domingo, 29 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9415: Em busca de... (180): Cherno Candé, o Fernandinho de Paunca (1973), procura o Fur Mil Gonçalves da CCA 11 (Os Lacraus)

1. Mensagem de Cherno Candé, o Fernandinho de Paunca (1973), com data de 20 de Janeiro de 2012:

Ola sr. Carlos!
Daqui uma vez mais o Fernandinho. Estou e à procura do furriel Gonçalves que aparentemente é de Viseu e serviu na CCAÇ 11 "Os Lacraus de Paunca" em 19773 e nos princípios de 74. Para isso tenho uma foto de um amigo meu que agora está a viver na Austrália. Entre essas pessoas está o furriel Gonçalves.


2. Contactámos o amigo Cherno nos seguintes termos:

Olá caro amigo Cherno
Queria que me dissesse porque anda à procura do meu camarada Gonçalves da CCAÇ 11. Por acaso o Cherno foi um dos miúdos que frequentava o Quartel? O nome Fernandinho foi-lhe posto pela tropa? Que idade tem hoje? Fala de uma fotografia onde está o Gonçalves. É capaz de me mandar a foto digitalizada?
Temos no Blogue poucos camaradas da CCAÇ 11 de 1973, mas pode ser que alguém se lembre dele.

Gostava de saber mais pormenores seus para publicar uma coisa bonita a seu respeito. Se tiver uma foto sua mande também.
Pelo seu endereço nasceu em 1963, é assim? Vive na Guiné-Bissau, em Portugal ou noutro pais estrangeiro?

Fico à espera das suas notícias.
Abraço
Carlos Vinhal


3. A resposta de Cherno Candé foi rápida, assim:

Boa noite sr. Carlos.
Pois é, eu era uns dos miúdos que andava lá no quartel. Na altura chamavam-me Fernandinho. Estive em Portugal há muitos anos, mas agora estou a viver aqui no Reino Unido, concretamente em Belfast - Irlanda de Norte.

Aqui vai uma fotografia onde estou eu e alguns dos furriéis e cabos. Na fotografia, entre os miúdos de pé, eu sou o segundo. Vai aí uma outra fotografia actual, já sou um homem com 48 anos. Vai uma outra fotografia entre esses grupos de pessoas está o furriel Gonçalves.

Caso soubere dele quero contactá-lo, por favor.

Muito obrigado pela atenção
Vai um abraço de Fernandinho.

Cherno Candé, o Fernandinho de Paunca (1973), hoje com 48 anos, a viver em Belfast - Irlanda do Norte

Paunca 1973(?) > Fernandinho será o segundo de pé a partir da esquerda.


Este conjunto de cinco fotos está identificado como sendo do Meireles. Será o tal militar a viver actualmente na Austrália? Será que o nosso camarada Casimiro Carvalho nos poderá ajudar a identificar o Fur Mil Gonçalves?

Fotos enviadas por Cherno Candé - Legendas de Carlos Vinhal
Emblema da CCAÇ 11 da colecção do camarada Carlos Coutinho


4. Comentário de CV:

É sempre com um misto de alegria e alguma nostalgia que recebemos notícias dos nossos meninos guineenses.

Não houve aquartelamento que não fosse invadido por traquinas crianças das tabancas. Ensinavam-nos os seus usos e costumes, prestavam pequenos serviços, recebendo de nós alguma comida e ajuda na execução dos seus trabalhos escolares. A par das nossas lavadeiras, esses fazem ainda hoje parte do nosso imaginário.

Gostaria que se conseguisse ajudar o Cherno Candé a encontrar o seu amigo Gonçalves, ex-Fur Mil da CCAÇ 11 em 1973 que viverá na zona de Viseu.
Desse tempo estou só a ver o camarada Casimiro Carvalho a quem apelamos, sabendo da sua estima pelos nossos irmãos guineenses, para tudo fazer para encontrar o seu camarada Gonçalves.
Casimiro, se eventualmente conseguires identificar alguém nas fotos de quem tenhas os seus contactos, por favor põe em contacto com o Cherno, cujo endereço é chernocande63@gmail.com

Para todo e qualquer camarada que possa ajudar o nosso pedido é válido.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9397: Em busca de... (179): Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798, procura fotos aéreas de Gadamael Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798, procura fotos aéreas de Gadamael

Guiné 63/74 - P9414: Parabéns a você (374): Luís Graça Henriques, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71) e fundador deste Blogue


1. Mensagem do nosso camarada José Lima da Silva:


Camarada Luís Graça

Hoje é dia do teu aniversário.
Desejo-te que passes um lindo dia, rodeado da tua família e amigos.
Também desejo que tenhas um dia muito feliz e que essa felicidade se prolongue por muitos mais anos.


Um abraço de muita consideração
José Lima da Silva




2. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado:


Meu caro Luís

Tu trouxeste memórias das partidas e das chegadas.
Por tua causa revivemos fragâncias a Tejo, que se misturam com os rios e bolanhas, que se desfazem por força de macaréus.


Voltaram os cheiros de mancarra e caju torrados, vinho de palma, o calor, o pó das picadas, a violência das trovoadas, as chuvas intensas mas regeneradoras da Natureza sequiosa.


Os bons e maus momentos. Os rostos que teriam desaparecido na voragem da nossa vida.
O prazer com que quando estamos juntos recordamos.


- Lembras-te daquele ou daquela vez?


- A minha lavadeira para sempre esquecida nas fotos, que por sua vez durante anos também foram esquecidas, está agora ali bem presente.


Quantos reencontros?
Quantos abraços?


Deste-nos a vontade de partilhar e absorver vivências.


Também todos os dias nos permites usar a Liberdade como ferramenta. Sem ela nunca poderíamos ter chegado onde chegamos e a nossa destruição como colectivo, seria uma consequência lógica.


Em troca do que me deste, só me resta dar-te um grande sentido abraço de amizade e reconhecimento.


Parabéns, que este dia seja feliz, seguido de muitos anos na companhia de teus familiares e porque não, de todos nós que formamos esta grande família.


Um abraço
Juvenal Amado

3. Mensagem do João Graça e da Joana Graça:


Pai, no dia do teu 65º aniversário (29.01.2012):



Foi contigo que aprendemos que o universo é maior que as portas de uma casa.

Foi contigo que aprendemos que através do espírito de procura podemos chegar a todo o lado, permanecendo no mesmo lugar.

E que não se viaja apenas por locais, mas também pelo tempo.

Foi contigo que aprendemos que o Marquês de Marialva gostava de fados e da Severa,

Que el Rei Dom João VI fugiu com medo para o Brasil, que sua mãe ficou louca,

Como nos mostrou Maria do Céu Guerra.


Foi contigo que aprendemos que a Guerra, a outra Guerra, é uma experiência que nenhuma geração mais deve passar,

Como passou a tua, injustamente abandonada e enxotada para África por um governo miserabilista e contabilista.

Foi contigo que aprendemos que a História é o repositório mais fidedigno das tendências humanas.

