mulheres

Viver de recordações não uma atitude saudável ou será? Traz-nos fantasmas, existências mais ao menos romanceadas, conceitos alinhados com opções do momento, arrependimentos pelo que não fizemos, quantas vezes não douramos a pilula e assim evitamos pensar no que fizemos ou deixamos por fazer, convencidos que haveria sempre tempo. Depois, acabamos por constatar que o tempo escorreu-nos por entre os dedos e que nunca faremos nada sobre isso, nem recuperaremos o que perdemos.

Aquela viagem adiada para dias melhores, a beleza que passou e a que agora vemos passar. Tudo gira na nossa cabeça e pensamos, como era bom haver uma altura na vida, que se carregava num botão, voltávamos aos vinte anos e viveríamos como jovens os anos que nos faltam viver. Ficção cientifica talvez, na vez de irmos ao futuro, regressávamos ao passado e sabendo das nossas frustrações presentes, emendaríamos tudo o que não vivemos com intensidade suficiente na altura.

Assim teríamos aproveitado, ou pelo menos tentado, a nossa sorte com aquela miúda, de olhos verdes, linda, que a nossa falta de confiança ou timidez condenou à nascença qualquer vislumbre de romance.

“ És tão linda, que por onde passas nem a erva cresce” ou “O que se passará no Céu, para os anjos andarem cá na Terra”.

Na minha juventude estes piropos corteses, outros haviam chamado os de trolha acompanhados de assobiadelas estridentes lançados do alto dos andaimes, que diziam serem os parvos ou de mau gosto. Umas gostavam, riam-se apesar de tudo, mas outras tentavam responder à letra e raramente saíam a ganhar do confronto.

Quando estava na Guiné, era como sabem da praxe ter três ou quatro madrinhas de guerra com quem trocávamos cartas, confidências e fotografias. Dávamos largas à nossa veia de sedutores a 2000 km de distância, com a certeza que mesmo o conhecimento das nossas maiores parvoíces seria mínimo em terras, que nunca visitaríamos possivelmente e com pessoas que jamais nos cruzaríamos.

Impunidade era pois o manto com que nos cobríamos.

Umas eram bonitas outras assim-assim, pois como a minha avó dizia “não há meninas feias”. Elas nunca chegaram a saber na verdade, o que as suas cartas representavam para nós e a ansiedade, com que as recebíamos ou esperávamos.

Nalguns casos deram em namoro e casamento. Noutros casos só promessas de ocasião, que nunca haveriam de dar em nada.

Mas também aconteceram amargos de boca a alguns camaradas, quando resolveram deixar de escrever a uma das madrinhas, que já tinha assumido mais alguma coisa ainda que há distância.

Assim aconteceu com o meu nunca demais celebrado compadre “austrel”. Ele era artista de muita palheta, muita conversa e muitas promessas. Mal bispasse uma foto de uma irmã mais jeitosinha de um camarada, não descansava enquanto ele não lhe desse a morada e escrevia-lhe pedindo-lhe para ser madrinha dele. Acrescentava logo, que pedia correspondência porque tinha logo simpatizado com ela e que, não tinha mais nenhuma estivesse descansada etc, etc. Depois quando e se recebia resposta, não eram poucas as vezes que lia a carta, para uma plateia mais ao menos interessada nos pormenores que ela lá ingenuamente lá tinha escrito.

Mas que havia de fazer, ele era levado da breca e tinha imensa graça tendo um curso de malandragem de 1º escalão com muita inclinação para o disparate.

Numa altura em que o “cacimbo” mais o atacou, deixou de escrever a uma ou duas dessas moças. Dizia ele com ar compenetrado, que que se ia deixar dessas merdas, pois já não sabia o que havia de lhes dizer.

Por consequência e causa visível, um belo dia foi chamado ao nosso comandante, que lhe mostrou um pedido de informações a seu respeito. Dizia a pobre moça, que depois de ele lhe ter pedido namoro, deixou de receber correspondência e que temia que lhe tivesse acontecido alguma coisa de mal.

O “austrel” tentou logo ali minimizar a ocorrência, mas sendo o coronel Castro e Lemos daquela têmpera de não tolerar dúvidas ou omissões, logo lhe pregou ali uma valente descasca acompanhada de uma nada velada ameaça de que, se ele não escrevesse à pobre lhe dava uma porrada tal, que o mínimo que lhe acontecia, era ir despedir-se do batalhão ao cais de Bissau, quando o 3872 embarcasse para a Metrópole. Bem como nos devemos recordar, a pior ameaça que nos podiam fazer, seria vermos os nossos camaradas irem embora e nós ficarmos mais um mês e um dia.

É que não sabíamos quando era esse dia.

O nosso camarada passou a escrever todas as semanas e não foram poucas a vezes, que que nós gozámos com ele quando chegávamos ao abrigo e ele estava a dormir, abanávamos-lhe o beliche e gritávamos oh! “austrel” já escreveste?

