terça-feira, 3 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5199: O Nosso Livro de Visitas (69): António Marquês, ex-Fur Mil da CCAÇ 4810 (Moçambique, 1972/74)

1. Mensagem de António Marquês, ex-Fur Mil Mecânico de Armamento do BCAÇ 4810, Chipera e Tete (Moçambique, 1972/74), com data de 8 de Março de 2009:

Meu caro Luís Graça,

Incompreensivelmente, apenas hoje encontrei o seu blogue "luisgraca e camaradas...". E só hoje por duas razões pouco saudáveis: por um lado, o trabalho (na área dos projetos de engenharia cívil) que houve até há meia dúzia de meses atrás, não me deixava muito tempo disponível e isso servia como desculpa (a tal outra razão pouco saudável) para não me entranhar tanto na NET, onde, verdade se diga, também não sou um ás.

E quem sou eu? Sou o António Marquês, que foi Furriel Miliciano em Chipera, Tete, como Mecânico de Armamento no BCAÇ 4810, entre Outubro de 1972 e Outubro de 1974 (graças ao 25 de Abril, porque já estava decidido que seria até Março de 75).

Como também não quis passar ao lado dessa experiência única na vida de um jovem de então (e para ficar alguma coisa para os filhos e netos - que pouco já vão ligando a isso, não é verdade?) escrevi um diário que está a ser publicado por um jornal local aqui do Seixal (*), que é onde vivo.

Mas antes da publicação deste diário, já houve em 1981 um livro a várias mãos, mas em que aparece apenas na capa o meu nome, o do Josué da Silva (ao tempo redactor no Diário de Lisboa) e o do Carmo Vicente. O livro tem o título de Era uma vez... 3 guerras em África e, para além da introdução do Josué da Silva, tem os testemunhos meu, do Carmo Vicente e mais dez homens, que estiveram nas 3 frentes e, ao tempo, eram meus colegas na H. Parry & Son, em Cacilhas. O livro vem recenseado na relação existente no site Guerra Colonial 1971-1974.

Dito isto, caro Luís Graça, quero agradecer-lhe, a si e aos outros amigos que dão o seu tempo, a disponibilidade para criarem e manterem o vosso blogue, que, apesar de destinado apenas aos ex-combatentes na Guiné (será?), é um veículo absolutamente necessário para manter viva a chama daqueles tempos de camaradagem e mostrar a quem estiver interessado o que foram aqueles anos, de bom e de mau, na vida de milhares de jovens.

Cá por mim e mais uns quantos tudo fazemos para manter viva a chama, realizando desde 1984 uma confraternização anual (que já teve um máximo de 152 presenças - aberto à família, naturalmente - e agora se vai quedando entre as 90 e as 100 pessoas). O mais conhecido do grupo é o nosso comentador de casos policiais Barra da Costa, que foi o Furriel Miliciano Mecânico Auto da CCS do Batalhão.

Renovando mais uma vez o meu agradecimento pelo trabalho ímpar que estão fazendo no vosso blogue, sou

António Marquês


2. Resposta dos Editores

Caro camarada António Marquês

Em primeiro lugar queremos pedir desculpa pela demora na resposta à tua mensagem, que parecendo que não, mereceu a nossa melhor atenção. Aconteceu só que o volume de correspondência no mail pessoal do mentor do Blogue é tal que a tua mensagem ficou por lá perdida. Recuperada, não podia deixar de merecer a nossa resposta.

Estamos a agradecer-te as amáveis e reconfortantes palavras que nos enviaste. Não nos envaidecemos pelo reconhecimento público do nosso trabalho, mas sentimo-nos recompensados pelo nosso esforço e dedicação quando alguém se nos dirige, como tu o fizeste.

O envio regular de textos e fotografias pelos nossos tertulianos, maioritariamente ex-combatentes da Guiné, porque a este teatro de operações o nosso blogue se dedica em exclusividade, obriga-nos a um trabalho que ocupa algumas horas do nosso dia. Fazemos isto com prazer, na medida em que sabemos estar a compor um legado que no futuro alguém há-de tratar para poder refazer este pedaço da História de Portugal.

Caro camarada, desculpa o tratamento por tu, mas é a prática saudável da casa. És mais um camarada que tem a porta da nossa caserna virtual aberta para que sempre que queiras possas intervir.

Em nome dos editores e demais camaradas e amigos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, recebe um abraço.

Pelos editores
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4959: O Nosso Livro de Visitas (68): Ildefonso Alves, ex-combatente em Angola, que nos acompanha em Paris

(*) "Cadernos da Guerra Colonial", que tem vindo a ser publicados no semanário Comércio do Seixal e Sesimbra.

Guiné 63/74 - P5198: Notas de leitura (32): A Marinha em África, Angola, Guiné e Moçambique, de John P. Cann (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2009:

Malta,
Aqui vai a recensão de um livro muito digno. Temos que investigar se ao nível da Força Aérea há investigação deste tipo. Os nossos “pilotos” na tertúlia têm a obrigação de nos apoiar.

A partir da próxima semana irei andar mais mansinho, já estou a meio de um livro delirante que dá pelo nome de “Em nome da Pátria”, de um tenente-coronel chamado Brandão Ferreira que escreve habilidosa e ardilosamente fora do tempo, e até da investigação histórica e política.
Paciência, temos que viver com os ressabiados e atormentados do império, dialogar até ao ilimite e desmascarar as mistificações.

Um abraço do
Mário


A Marinha na Guiné, durante a Guerra Colonial:
Um relato relevante para uma missão não menos relevante


Por Beja Santos

John P. Cann, comandante da Marinha dos Estados Unidos, professor auxiliar da Universidade da Virgínia, membro associado da nossa Academia de Marinha, é um investigador de prestígio com provas dadas nos seus trabalhos dedicados à contra-subversão em África e às operações fluviais da marinha portuguesa na Guerra Colonial. O seu estudo “A Marinha em África, Angola, Guiné e Moçambique, Campanhas Fluviais, 1961 - 1974”, é de uma grande importância e de leitura obrigatória, mesmo tendo uma tradução degradante e uma revisão abaixo de cão pelo que se sugere uma nova edição expurgada de disparates e gralhas que impedem toda a atenção que as aprofundadas investigações do comandante Cann merecem (“A Marinha em África, Angola, Guiné e Moçambique, Campanhas Fluviais, 1961 - 1974”, Prefácio, 2009).

São escusados quaisquer comentários à sua análise sobre a Guerra Fria e o impacto que ela teve nos movimentos de independência em África, trata-se de uma apreciação rigorosa e isenta, é credora da nossa atenção mas somos conhecedores de tais factos. Novidade poderá ser, para muitos de nós a reviravolta naval decorrente das missões da Armada nos diferentes teatros de operações e sobretudo na Guiné. O autor dá conta dos procedimentos adoptados noutras guerras de guerrilhas e a adaptação que se procedeu ao nível da Armada portuguesa. Está lá tudo, desde os navios, aos fuzileiros especiais, à reserva naval, a todos os equipamentos que se usaram em África.

Depois de apresentar as actividades da Marinha em Angola, o estudo centra-se na Guiné, que o comandante Cann apresenta da seguinte maneira: “Dos três teatros de operações, a Guiné era o mais complicado e o mais difícil. Era também o mais importante teatro para a Marinha, porque aqui as suas actividades eram vitais não só a nível táctico como estratégico. A razão era bem simples. Cerca de 80 % de toda a carga e do pessoal dentro deste teatro movimentava-se por mar ou via fluvial. Somente 18 % passava por terra e cerca de 2 % por via aérea. Nos anos finais da guerra, quando o trânsito por estrada se tornou difícil, cerca de 85 % era por via aquática. O transporte através dos rios e braços-mar era também importante para o PAIGC, e por esta razão o policiamento do tráfego fluvial pela Marinha era tão importante para a tarefa de transporte”. Mais adiante, o autor debruça-se sobre a estratégia militar referindo as diferentes aplicações possíveis para o Exército e para a Armada. Porque os conceitos de ambas as armas foram altamente litigiosos durante todo o conflito: a Armada queria aproveitar-se da morfologia da Guiné e imobilizar o inimigo nas diferentes vias fluviais, travando a progressão do PAIGC dissuadindo a movimentação das suas tropas e populações e destruindo a sua logística; o Exército tendia a favorecer a estratégia tradicional de teatro, usando tropas acantonadas e apoiadas por forças de intervenção e de reacção rápidas. O comandante Cann observa que o PAIGC manifestou sempre uma quase cegueira relativamente à dimensão naval, caso se tivesse apetrechado para uma série ofensiva de guerra de minas, teria com facilidade bloqueado os cursos de água, conduzindo o esforço de guerra ao caos.