Foi contigo que aprendemos que ser professor é muito mais do que um estatuto. Ser professor é ser humilde, porque também nos ensinaste que aprendes muito com os teus alunos. Ser professor é dar tempo ao outro para aprender. Ser professor é estar ali ao lado.

Foi contigo que aprendemos que através da Arte a humanidade se transcende e se renova.

Foi contigo que aprendemos a apreciar a beleza das pequenas coisas ou a ouvir colectâneas de compositores enquanto enfiados por baixo da cama.

Foi contigo que aprendemos que a poesia é o rio mais belo que corre pela nossa aldeia, e pelas tuas veias.

Foi contigo que nos divertimos nas caças ao tesouro que organizavas em noites de lua cheia, na quinta de Candoz, quando os verões eram intermináveis e intermináveis eram os nossos medos de criança.

Foi contigo que aprendemos a sonhar e acreditar na Fada Oriana e hoje gostarmos de contar histórias, em modo de legado geracional avô-pai-filhos.

Foi contigo que aprendemos a respeitar o outro, mesmo perante a diferença. A não olhar à cor, à raça, à religião, à formação académica ou estatuto social.

Foi contigo que aprendemos a amar a HUMANIDADE.


Obrigado pai,

Dos teus filhos que te amam e que te admiram por aqui aquilo que és! Eternamente gratos!


Joana e João
 
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Nota de CV:


Vd. último poste da série de 27 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9404: Parabéns a você (373): Mário Serra Oliveira, ex-1.º Cabo Escriturário, Messe de Oficiais da FAP (Guiné, 1967/68)

sábado, 28 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9413: Blogpoesia (175): Elegia para uma triste tabanca fula (Luís Graça)

Elegia para uma triste tabanca fula 
por Luís Graça


Poema dedicada 
aos valorosos soldados fulas 
da CCAÇ 12 (1969/71),
de Badora, do Cossé, do Corubal






E de repente
Tudo te é estranho,
O muro que corta, rente,
A brisa da manhã,
A fonte onde ainda ontem
Os jubis tomavam banho,
O poilão aonde ias rezar,
À tua maneira,
Ao teu irã,
A ponta onde colhias a manga e o abacaxi,
O macaco-cão que ora chora ora ri…

De repente
Não sabes donde vens,
Não sabes quem és,
Aqui de camuflado e de G-3,
Nem a verdadeira razão para matar e morrer,
Não sabes o que fazes neste lugar,
Triste tuga entre tristes fulas,
Abaixo do Trópico de Câncer,
A 11 graus e tal de latitude norte.

Não reconheces os sinais de guerra,
O feroz combate em noite de luar,
O cavalo de frisa,
Os pássaros de morte,
Os jagudis no alto da árvore descarnada,
A terra desventrada, ensaguentada,
O arame farpado, aqui e acolá cortado,
O colmo das moranças, carbonizado,
O medo que se sente mas não se vê,
As cápsulas de 12.7 da Degtyarev,
Um par de chinelos,
Os caracteres chineses dos invólucros, amarelos,
Das granadas de RPG…

Um triste cão vadio ladra
Ao cacimbo fumegante
E o seu latido lancinante
Ecoa pela bolanha fora.
A seu lado, a única velha, 

Que não se foi embora,
Com a sua máscara impassível
De séculos de dor.

Mais tarde saberás
- Mas nunca o saberão, de cor,

Os jovens pioneiros com os seus lenços multicolores -,
Que por aqui passou
Mamadu Indjai,
Hoje valoroso, amanhã insidioso,
Combatente da liberdade da pátria,
Hoje herói, amanhã traidor.

Diz-me, mãe e pitonisa,
Onde estão as mulheres com os balaios à cabeça
E os seus filhos às costas ?
Onde estão as gentis bajudas,
Cujo sorriso nos climatizava os pesadelos ?
Onde estão o régulo e os suas valentes milícias ?
Para que lado corre o Rio Corubal
E donde vêm aqueles sons de bombolom?

Diz-me, homem grande, 

Onde fica o Futa Djalon ?
E de que ponto cardeal
Sopram os ventos da história, afinal ?
Dizes-me para que lado fica Meca, meu irmão ?

E, no seu conciliábulo, 
O que sobre nós decidirão,
Os nossos deuses, o teu e o meu ?



Diz-me onde está o velho cego, mandinga, 
A quem demos boleia, 
Em Bambadinca,
Que tocava kora
E nos contava histórias
De velhos e altivos senhores,
Agora prisioneiros no seu chão ?

Passei,  na madrugada de um dia qualquer,
Pela tua tabanca, abandonada,
Do triste regulado do Corubal,
De que já não guardo o nome,
Na memória.

Tabanca onde passámos sede e fome,
Sinchã qualquer coisa
Agora posta a ferro e fogo, 
Que importa, minha irmã, 
O topónimo para a história ?!...

Venho apenas em teu socorro,
Irmãozinho,
Quando as cinzas ainda estão quentes
No forno da tua morança,
Da morança que também fora minha…
Raiva, sim, meu camarada,
Como eu te compreendo…
Mas vingança, para quê ? 

De guerra em guerra se chega à vertigem do nada!


A um espelho partido me estou vendo,
E a mim mesmo me pergunto-me quem sou eu
Triste tuga entre tristes fulas, ai!,
Para te dar lições de história ?! 

Quem somos, ao fim e ao cabo, nós,  os dois ?
Saberei apenas, muito anos depois,
Que fuzilaram o Mamadu Indjai!…


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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9296: Blogpoesia (174): Dies irae! (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P9412: Da Suécia com saudade (34): A doce nostalgia de uma terra… que já não existe (José Belo)



1.   O nosso Camarada José Belo, ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381,Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, enviou-nos a seguinte mensagem com data do dia  25 do corrente mês.


Caros Amigos e Camaradas:

Em quase todos nós, e com o passar das décadas, vai havendo uma subtil substituição das recordações dos momentos violentos da guerra por nostalgias bem mais saudáveis.

As proximidades várias que ainda hoje sentimos com aquele país terão muito a ver com o "privilégio" que muitos de nós tiveram de viver longos períodos de tempo em Destacamentos isolados, em Tabancas perdidas no mato, o que criou a oportunidade única de viver o dia-a-dia (verdadeiro) de muitas daquelas gentes.

Os que têm tido a oportunidade de revisitar a Guiné-Bissau acabarão por lá "reencontrar" o que os seus corações querem sentir (*) Viagens em busca "do que era" com uma menor atenção para o país... que é!

O país que hoje é a Guiné não poderá ser descrito com o grito do coração:"A má reputação da Guiné-Bissau fora de portas nada tem a ver com a realidade guineense". (Não sendo no entanto difícil de se concordar quanto à afabilidade e hospitalidade do seu povo).