Ele respondia-nos com uma linguagem que me escuso aqui de repetir está claro. Muitas coitadas não sabiam com quem se metiam.

Ainda lá fiz planos para conhecer uma ou duas quando regressasse, que ficou assim mesmo só nos planos. Hoje lamento que assim tivesse sido, foi um tempo que passou e já não volta para trás.

Em troca disso arranjei coragem e declarei-me à tal miúda linda de olhos verdes, que é a minha companheira há 36 anos feitos em 29 de Setembro. E ainda é assim, “onde ela passa nem a erva cresce”.

Um abraço
JA
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8294: As nossas mulheres (12): A presença das esposas em teatro de guerra (Joaquim Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P15292: Notas de leitura (770): “As Naus", por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
António Lobo Antunes é um escritor recebido com aclamação ou pronto repúdio, não dá margem à indiferença. Lá para o termo dos anos 1980, dispunha de nome feito, era conhecido internacionalmente, publicou um romance um tanto à revelia da sequência de obras anteriores, “As Naus”, um achado experimental entre o passado e o presente, uma atmosfera das grandezas pretéritas e do caos que foi a chegada dos retornados, uma virulenta história trágico-marítima, em que se regressava de avião ou por nau.
É neste embrechado de histórias e historietas que um casal regressa de Bissau, na hora da independência e é metido temporariamente no Hotel Ritz.
Para ler e meditar, ou, quem sabe, querer ler o romance por inteiro. Sou suspeito, pois sou incondicional deste turbilhão da literatura.

Um abraço do
Mário


A Guiné num livro de António Lobo Antunes

Beja Santos

Médico em Angola, António Lobo Antunes estreou-se na literatura com duas obras associadas à sua experiência militar, Memória de Elefante e Os Cus de Judas, em 1979. No fim dos anos 1980, o escritor, já então consagrado pelas singularidades da arquitetura da sua escrita, publica “As Naus” cujo tema eram os retornados.

O livro foi prontamente incensado e escarnecido, uns consideravam que o escritor obtivera um achado misturando o passado e o presente, gente na torna-viagem com nomes como Camões, Gil Eanes, Francisco Xavier, Diogo Cão, entre outros. Caravelas e aviões, os Jerónimos do passado entendido como glorioso e pensões mal-afamadas entre o Paço da Rainha e o Intendente. É um périplo pelo Império, e aquele regresso caótico que se seguiu à descolonização, tudo se passa em Lixboa, a capital do reyno, no termo desse regresso reabilitam-se os mitos litúrgicos de sempre como o sebastianismo, é esse o final belíssimo do romance:
“Amparados uns aos outros para partilharem em conjunto do aparecimento do rei a cavalo, com cicatrizes de cutiladas nos ombros e no ventre, sentaram-se nos barcos de casco ao léu, no convés de varanda das traineiras, nos flutuadores de cortiça e nos caixotes esquecidos, de que se desprendiam esquecidos odores de suicida dado às dunas pela chibata das correntes. Esperámos, a tiritar no ventinho da manhã, o céu de vidro das primeiras horas de luz, o nevoeiro cor de sarja do equinócio, os frisos de espuma que haveriam de trazer-nos, de mistura com os restos de feira acabada das vagas e os guinchos de borrego da água no sifão das rochas, um adolescente loiro, de coroa na cabeça e beiços amuados, vindo de Alcácer Quibir com pulseiras de cobre trabalhado dos ciganos de Carcavelos e colares baratos de Tânger ao pescoço, e tudo o que pudemos observar, enquanto apertávamos os termómetros nos sovacos e cuspíamos obedientemente o nosso sangue nos tubos do hospital, foi o oceano vazio até à linha do horizonte coberta a espaços de uma crosta de vinagreiras, famílias de veraneantes tardios acampados na praia, e os mestres de pesca, de calças enroladas que olhavam sem entender o nosso bando de gaivotas em roupão, empoleiradas a tossir nos lemes e nas hélices, aguardando, ao som de uma flauta que as vísceras do mar emudeciam, os relinchos de um cavalo impossível”.

