Foto nº 1 > O artista quando jovem, em 1955, com 17 anos... "Moço de convés", junto à bitácula no navio "Lusado". (A bitácula é, em linguagem náutica, a caixa redonda de metal e vidro, geralmente assente em coluna de madeira, que contém a bússola da embarcação).
Foto nº 2 > Oito dias levava o "Lousado" a chegar aos pesqueiros da Terra Nova
Foto nº 3 > Um aspeto do convés do navio bacalheiro "Lousado"
Foto nº 4 > Alguns dos bravos marinheiros e pescadores que embarcam no "Lousado" em abril de 1955. Na segunda fila, ao centro, o terceiro a contar da esquerda, é o nosso autor...
1. Segunda parte da publicação do capítulo 7 (A viagem “O Mar por Tradição”, pp. 91-99), do livro A Rua Suspensa dos Olhos, de Ábio de Lápara (edição de autor, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...
É uma grande cortesia do autor, José António Paradela, velho amigo do editor do nosso blogue ... Ábio de Lápara é o seu pseudónimo literário... Ilhavense, filho de marinheiro, o autor evoca e revive com enorme ternura e talento a rua onde nasceu e cresceu, e onde conheceu algumas das figuras humanas da sua terra, que marcaram a sua memória e o seu imaginário... Aliás, pelas histórias da rua suspensa dos olhos perpassa muita da humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia da nossa infância...
Refiro-me à infância daqueles de nós que nascemos nos anos 30/40 do século passado, toda uma geração duramente sacrificada que conheceu, uns, a epopeia dos mares, incluindo a pesca do bacalhau (que chegou a ser alternativa à guerra colonial), outros o exílio e a emigração, e outros ainda (a grande maioria) a guerra colonial e até a condição de prisioneiros de guerra (como foi o caso da Índia, em 1961/62).
Refiro-me à infância daqueles de nós que nascemos nos anos 30/40 do século passado, toda uma geração duramente sacrificada que conheceu, uns, a epopeia dos mares, incluindo a pesca do bacalhau (que chegou a ser alternativa à guerra colonial), outros o exílio e a emigração, e outros ainda (a grande maioria) a guerra colonial e até a condição de prisioneiros de guerra (como foi o caso da Índia, em 1961/62).
Capa do livro, da autoria de José A. Paradela |
Foi uma experiência, aos 17 anos, que o marcou para o resto da vida, não só pela dureza das condições de vida a bordo como pela descoberta e reforço dos laços de camaradagem, solidariedade e amizade entre a tripulação (marinheiros e pescadores) do navio-motor "Lousado", construído em 1954, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. [Características principais: comprimento: 62,04 m; boca: 11,07 m; pontal: 4,9 m; tonelagem líquida: 599,35 ton.; tonelagem bruta: 1176,95 ton.; capacidade de porão: 17 mil quintais; tripulação: 99 homens; material de construção: aço.]
Como já o dissemos anteriormente, a vida deu, entretanto, outras voltas e o autor não seguiu o destino dos seus antepassados... Aluno brilhante, acabou por ficar em Lisboa, ganhar uma bolsa e assim poder continuar a estudar, sendo hoje um nome de referência da arquitetura e urbanismo em Portugal. (Depois da tropa, feita na Marinha, entraria para o curso de arquitetura na Escola Superior de Belas Artes, no ano letivo de 1960/1961; fundou e geriu a empresa PAL - Planeamento e Arquitectura, com sede em Lisboa, e ainda em atividade; tem obra por todo o país, e em especial na Região Autónoma da Madeira).
O livro A Rua Suspensa dos Olhos não está à venda no mercado. Mas, contra reembolso (10 euros, preço de capa + 2 euros para portes de correio), pode ser pedido autor, através do seu endereço pessoal. Ver igualmente a sua página pessoal no Facebook.