O empenhamento naval na Guiné aparece minuciosamente descrito neste livro: tipo de embarcações, forças, patrulhamentos, serviços de manutenção, instalações, rotas principais. Destaca-se o esforço de guerra no Sul, já que o PAIGC contava com o apoio da Guiné Conacri, tendo estabelecido quatro bases principais na zona da fronteira Sul (Kadigné, Boké, Kandiafara, Sansalé). Para combater o inimigo as forças portuguesas lançaram uma ofensiva através de operações como a Tridente, golpes de mão no Rio Camexibó, a operação Hitler, as operações “Via Láctea” (esta na área do Cacheu).

O autor dá igualmente um grande destaque à operação “Mar Verde”, sobejamente conhecida de todos nós. Nas conclusões, o comandante Cann procede à avaliação do legado da Marinha nas diferentes frentes da Guerra Colonial, reafirmando que a Marinha se adaptou perfeitamente aos novos cenários e soube reflectir sobre as experiências anteriores de guerra na selva. Recorda igualmente que a Marinha devotou um grande esforço à produção de cartas hidrográficas que iam sendo corrigidas e anotadas a partir da experiência e utilizadas como quadro de referência. Foi este conhecimento de campo de batalha que constituiu a chave da sobrevivência e dos sucessos. São lições que tendem a ser esquecidas por todos, menos pelos veteranos do conflito e pelos historiadores. Ora este legado é relevante não só pelas dimensões militares do conflito vivido como para conhecer a adaptação da Marinha aos novos desafios, actuais e futuros.

Apesar da tradução e revisão deploráveis, estamos face a um livro importantíssimo que convém saudar e recomendar.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5192: Historiografia da presença portuguesa (28): Notícias da Guiné, segunda série (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5183: Notas de leitura (31): Notícias da Pátria e dos que a invocam, em vão ou não (António Matos)

Guiné 63/74 – P5197: Estórias do Fernando Chapouto (Fernando Silvério Chapouto) (12): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – Ataque à Tabanca de Sinchã

1. O nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426, que entre 1965 e 1967, esteve em Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, autorizou-nos a publicar as suas memórias, sendo esta a 12ª fragmento. A série foi iniciada em 29 de Agosto p.p., no poste P4877.

AS MINHAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 1965/67

Ataque à Tabanca de SINCHÃ SUTU
em 24 de Janeiro de 1967

Por volta das 22h00, ouviram-se algumas explosões para os lados de Sare Ganá.

Mobilizou-se o pessoal e arrancamos de imediato para aquelas bandas. Quando chegamos ao cruzamento de Sare Ganá, como tudo estava calmo, elementos locais disseram-nos que os estrondos provinham de Sinchá Sutu.

Seguimos então nessa direcção, por uma pequena subida, a que se seguida uma recta comprida. A nossa viatura rodava a alta velocidade e perto de Sinchá Sutu ouvimos rajadas de metralhadora.

Eu, como habitualmente fazia nestas situações, ia sentado na parte de trás da viatura, com as pernas penduradas, pois tinha-me habituado a saltar em andamento e, até aquele momento, nunca me tinha acontecido nada de mau.

Mas nesse dia avaliei mal a velocidade a que íamos e, a certa altura sem saber como, fui projectado, dei meia volta no ar e caí de cabeça no chão, ficando ali estatelado. A viatura parou e a minha secção correu em meu auxílio. Das palavras que trocamos, só me lembro de me dizerem que a velocidade a que seguíamos era muita!

Foi da maneira que ficamos logo ali todos apeados, e progredimos mato adentro em direcção à tabanca, que se situava perto. Eu seguia na frente, rapidamente, e quando chegamos à tabanca, ainda me lembro de ver uma granada de roquete na minha direcção. Felizmente que ela não detonou, mas caí desmaiado com o impacto.

Ao fim de algum tempo conseguiram reanimar-me e comunicaram com o nosso capitão para Geba, transmitindo-lhe que era preciso uma viatura, para me transportar, porque eu estava ferido. Eu nem me tinha apercebido do meu estado, porque fui atingido na nuca e, ainda quente, não me doía nada. Uns minutos depois é que foram elas (as dores claro) e acabei por reparar que estava todo ensanguentado.

Como a outra viatura foi logo para Bafatá, com um ferido grave da população, o capitão disse, pelo rádio, que ia mandar outra viatura e o 2º. Sargento Silva, para me substituir. Comuniquei que não era necessária efectuar a minha substituição, porque qualquer um dos três 1º. cabos era suficientemente competente para orientar e comandar a secção.

Chegou a viatura e transportaram-me para Geba, onde o furriel enfermeiro me prestou os primeiros socorros, mas foi-me logo dizendo que era necessário eu ir para Bafatá, ao médico, porque eu não aparentava estar bem. Disse-lhe que não ia e fui-me deitar na cama. As dores eram cada vez mais, Apareceu então o Capitão para ver se eu estava melhor, mas como as melhoras não surgiam, mandou chamar um condutor com a sua viatura e disse-me: - Chapouto salte para a viatura, já!

Eu continuava a dizer que não era necessário, mas ele frisou: - Eu quero que vá e… imediatamente!

Lá fui eu, porque as ordens cumprem-se e não se discutem. Cheguei a Bafatá por volta das 03h00, como o médico estava a tratar do ferido grave deitaram-me numa maca, e ali fiquei eu à espera da minha vez. Só que a minha vez nunca mais chegava. Ouvi o médico a dizer (relativamente ao ferido grave): «Tem que ir para BISSAU, têm que tomar as providências necessárias, para ao romper do dia, o enviar com a maior urgência».

Levaram o ferido, e nunca mais o vi. Depois, ninguém me aparecia, nem o médico, nem o enfermeiro…

O tempo nunca mais passava e eu estava ansioso que fossem 06h30. Mal o corneteiro tocou, levantei-me e desenfiei-me pela porta da enfermaria fora, que ficava junto à porta de armas. Não se via ninguém por ali. Saí em frente, para o outro lado da rua, onde estava a caserna dos soldados.

Ali, encontrei dois soldados condutores da minha terra, que já sabiam que eu estava ali ferido. Pedi-lhes logo que não enviassem notícias a meu respeito para casa, pois eu não queria que se soubesse nada por lá. Eles garantiram-me que nada diriam e que eu ficasse descansado.

Sai dali todo torcido, fui ter com o senhor Eduardo Teixeira que era o dono da drogaria ao lado do quartel (irmão do senhor António Teixeira antigo proprietário do restaurante “A Transmontana”), que eram naturais de uma localidade perto da minha terra natal.

Como ainda estava fechado, fui bater à porta da sua moradia e ele abriu-me a porta. Contei-lhe as minhas últimas "aventuras" e ele mandou servir o pequeno-almoço para mais um. O apetite não era muito, mas lá comi qualquer coisa e saímos para a rua, já que estava na hora de ele abrir a porta do seu negócio.

Em frente da casa dele, havia uma oficina mecânica de reparação das viaturas da minha companhia. Aí já sabiam o que me tinha acontecido e disseram-me que andavam a minha procura, alegando que eu tinha desaparecido. Perguntei se havia alguma viatura que fosse para Geba e disseram-me que estava, por ali, o José Rosa com a GMC, a carregar bidões de gasolina.

Passado algum tempo, ele chegou e parou a GMC. Eu saltei para cima dos bidões com um pouco de custo. O Rosa queria que eu fosse à frente, mas disse-lhe que não. O condutor era o mesmo que me tinha transportado de Geba e, por isso, sabia o que se passara comigo.

Arrancou e quando íamos a passar em frente a porta de armas, ouvi o pessoal a dizer: “Ele vai ali!”

Acenei-lhes um adeus...

Quando chegamos a Geba fui-me apresentar. Disseram-me que estava escalado para entrar de Sargento de Dia. O Primeiro-Sargento reparou que eu não estava em boas condições físicas para fazer esse serviço e, assim, fui embora descansando.

Durante o resto do dia as dores continuavam, principalmente no pescoço (sentia-o torcido) e no peito que parecia dilatado. Passou-se esse dia e a noite.

No dia seguinte quando estava a almoçar, o Primeiro-Sargento chega junto de mim e diz: “Chapouto você está de serviço!”

- “Quem eu? Não! Se ontem não estava em condições, hoje também não estou!”

Disse-lhe que ia falar com o capitão e ele ficou a olhar para mim. Fui ao gabinete do capitão e ele perguntou-me se estava melhor. Disse-lhe: “Isto não vai bem, preciso mesmo de ir ao médico!”

Ele mandou logo o estafeta chamar o seu condutor e dois soldados, para me levarem a Bafatá. Levaram-me directo à enfermaria e o médico perguntou-lhe porque é que eu me tinha ido embora.