A Suécia, a ser suspeita na sua Política de Estado para com a África, o será por uma parcialidade (quase até à data!) para com a Guiné-Bissau. Aquando da guerra, os apoios em material escolar, sanitário, propaganda na rádio, TV e jornais, a somarem-se a uma acção contínua por parte de todo o aparelho Diplomático da neutral Suécia nas Nações Unidas e na maioria das organizações internacionais, não encontra correspondência em qualquer outro país ocidental.

Depois da independência as verbas enviadas para auxílios vários à Guiné ultrapassaram em muito qualquer outro auxílio internacional. Actualmente tudo tem sido revisto à luz de este país se ter tornado, como descrito pelas Nações Unidas, "em uma das maiores plataformas no transporte de drogas para a Europa tendo-se deixado corromper a todos os níveis sociais e instituições, sejam elas governamentais, aparelho de justiça, forcas armadas ou funcionalismo. (Para os mais interessados numa perspectiva mais profunda das realidades actuais guineenses recomenda-se a leitura do "Plano-Quadro das Nações Unidas de Apoio e Desenvolvimento-PNUAD-Guiné-Bissau/2008-2012).

Serão também importantes as leituras dos relatórios do UNODC-"Escritório da Nações Unidas contra a Droga e Crime” que é um Plano de Acção Regional na abordagem ao problema crescente do tráfego ilícito de drogas na África Ocidental 2008-2011.Assim como o "Plano-Quadro das Nações Unidas sobre a África como centro da rede de narcóticos ilegais da América do Sul para a Europa.

A UNODC forneceu verba avultada para auxiliar a criação de um plano nacional antinarcóticos, e para a reforma de todo o sector de segurança da Guiné-Bissau e Costa Ocidental Africana. Estabeleceram-se também parcerias, e união de esforços, entre a UNODC e o Escritório das Nações Unidas Contra a Droga e Crime (DPKO), assim como o DPKO-Departamento das Nações Unidas para Assuntos Políticos, e com o UNOWA-Escritório das Nações Unidas para a África Ocidental, e a ECOWAS-Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental.

A INTERPOL está também ligada a todo este esforço regional. Infelizmente para os que - como eu - têm trabalhado décadas junto dos apoios estatais suecos à Guiné Bissau assim como nas Nações Unidas, a extensão do problema tem vindo a afastar muitos dos apoios importantíssimos para uma continuidade de auxílios tão necessários. Tudo demonstrando que..."a reputação da Guiné fora de portas..."

J.Belo/Estocolmo 25 Jan.12.
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Nota de MR:



Guiné 63/74 - P9411: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (13): Vícios ou frutos da época

1. Em mensagem do dia 26 de Janeiro de 2012 o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:


Outras memórias da minha guerra (13)

Vícios estranhos ou
Frutos da época

Regressei de Angola, onde estive a trabalhar, logo após o 25 de Abril/74. Vim de férias (“graciosa”, 4 a 5 meses com prolongamento). Como funcionário camarário, beneficiava de todas as regalias da função pública, às quais se juntavam ainda os benefícios de compensação pelo isolamento e/ou perigosidade.
Para receber os vencimentos tinha que me deslocar a Lisboa, ao Ministério do Ultramar (ou Defesa Nacional), ali para os lados de Belém.


Naquele dia, como cheguei mais tarde a Lisboa, aproveitei para almoçar na zona ribeirinha e esperar pelas 14,30 para ir receber o vencimento.

Após o almoço, abeirei-me do Tejo, onde me chamou a atenção um jovem Cabo Miliciano, que olhava o horizonte, lá para o Farol do Bugio.

- Então, como vai essa peluda? – perguntei-lhe.
- Peluda, não. Direi mesmo que estou aqui f….. com a p... da tropa.
- Não me digas? Agora que se deu o 25/A, em que andais por aí à balda, de cabelo à Beatle e livres de ir para a guerra! – Interpelei.
- Pois, pois, mas isto ainda está muito confuso. – respondeu o jovem, que continuou:
- Ainda estão militares a ir lá para fora e o filho da p… do meu Sargento quer mandar-me para lá.
- Mas o Sargento não tem assim tanta força para isso? – perguntei.
- Este tem. É que eu há dias, no comboio, entusiasmei-me com esta coisa do 25/A e contei a um Furriel a marosca em que o sargento andava envolvido. Pensei que o Furriel era miliciano e, afinal, era outro chico e amigo do Sargento. – confessou o militar preocupado.

E continuou:
- Estava a contar sair por estes dias, tenho a namorada já grávida, lá na terra, perto de Amarante, e o Capitão, que também deve mamar, já me avisou:
- Ganha juízo, se não ainda levas com uma guia de marcha especial.

E continuou:
- Os chicos protegem-se uns aos outros.
- Também nunca gramei esses gajos. – disse eu e acrescentei:
- Estive na Guiné e passei por muitas merdas, mas procurei afastar-me sempre dessa cambada. Embora tenha de confessar que, afinal, havia alguns a merecer alguma consideração. Mas, afinal, como é possível essa preocupação?
- Trabalho no SPM – Serviço Postal Militar. É por ali que passa toda a correspondência militar, incluindo as encomendas. Aquilo presta-se a muita vigarice. Há cartas em que o dinheiro sai com facilidade e, nas encomendas, há uma percentagem grande que fica por ali. Por outro lado, há encomendas de contrabando que não entram nos registos. E como eu não queria nada, deixaram-me em roda livre, sem serviço e sempre desenfiado. Só que agora, meti o pé na poça e eles não perdoam.

E continuou:
- Há lá um grupo de Sargentos e Furriéis com o vício de jogar. E jogam forte. Este Sargento, quando mete a mão ao bolso, até diamantes lhe aparecem nas mãos. Ele tem um colega que está nos Adidos, ali na Travessa da Calçada, atrás da Ajuda, junto do Lanceiros 2, que, muitas vezes, vai lá jogar. Ainda é mais viciado do que o meu Sargento. Mas, agora, anda como uma barata, devido à diminuição de mortes no Ultramar.

- O que é que isso tem a ver com o assunto? – perguntei. Ele logo respondeu:
- O gajo deve ser o responsável pelo armazém onde passam os militares mortos. Já estava muito habituado ao rendimento das madeiras caras, que vêm a servir de caixões. Ele deve vender bem essas madeiras exóticas.

**********


Uns seis anos depois, por altura das festas do S. Gonçalo, participámos numa prova de canoagem no Rio Tâmega. A largada, acima de Fridão, lançava-nos, em pequenas pirogas, para os vários perigos, bem patentes em quedas, rápidos, correntes e redemoinhos. Vencê-los era um prazer incrível. A nossa chegada junto da ponte, era um espectáculo. Logo que cortávamos a meta, deleitávamo-nos a olhar para o publico ruidoso que ocupava todos os espaços envolventes. Grandes momentos da minha canoagem!

