1. Mensagem do nosso camarada António J. Pereira da Costa, Coronel, que foi comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, com data de 6 de Julho de 2009:
Olá Camarada
Fiquei a saber que a filha do Beja Santos faleceu.
Que é que se diz nestas alturas? Num caso como este, não sei porquê, o melhor é nada dizer... Os que nos seguem de longe, quando se nos dirigem nestas alturas, dizem coisas... E eu não quero dizer coisas.
Pois eu escrevi um texto sobre os ex-combatentes no qual procuro saber
Quem Somos? São quatro páginas a computador e, por isso, parece-me um pouco infuncional para o blog, pois vai ocupar um grande espaço e a malta terá dificuldade em lê-lo.
Que farei com este texto? Ora dá uma ideia e informa, como se dizia
naquele tempo.
Um Ab do
António Costa
2. Cabe aqui uma pequena intervenção antes de apresentarmos o texto do nosso camarada A. Pereira da Costa.
Face a este depoimento, que podia ser igual ao que cada um de nós faria, se para o efeito tivesse a mesma arte e engenho, fica provado que temos tanto em comum, mesmo admitindo as divergências normais e salutares, que todos os conflitos criados recentemente, artificialmente talvez, empolados propositadamente, são insignificantes, comparado com aquilo que nos une.
Vamos definitivamente enterrar os machados, esquecer ou pelo menos desculpar os nossos camaradas que não pensam como nós, e de uma vez por todas deixar de utilizar palavras provocatórias e ofensivas. Problemas pessoais devem ser tratados por mail ou telefone, e nunca nos comentários.
Estou a falar por mim, não entrei para a Tabanca e muito menos para a edição do Blogue para ver a minha caixa de correio cheia de tricas. Quero trabalho, muito, mas construtivo. Para outra coisa, acreditem, não estou cá.
Optei por publicar o texto do nosso camarada por inteiro, porque o achei demasiado importante para o dividir. Leiam por favor, porque é muito importante e leva-nos a reflectir sobre o que foi o nosso passado.
C.V.
Quem somos nós?António J. Pereira da Costa
Afinal quem somos nós, os ex-combatentes, como hoje, se diz?
Primeiro, interroguemo-nos acerca das razões que nos levaram a participar numa guerra, chame-se ela colonial, do ultramar ou de África. O nome é o menos importante e não deve constituir motivo de discussão. O que verdadeiramente interessa é o que se passou, o que fizemos ou não fizemos, porque fizemos isto e não aquilo, o que estava à nossa volta, quer fossem outros compatriotas, o inimigo, a terra ou clima. Por mim, não me restam dúvidas de que participámos na História do nosso país de um modo com que todos tínhamos sonhado, ao aprendermos a nossa História, nos bancos da escola, mas também nunca tínhamos pensado que pudesse acontecer.
Nós que, de vez em quando, em tantos sítios do país e às vezes no estrangeiro, nos reunimos para conviver, temos, como denominador comum, um tempo que passámos em África – mais ou menos dois anos – pouco tempo numa vida inteira e numa situação que, quando terminámos a escola primária, nem sonhávamos que pudesse ocorrer. Pouco tempo depois do fim da escola, fomos surpreendidos por alguma coisa que acontecia naquilo que tínhamos estudado como sendo parte integrante do nosso país e que nem sequer imaginávamos que contornos podia ter. Quantos de nós conheceriam a África? E se era nossa? De quem? Nossa mesmo? E era-o como e porquê? Como exercíamos essa posse? No fundo, nunca tínhamos pensado no assunto. Éramos uma comunidade una, mas dispersa? Ou simplesmente um conjunto de territórios povoados por povos diferentes? De países, em última análise...
Começara a guerra, dizia-se.
Os governantes do tempo procuravam reduzi-la a simples operações contra terroristas infiltrados a partir dos países limítrofes, bandoleiros, tresloucados etc. quase como se fossem operações de polícia. Porém, ainda hoje não tenho conhecimento de qualquer ofensiva diplomática ou protesto, junto das instâncias internacionais, por parte do governo português, para que o apoio estrangeiro aos tais terroristas terminasse. Era o mínimo que se exigia.