Expliquei-lhe que me deixaram sozinho durante muito tempo, e se haviam esquecido de mim, ao que ele retorquiu que eu tinha razão.

- Então o que queres agora? – perguntou.

- Acha que posso estar operacional neste estado? – disse eu.

- Nem pensar, – disse o médico –, levas alguns medicamentos para as dores e ficas trinta dias de convalescença.

De regresso a Geba, entreguei o papel da convalescença na secretaria, ao Primeiro-Sargento, que me interrogou: - “Isto é vingança?”

Nem lhe respondi. Dirigi-me ao gabinete do capitão, dando-lhe conhecimento da minha situação e ele mandou-me descansar, que bem precisava.

O tempo foi passando, o descanso era óptimo, comer, beber e dormir. Como o aquartelamento era desviado uns quinhentos metros, só descia do quarto para as refeições e conversar um pouco no bar. Por sorte, neste tempo do meu repouso, não houve “trabalho” para ninguém, em especial, apenas umas patrulhas de rotina às tabancas das redondezas.

(Continua)

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp/Ranger da CCAÇ 1426

Fotos: Fernando Chapouto (2009). Direitos reservados.
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Nota de MR:

Vd. poste anterior desta série, do mesmo autor, em:

Guiné 63/74 - P5196: Carta de despedida e conforto aos pais, do Ten-cor Andrade e Sousa, BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, 1973/74 (Fernando Costa)

1. Mensagem de ontem, enviada pelo novo membro da Nossa Tabanca Grande, Fernando Costa, ex-Fur Mil, Trms, CCS/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, 1973/74) (*):

Amigo Luís Graça,

Aos dias 27 de Fevereiro de 1973, o Comandante do Batalhão de Caçadores 4513, Tenente-Coronel de Infantaria César Emílio Braga de Andrade e Sousa, escreveu para os familiares dos militares que compunham este batalhão, uma carta de conforto e de esperança.

No passado dia 31 de Outubro de 2009, passados portanto mais de 35 anos de eu ter regressado da Guiné, a minha mãe fez-me a entrega da mesma.

Depois de a ler, tomei a liberdade de a partilhar convosco, tendo a consciência que nem todos tiveram este gesto da parte dos vossos comandantes.

Com um abraço de camaradagem

Fernando Costa
Ex-Furriel Miliciano



2. Comentário de L.G.:

Um documento raro e surpreendente: o comandante de batalhão, César Emílio Braga de Andrade e Sousa (que já terá morrido), escreve um carta de despedida aos pais dos seus homens, na véspera do embarque...

Como classificar este documento, que me parece único e quiçá ancrónico ? Uma "carta de conforto e de esperança", como lhe chama o Fernando Costa, cujos pais também receberam um exemplar desta epístola ? Gesto nobre e sincero de um oficial e cavalheiro ? Exemplo da cultura do autoritarismo paternalista do Estado Novo ? Demagogia pura e simples ? Acto de hipocrisia social e de cinismo ? Um português e militar de antanho, usando um estilo epistolar do Séc. XIX ? Um caso excepcional mas bonito que honra as Forças Armadas Portugueses ?...

Ao nosso leitor, é que compete decidir, comentar, opinar... Ao Fernando, o nosso muito obrigado por ter conseguido recuperar este e outros documentos do seu tempo de "último guerreiro do Império"...

O BCAÇ 4513 teve as suas subunidades espalhadas por Buba (1ª CCAÇ), Nhala (2ª CCAÇ) e Aldeia Formosa (CCS e 3 ª CCAÇ), segundo informação do Jaime Ramos... (LG)

[Revisão / fixação de texto / transcrição / edição: L.G.]




Regimento de Infantara nº 15. Tomar, 27 de Fevereiro de 1973.




Exmo Senhor,


Desejaria ter escrito por meu punho e individualmente aos familiares mais próximos, e muito particularmente aos Pais, de tantos quantos comigo vão partir para o Ultramar constituindo o Batalhão de Caçadores 4513. Tal foi materialmente impossível, forçando-me a recorrer ao único processo viável, pois admiti e contei que a vossa benevolência lhes permitiria compreender e desculpar a forma como concretizo este intento.

É meu único e firme propósito, dada a vossa qualidade de Pais, tentar minorar-lhes o desgosto da próxima separação do vosso filho, procurando com todos os meios ao meu alcance descansá-los em tudo e em tanto quanto meus préstimos possam alcançar e ser-lhes útil. Apraza a Deus que seja capaz de encontrar as palavras necessárias e que a minha consciência me exige.




Primeiro que tudo e a partir deste preciso instante, podem ficar certos que neste Batalhão tudo se fará para que o vosso filho se sinta dentro dele como numa sã e autêntica família, que a todo o custo procurará substituir - os seus próprios PAIS - não com uma amizade tão grande por tal ser impossível, que não permitirá poupar-nos seja a que esforços forem, para que dentro de tudo que esteja ao nosso alcance, nada lhe falte, levando-o a sentir que na sua Unidade tem sempre quem lhe queira com toda a alma e coração.
O vosso filho, e meu Soldado, será a meus olhos alguém que me diz muito e a quem oferecerei com todo o entusiasmo o melhor que seja capaz de encontrar em mim, incluindo, claro, a minha amizade, a que já tantos direitos tem. Isto é algo que só nós, SOLDADOS de Portugal, sentimos e compreendemos, mas admito que alguém na vossa família lho possa provar melhor do que eu, pois certamente que, entre vós, alguém passou pelas fileiras das Forças Armadas e sentiu ou se apercebeu do que acabo de afirmar.

Outro ponto que desejo focar, é que os Senhores não necessitarão seja de quem quem for para saberem ou para que melhor se cuide do vosso filho, pois estarei sempre a atendê-los e servi-los, logo que se me dirijam. Ele próprio lhes dirá como escrever-me para o Ultramar onde ficarei à vossa inteira e absoluta disposição.




Aproveito a oportunidade, apesar de certamente ser do vosso pleno conhecimento, de lhes lembrar que, na maioria esmagadora dos casos, o homem aos 20 anos conserva ainda muito de criança que há pouco deixou de ser e precisamente por isso carece inúmeras vezes do conselho experiente e amigo de seus PAIS, para que não proceda de forma que haja, ou possa ter que ser punido.
Penhoradamente solicito a vossa valiosíssima ajuda neste campo pois ele poderá evitar, a todos nós, sérios desgostos e contrariedades. Não tenho dúvidas que se contar com ajuda o Batalhão voltará sem que tenha sido necessário aplicar o Regulamento de Disciplina Militar, o que sem dúvida nos dará imensa alegria e, seja-me permitido, orgulho, pelo menos no que me diz respeito.

Para terminar desejo ainda informá-los que todos os Senhores Oficiais e Sargentos que comigo orientarão a Unidade e suas Companhias estão animados dos mesmos propósitos, o que me parece que melhor lhes garantirá a certeza - nomeadamente às MÃES com o inconfundível e entusiástico amor - que o vosso filho encontrará sempre à sua volta um grupo de graduados que muito o estimam, e que tudo vão fazer para o devolver ao vosso lar como um homem de carácter, são e glorioso, e um SOLDADO que soube servir PORTUGAL, honrando o nome que usa e o dos Pais que tão bem o souberam criar e educar.

Para vosso e meu descanso gostaria que junto de vós residisse alguém que tivesse pertencido à Companhia de Caçadores 454 - ANGOLA - ou BCAÇ 2836 - MOÇAMBIQUE- , pois seriam esses filhos de outros pais, que melhor os poderiam descansar e explicar o que desejei ser capaz de lhes transmitir se a tanto me tivessem ajudado as palavras que me ocorreram. Como receio não ter essa felicidade, empenho perante vós a palavra do Soldado que desejo e procuro ser, a de português que sempre me senti, e a do PAI que também sou, que vosso filho terá em meu coração um lugar quase tão grande como se fosse da minha própria família.

Que aos Senhores e ao vosso filho tudo corra bem e que dentro em pouco tempo seja ele próprio que junto de vós comprove tanto quanto acabo de vos afirmar.

Por Portugal, para todos nós e especialmente para vós as maiores felicidades.