Enquanto aguardava a distribuição dos prémios, sinto uma mão no ombro esquerdo:
- Não se lembra de mim?
- Não, não estou e ver… como. – respondi

Ele continuou:
- Há uns anos estivemos a conversar em Belém, junto ao rio, estava eu f….. que não sabia que fazer à p… da vida.
- Sim, sim, já me lembro. - respondi e aproveitei logo para perguntar:
- E então, como é que te safaste?
- Olha, tenho a agradecer muito o teu conselho. Acabei por contar tudo a um oficial de confiança e bem identificado com a revolução. Não o fiz como acusação, mas sim como defesa do que me poderia vir a acontecer.
- E depois? – Perguntei, bastante curioso.

E ele continuou:
- Foi porreiro! Deixaram-me em paz, tratavam-me como um lord e mandaram-me logo embora. As coisas correram de tal maneira bem, que ainda hoje estou convencido de que foi milagre. Todos os anos aqui venho, ao S. Gonçalo, para agradecer essa graça, juntamente com a mulher e este rapazola que já quer ir para a canoagem. “Nasceu antes do tempo”, mas vai ser um grande campeão!

Silva da Cart 1689

Foto da Torre de Belém retirada do site Sir burro nem tanto, com a devida vénia
Foto do Farol do Bugio retirada do site Jornal da Região, com a devida vénia
Foto do Rio Tâmega em Amarante ©: José Ferreira da Silva
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9331: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (28): A guerra em Dunane

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9260: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (12): Madrinha de guerra e... amor

Guiné 63/74 – P9410: Memórias de Gabú (José Saúde) (22): Jovens da tabanca


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

Camaradas!

Esmiuçando “As Minhas Memórias de Gabu”, confesso que ao largo da minha comissão na Guiné, reduzida, entretanto, para 13 meses face à Revolução do 25 de Abril de 1974 que originou a libertação dos povos de Angola, Moçambique e Guiné, deparei-me com as mais dispares situações protagonizadas por um povo que me transmitiu, a espaços, autênticos sinais de alerta.

Viajando pelo seio de uma população onde predominavam as etnias fula e futa-fulas – o chão fula no seu verdadeiro êxtase – recordo alguns dos preconceitos tribais que impunham, e continuam a impor, caricatas leis num tabuleiro civilizacional de facto débil. É certo que as ditas leis do povo eram, e são, demasiado ténues e desprovidas de princípios humanos considerados minimamente aceites. Todavia, a comunidade, feita aos costumes, não se recusava em dar continuidade aos seus ancestrais saberes adquiridos na base de experiências acumuladas.

Os jovens da tabanca despertaram-me para ínvios caminhos que confluíram na contemplação de rostos de inocência. Não é fácil, e assumo, mexer com as sensibilidades do próximo, principalmente quando o tema recai sobre questiúnculas pessoais e sobretudo com imposições sobre crianças desprotegidas. O chamado fanado é, tal como sempre, uma temática que assenta numa difícil aceitação. Diria mais: inaceitável no contexto de uma sociedade livre e principalmente aberta ao conceito de múltiplas opiniões.

Aliás, a omnipotência do assumir da razão, a meu ver, cai normalmente por terra a partir do momento em que ao mais fraco lhe é retirado o direito em reclamar a sua própria inocência. E no caso do fanado a criança não possuía literalmente o direito de reclamar o acto ao qual forçadamente se sujeita (va).

Sei que o tema tem sido rebatido amiúde no nosso blogue. Serei mais um a tentar decifrar o rito indígena com o qual me confrontei, melhor, confrontámos. O secretismo do acto era religiosamente respeitado. Sabíamos da sua existência e nada mais. No terreno ficavam apenas imagens de jovens entregues aos seus rituais étnicos e transmitidos de geração para geração.

O texto que a seguir apresento faz parte de um livro que tenciono editar em breve, relatando experiências em solo guineense e que ainda hoje guardo escrupulosamente no meu interior. Será uma obra onde trago à estampa “As Minhas Memórias de Gabu – 1973/74”, sendo o prefácio do livro de Luís Graça, Fundador do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

As crianças são pequenos seres que mexeram, e mexem, com a minha sensibilidade pura!

Jovens da tabanca

Rostos de inocência

O seu olhar reflectia uma extrema inocência. Os seus rostos, meigos, imploravam uma paz que teimosamente se esvaziava no infinito do horizonte. As crianças são pequenos seres que sempre me despertaram múltiplos sentimentos. Gosto de crianças!

A minha passagem pela Guiné – Gabu – ficou também marcada pela minha inequívoca afeição aos miúdos guineenses. Num flash às minhas memórias a sensibilidade das garotas e garotos, nascidos e criados na tabanca escondida no mais denso mato ou na sua orla, mexeram, também, com a minha sensibilidade.

Deparei-me com rostos que me transmitiam visões verdadeiramente desoladoras. Crianças que não conheciam o prazer de brincar. A guerra, essa maldita realidade constatada no terreno, impingia condições às populações para uma sobrevivência alegadamente desumana.

Crianças que não conheciam o prazer de saborear um pudim flan e que não sabiam o que era luz eléctrica e a água canalizada. A tabanca, o seu doce lar, apresentava condições muito débeis. Não tinham camas e nem brinquedos Os seus corpos descansavam sobre um pano garrido que apelidavam de colchão. No interior da tabanca pouco existia. Não havia móveis nem talheres de prata para receber um ilustre convidado. Olhava e via-se… NADA!

À porta da tabanca, os cuidados da mãe passavam por bater a mandioca enquanto as crianças, por vezes infestadas de moscas, esperavam encarecidamente pelo momento em que as migalhas lhe caíssem a jeito. Noutras ocasiões era o arroz que atendia os seus desejos. Comiam com as mãos!

Nas alturas do fanado, uma festa tradicional nalgumas etnias indígenas, era comum depararmo-nos com grupos de jovens no mato que iam ser submetidos a um rito de passagem, um processo cultural, de resto, fundamental em qualquer sociedade humana que é a iniciação dos rapazes e das raparigas à idade adulta. A minha ideia inicial sobre o fanado - minha e de muitos dos meus camaradas na época - era de que se tratava de uma espécie de operação primária, feita por métodos obsoletos utilizados pelos homens e mulheres grandes aos jovens que entretanto se preparavam para despontar para uma vida sexual futura, isto é, na fase exacta que implica a passagem da puberdade para a idade adulta. Sabíamos vagamente - já que a cerimónia era secreta - que os seus órgãos genitais, pénis e vagina, sofriam pequenos cortes focais, sendo a sua principal finalidade manter a tradição dos antepassados. Era uma pequena cirurgia dolorosa, diziam.

Mas as coisas, porém, não eram bem assim. Se no caso dos rapazes a microcirurgia se resumia ao corte do prepúcio, no caso das raparigas trata(va)-se de uma autêntica Mutilação Genital Feminina (MGF). Sabemos hoje que a excisão do clítoris e dos grandes lábios nas meninas, era, e é, uma prática inaceitável à luz dos direitos humanos, e como tal um crime, penalizado pela lei dos Estados modernos, designadamente em Portugal e na Guiné-Bissau. Porém, a lei está longe de ser cumprida na Guiné-Bissau, face ao atavismo desta prática milenar e ao secretismo das cerimónias, que são de resto realizadas em separado (rapazes e raparigas). Por outro lado, as fanatecas (mulheres que fazem a excisão feminina) têm ainda, em termos simbólicos e materiais, um grande peso nas comunidades mais tradicionais (e em geral islamizadas). É, no fundo, uma prática - para a qual é necessário encontrar alternativas - de há muito denunciada e combatida pela Organização Mundial de Saúde, a que acresce as suas graves implicações para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres que são submetidas ao fanadotradicional.