Publicamos hoje mais algumas páginas do capítulo 7. Haverá um 3º e último poste com o resto do texto (pp. 99-107). (**)
Foto do livro: cortesia do autor, José A. Paradela |
[Foto à esquerda: o autor quando jovem, ao meio, ladeado pelo pai, velho lobo do mar, e a irmã; um outro irmão, Tibério Paradela, seguiu a carreira de oficial da marinha mercante: tem um livro de ficção sobre a pesca do bacalhau, "Neste mar é sempre inverno", de que já aqui falámos (edição de autor, Aveiro 2014, 262 pp.)]
A Viagem
Num belo dia dos fins de março desse ano [de 1955], fui finalmente chamado para embarcar.
O Lousado era um navio-motor, construído em ferro, com dois mastros despidos de velas, com o casco pintado de branco como todos os navios portugueses da pesca à linha e comecei imediatamente a trabalhar. [Era a segunda viagem do navio aos bancos pesqueiros da Terra Nova e Groenlândia. (LG)].
A bordo encontrei tripulantes de Ílhavo, alguns dos quais meus conhecidos, com os quais viria a estabelecer fortes laços de amizade: o Armindo Verdade, o João Eugénio e o Francisco Serrão. O primeiro desempenhava funções de ajudante de motorista, o segundo, de ajudante de cozinheiro e o terceiro, de moço de convés, como eu, embora com maior experiência por ter feito várias viagens. Com este partilhei um dos pares de beliches em que o rancho se organizava.
Tinham-me avisado que “grande nau, grande tormenta”! Nesse aspecto o Gazela teria sido mais bonançoso (#), mas a minha opção [, a de embarcar no Lousado] estava tomada.
Nesse primeiro dia a bordo, fundeado no Tejo, o almoço foi comido sentado num pandeiro de cabo, no convés em desalinho. O navio estava a receber materiais de toda a ordem para “A Viagem”.
O rancho [espaço interior, debaixo do castelo da proa, onde se situam o refeitório e o dormitório do pessoal (LG)] não estava ainda operacional. A acompanhar a comida, servida num prato de alumínio, deram-me uma caneca de ferro esmaltado, de cor azul, com cerca de um quarto de litro de vinho tinto. À medida que o ia bebendo em pequenos goles, a minha nostalgia e o aperto no peito iam desaparecendo como por milagre. Não estava habituado a beber, e o estado ansioso que me afligia, foi substituído por uma exaltação eufórica inesquecível que me transportou para um patamar de lucidez que poucas vezes consegui repetir durante a viagem, apesar de não dispensar, a partir daí, a ração de vinho que me era atribuída.
Nesse estranho momento, muitas imagens do passado desfilaram como num filme: os momentos de solidão e temor nas minhas graves doenças infantis, a rejeição dos estudos nos dois anos que frequentei o liceu, o gosto da liberdade juvenil na comunhão dos amigos, as aflições da minha mãe com as minhas ausências, a recente partida da minha avó paterna para a cova do meu avô, onde eu ia com ela rezar em criança, e, sobrepondo-se a tudo isso, o manto roxo da minha paixão adolescente, pairando sobre aquela nau daí para o futuro, ao longo de seis ou sete meses, na ausência do poema amado!
Ia começar a aventura! Levantei-me e exclamei bem alto perante a perplexidade dos outros: “Um homem é um homem… uma mulher é um bicho!”.
Palpitava-me que não seria bem assim, mas, naquela altura, foi a consolação da raposa perante o cacho de uvas inatingível. Confortado pelo grito agarrei-me ao trabalho. Nesse tempo eu não conhecia a frase inscrita sobre o portão de Auschwitz [Arbeit macht frei, (LG)] mas de facto sentia que o trabalho me libertava.
No navio deixei novamente de ser um número! [Na Escola Profissional de Pescadores, era o Sessenta... (LG)]. Embora a obediência continuasse obrigatória mas não regulamentada, permitindo abusos de poder sobretudo dos poderes subalternos, os sentimentos de liberdade e autonomia experimentados, compensavam a angústia do “castigo” que se aproximava.
Até que chegou o dia, em abril [de 1955], em que os navios, fundeados em Belém frente aos Jerónimos, eram benzidos em cerimónia montada a preceito, como o regime [do Estado Novo, (LG)] sabia fazer, ritualizando os atos que, desse modo, passavam a estar sancionados pelo Altíssimo! Assim encomendados a Deus, no meio da tarde do dia seguinte, rumamos a Cascais.