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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

25 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5160: Tabanca Grande (182): Fernando Silva da Costa, ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, 1973/74)

2 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5193: Memória dos lugares (50): Aldeia Formosa, BCAÇ 4513: A última visita do Gen Bettencourt Rodrigues (Fernando Costa)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5195: Histórias de heroísmo (2): O meu herói de... Bissau (Alberto Branquinho)

Lisboa > Biblioteca-Museu República e Resistência / Espaço Grandella > 2.º Ciclo de Conferências Memórias Literárias da Guerra Colonial > 4 de Junho de 2009 > Alberto Branquinho no acto de apresentação do seu livro de contos "Cambança - Guiné, Morte e vida em maré baixa"


O meu herói de… Bissau
Por Alberto Branquinho*

Durante a primeira vez que passei por Bissau antes do regresso (quatro foram idas e regressos de férias), entrei, à hora do almoço, no bar da Messe de Santa Luzia. Perto da porta tropecei em dois ou três alferes milicianos, sentados à volta de uma mesa.

Conheci-os e reconheceram-me dos tempos de cadete, em Mafra. Pertenciam à fauna instalada em Bissau. Bebericavam o whisky, digestivo, e o café. Talvez pela minha tez cor-de-azeitona, talvez pelo aspecto outsider, concluíram que eu não era residente naquela freguesia. Chamaram-me:

- Olá, herói. Ó herói, anda cá. Fala à gente.

Cumprimentei-os e sentei-me na cadeira disponível.

- Então, quantos gajos já apanhaste à mão?

Seguiram-se outras perguntas de igual teor, entre gargalhadas. Sentia-me fortemente agredido pelo sarcasmo cultivado nas Reps de Bissau, mas não conseguia fazer fogo de resposta. Se respondesse, sairia palavrão grosso. Fiquei calado e sentia-me cada vez mais fora do baralho.

(- Saio?
- Fico aqui?
- Que faço?
- Não. Não vou bater em retirada).

Entretanto, fiz o reconhecimento do local, olhando em volta – oficiais médios, superiores, algumas senhoras… O terreno não me era favorável.

Entrou, então, outro alferes, de outra Companhia, da minha zona de operações, mas velhinho, em fim de comissão.

- Olha, outro herói.

- Ó herói, fala à gente.

Ele aproximou-se, alheio ao sarcasmo circundante. Olhou para mim e deve ter notado o meu incómodo.

- Já almoçaste? Não? Então vem daí e caga para estes heróis que estão a acabar o café e o whisky para regressarem à guerra santa da caneta, nas matas do ar condicionado.

Sem dizer mais, afastou-se.

Acompanhei-o para o restaurante, com a sensação de que seguia os passos de um HERÓI, que me arrancara das mãos do inimigo.

Alberto Branquinho
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Notas de CV:

(*) Alberto Branquinho, natural de Vila Nova de Foz Côa, residente em Lisboa, jurista de formação, reformado da TAP, (ex-Alferes Miliciano de Operações Especiais da CART 1689 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) é o autor do livro de contos "Cambança - Guiné, Morte e vida em maré baixa"

Vd. Primeiro poste da série de 25 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5157: Histórias de heroísmo (1): Sold nº 939 Paulo: Olha os cabrões, já me f... a arma! (José Colaço)

Guiné 63/74 - P5194: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (2): Mofunado ou não na Guiné de 68

1. Segunda parte das Divagações de Reformado de autoria de Pacífico dos Reis, Coronel de Cavalaria Reformado que comandou a CCAÇ 5, Gatos Pretos, Unidade a que pertenceu o nosso camarada José Martins, ex-Fur Mil, que nos enviou estes textos em 23 de Outubro de 2009.


2 - DIVAGAÇÕES DE REFORMADO

Mofunado ou não na Guiné de 68
Por Pacífico dos Reis
Coronel de Cavalaria Reformado

Andando a navegar na televisão encontrei, num dos canais a que temos direito, umas entrevistas nas quais era perguntado qual o maior desejo que as pessoas tinham. No meio das respostas, apareceu um menino borbulhento que declarou, em tom enfático era que a Espanha tomasse conta de Portugal.
Nessa altura, D. Afonso Henriques ter-se-á revolvido no túmulo e os conjurados de 1640 terão tido uma apoplexia ectoplasmática. No entanto, tal desejo, terá feito a felicidade de alguns políticos que ainda se lembram da União Ibérica programática, conjuntamente com a extinção do Colégio Militar, Pupilos do Exército e Instituto de Odivelas. Vinha tudo no mesmo programa político, foi para dentro da gaveta, sempre pronto a sair e ser utilizado.

Na continuidade do divertimento de reformado, a TV brindou-nos com a actuação da equipa de todos nós. O resultado fez-me pensar na minha passagem pela Guiné em 68. Quando um Capitão chegava a uma Companhia de Naturais, como foi o meu caso, começava a ser escrutinado pelos militares. Estes desejavam saber se o capitão era mofunado (azarado) ou não. Se não fosse seguiam-no para todo o lado e tinham o dobro da vontade de vencer. Se fosse mofunado na primeira ocasião viravam-lhe as costas. Assim me parece ser o seleccionador nacional. O rapaz tem mesmo azar. Esperemos que arranjem alguém menos competente, mas com mais sorte.

Quando cheguei à minha Companhia, a CCaç 5 os “Gatos Pretos”, fui recebido por um Capitão que, posteriormente vim a saber, era considerado mofunado. Ele não tinha culpa pois tinha a Companhia toda desmembrada. Um Pelotão em Cabuca, outro no Cheche, outro em Canjadude e o Comando em Nova Lamego (Gabu). O Comandante somente geria a crise e via passar os dias. As ordens que levava era concentrar a Companhia em Canjadude. Assim se fez, tendo no início o apoio da CArt 2338, uma vez que se mantinham na mesma posição os Pelotões de Cabuca e do Cheche, até se fazer a evacuação de Madina.

As palavras e as recordações são como as cerejas. Saltam todas ligadas umas às outras.
Os dias passavam-se em Operações contínuas para preparação da Companhia para ficar a responder sozinha pela defesa do Corubal. Já se sentiam os fumos da evacuação de Madina do Boé.
Logo que tal se passasse, Canjadude ficaria na linha da frente dos ataques terroristas. Assim estavam sempre dois Pelotões fora do aquartelamento em Operações, a cobrir a área que tínhamos de controlar. No quartel fazíamos prelecções como forma de levantar o moral. No meio delas recordo-me de lhes frisar que nem G3 precisavam, “Nós agarramos os turras à mão”. Bravata pura, mas que iria resultar futuramente.

A primeira vez que recebi o rótulo de não mofunado está ligado directamente com a evacuação de Madina, que recentemente apareceu descrita na RTP. Tornava-se necessário levar para o Cheche, todos os anos, duas pirogas enormes, para fazer a cambança do Corubal e assim reabastecer Madina. Este ano, no entanto, as pirogas iriam servir para a evacuação e não para o reabastecimento. A nossa missão, da CCaç 5 com o apoio da CArt 2338, seria realizar a coluna para transportar as pirogas e reabastecimentos para o Cheche.

Na noite anterior informei o meu pessoal daquilo que se pretendia executar e qual o desenrolar da acção. Era minha intenção montar emboscadas, durante o deslocamento, na zona chamada de Minas Gerais onde geralmente os turras montavam minas e emboscadas para, no regresso do Cheche, flagelarem a coluna. Em boa hora se fez a tal acção, pois um bigrupo inimigo começou a plantar minas mesmo em frente de um dos nossos Pelotões emboscados e foi completamente varrido pelo fogo.

No regresso, mais descansados, ainda tivemos tempo de, utilizando os meios ao nosso alcance, salvar uma auto-metralhadora Fox do Esquadrão de Bafatá que estava abandonada inoperacional devido a rebentamento de uma mina. Foi muito gratificante para os “Gatos Pretos” saberem que, dois meses depois, a montada estava de novo a circular nas estradas da Guiné.
Claro que este ronco fez-me entrar no estatuto de não mafunado e a partir daí foi ouro sobre azul.

Já muito depois da evacuação da Madina, na qual os “Gatos Pretos” também foram parte integrante, recebemos a missão de patrulhar a margem direita do rio Corubal, pois havia uma noticia, pseudamente A-1 que referia a existência de grutas onde se escondiam os turras. Comecei a indagar, cautelosamente, junto da milícia e população onde estariam essas grutas tendo sempre como resposta que não havia grutas na nossa zona de acção. Bem, assim seria, mas noblesse oblige e lá fomos patrulhar a zona. Estávamos nós quase a chegar ao local onde supostamente estavam referenciadas as grutas. Quando se ouviu o barulho inconfundível dum heli.