O método, francamente rude, era feito com facas de mato entre outros apetrechos caquécticos e as feridas curadas com mesinhos caseiros, asseguravam os antigos sofredores.

A juventude da tabanca era cordial. Recebiam-nos com carinho. Acontecia, e disso sou testemunha, que, com chegada da tropa branca a algumas das tabancas, a miudagem parecia “coelhos” a correrem directos às suas tocas. Deparávamo-nos, então, com os seus pequenos olhos luzidios a espreitarem do interior das tabancas os intrusos que entretanto tinham chegado. Depois tudo voltava à normalidade, os miúdos aproximavam-se e o convívio conhecia um novo rosto.

As crianças conviviam, também, com as agruras da guerra. Trabalhavam no campo a par das suas mães. O pai descansava. Semeavam o milho, a mancarra, criavam galinhas, cabritos e colhiam os frutos que a Natureza gentilmente lhes oferecia.

Um espelho de sobrevivência!

Crianças da tabanca encantavam-me

Uma criança da tabanca transporta um irmão às costas

Um abraço deste alentejano de gema,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523


Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

11 DE JANEIRO DE 2012> Guiné 63/74 – P9345: Memórias de Gabú (José Saúde) (21): Rádios dos tempos da Guerra do Ultramar


sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9409: Tabanca Grande (319): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil da CCAÇ 4641 (Mansoa e Ilondé, 1973/74)

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado), com data de 25 de Janeiro de 2012:

Caros editores
O Vítor Caseiro não é novo no blogue. Mas tem-se portado como um outsider... Já o encontrei por várias vezes - no Encontro Nacional em Monte Real, em apresentações de livros em Lisboa, nos convívios da Tabanca do Centro, também em Monte Real. Parece que agora o convenci a deixar o anonimato e candidatar-se a um lugar de tertuliano na Tabanca Grande. Vai daí, resolveu descarregar-me tudo em cima - apresentação, foto da Guiné (podia ser o primo, que ninguém notava...), foto actual, e uma 1ª história, para começar. E eu que me desenrasque a enviar-vos o material e a apadrinhar a sua entrada...

Não me lembro de ele o ter dito, mas o Vítor é de Leiria. Quando do seu aniversário (nasceu em 27 de Junho de 1961), não sendo tertuliano enviei-lhe pessoalmente um postal de parabéns, que naturalmente não enviei para publicação no blogue. Por curiosidade junto também esse postal; e isso lembra-me que o Vítor é bastante empenhado em acções de solidariedade para com os seus conterrâneos, tendo sido até há pouco tempo dirigente da AMBESSE - Associação de Melhoramentos e Bem Estar Social de Santa Eufémia (Leiria).

Tratem bem do rapaz...
Abraço.
Miguel


Do Padrinho Miguel para o afilhado Vítor. Prenda de aniversário do ano passado


2. A minha apresentação:
Eu, Vítor Caseiro ex-Furriel Miliciano da CCaç 4641

Quando estava colocado no RI 14 em Viseu, saiu em ordem de serviço a minha mobilização para Angola (26 de Setembro de 1972). Apresentei-me no RI 16 em Évora para formar a CCaç 4641. Entretanto, no início de Maio, a Companhia foi informada do embarque para Angola agendada para o dia 8 de Junho de 1973.

Em 23 de Maio às 12h recebemos ordens para nos apresentarmos às 6h do dia seguinte, no aeroporto de Figo Maduro. No dia do embarque, quando nos preparávamos para entrar no avião, fomos informados que já não iríamos para Angola, mas sim para a Guiné. Depois de várias manifestações de revolta da nossa parte, tentámos recusar o embarque. Foi quando chegou um pelotão da P.M. e nos forçou a entrar no avião.

Após o desembarque na Guiné, o oficial superior que nos fez a receção, informou-nos que a nossa Companhia era a primeira de outras que vinham em reforço do contingente militar na Guiné. Daí seguimos para o Cumeré para fazer novo I.A.O. e mais tarde para Mansoa substituindo a 3.ª Companhia do Batalhão 4612 que foi deslocado em apoio de Gadamael, que estava a ferro e fogo. Estávamos no famoso Maio de 73, altura em que se desencadearam as maiores operações de ataque pelo inimigo por toda a Guiné. Foi neste mês que se deram os cercos aos aquartelamentos de Guidaje e Guileje, sendo este abandonado pelas nossas tropas. Este inédito acontecimento foi o motivo da nossa Companhia ter ordem de embarque em menos de 24 horas.

Ao fim de 13 meses de Guiné, a minha Companhia foi deslocada para Ilondé, onde passámos a fazer colunas de abastecimento de Bissau para Farim.

O final da nossa comissão, foi fazer segurança e proteção ao Palácio do Governador.


3. Comentário de CV:

Caro Vítor Caseiro, não te abro a porta porque já és um frequentador da Tabanca, se não da Sede, pelo menos das filiais. Quer nos convívios da Tabanca Grande quer na Tabanca do Centro, apareces regularmente e já conheces muita da malta.

Espero que o Miguel não leve a mal eu ter começado a tua apresentação com a sua mensagem, mas acho ter as minhas razões.
Primeiro porque não podias ter melhor padrinho. Ele, o Miguel, é único, tem um sentido de humor sem limites e é um camaradão.
Segundo, se reparares, ele diz que nasceste em 1961, logo não é um amigo qualquer. Nos tempos em que os aumentos são diários, ele faz-te um desconto de 17,4% na idade. A mim os meus amigos costumam dizer que não me dão mais de 62 anos, ao que respondo, obrigado, mas tenho 63. Tu não, tens aí um amigo a sério. Já agora, que dizes se aceitarmos como certo 1951 o ano do teu nascimento?
Terceiro porque ele tratou dos teus papéis, tudo direitinho, como os padres que despacham aquele assunto chato e complexo dos papéis para casar. É pena que não tratem dos do divórcio, mas compreende-se porque o ofício deles é ligar e não desligar. O electricista é que faz as duas coisas.
Quarto... vamos ficar por aqui ou damos importância a mais ao Miguel.

Posto isto, camarada Caseiro, o melhor é sentares-te a trabalhar e mandares a tua segunda colaboração, a primeira segue dentro de momentos, e já agora, por favor, se fizeres mais um pouco de esforço mandas directo para nós. É que já devemos imensos favores ao Miguel e ele não pára de cobrar.