Começamos hoje a não ter dúvidas de que se tratava de um fenómeno sociológico previsível e previsto por vários visitantes e residentes naquelas terras, que observaram o que se passava e se aperceberam do aumento das tensões entre os diferentes grupos sociais: mais ou menos pobres, mais ou menos detentores ou condicionadores do funcionamento dos meios de produção. Se a isto juntarmos as diferenças rácicas e as tensões acumuladas, ao longo de séculos, temos uma mistura explosiva que, só poderia ter sido evitada com algo que se não fez antes e que, quando se pretendeu fazer era tarde demais: o desenvolvimento económico e social e a integração. Os que anunciaram que havia perigo ficaram mal vistos e foram tidos como mensageiros da desgraça, às vezes mesmo como elementos perturbadores, interessados em desequilibrar o país e as suas instituições, espiões, quase. Não há dúvida de que o pior cego é o que não quer ver.
Infelizmente, a ciência, mesmo quando não é exacta, não deixa de ser ciência e de prever as consequências dos factos que vão acontecendo. É inutil fingir que se ignora que as sociedades funcionam num processo dinâmico e que a repressão a esse processo sempre deu mal resultado.
Não sabíamos que era assim, mas aquilo a que a dada altura passámos a chamar guerra era afinal, consequência de um domínio virado para a exploração de recursos, naturais ou não, e dos primitivos habitantes daquelas terras. Se os primeiros servem mesmo para isso mesmo, a exploração e ao mau trato aos segundos revela-se, a prazo, uma fonte de tensão que, neste caso, terminou numa revolta, com largo apoio no exterior mercê da conjuntura internacional favorável, mas com larga implantação na população, como vimos à chegada à Guiné.
Éramos assim, uma espécie de bombeiros que chegavam tarde a um incêndio numa floresta, batida com vento forte. Era um incêndio que tinha por onde arder e boas condições para lavrar. Podem crer que, desde a primeira hora, a guerra estava perdida.
Com a idade que tínhamos quando ela começou, os nossos pais, só tarde, começaram a pensar que a sorte também nos iria tocar.
Que fazer então quando, à data de embarque, a guerra era velha de dez anos e nós jovens com pouco mais de vinte?
Havia, como se lembram, os muitos que já tinham ido e voltado – amigos e conhecidos – e que nos davam a ideia de que afinal as coisas não seriam assim tão más. Poderíamos correr o risco.
A opção não era fácil. As escolhas, quase desconhecidas. Vivíamos num país atrasado e todos os que vieram a emigrar ou os poucos que então visitaram o estrangeiro sabem do que falo. As diferenças que encontrávamos falavam por si. Estávamos encurralados entre dois fogos. Se, por um lado, a incerteza da guerra se aproximava – e hoje todos entendem o que digo – por outro, a certeza da impossibilidade de ficar, era um dado a que não podíamos fugir. Entre as duas soluções, só o diabo sabia escolher. Quantos de nós pensámos na outra solução?... Quantos de nós pensámos em fugir? Quantas vezes não nos arrependemos de não o termos feito?
Fugir. Aqui estava outra expressão que a nós, homens de bem e bem formados, repugnava. Tudo aquilo que pudesse ser confundido com fugir não era para os homens da nossa geração. Mas as coisas não são assim tão simples e fugir pode ser um acto de valentia, quando se sabe, porquê. Quando se recusa fazer algo, arrostando com as consequências que, às vezes, nem adivinhamos quais possam vir a ser, entrando numa espécie de opção “
não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí”, então fugir é um acto de valentia que pode exigir maior integridade moral do que aceitar passivamente o destino comum.
Vale a pena voltarmos a pensar nos que tinham ido e voltado. Por estranho que pareça, à chegada, eles pareciam ter esquecido tudo. Não falavam do que tinham vivido. Não procuravam passar-nos – como se tal fosse possível – a sua experiência. Não nos aconselhavam, nem nos desaconselhavam. Partiam para a sua vida com a ânsia de quem tinha perdido tempo e agora só pensavam em começar a viver.
Hoje não temos dificuldade em compreender a atitude destes camaradas.
A sociedade, à chegada, não lhes reconhecia o mínimo valor. Eram um corpo estranho que lembrava aos políticos a sua incapacidade, teimosia e intransigência. À sociedade relembravam um problema que ela tinha, mas que não sabia como resolver e, por isso, deixava o tempo passar e o problema agudizar-se.