Rapidamente montamos segurança e segundos depois aterrou o aparelho. Dele saíram o Comandante-chefe General Spínola e o seu Ajudante de Campo Capitão Bruno. Claro que, para o pessoal da Companhia, foi um revigorar anímico receber o Homem Grande no meio do mato. O pior veio a seguir quando o heli regressou a Bissau. Continuamos a Operação e, cerca de meia hora depois, demos de caras com uma força inimiga que, julgámos nós, vinha ver o que se passava alertada pelo barulho do helicóptero. Não sei como foi, mas subitamente só se ouviu um berro uníssono “Gato Preto agarra à mão!” e toda a Companhia galopou em direcção ao turras. Claro que estes só pararam quando se sentiram em segurança, tendo até largado armas e material na fuga talvez para irem mais leves. Foi neste momento que interiorizei que as palestras e instrução ministradas tinham resultado, como também era a afirmação definitiva que o comandante não era mofunado.

Para finalizar, e para apoiar o que antes está referido, não resisto a contar que num patrulhamento, ao deslocarmo-nos num trilho impossível de rodear, indo logo a seguir ao homem da frente, reparei que no chão estavam umas caixas de madeira abertas. Concentrando melhor a vista reparei que eram minas anti pessoal russas. Tinham sido retiradas do terreno por um bando de macacos cão. Ainda hoje agradeço aos benditos macacos o serviço de desminagem.
Nós, os Africanos, parafraseando um dito em voga em alguns painéis propagandísticos actuais, sofremos bastante, mas deixamos o coração e todos os nossos sentidos inseridos nas extensas plagas da Mãe Africa, naquelas terras imensas que nos dão tanta saudade e relembramos com amor.

(O texto também foi publicado na revista ASMIR de Mai/Jun 09)

Algures na Zona do Burmeleu (Sul de Canjadude)
General Spínola ser cumprimentado pelo Capitão Pacífico dos Reis
Foto José Martins


Cap Pacífico dos Reis, Fur Mil José Martins e Fur Mil Martins (CART 2338)

Canjadude – Material capturado ao IN
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Nota de CV:

Vd. o primeiro poste da série de 1 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5189: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis)(1): Ida para a Guiné (José Martins)

Guiné 63/74 - P5193: Memória dos lugares (50): Aldeia Formosa, BCAÇ 4513: A última visita do Gen Bettencourt Rodrigues (Fernando Costa)

Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > s/d [1973?] > BCAC 4513 > A última visita do Com-Chefe e Governador Geral Bettencourt Rodrigues (de costas, de camuflado, à direita, recebendo honras militares)

Foto: © Fernando Costa (2009). Direitos reservados


1. Mensagem do Fernando Costa, ex-Fur Mil Trms, CCS/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Março de 1973/Setembro de 1974) (*):

Caros amigos,

Volto ao vosso contacto para enviar uma foto onde aparece o Cmdt das Forças Armadas da Guiné, General Bettencourt Rodrigues (**), naquela que foi a última visita a Aldeia Formosa. Os militares que estão a fazer a guarda de honra, são do BCaç 4513. Esta foto, se assim o entenderem, pode ser incluída com as que se encontram no poste P5160 (***).

Um forte abraço, Ex-Furriel Mil Fernando Costa

2. Comentário de L.G.:

Ligou-me esta noite o Fernando, e tivemos uma longa conversa ao telefone. É um homem das Arábias, o novo membro, alfacinha, da nossa Tabanca Grande. Imaginem que ele, para além das chefe das transmissões em Aldeia Formosa (na ausência do Alferes da CCS que ficou no bem-bom de Bissau, a tomar conta das antenas das telecomunicações...), foi um homem dos sete ofícios... E sobretudo foi músico, chegou a acompanhar a Cilinha, que tinha a mania que sabia cantar o fado, nas visiats aos quartéis do sul... Pedia ter ficado em Bissau, ligado à Ra´+dio, ams não ficou pior cuasa do Alferes.

O Fernando Carvalhinho, um homem do fado, foi soldado, também de transmissões, na CCS do BCAÇ 4513... São muito amigos e o Fernando tem um excelente álbum fotográfico da Guiné. Eles ainda são do tempo de Spínola, que visitou duas vezes Aldeia Formosa. Numa delas, o Caco Baldé veio expressamente para dar uma porrada num 1º cabo de uma das companhias do Batalhão... Com o pessoal formado e alinhado na parada, rapou de um papel e chamou o cabo. Quando este compareceu perante o velho general, arrancou-lhe as divisas e deu-lhe dois pares de estalos...

O Bettencourt terá ido, uma vez, no fim de 1973 ou princípio de 1974... Tiha lá um sobrinho, madeirense. O Fernando já não se lembra do Cherno Rachide Djaló, que deve ter morrido antes da CSS do BCAÇ 4513 ter chegado Aldeia Formosa, em Março de 1973 (uma figura respeitada do Islão, de etnia futa-fula, já aqui evocado diversas veses, por mim, pelo Manuel Amaro, pelo Torcato Mendonça, e de quem já se disse tanta coisa, a de que inclusivamente teria sido um 'agente duplo', jogando com um pau de dois bicos...). O Fermando lembra-se, sim, de uma filha e eventualmente de um filho do grande marabú, que tinham uma loja na tabanca... A filha, que privada muito com a malta da tropa, terá já morrido, de doença prolongada, em Espanha.

Quanto à entrega do quartel ao PAIGC, em meados de Agosto, o Fernando tem muitas histórias - e algumas bem divertidas! - para nos contar...

O Fernando, que se reformou como bancário do BCP (pertenceu ao núcleo dos 100 primeiros colaboradores, e privou com o Jardim Gonçalves), conhece meio mundo (além da Europa, a África, a Austrália...). Antes de ir para a tropa, aos 17 anos, tocava numa orquestar ligeira em Moçambique, tendo acompanhado a Amália. Foi, naturalmente, um homem da noite, aqui, em Lisboa e em África. Em Bissau, frequentavam o Chez Toi onde chegou a encontrar miúdas, suas conheidas, de Lisboa, que eram contratadas para uma temporada... Afinal, não foram só os homens a fazer comissões de serviço em África... Foi também árbitro e dirigente federativo, a nível do futebol de salão ou Futsal... Tem um filho cineasta, que é também professor na Lusófona, logo colega do nosso Jorge Cabral.

Mas eu não vou adiantar mais (in)confidências... Percebo que ele goste mais de falar do que escrever, mas já se comprometeu a mandar mais fotos e mais histórias dos últimos tempos da guerra da Guiné... Boa noite, camarada Fernando, sou um prazer conhecer-te e ouvir-te ao telefone. Fico para já à espera de duas coisas que e prometeste: (i) fotografia (digitalizada) da farda nº 2, com botões dourados, que sacaste a um guerrilheiro do PAIGC em Agosto de 1974; (ii) e a cópia da carta que o teu tenente-coronal (Sacadura qualquer coisa) mandou aos pais da rapaziada, antes oara partida para a guerra, a explicar que ficava a tomar conta deles todos e que iria fazer tudo para os trazer de volta, sãos e salvos (!)... (Olha, acho isto bonito!)...

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Notas de L.G.:

(*) Ultimo poste da série Memória dos Lugares > 17 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5119: Memória dos lugares (49): Xime, Madina Mandinga, Bafatá e Nova Lamego- (Alfredo Dinis)

(**) GENERAL JOSÉ MANUEL BETTENCOURT RODRIGUES:

(i) Nasceu no Funchal em 5 de Junho de 1918;

(ii) Frequentou o Liceu de Pedro Nunes, em Lisboa.

(iii) Frequentou os preparatórios militares na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa;

(iv) Foi admitido ao Curso de Infantaria da Escola do Exército que terminou em 1939, como primeiro classificado;

(v) Concluiu o Curso de Estado-Maior com a classificação de Distinto em 1951;

(vi) 17 anos mais tarde, após a frequência do Curso de Altos Comandos, no qual teve a classificação de Muito Apto, é promovido a Brigadeiro;

(vii) Em 1972 é General.

(viii) Em 21 de Setembro de 1973 tomou posse como Novo Governador e Comandante-Chefe do CTIG, nomeado em substituição do carismático General Spínola (que cessara funções a 6 de Agosto).

(ix) Foi preso, no 26 de Abril de 1974, na Amura, pelos seus subordinados que faziam parte do MFA:

"(...) no dia 26 de Abril, onze oficiais dirigiram-se ao Gabinete do General Comandante e exigiram a sua demissão e o regresso a Lisboa. Foi um acto pacífico, civilizado, mas dramático. Com o General vieram também alguns oficiais que se lhe solidarizaram, nomeadamente o Brigadeiro Leitão Marques que o MFA julgava poder contar para o substituir".

Eis a lista dos oficiais revoltosos: Ten Cor Mateus da Silva, Eng Trms; Ten Cor Maia e Costa, Eng; Maj Folques, Cmd; Maj Mensurado, Pára; Cap Simões da Silva, Art; Cap Sales Golias, Eng Trms; Cap Matos Gomes, Cmd; Cap Batista da Silva, Cmd; Cap Saiegh, Cmd (Africano), Cap Ten Pessoa Brandão, Armada; Cap mil José Manuel Barroso.