Dia primaveril, onde nada fazia supor o que se passaria nessa noite, apesar da bênção. Saídos da barra, a ondulação começou a fazer-se sentir, e fiquei junto à amurada a ver a terra desaparecer, iluminada pela luz dourada do poente. À medida que o sol se punha, a linha da costa extinguia-se no lado oposto. Em pouco tempo era um fio de sombra, uma nuvem, uma névoa…Nada.
Para trás ficara enrolado, em nostalgia, todo o meu quadro de referências físicas e espirituais. Era a primeira vez que isso me acontecia e as primeiras vezes têm, como se sabe, o sortilégio da permanência na memória. Era também a primeira vez que eu navegava no alto mar.
Ao reentrar no rancho perdi a referência estabilizadora do horizonte. A descoordenação de movimentos foi imediata e, a cada balanço do navio, as anteparas aproximavam-se de mim perigosamente. O esforço que tinha de usar para me manter na vertical tornou-se penoso. Faltava-me o andar de marinheiro!
Na véspera da partida, o contramestre comunicara-me instruções do imediato, explicando-me que a tripulação das máquinas era composta de três maquinistas e dois ajudantes. Faltava assim um ajudante para preencher o terceiro turno do serviço.
Conhecida a minha prática oficinal anterior, através de informação dada pelo Armindo Verdade, eu deveria abandonar as tarefas do convés e seria arvorado em ajudante do segundo maquinista, sempre que o navio tivesse de navegar por um tempo mais longo. Gostei do alvitre, era um desafio que não esperava. O meu turno de serviço começava às vinte horas. Fui tentar jantar qualquer coisa, mas o estômago não aceitou. Chegada a hora, dirigi-me para a casa das máquinas.
Naquelas primeiras horas, após a saída da barra, o tempo piorara de modo assustador. Tinha de me manter permanentemente agarrado aos corrimões, e o enjoo não tardou a chegar.
O segundo maquinista, um ilhavense avisado e muito afável, já me tinha indicado as tarefas a executar e o balde apropriado para vomitar. Pouco depois, através do “telégrafo” de bordo, veio da ponte de comando uma comunicação para reduzir a força da máquina. As coisas deviam estar a complicar-se lá por cima, pensei eu…
O navio ia ser posto de "capa", isto é, aproado ao vento e à ondulação, em baixa velocidade, para evitar estragos sobre o convés durante a viagem até aos pesqueiros, onde estavam peados os botes de pesca e outros materiais para a laboração do peixe.
Depois de dois ou três dias de mau tempo e enjoo permanente, todos os cheiros eram repugnantes, quer fossem os dos vapores do óleo derramado pela almotolia sobre a cabeça quente do motor ao lubrificar os balanceiros, quer fosse o cheiro do pão quente ao sair do forno, quando no regresso ao rancho passava junto à cozinha.
O ruído contínuo das máquinas, a princípio difícil de suportar, transformava-se com o passar do tempo, numa monódia envolvente com modulação de ladainha religiosa e, lentamente, a adaptação foi ocorrendo.
Por alturas da passagem pelos Açores, avistou-se, a flutuar nas ondas, uma tartaruga de grande tamanho e manobrou-se o navio de modo a recolhê-la. A canja ficou deliciosa, e foi a primeira sopa que comi com verdadeiro apetite. Provavelmente hoje não conseguiria comê-la! Preconceitos…
As primeiras noites, deitado no beliche que me coubera no rancho inferior, foram infernais. Açoitado pelo mau tempo, o navio cavalgava o mar com balanços tais que faziam bater a amarra que suspendia o ferro (a âncora), no tubo metálico que a conduzia para o paiol respetivo. Só o profundo cansaço de muitas horas de trabalho permitia algum repouso, ajudado pelo efeito de berço de infância gerado pelo balanço do navio.