E se voltavam deficientes, estavam condenados a sobreviver.
Desde aqueles que ficaram depositados numa cama ou numa cadeira de rodas, sobrecarregando a família e sofrendo o esquecimento dos amigos, até àqueles que conseguiram, sabe-se lá com que esforço e vencendo que combates, progredir na vida, parecendo esquecer-se do que lhes tinha sucedido. Não podiam. No fundo, não lhes era fácil recordar, ao fim de cada dia, que lhes faltava um bocado do corpo.
E os que por lá se tinham perdido, caídos nas mãos do inimigo e sofrendo, na prisão, uma culpa que não sabiam se tinham? E aqueles a quem a família não teve outro remédio senão esquecer, apagados na sequência dos dias? As mães, os pais, as esposas, os irmãos ou um outro amigo ainda os procuravam, de vez em quando, no local do último repouso, mas depois...
Depois... o resto já todos sabemos. A vida é isso mesmo e não há nada a fazer.
Enfim chegou a nossa vez.
– “
Se os outros foram e voltaram, eu também poderei ir e voltar” – era um dos nossos pensamentos.
– “
E até pode ser que não seja bem assim. Pode ser que o sítio não seja mau e que o tempo passe depressa. No fundo são só dois anos” – dizíamos também.
– “
Tenho fé de que comigo vai ser diferente” – pensávamos para nos animarmos.
À chegada, o choque foi grande. O desembarque numa cidade militar e num teatro de operações não tinha nada a ver com a simples chegada a um país que não era o nosso. Era o mergulhar num desconhecido, que se mostrava cada vez mais soturno e dramaticamente enigmático, à medida que trocávamos impressões com os veteranos. Alguns, poucos, pareciam ter ganho a guerra. Outros revoltavam-se. Outros aceitavam a sua sorte como algo que não podia ser modificado. A confusão no nosso espírito era grande. Todavia, numa coisa estávamos todos de acordo: aquilo era outra terra e – porque não dizê-lo? – outro país. Deixada para trás a cidade, a vida no quartel do mato, numa localidade pequena do interior, em que os camponeses nos eram estranhos, não falavam a nossa língua, não cultivavam a terra como nós e tinham hábitos de que só vagamente tínhamos ouvido falar, era algo que nos paralisava.
Quem eram? O que queriam? De que lado estavam e porquê? Se recusavam a protecção e a ligação ao inimigo, preferindo o nosso apoio e colaborando com a nossa acção, tendo nascido e sempre vivido ali, quais seriam as razões para tal? Estas talvez fossem questões que não púnhamos, ao princípio, mas que ao fim dos primeiros tempos de acção, com as primeiras horas de mato feitas e a recepção das diferentes notícias do inimigo começaram a preocupar-nos.
O tempo escorria no calendário, com as operações – quem não se lembra das emboscadas, quando o tempo não passa? – as tarefas monótonas de cada dia e as notícias ou a falta delas dos nossos, a quem tínhamos de escrever, contando verdades ou mentindo, consoante entendêssemos que era melhor para o destinatário.
Começávamos a ser cada vez mais experientes e fazer uma ideia do que se passava à nossa volta. Envelhecíamos, sem darmos por isso. Sabíamos agora mais o que era importante na vida. As amizades ganhas nas horas de incerteza, o contacto próximo e diário com outros – civis e militares – as tarefas desempenhadas em equipa. Numa palavra: amadurecíamos. Claro que poderíamos questionar se, para amadurecermos, seria necessário expormo-nos assim e virmos para tão longe.
Mas afinal quem éramos? Cidadãos-patriotas? Soldados-heróis? Acomodados à espera que o tempo passasse e jogando na lotaria do “
não há-de ser nada!” como então se dizia?
Talvez uma mistura de tudo isto. Hoje, se regressarmos ao passado, havemos de encontrar muitos momentos em que fomos tudo aquilo e muito mais a que a vida impiedosamente nos obrigava. Estávamos ali, sem podermos alterar drasticamente a nossa situação e, mesmo assim ficávamos. Entregues ao fluir do tempo, sabíamos que a sua contagem decrescente corria a nosso favor e, até lá, havíamos de nos aguentar. É certo que alguns dos nossos camaradas... Mas... connosco havia de ser diferente! Era a nossa convicção. E foi assim, felizmente.