Sobre este episódio escreveu Pezarat Correia:

(...) "Começo por dizer que tenho consideração pelo general Bettencourt Rodrigues, apesar do abismo ideológico que nos separa. Espero ainda escrever a explicar porquê. Evidentemente que teria gostado que ele, em 25 de Abril de 1974, tivesse aderido, mesmo que não ao MFA, pelo menos à JSN. Mas, como diz o Matos Gomes no comentário anterior, não lhe era possível, porque a rede política do Estado Novo o tinha apanhado. Mas tenho a certeza, até porque já falei sobre isto com muitos camaradas do MFA da Guiné, que a dignidade com que o Golias aqui se lhe refere, está na linha da dignidade com que o trataram na Guiné" Comentário por Pezarat Correia em 2007-10-18 10:12:04. Blogue Avenida da Liberdade

(x) Por despacho da Junta de Salvação Nacional, passou à situação de Reserva em 14 de Maio de 1974.

(xi) Outras das suas principais missões e colocações: Professor e Director dos Cursos de Estado-Maior; Chefe de Estado -Maior do Quartel-General da Região Militar de Angola; Comandante da Zona Militar Leste de Angola... Foi também Comandante do Regimento de Artilharia 1.

(xii) Exerceu, ainda, as funções de Adido Militar e Aeronáutico junto da Embaixada de Portugal em Londres e de Ministro do Exército (1968/1970). Foi nomeado para o Centro de Comando e Estado-Maior do Exército Americano, no Com-mand and General Staff College Fort Leavenworth, Kansas (1953).

(xiii) Condecorações: Medalha de Ouro de Valor Militar com palma; Medalha de Ouro de Serviços Distintos com palma e Grã-Cruz da Medalha de Mérito Militar.

(xiv) É co-autor, juntamente com os generais J. da Luz Cunha, Kaúlza de Arriaga e Silvino Silvério Marques, do livro de depoimentos África, Vitória Traída (Intervenção, 1977).

Vd. Também o sítio Guerra Colonial > Protagonistas > Bettencourt Rodrigues

(***) Vd. 25 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5160: Tabanca Grande (182): Fernando Silva da Costa, ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, 1973/74)

domingo, 1 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5192: Historiografia da presença portuguesa em África (28): Notícias da Guiné, segunda série (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2009:

Malta,
Acabo hoje a recensão sobre o Notícias da Guiné.
Amanhã volto ao vosso convívio por causa do livro “A Marinha em África”.

Um abraço do
Mário


Notícias da Guiné, segunda série
Beja Santos

O órgão propagandístico do Governador e Comandante-chefe da Guiné mudou de formato em 3 de Novembro de 1968, tinha-se a ilusão de um jornal, era editado pela Imprensa Nacional da Guiné, secção do Boletim Oficial, para que não houvesse quaisquer equívocos quanto aos conteúdos.

António de Spínola está sempre na primeira página, movimenta-se pela Província, umas vezes como militar outra como político, entra fardado no hospital civil, veste à paisana numa conferência sobre “A Questão de Bolama” no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Mesmo quando vem à metrópole aparece a conversar com Marcelo Caetano e ministros. Aliás, a visita de Caetano, Silva Cunha ou Pereira Crespo mereceram o maior destaque possível. A substância, no entanto, não conheceu grandes alterações, relativamente à primeira série. O director do jornal devia ser um obcecado pela prevenção rodoviária: todo e qualquer desastre de viação eram alvo de reparo da maior moralidade: as fotografias eram horríveis, tudo desconjuntado e os feridos em primeiro plano, ali ficava o solene aviso. A prisão de larápios mostrava os mesmos depois da captura e produto do roubo. O futebol local e nacional tinha pelo menos uma página por edição, Benfica e Sporting centravam as atenções. Houve um dia em que o jornal nos deu a saber que o Raul Solnado aderira ao Belenenses.

A necrologia, os comunicados das Forças Armadas, a vida social, eram uma constante. Por muito misterioso que pareça, desapareceram os anúncios dos filmes exibidos no cinema UDIB. Havia heróis que passavam de número em número: António Mourão, António Calvário, Madalena Iglésias, Eusébio, Joaquim Agostinho, Simões, Duo Ouro Negro, até vedetas da revista como Humberto Madeira. Também a publicidade conheceu mudanças. Chegara a hora das águas de mesas francesas (Vichy, Perrier e Volvic), não bastava bebê-las no mato, militares e civis tinham que saber da sua existência pelos jornais.

O último exemplar que encontrei data de 22 de Março de 1970, não sei se o jornal faliu ou se faltaram verbas para manter as revoadas de propaganda sobre os feitos de Spínola. É facto que de vez em quando se noticiava a chegada e partida de contingentes militares, mas só Spínola e Pedro Cardoso é que eram mediáticos.

No dia 15 de Fevereiro de 1970 teve lugar a cerimónia, em Bissau, da apresentação da Primeira Companhia de Comandos Africana, junto a imagem por razões que me são caras: aparece a fotografia do Zacarias Saiegh, foi meu furriel, será fuzilado em Novembro de 1977. Na mesma imagem podemos ver o tenente João Januário Lopes que aparecerá na Operação Mar Verde, entregar-se-á em Conacri às autoridades de Sekou Touré, será fuzilado com os seus soldados. Junto igualmente uma imagem de desodorizante Lander que hoje seria proibida por atentatória às regras de higiene...

Seria bom que alguém que tivesse números do Notícias da Guiné posteriores a 22 de Março de 1970 nos comunicasse o facto.




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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5170: Historiografia da presença portuguesa (27): Lembram-se do Notícias da Guiné? (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5191: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (22): Teixeira Pinto, férias à vista

1. Mensagem de Luís Faria, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 28 de Outubro de 2009:

Amigo Vinhal
Mais uma passagem de Viagem… despoletada pela publicação da mensagem de anos ao Fontinha.

Um abraço e tudo de bom
Luís Faria


Teixeira Pinto - Férias à vista

Nos primeiros dias de estadia nestas novas paragens, tentei aperceber-me das características da povoação e das suas gentes, cirandando e observando comportamentos, tendo quase sempre como companheiras a minha faca de mato e a Walter requisitada e que repousava no bolso interior do camuflado.

A meu ver, a cidade era diferente, bem melhor planificada e maior do que Bula. Estendia-se ao longo de uma avenida principal recta e de duas vias no sentido SE/NW, alargando-se essencialmente para Norte e para Leste onde abraçava os inícios das estradas para Cacheu e Pelundo, respectivamente. Para Sul e Sudeste (??), até ao rio.

Se bem recordo, a avenida que se iniciava numa espécie de rotunda e terminava nas proximidades do aquartelamento, era ladeada por vivendas térreas, com os seus alpendres espaçosos que, permitindo abrigo da canícula e dos dilúvios, eram óptimos para, esparramados numa chaise longue, se fumar uma apetecida e bela cigarrada, acompanhada de uma boa cervejola fresca a entremear um petisquito, enquanto se apreciavam os movimentos bajudeiros, quando aconteciam.

Lateral e paralelamente havia mais, salvo erro, duas outras ruas que se ligavam à referida avenida por perpendiculares. Numa destas acabamos por alugar uma vivenda, espaçosa e também com um belo alpendre, onde e como já referi, se vieram a passar muitos bons momentos de confraternização, camaradagem… e não só!

Teixeira Pinto > Avenida Principal

Foto e legenda: © Luís Faria (2009). Direitos reservados


Em termos operacionais e nesses primeiros dias, fazíamos incursões ofensivas nas matas do lado esquerdo da estrada, no sentido Teixeira Pinto/Cacheu e umas seguranças à estrada em construção.

A nossa primeira época das chuvas tinha chegado e com ela aproximava-se o 6 Junho de 1970, o meu tão ansiado dia F, início das minhas também primeiras férias.
Tudo estava a correr com normalidade e sem problemas de maior no plano operacional.
A carteira estava recheada já que a dívida do jogo em Binar - que me pagou a viagem de ida e volta à Metrópole - já me tinha sido liquidada, como combinado. Homem de palavra!
A vida era bela!! Muito em breve estaria longe, noutras paragens em ambientes bem mais apetecíveis!

Estou no quartel, decerto com o pensamento longe, noutras latitudes. No dia seguinte irei de DO para Bissau, onde apanharei o voo da TAP para Lisboa.

Mas... não há bela sem senão!