Os teus trabalhos, esperemos que muitos, devem ser enviados para luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e para um dos editores de serviço: carlos.vinha@gmail.com e/ou magalhaesribeiro04@gmail.com

Já agora podíamos trocar galhardetes. Uma vez que te demos os nossos endereços, esperamos o teu. Desta feita vamos enviar a mensagem de boas vindas via Miguel Pessoa.

Posto isto, resta, em nome da tertúlia, enviar-te um abraço de boas vindas.

Pelos editores
Carlos Vinhal




4. Uma história

Todos os militares combatentes têm as suas histórias para contar.
Eu, também tenho as minhas e vou passar a descrever a primeira.

No dia 23 de Maio de 1973, dia em que a minha Companhia recebeu ordem de embarque para o dia seguinte, estava eu de sargento de dia no RI 16 em Évora e só no final do dia foi possível proceder à minha rendição. Durante toda essa tarde os meus camaradas fizeram as compras que entenderam necessárias, como por exemplo, as divisas para os novos postos, entre outras. Quando desembarcámos no aeroporto de Bissalanca a Companhia formou-se em parada militar para ser recebida pelo Chefe das 2.ª e 3.ª REP/QG/CTIG, Sr. Major Porfírio dos Santos. Pertencendo eu ao 1.º Pelotão fiquei “cara a cara” com este. Após o seu discurso o Sr. Major ordenou-me que o acompanhasse a um gabinete onde estava um 1.º Cabo Escriturário ao qual deu a ordem de passar uma guia de marcha para eu ser transferido para um aquartelamento (cujo nome não fixei). Após esta ordem, o 1.º Cabo informou-me que ia para um sitio onde todos os dias se morria. Naquele momento senti o desmoronar de todos os meus 20 anos de juventude (já era pai de um filho com 8 meses). Ainda não estava recomposto do choque emocional da mudança brusca de não embarcar para Angola mas sim para a Guiné (onde a guerra e o clima eram devastadores) e já estava a sofrer outro revés psicológico.

Algum tempo depois, o capitão da minha Companhia questionou o Major Porfírio sobre o que se estava a passar comigo, foi nessa altura que este afirmou que eu ao chegar com divisas de Cabo Miliciano, seria porque vinha debaixo de um castigo militar (uma porrada ). Após o esclarecimento do equívoco tudo voltou à forma inicial e regressei à Companhia que esperava nas viaturas que nos haviam de levar para o campo militar do Cumeré.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9394: Tabanca Grande (318): Carlos Milheirão, ex-Alf Mil da CCAÇ 4152/73 (Gadamael e Cufar, 1974)

Guiné 63/74 - P9408: Nós da memória (Torcato Mendonça) (5): Fado no Império - Fotos falantes IV

Fados no Oceano

Foto ©: Torcato Mendonça (Fotos Falantes IV) 2012. Direitos reservados





1. Em mensagem do dia 25 de Janeiro de 2012, o nosso camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339 Mansambo, 1968/69), enviou-nos um texto para integrar os seus "Nós da memória", mas ilustrada com fotos falantes da sua IV série. Promete.





NÓS DA MEMÓRIA - 5
(…desatemos, aos poucos, alguns…)

1 - Fado no "Império"
Fotos Falantes IV

Necessitava, para “desatar” mais uns nós da memória, de um qualquer auxílio.
Seleccionei algumas dezenas de slides e serão eles o auxílio pretendido.
Não sinto vontade em continuar a falar – escrever – sobre a “guerra pura e dura”, não, isso não.
Voltarei? É possível. Nunca digas nunca.

Suspendi o relato, a minha descrição, sobre a “Lança Afiada”. Descansa num dossier. São muitas folhas e não as quero como outras na lareira.

Antes de começar a escrever fiz breve visionamento dos slides, ora seleccionados, e um deles chamou-me a atenção. O Fado cantado em alto mar, o nosso fado, o destino de um Povo aqui em regresso de serviço prestado à ditosa Pátria.

Este, que aqui pelos ares atlânticos se perdia, não era certamente o fado triste das vielas de Lisboa e de seus amores e desamores. Não. Este teria certamente a música plagiada de um desses fados. A letra seria sobre a vida dos soldados em regresso à velha capital do Império, algo sobre a sua estadia de dois anos na Guiné, dois anos de uma juventude interrompida.

Era o regresso, o regresso das últimas caravelas. A rota seria a mesma, pouco importando os ventos e marés e, em tudo o mais diferente, quer na ida ou no regresso dos mesmos homens agora mais velhos, precocemente mais velhos, muito diferentes dos jovens da ida. O País esperava-os para deles se desenvencilhar rapidamente. Seriam peças descartáveis da máquina trituradora daquela geração. País virado ao mar e ao umbigo de minoria, País de sonho irrealizável, teimoso e bolorento nesse e noutros quereres.

Continuava virado a ilhas, a áfricas e ásias onde, a sua bandeira tremia há séculos, por terras conquistadas e mantidas com impossíveis por tão diminuta gente. Uma ocupação de conveniência.
Séculos de ocupação, de exploração para beneficio de minoria de seu Povo ou, pior ainda, para gentes de outros Países que, em conjunto com a pequena elite deste nosso rectângulo, usufruíam os proveitos desse estar e explorar terras e bens de outras gentes, impondo sofrimento, dor e humilhação.

Usavam a fé, os novos saberes da tecnologia, da cultura desrespeitadora da desses povos e não queriam entender, por não lhes interessar, que isso nada a tais gentes beneficiava. Eram gentes que nunca foram assim, em suas terras, cidadãos inteiros de um espaço que errada e enganosamente se dizia ser: - pluricontinental e multirracial do Minho a Timor. Por muito que hoje se duvide, outrora, poucas décadas atrás, muitos nisso acreditavam ou ainda acreditam.

Certo é que houve minoria, dessa gente oprimida, que desse colonialismo se libertou. Talvez, esses mesmos que de tais práticas se iam libertando, contribuíram para que os impérios se fossem desmoronando e um dia muitos, muitos mesmo ou quase todos pensaram serem livres, serem cidadãos inteiros e, mesmo apressadamente, dos velhos senhores se libertaram.

Erro deles, saíram de algo que lhes era imposto, algo que os oprimia e, sem disso se aperceberem logo noutras opressões, noutras servidões impostas por outros senhores, deles irmãos, caíram. Ainda esperam, hoje, por um novo mundo, um mundo mais livre, fraterno e sem tanta desigualdade.