Passámos a alegria breve do regresso, a inserção no mundo do trabalho e a constituição de família. Tal como os nossos antecessores, sofremos a incapacidade de transmitir, mesmo aos que nos são muito próximos, o que tínhamos passado. Sentimos a frustração de não sermos ouvidos, e o desinteresse dos outros, perante a nossa mensagem e, por fim, a necessidade de, a bem da nossa saúde mental, esquecermos o sucedido. Isso levou-nos a evitar falar do que tínhamos passado. Era coisa “
para esquecer”. Agora era necessário viver e desfrutar da luta diária da vida, no fundo a razão pela qual os Homens vivem.
A vida foi correndo e a curiosidade em sabermos o que seria feito deste camarada que nos ajudou nesta ou naquela situação, daquele a quem apoiámos num momento em que se foi abaixo ou daquele outro que se tornou notado num episódio cómico, que a todos fez rir. Primeiro a curiosidade, depois as saudades e, por fim uma vontade irresistível de recordar. Ficamos velhos. E os velhos têm necessidade de recordar para se sentirem gente ao contemplarem a vida. Daí aos convívios foi um passo. Mas, afinal porque nos irmanamos à volta de uma mesa?
Porque todos temos em comum o facto de termos sido os homens que estavam na esquina errada da História. Fomos apanhados num turbilhão e não pudemos fazer nada para sair dele. Nadámos num troço de águas revoltas do rio do tempo.
Há quem diga que cada homem é ele próprio mais as suas circunstâncias. As nossas foram estas. Bem difíceis, temos que concordar. Sobrevivemos e demos a nossa contribuição, modesta como é sempre é a dos homens do povo feitos soldados. A História só muito excepcionalmente recordará os nossos nomes, numa pequena rua da nossa terra natal. Para que serviu o que fizemos? Não sabemos. Talvez para pouco. Se calhar não passou de um esforço inútil, ao qual fomos coagidos, sem qualquer espécie de fuga. Custa, mas teremos que o admitir, mais tarde ou mais cedo.
Estamos condenados ao esquecimento que o tempo sempre traz, mas, enquanto pudermos, havemos de lutar contra isso. Temos de deixar a nossa assinatura na marcha do tempo. Toca-nos procurar passar aos vindouros uma mensagem. Qual é ela? Será de paz? Há quem diga que os ex-soldados são sempre os mais ardentes pacifistas. Pacifistas pela análise fria e pausada do que sucedeu, mas não medrosos. E, se o futuro perguntar, a nossa resposta será sempre sim ou não, mas, desta vez, convicta e justificada.
Creio que devemos sentir-nos orgulhosos. Passámos por uma prova que, esperemos, não se repetirá tão depressa. E quem sabe? A nossa própria experiência demonstra claramente a margem de incerteza que sempre marca a vida dos povos. Vencemos a prova. Mal ou bem, mas vencemo-la. Não temos hoje nada para provar a ninguém nem podemos aceitar que nos censurem por aquilo que fizemos.
Fizemos uma guerra pobre. Era pobre a nossa logística e os meios operacionais escassos, como se lembram. Faltava muitas vezes o essencial. Tive sob o meu comando um soldado que lhe chamava “
a guerra a petróleo”, por semelhança com os fogareiros da nossa meninice que usavam aquele combustível. Os meios do inimigo, como se recordam, evoluíam a olhos vistos. As guerras ou se perdem ou se ganham. E nós perdemos. Perdemo-la, sim. E depois? Alguém esperava ganhá-la? Ninguém. Nem os que a aprovavam naquele tempo, nem os que hoje, por preconceito, saudosismo ou desonestidade intelectual, afirmam que a poderíamos e deveríamos ter ganho.
Nós perdemos porque fomos lá. E só quem ali viveu sabe o que é ganhar e perder.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 11 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2341: Siga a Marinha que o Exército já lá está (Coronel Pereira da Costa)
Vd. último poste da série de 10 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4664: Blogoterapia (116): Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são (José Martins)