O Capitão Mamede chama-nos, ao Fontinha e a mim, e comunica-nos que temos uma missão a cumprir: rebentar com uma série de munições antigas, depositadas para o efeito numa cratera aberta dentro do perímetro, lá para as bandas da bolanha !!!!(*)

Mesmo que eu fosse um UiUi não uiuivava com certeza, já que os apêndices pendulares me caíram ao chão, sem sequer ter sido necessário haver estacas ou saltar de um banco (como fez o desbragado sexual que foi ao médico mostrar as suas vergonhas, queixando-se com dores e a quem o médico disse olhando aquela lástima apodrecida:

- Não se preocupe… resolve-se já o problema e nunca mais vai ter dores. Suba para aquele banco… salte para o chão… ´tá ver, está resolvido… caiu-lhe tudo.

Na certa devo ter manifestado ao Capitão o meu desagrado, lembrando-lhe ir no dia seguinte de férias e tal e tal… A lengalenga deve ter sido comovente, mas não colheu!
E lá fomos, o Fontinha e eu, ver o petisco que nos tinha calhado na sorte.

Chegados à cratera… os ditos apêndices que davam azo aos uiuis voltaram ao lugar e ficaram… negros!

A realidade estava encarada de frente… tínhamos à vista um monte de quilos de explosivos velhos, granadas de vários tipos com e sem espoletas, minas… enfim, um petisco bem servido, muito variado e quente, muito quente e que podia surpreender!!

Com muita serenidade, havia que meter cabeça e mãos à obra e enfrentá-la!
Como em todas as competições, havia três prémios em disputa nesta prova:

1.º - Ir de Férias ao Puto e gozá-las;
2.º - Ir de férias ao Puto… sem as gozar e criando–nos chatices e a terceiros;
3.º - Ir de férias de vez e em Paz, sem destino definido.

Claro que ambos queríamos vivamente alcançar o primeiro prémio e para isso tínhamos que, progredir com cautela e cabeça fria, de maneira a chegarmos à meta exactamente ao mesmo tempo.
Assim foi, conseguimos! Ganhámos e a prova disso é estar agora a azucrinar-vos com este escrito e o Fontinha a vencer mais um ano hoje, 28/10/09. Como o conseguimos será explicado numa outra ocasião.

Dia F, a Dornier rasga os céus, levando-me nas suas asas através de poços de ar e bela paisagem nunca antes por mim avistada.

Os pipelines no deserto do Saara (?) são visíveis numa grande extensão…continuo a olhar pela janela do Boeing
Lisboa está à vista.

Um abraço a todos
Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5163: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (21): A CCAÇ 2791 em Teixeira Pinto - CAOP 1

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLX: À sexta-feira, dia 13, o melhor era ficar na cama (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P5190: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (14): O Comando de Agrupamento (II Parte)

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 28 de Outubro de 2009:

Caro Carlos:
Noutra altura e não por aqui, te mandarei um escrito, que te devo aliás. Por aqui, aproveito para referir que acusei com agrado as palavras do Hélder Valério.

Desta vez aí vai a estória O Comando de Agrupamento – 2.ª parte a integrar, se assim o entenderes, na série A Guerra Vista de Bafatá.

Um abraço para cada um.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ
14 – O Comando de Agrupamento – 2.ª parte
Por Fernando Gouveia

Na 1.ª parte desta estória falei de todo o pessoal do Comando de Agrupamento, à excepção dos Majores. Esta 2.ª parte é-lhes dedicada, como prometido.

Ainda a propósito da caça recordo que ao chegar ao Agrupamento, encontrei apenas um Major, o Major Lameiras, óptima pessoa com quem se podia conversar. Devo a ele ter-me emprestado uma Flaubert de 9mm, de cartuchos, com que fui caçando até vir de férias e levar uma caçadeira a sério.

Fins de 1968. Local junto ao nosso Bar onde tive muitas conversas com o Major Lameiras. Ainda não tinha chegado o Major que mandava pintar tudo de cor-de- rosa velho. Todos os edifícios eram brancos.

Outro Major bastante normal esteve na Secção de Operações muitos meses, a trabalhar na minha sala. Reorganizar todos os arquivos foi a única coisa que fez e bem. O Coronel Felgas não lhe dava espaço.

Por lá, a cumprir 15 dias de prisão, passou um Major que estava a comandar um Destacamento na zona de Nova Lamego, onde era costume o pessoal sair para a tabanca próxima, não pela Porta de Armas, mas por um buraco na rede de arame farpado. Tendo avisado várias vezes, sem sucesso, que não queria tal procedimento, mandou, sem aviso prévio, armadilhar a tal passagem. Resultado: um furriel ficou sem uma perna. Só quinze dias?

O Major Curado não era má pessoa mas talvez por estar muito apanhado pelo clima não podia ver ninguém ao pé dele maltratar um animal nem que fosse um verme rastejante. Ficava muito triste e apelidava o verme de pequeno pagãozito. Outra coisa que o definia era ir a despacho com o Comandante levando numa mão os processos e noutra um macaquinho, mascote do quartel. Considero que era um acto de alguma coragem face ao austero Coronel Felgas

1969. O macaquinho que o Major Curado levava quando ia a despacho com o Coronel Felgas. Note-se que o Major do cor-de-rosa velho já tinha chegado

Passou por lá, durante alguns meses, um Major que, sóbrio, era óptima companhia para conversar, dado que era bastante culto. Porém, todas as semanas apanhava uma bebedeira de caixão à cova. Já se sabia, a coisa repetia-se sempre da mesma maneira. Quando não dormia no quartel, no dia seguinte, pela manhã, lá aparecia uma carrinha civil de caixa aberta, a levar, na dita caixa, o Senhor Major que tinha sido encontrado inconsciente na berma da estrada de Bambadinca, para os lados do Bataclã.

O mais exótico de todos foi um da Secção de Pessoal e Material. Além de outras manias que a seguir enumero, uma prevalecia: Mandava pintar tudo de cor-de-rosa velho. Só escapava o material militar, jeeps, etc.

04-10-1969, dia da despedida do Coronel Hélio Felgas. Um tocador de corá. O cor-de-rosa velho já tinha passado por aqui

Quando lá chegou, na sua Secção havia um calendário com uma figura feminina com um decote um pouco pronunciado (nada demais). De imediato, mandou o Furriel da Secção colar um papel cor-de-rosa velho, de forma a reduzir o decote.
Todas as semanas queria as viaturas (só havia jeeps) na pequena parada, impecavelmente limpas, incluindo os motores a brilhar. Então aparecia para inspeccionar e à sua ordem “abrir capôs” cada condutor abria o da sua viatura, tal como à ordem “fechar capôs” cada condutor o fechava com estrondo. Mas o mais caricato disto tudo é que todas as semanas era empurrado para a parada um jeep avariado, sem conserto, mas com os restos do motor sempre a brilhar

Fins de 1968 . Na pequena parada onde mais tarde o Major do cor-de-rosa velho fazia a inspecção aos jeeps. As paredes ainda eram brancas, note-se.

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.


Em determinada altura deram ao Comandante um bode. Como tal situação tinha que passar previamente por ele, antes de o entregar ao Coronel Felgas, mandou comprar, na cidade, uma fita cor-de-rosa velho para fazer um laço que foi colocado nos cornos do bicho… Podem crer que foi autêntico, como autêntica foi a situação que segue.

Numa outra vez, um qualquer Chefe de Tabanca, ofereceu ao Comandante uma galinha. O nosso Major mandou providenciar um galinheiro para a ave, e quando ela começou a pôr ovos, mandou o furriel constituir um livro para registo (à carga) dos ovos que iam sendo postos. No livro podia ler-se: Dia (data hora) - um ovo; Dia (…) - um ovo; Dia (…) - um ovo (partido)…

Finalmente, pairou por lá outro Major que já referi noutra estória, de tão baixo carácter, que não merece qualquer outra referência.

A próxima estória será, como já referi, sobre os amores entre um furriel e a Rosinha, filha de um comerciante metropolitano.

Até para a semana camaradas
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5159: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (13): O Comando de Agrupamento (I Parte)

Guiné 63/74 - P5189: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (1): Ida para a Guiné

1. Mensagem de José Martins (1) (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2009:

Caros camaradas
Junto envio textos do "meu capitão" e amigo Coronel Reformado Pacífico dos Reis, que já estão publicados na revista da ASMIR.

O mesmo teve a gentileza de me enviar cópias da revista e, posteriormente, ter telefonado dando-me liberdade de os enviar para o blogue.

Já tem textos publicados:
P839 de 04 de Abril de 2006 - O valente Sargento Cipriano (2)
P4028 de 13 de Março de 2009 - Do Colégio Militar a Canjadude (3)

Segue, também, um curriculum, de minha responsabilidade, sobre a sua estadia em África - Guiné e Angola.