Entretanto o tempo foi melhorando e as agonias desaparecendo, tal como os sons da amarra, agora menos agitada no interior do tubo. As anteparas deixaram de me ameaçar e o andar de marinheiro foi-se instalando aos poucos.
Como quem mora ao pé da igreja, deixa de ouvir o toque dos sinos, habituei-me e aprendi mais tarde a reconhecer o estado do tempo pelo nível sonoro da amarra! Muitos dias de silêncio seguidos significavam outros tantos de cansaço na pesca. Assim, os ruídos fortes chegavam a ser bem vindos para obter o merecido descanso imposto pelo mau tempo!
A viagem até aos pesqueiros durava cerca de oito dias. As tarefas executadas nesse período formavam um manancial de conhecimentos muito diversos, tanto para os “moços” recém embarcados, como para os “verdes” [, o equivalente a "piras" (LG)], os pescadores que embarcavam pela primeira vez e eram obrigatoriamente orientados por um pescador sénior [, um "maduro", (LG)]. Eram os dias preparatórios daquela vida, antes de entrarmos na rotina da pesca.
Mas não quero aqui avançar por narrativas já conhecidas e mais competentes. Prefiro averiguar sobretudo aquilo que, ao fim de tantos anos, em mim resta daquela experiência.
Restarão certamente impressivas sensações onde já não habitam alguns nomes, tão pouco os seus rostos, gastos na erosão dos dias. De homens longamente afastados do fluxo normal da vida urbana, cultivando a saudade no meio de condições de sobrevivência infra-humanas, isto é, fora dos padrões sociais de convivialidade característicos da vida em terra. Ali, a comunicação ficava limitada ao passado, nas conversas do rancho, ou apenas grunhida com interlocutor imaginário no isolamento do bote, durante muitas horas por dia. O fatal embotamento da consciência motivado pelas poucas horas dormidas em cada dia, completava-se recorrendo à aguardente diariamente distribuída em duas tomas como se de remédio se tratasse: de madrugada, antes de saltar para o bote [, o chamado "mata-bicho", (LG)] e à tarde durante a longa “escala” do peixe.
Esta tarefa durava até que o convés ficasse limpo. Os pescadores iam então beber a “chora”, um caldo de peixe reconfortante, antes de caírem no beliche com a roupa que traziam no corpo, esgotados. Apenas a lembrança da família lhes permitia manter o “élan” vital, para suportar a dureza destas tarefas.
Sempre que o tempo estava calmo, a alvorada soava com os “louvados” [, ladaínha para despertar os pescadores, (LG)], às 4 horas da manhã. O silêncio acontecia, por volta da meia noite. Eram assim vinte horas de vigília para quatro de descanso em cada dia. E este regime podia durar muitos dias seguidos, sem sábados nem domingos, com mar calmo ou agitado. Quantas profissões em terra se sujeitavam a semelhante regime?
Deixo-vos aqui um poema esquecido no fundo de uma “loca”, o lamento de um “verde” (pescador que embarcava pela primeira vez) que veio parar às minhas mãos no acaso de uma manhã.
O Verde
No dia em que, “verde”, me puseram entre tábuas
De um catafalco a que chamaram bote
E me disseram: salta, esquece as mágoas…
Senti, logo, na garganta um garrote!
Primaveril, meu coração bateu mais forte,
Ao cair na onda junto ao costado,
E remei, como quem enxota a morte,
De dentro do meu “fato oleado”.
“Senta-te, Zé, e rema enquanto a força durar!
Tens pão e peixe, e tens também café quente!
Segue-me quando o meu búzio roncar…”
Disse o “maduro”, comovido, ao ver-me imberbe,
Estendendo as linhas na corrente,
Junto à fria palidez do terrível icebergue.
(Continua)
[Revisão e fixação de texto, ilustrações, links e notas, exclusivamente para este poste: LG]
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 23 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15531: Notas de leitura (791): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1954, aos bancos de pesca do bacalhau: Parte I
(**) Último poste da série > 28 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15548: Notas de leitura (792): “Bichos da Guiné, Caça, fauna, natureza”, por Júlio de Araújo Ferreira, Edição de Autor, 1973 (2) (Mário Beja Santos)