Ah, ah… os últimos soldados do império? Esses, quase a totalidade, depois de serem descartados, ignorados e esquecidos vão desta vida se libertando. Não pesam pois, num Olimpo qualquer onde peso não interessa e, se algo deles cá fica, serve para outros comemorarem e relembrarem o nada em conforto de egos. Fica ou cai bem. Por vezes não, por vezes o lauto almoço, que, de um modo geral se segue excede os cuidados a ter com idades e maleitas próprias.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9295: Nós da memória (Torcato Mendonça) (4): Ano Novo; Ano Velho e Toca o Mesmo

Guiné 63/74 - P9407: Notas de leitura (327): Bordo de Ataque - Memórias de Uma Caderneta de Voo e um Contributo para a História, de José Krus Abecasis - II Volume (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2012:

Queridos amigos,
É de todos sabido como são raros os testemunhos dos oficiais da Força Aérea, no curso da guerra. Krus Abecasis, para minha surpresa, tem páginas de grande devoção à sua missão, combateu de dia e de noite, não ilude o grande número de tensões que viveu com outros camaradas, incluindo as forças paraquedistas. É incrível como estas centenas de páginas não aparecerem na bibliografia geral, ele que combateu nas três frentes. Quiçá por razões ideológicas, a narrativa perde por vezes a fluidez com enxertados, na cronologia, da situação internacional, faz perder o ritmo e implica a releitura. Há aqui páginas que constarão, estou seguro, nas antologias sobre a guerra, quando chegar a hora de alguém as publicar.

Um abraço do
Mário


Bordo de ataque: memórias de um oficial general da Força Aérea (2)*

Beja Santos

O Major-General José Krus Abecasis, recentemente falecido, publicou em meados dos anos 80 as suas memórias, cerca de 900 páginas em dois volumes, de um indesmentível interesse (Bordo de ataque, memórias de uma caderneta de voo e um contributo para a história, Coimbra Editora, 1985). Krus Abecasis teve funções relevantes como Comandante da Zona Aérea de Cabo-Verde e Guiné, foi piloto em operações decisivas, bateu-se pela melhoria do equipamento e pelas operações coordenadas. Não esconde a sua amargura e deceção face às outras armas, nomeadamente o Exército.

No apontamento anterior, foram referidas as suas memórias quanto a uma operação de bombardeamento da Ilha do Como, depois de se ter apurado que as forças do PAIGC estavam a criar uma situação preocupante às guarnições de Cachil, Cacine e Cameconde. A operação, a nível da Força Aérea, terá sido um sucesso, faltou-lhe a componente ocupação, que nunca veio a ocorrer. Depois de uma operação de bombardeamento ao Cantanhez, para destruir as peças antiaéreas, cumpria aos paraquedistas confirmarem os resultados. Foi o Capitão Tinoco de Faria quem comandou essa operação. Este capitão tinha-se revelado um chefe de invulgar envergadura, na operação “Relâmpago” coube-lhe o salvamento de um helicóptero acidentado na área de Jabadá, que ele executou com brilho. Foi ele que veio confirmar a operação resgate através da operação “Mercúrio”. Tinoco de Faria iria ser morto em combate na operação “Grifo” que comandou no corredor de Guileje. Krus Abecasis reconstitui todos esses lances dramáticos em que ”apesar da perda de sangue Tinoco de Faria reagiu com ânimo e gravemente atingido no tronco, ficou incapacitado. Vergado pelo sofrimento, recebe os primeiros-socorros do enfermeiro e diz aos seus homens que não se preocupem com ele e continuem o combate. Que transmitam a sua mulher que o seu último pensamento foi para ela”. Krus Abecasis propõe para militar tão exemplar a distinção da Torre e Espada a que não foi atendido.

Refletindo sobre o teatro de operações da Guiné em meados de 1966, refere os progressos do PAIGC a Oeste, Leste e Sul. Por essa altura, a guerrilha agravou-se na área Bula-Teixeira Pinto e Teixeira Pinto-Cacheu. Chegaram aviões Fiat que, com os Alouette III imprimiram um novo ritmo de apoio e fogo nas operações. Em Agosto, a guerrilha acentuou-se no Leste, à volta de Madina do Boé e de Bel, Krus Abecasis a tripular um Dakota, comandou a operação “Ribalta” para castigar severamente as forças do PAIGC na região, o que teve bons resultados conjunturais. Voltou a situação crítica em torno do Quitafine, Cacine e Cameconde voltaram a ser muito atacadas e a resposta foi a operação “Estoque”.

Os problemas de indisciplina sucederam-se, Krus Abecasis teve graves desentendimentos com as forças paraquedistas, a este nível. Como a situação do Sul exigia cada vez mais a intervenção das forças especiais, aprontou-se uma operação tida como muito intimidatória, a operação “Samurai” com bombardeamentos e atuação dos paraquedistas, o ponto de arranque seria Cufar. O oficial general escreve um texto demolidor acerca do comportamento dos oficiais da CCAÇ 763, em Novembro de 1966. A operação terá tido os seus resultados, com destruições, inimigos abatidos e neutralização das posições inimigas. Sempre crítico e exigente, ele escreve: “Se o inimigo fora duramente atingido, não restava dúvida que o seu corpo de batalha continuava intacto. Contrariamente ao que esperávamos, recolheu-se à área central, fazendo-se acompanhar das populações, que dominava. Os nossos grupos de combate encontraram o vácuo à sua frente, com exceção do contato na Ilha da Caiar”. O caminho estava aberto para exploração do sucesso, mas não houve operações de ocupação. Krus Abecasis ainda preparou a operação “Valquíria” para voltar a atacar o Cantanhez já que o inimigo se mostrava cada vez mais agressivo na navegação no rio Cumbijã, o que deixava Bedanda numa situação crítica de abastecimento, que envolveu vinte cinco missões aéreas incluindo bombardeamentos noturnos. E volta a escrever: “Tive ocasião de admirar a coragem com que os artilheiros das peças antiaéreas nos faziam frente, mantendo-se nas suas posições e disparando continuamente, quando os envolvíamos em metralha, indiferentes ao risco que corriam. Terminada a missão, fiquei a meditar, se entre combatentes portugueses poderíamos encontrar tal valentia. Acabei por me resignar com uma disposição nostálgica: afastar estes pensamentos para não cair no desespero que a realidade quotidiana da comissão na Guiné impunha inexoravelmente. O inimigo batia-se e morria no seu posto, fazendo-nos frente com bravura invejável e desconhecida da generalidade dos militares portugueses. Qual seria o futuro desta guerra, em que tal desequilíbrio psicológico dos combatentes era chocantemente em favor do inimigo”.

Sumariando o que se passou em 1966, o autor considera que operações como “Resgate”, “Estoque”, “Samurai” e “Valquíria” tinham contribuído para travar a progressão do PAIGC, houvera muitas baixas na Ilha do Como, mas estavam cada vez mais poderosos no Quitafine. Krus Abecasis ainda tentou preparar a operação “Apocalipse” para voltar a bombardear o Quitafine, a nível da reunião do Comando-Chefe houve opiniões desfavoráveis alegando-se que a importância do objetivo não compensava as perdas previsíveis. É por essa época, desiludido e contrariado, que Krus Abecasis suspira por ver o fim da sua comissão. Em Janeiro de 1967, regressa a Lisboa. Irá ser condecorado com a Medalha de Valor Militar com Palma, Arnaldo Schulz redigiu um louvor onde apreciava a obra por ele realizada: “Soubera ser um disciplinador e impulsionador do emprego dos meios aéreos”, “agia pelo exemplo, voava quer de dia quer de noite, por vezes em situações de risco manifesto” prestara serviços considerados relevantes e distintíssimos. Já como comandante da Base Aérea n.º 6, no Montijo, Krus Abecasis escreve a Schulz: “… Lamento sinceramente não ter-lhe conseguido ser de maior utilidade. Espero que lhe tenha sido manifesta a minha vontade constante de estruturar uma Força Aérea com um valor combativo próprio… Talvez eu tenha originado mal-entendidos de pessoas menos informadas quanto às minhas intenções… Maior teria sido a motivação se o ambiente geral refletisse aquele valor e grandeza que ansiosamente quis descortinar, mas sempre em vão. Talvez por isso nem sempre consegui dissimular a minha discordância de generosas apreciações feitas na presença de V.Exª”.