Um abraço e bom fim de semana.
José Martins


2. José Manuel Marques Pacífico dos Reis
Coronel de Cavalaria reformado.


No seu curriculum, e no que respeita à "Campanhas de África 1961-1974", consta:

Comando Territorial Independente da Guiné

Companhia de Caçadores n.º 5 – Recrutamento local

Capitão de Cavalaria, NM 50991111, foi aumentado ao efectivo da Companhia em 8 de Julho de 1968, assumindo o Comando da mesma.
Foi sob o seu Comando que se processou a transferência do Comando e os Serviços da Unidade para o então Destacamento de Canjadude, em Agosto de 1968,
Em 12 de Setembro de 1969, foi ferido em combate num perseguição ao IN junto de Uelingará na estrada Nova Lamego – Canjadude.
Foi abatido ao efectivo da Unidade em Setembro de 1969, por ter sido transferido para o Centro de Instrução Militar / CTIG.

Da História da Companhia de Caçadores n.º 5 – Os Gatos Pretos de Canjadude [compilação de José Martins]

Centro de Instrução Militar – Bolama

Comandante da Companhia de Instrução – 1.º Turno de 1970. A Escola de Recrutas foi realizada entre o dia 26 de Janeiro e 26 de Abril de 1970, data em que os Recrutas Juraram Bandeira, em Bissau. A instrução da Especialidade teve início em 27 de Abril de 1970, tendo terminado em 13 de Junho as Especialidades de Atiradores, Apontadores de Metralhadora e Transmissões e continuando os Corneteiros e Clarins até 27 de Junho, e os Escriturários até 04 de Julho de 1970.
Foi desta Escola de Recrutas e Instrução de Especialidades, que saíram os militares que, em conjunto com os Oficiais, Sargentos e Praças especialistas da Metrópole, constituíram as Companhias de Caçadores n.ºs 17, de etnia Balanta.

Do Relatório sobre a Instrução, elaborado pelo Capitão de Cavalaria Pacifico dos Reis, Comandante da Companhia de Instrução.


Região Militar de Angola

Comandante da Companhia de Policia Militar n.º 3524, mobilizada no Regimento de Lanceiros n.º 2, em Lisboa, tendo embarcado em Lisboa em 4 de Março de 1972. Permaneceu em Luanda até 1 de Maio de 1974, data em que efectuou a viagem de regresso.

Do volume 13 de OS ANOS DA GUERRA, edição do Correio da Manhã, 2009.

(José Martins)


3. DIVAGAÇÕES DE REFORMADO - 1
Por Pacífico dos Reis

Ultimamente julgo ter desempenhado com total zelo, competência e espírito de missão a minha função de reformado. Ir às compras a mando da mulher, tomar conta dos netos (não tanto como desejaria), tratar das colecções, almoçar com a tertúlia de amigos (extensão da má língua), desporto, rever documentos deixados pelos ancestrais, ler muito, ver televisão e remoer recordações.
Também se passeia, quando o tempo permite e a crise financeira permite.

O visionamento da televisão está a ser, ultimamente, extraordinariamente depressivo e deixa um travo de azia após os telejornais, bastante elucidativos da crise que grassa pelo país. Por isso fiz umas caminhadas até às farmácias para comprar Vingel (medicamento para a azia) tendo constatado que o mesmo se encontra esgotado. Com a breca! Querem ver que todo o país tem azia pelo mesmo motivo!
A secção de TV fornece-me, também, uma brilhante amostra de como os americanos prezam as suas Forças Armadas, em séries como “Mulheres de armas”. Tal e qual como cá. Cada vez mais, os políticos e outros tentam dissociá-las do povo Português.

Na secção de desporto já só faço marchas e extensões. Enquanto marcho vou-me entretendo a ver os papéis de publicidade que os imigrantes distribuem pelos limpa-vidros dos carros. Elucidativos! No ano passado viam-se anúncios a moradias, restaurantes, centros de lazer, etc. Agora vejo propaganda a lojas de penhores e empresas de empréstimos. Teremos que estar preocupados com a nossa Pensão?

Na secção de leitura dediquei-me a ler dois livros que me agradaram. “Tempos africanos naquelas longas horas em sete mandamentos” de Manuel Barão da Cunha e “A filha do capitão” de José Rodrigues dos Santos. Tratam de duas guerras e de duas visões. Uma recente com um escritor experimentado na guerra ultramarina e outra antiga sendo o seu escritor ausente temporariamente dela, mas com cuidadosa vivência de muitos documentos.

Foram estes livros que me fizeram remoer recordações e tentar passar para o papel algumas situações do dia-a-dia de uma epopeia ultramarina recente, para que, futuramente, alguém se possa apoiar nestes despretensiosos manuscritos e pôr mais uma pedra na construção da verdade histórica sobre a guerra do ultramar, com casos e soluções diferentes em cada um dos teatros de guerra.

Quando da minha comissão na Guiné, em 68, fui mobilizado em rendição individual para comandar uma Companhia de Cavalaria (CCav), pelo que passei pelo Depósito de Adidos, tendo recebido Guia de Marcha para embarcar no “Ana Mafalda” no cais de Alcântara.
Na data marcada, fardado a rigor, apresentei-me no cais e comecei a procurar o navio. Corri todo o cais e nada. Fiquei a remoer, pois tinha vindo em vão, pensando que o navio já tinha zarpado. Dirigi-me a um carregador do cais e solicitei-lhe informação sobre o paradeiro do “Ana Mafalda”. Está ali, disse ele, apontando para um hiato entre diversos navios acostados. Aproximei-me da borda do cais e qual não é o meu espanto quando velo um barquinho lá em baixo. A maré vazia era a causadora do truque de prestidigitação que fizera desaparecer o navio cufista.

Apesar do tamanho do navio, a viagem foi óptima quanto a condições atmosféricas. Os alojamentos eram modestos para oficiais e sargentos e deficientíssimos para as praças que tinham de partilhar as casernas improvisadas nos porões. E a situação foi-se agravando à medida que nos aproximávamos dos trópicos. Os nosso militares suportavam com estoicismo os dias de viagem no meio do cheiro nauseabundo das convulsões gástricas.

A chegada ao cais de Pijiguiti libertou-nos do cheiro do navio mas atirou connosco para um bafo de calor e um cheiro entediante a dejectos de morcego. É um cheiro que não sai das narinas. O cheiro de morcego.

Depois de tratarmos do alojamento na messe, todos nós, oficiais que tinham embarcado como rendições individuais, fizemos a nossa apresentação no Comando Militar para receber as guias de marcha para a nossa futura vida durante dois anos. Chegámos, cinco ou seis capitães maçaricos, com grandes ideais e vontade de cumprir com total zelo e competência todas as missões que nos fossem confiadas. Depois do Comandante Militar desfiar um rosário de chavões destinados, pensava ele, a elevar o nosso moral possivelmente afectado pela mudança de situação geográfica, passou à fase das nossas colocações. Claro que a minha colocação já tinha sido determinada na Metrópole (pensava eu) e estava descansado pois ia comandar a minha gente, uma CCav. Quando chegou a minha vez o homem grande olhou fixamente para as enormes espadas poisadas sobre a minha boina e sentenciou:

- Olhe senhor Capitão, como é da mesma arma do senhor Comandante-chefe (Gen Spínola), vai comandar a CCaç 5 que é uma Companhia Nativa que tem andado a fugir aos turras. Neste instante qualquer coisa caiu no chão, ainda estou para saber o quê!

E foi assim que, de Comandante de uma Companhia de Cavalaria passei a comandar uma Companhia de Caçadores Nativos.

(O texto também foi publicado na revista ASMIR de Abr/Mai 09)


Nota retirada da página da Asmir:

ASMIR - O que é?
Trata-se de uma Associação sem carácter político ou religioso onde têm lugar todos os militares na reserva e reforma, desde que respeitem os princípios éticos que caracterizam a Instituição Militar.
A nossa Associação é reconhecida e mantém um relacionamento de colaboração e respeito mútuo com as Chefias Militares e com o Poder Político. O reconhecimento e a boa ligação existentes não põem em causa nem a sua independência nem o seu rigoroso apartidarismo político.

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Notas de CV:

(1) - Vd. poste de 30 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5184: Controvérsias (33): Carta Aberta ao Senhor Ministro da Defesa Nacional (José Martins)

(2) - Vd. poste de 4 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P839: O valente Sargento Enfermeiro Cipriano, da CCAÇ 5, morto em Nova Lamego (José Martins)

(3) - Vd. poste de 13 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4028: FAP (17): Do Colégio Militar a Canjadude: O meu amigo Tartaruga, o João Arantes e Oliveira (Pacífico dos Reis)