Pois bem, entre Índias e Angolas, há gente que regressa da Guiné, de onde vieram os primeiros escravos, a Guiné, diz o autor que se limitava então a um amontoado de casa no estuário do rio, muitas delas de madeira e de capim. Há para ali guerra, que se ouve em Bissau, e vamos então a algumas dessas referências guineenses avançadas por Lobo Antunes:
“A violência das explosões dos morteiros, das bazucas e dos canhões sem recuo estremecia as lagunas de Bissau, sobrepondo-se aos relâmpagos de Março (…) Uma noite escutaram por acaso na telefonia, num vendaval de assobios, a revolução de Lixboa, notícias, comunicados, marchas militares, a prisão do governo, canções desconhecidas, e no dia imediato, a tropa parecia menos crispada, os bombardeamentos rarearam, pretos de óculos flamejantes e camisas de feriado instalaram-se nas esplanadas e nos largos no lugar dos brancos. Convocaram-nos para uma reunião no Cine-Theatro das zarzuelas estafadas e das récitas dos bombeiros, onde um coronel de artilharia, com uma tripla fita de condecorações na clavícula, subiu ao palco em cujo fosso a orquestra desafinou entusiasticamente o hino, e lhes ofereceu de mão beijada, numa generosidade inexplicável, a possibilidade gratuita de tornar a Portugal (…) Batalhões completos, convulsos de amibas e lombrigas, com os furriéis a cabecearem de doença do sono logo após a charanga e a bandeira, alçavam-se para navios ferrugentos carregando as suas armas e os seus mortos (…) As naus aportavam vazias e partiam cheias, convexas de gente e de caixotes. Bissau despovoava-se de brancos e o início da estação das chuvas encontro-os sem saber o que fazer numa terra de selvagens triunfais que estilhaçavam à metralhadora os postigos das fachadas (…) 
Um amigo da fábrica de sonetos gongóricos, chamado Jerónimo Baía, descreveu-lhes os acontecimentos medonhos, sodomias, envenenamentos, rimas cruzadas, récuas de prisioneiros de algemas enxotados à coronhada para o mato. E quando o chá acabou e mergulhavam diariamente na água fervida o mesmo saquito sem sabor dependurado na extremidade de uma guita, a esposa, de costas para ele, anunciou-lhe na serena voz habitual com que enterrara, trinta e oito anos antes, a filha criança, já não pertenço aqui (…) Nessa mesma tarde subiu aos damascos rotos e óleos de defensores do reyno do palácio do governo, esperou numa enorme cadeira de dignatário, no meio de dezenas de brancos e mulatos, que lhe pronunciassem o nome e um funcionário de jaqueta o recebesse na cave do edifício e pediu dois lugares de porão para Lixboa (…) Se os brancos diminuíam, os pretos, em compensação, aumentavam nas casas atoladas nos caniços dos rios. Ocupavam as casernas que a tropa deixara, aliviada do peso da guerra, e enfeitadas de frases bélicas; acomodavam-se nos bancos de jardim, indiferentes à chuva, com as automáticas checoslovacas nos joelhos (…) Um grande paquete claro aproximava-se do cais a ameaçar destruir Bissau com o gume da proa. Não somos de parte alguma agora, respondeu o marido a designar o barco coroado de flâmulas, de emblemas reais, do estandarte do almirante Afonso de Albuquerque no topo do mastro principal (…) Depois de três meses de viagem um solzinho cor de pêssego despontou no meio da granito das nuvens e daí a nada avistaram o contínuo fervedoiro de mercado sírio de Lixboa a pular na distância, muralhas de castelo, fogueiras de judeus, procissões de flagelados, um trânsito simultâneo de carroças de escravos, cruzadores e bicicletas (…) 
Após cinquenta e três anos num cubículo de Bissau sofrendo mosquitos e cacimbo era-lhes difícil imaginar o ilimitado tabuleiro de damas do chão de mármore, as tapeçarias de hibiscos nas paredes, grooms disfarçados de hussardos, portas que se descerravam sozinhas. A cabine espacial do elevador, acostumado a assobiar de leve por órbitas de cometas, depositou-os numa espécie de corredor de basílica com os vãos dos altares laterais numerados (…) palpou-se longamente para se convencer da sua própria idade, tomando consciência dos molares que faltavam, dos músculos que obedeciam em guinadas dolorosas, do rosto devastado pelo clima da Guiné desde que aos quinze anos o pai o enviara para os trópicos aos cuidados de um primo sargento (…) 
Colocaram-nos na mesma mesa que três fazendeiros de Carmona que carpiam o café perdido e a lembrança das prostitutas da Muxima, um caçador de hipopótamos e um faquir guês de perinha ascética que mastigava parafusos e roscas (…) Um tenente de cabelos ralos, penteados desde a nuca numa minucia de ourives atravessou as tapeçarias, adaptou o microfone à sua altura, disse um dois três experiência, informou com ferocidade, damas e cavalheiros que se encontravam no Hotel Ritz por pura benevolência paternal das autoridades revolucionárias preocupadas em zelar pelo conforto e tranquilidade dos seus filhos até o Estado democrático conseguir casas ou pré-fabricados ou apartamentos nos bairros económicos para as vítimas da ditadura felizmente extinta, e que em nome, camaradas, da luta de classes e da construção do socialismo dirigida pela vanguarda política do exército, passariam a ser punidos com a forca os intoleráveis abusos de assar sardinhas nos lavatórios, cozinhas refogados e fritos nas cerâmicas dos chuveiros, vender as torneiras, assim como servir-se das cortinas estampadas do hotel opara blusas e adornos”.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15283: Notas de leitura (769): “Diário de Ébano", por Sofia Yala Rodrigues (Mário Beja Santos)