As memórias de Krus Abecasis sobre a Guiné não ficam por aqui. Voltará a visitar a Zona Aérea de Cabo-Verde e Guiné em 1969, então comandada por Diogo Neto. O que viu chocou-o; no tempo de Schulz os assuntos eram expostos pelos Comandantes dos três ramos das Forças Armadas, agora eram jovens oficiais que dialogavam descontraidamente com Spínola, apagando o papel dos oficiais dos três ramos das Forças Armadas; agora, Spínola decidia majestaticamente com os oficiais da sua corte e as críticas aos comandantes em voz alta tornara-se um lugar-comum durante as reuniões.

São memórias assombradas de um oficial general que nunca encobre, do princípio ao fim, como se sentiu comprometido com a causa da defesa ultramarina, profere, em tom por vezes cáustico, críticas aceradas aos seus pares, não esconde nomes nem se acoite em acusações vagas e genéricas.

Não dá para entender como é que estas memórias nunca aparecem mencionadas na bibliografia geral da Guerra Colonial.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9389: Notas de leitura (325): Bordo de Ataque - Memórias de Uma Caderneta de Voo e um Contributo para a História, de José Krus Abecasis (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9400: Notas de leitura (326): Anticolonialismo e Descolonização, por Luís Filipe de Oliveira e Castro (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P9406: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (6): Bissau, 23 de Junho de 1972, e 25 de Março de 1974: dois estados de espírito diferentes...

1.  Bissau, dois estados de espírito: à chegada ao TO da Guiné (23 de Junho de 1972), em rendição individual; e a escassas semanas (25 de Março de 1974) do regresso a casa (a 20 de Abril de 1974, num dos aviões dos TAM), uma vez finda a comissão e cumprido o dever para com a Pátria...

Estamos, naturalmente,  a falar do nosso amigo e  camarada António Graça de Abreu (AGA) e do seu diário...  Por gentileza e generosidade suas, aqui fica mais um excerto do seu Diário da Guiné, 1972/74, de que temos um ficheiro em word, o mesmo que serviu de base à edição do seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp). (*)

 Bissau, 23 de Junho de 1972

 (...) Foram nove horas directas de voo até Bissau, não consegui pregar olho. Nem alegre, nem saudoso, nem revoltado. Se tem de ser, que seja!Bissau – ainda não vi quase nada, – parece-me melhor cidade do que eu imaginava, a guerra chega aqui já diluída, o ambiente não é assim tão pesado. O burgo está em paz, talvez uma paz podre, mas paz. Há muita bicharada à noite, nas paredes e sobretudo em volta dos candeeiros de iluminação pública, são osgas e milhares de estranhíssimos insectos, mosquitos gigantes rodopiando encadeados pela luz. Mas na cidade também há andorinhas. (...)

O dia nasceu, nuvens e mar, sempre tanto mar! O avião [, um velho DC 6,] desceu sobre mais ilhas, os Bijagós, creio, e entrou voando baixo na Guiné. Vista do ar a terra é bonita, rios largos, canais serpenteantes, arrozais, clareiras, florestas e aldeias.

Trouxeram-me do aeroporto de Bissalanca para o Clube de Oficiais e destinaram-me umas instalações miseráveis. Somos oito alferes, todos de passagem por Bissau, num quarto pequeno com beliches, sem higiene nem condições decentes de habitabilidade, nem um armário tenho para arrumar as minhas coisas que estão todas na mala, no chão. Chamam a isto o “Biafra”. (...)

No entanto o Clube de Oficiais tem uma messe onde me dizem que se comem algumas iguarias e existe uma simpática piscina. O calor é bastante mas, habituando-me, vou aguentar.



Bissau, 24 de janeiro de 1972

(...)  Dizem-me que indo para o mato terei só vinte e um meses de comissão, e não vinte e quatro, como aconteceria se ficasse em Bissau, mas isto não é certo. Certo é nada aqui ser certo, excepto eu estar na Guiné com a moral nem alta, nem média, nem baixa, com o calor a morder-me a pele e a chuva, em vez de lágrimas, a correr-me pelo rosto. (...)


(...) Bissau, 25 de Março de 1974

A grande novidade em Bissau, capital da guerra foram as bombas no Quartel- General, na Amura [, em 22 de fevereiro de 1974], onde os estragos estão bem à vista, e num café no centro da cidade onde inicialmente morreu um civil mas depois morreram mais três militares, entre eles um soldado da 38ª de Comandos [, afecta ao CAOP1]. Estes pobres rapazes até a Bissau vêm morrer!

Foram postas em prática medidas de segurança patentes onde quer que uma pessoa vá. Há patrulhas da polícia militar e civil um pouco por todo o lado. Agora, para se entrar no Quartel-General só falta passar pelo RX. O medo é maior, as coisas estão a mudar.

Em Bissau encontro cada vez menos gente conhecida. Sou um dos mais velhinhos, muitos dos amigos e conhecidos regressaram de vez a Portugal.

No Clube de Oficiais tive uma surpresa. Encontrei a Margarida, minha apaixonada há uns anos atrás, uma mulher inteligente e bonita que, por bem, mexeu com a minha massa cinzenta, e não só. Casou com um capitão e veio para Bissau fazer-lhe companhia. Cumprimentei-a mas não falámos, o marido estava ao lado e, sem me conhecer, deitou-me uns olhos de assustar. A Margarida continua linda, voluptuosa, redondinha, um estupendo “stragnoff” para os dentes do seu capitão. (...)


Bissau, 16 de Abril de 1974


Os papéis foram todos deferidos, a viagem está marcada para 20 de Abril, no voo dos TAM (Transportes Aéreos Militares), com chegada à Portela, ao Figo Maduro por volta das sete horas da tarde.

A Guiné acabou, mas só acredito quando o avião começar a descer sobre Lisboa.


Bissau, 17 de Abril de 1974


Dividimos almas, afectos, o calor do sangue, ideias, desígnios, promessas de futuro. Unidos, separados. Recomeçar. Beijo-te, até sábado, nos meus braços rubros, no teu corpo azul. [FIM]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 20 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9375: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (5): "Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda [, em 31 de março de 1974]"...