1. No Diário da Guiné, do António Graça de Abreu (AGA), há apenas duas ou três referências à sua antiga companhia, ao seu substituto, o alf mil Potra, e ao comandante, o cap mil Morgado... .. Aqui se reproduz alguns excertos do Diário do AGA, com a devida vénia... Procuramos assim colmar a ausência de referências, no nosso blogue, à CCAÇ 3460, esperando que outros leitores possam trazer informação complementar sobre essa subunidade (que andou por Bolama, Cacheu, Bianga e Bissau... (LG):
(...) Canchungo, 18 de Setembro de 1972
Entrei para a tropa em Outubro de 1970. Durante seis meses em Mafra, com a recruta e especialidade, fizeram de mim um pequeno aspirante a oficial miliciano atirador de Infantaria. Fui colocado no Batalhão de Caçadores 5, em Lisboa, onde dei instrução a soldados durante um curto espaço de tempo.
Entrei para a tropa em Outubro de 1970. Durante seis meses em Mafra, com a recruta e especialidade, fizeram de mim um pequeno aspirante a oficial miliciano atirador de Infantaria. Fui colocado no Batalhão de Caçadores 5, em Lisboa, onde dei instrução a soldados durante um curto espaço de tempo.
Segui para Tancos, para a Escola Prática de Engenharia e em dois meses tirei um curso de Minas e Armadilhas. Fui mobilizado para a Guiné e colocado no Regimento de Infantaria 1 na Amadora, para formar Batalhão, exactamente este Batalhão 3863 que veio para o chão manjaco. A minha companhia 3460 foi parar ao Cacheu, mas eu não parti para a Guiné juntamente com estes homens.[1]
Uma operação a uma velha luxação crómio-clavicular no ombro direito, resultado de uma cena de pancadaria em que fui o personagem principal quando tinha dezassete anos, devidamente explorada, possibilitou-me a passagem aos serviços auxiliares. Fui reclassificado com a especialidade de Secretariado e desmobilizado.
Fiquei no R I. 1, como simples alferes amanuense no batalhão de Mobilização. Permaneci na Amadora durante um ano e já estava convencido de que o Ultramar não seria o meu destino. Até que fui novamente mobilizado para a Guiné, destinado a este CAOP. Quando deixei de pertencer ao Batalhão 3863 e à sua companhia 3460 [2], fui substituído no lugar de comandante de um pelotão de trinta homens, todos operacionais, pelo alferes miliciano Potra. Vi-os partir, reencontrei-os agora aqui, conheço quase toda a gente do Batalhão.
O Potra, o alferes nomeado em minha substituição na companhia 3460, devia encontrar-se no Cacheu, onde praticamente não há guerra. Está em Bissau, no hospital militar, sem a perna direita, desfeita pelo rebentamento de uma mina anti-pessoal. O Rocha, o alferes meu amigo que comanda um pelotão no Bachile é que me deu a notícia, no bar de oficiais do CAOP. Foi como se tivesse recebido um soco no estômago, caí como um pedregulho numa das cadeira de lona e lá permaneci um pedaço, sem mexer. Quantos homens sem pernas, quantos mortos, mas eu não os conheço e a vida continua!… Desta vez foi o Potra, podia ter sido eu. Que mal fez o rapaz para merecer tal sorte?
Ele permaneceu apenas durante dois meses no Cacheu. Como tinham militares a mais na vila, o Potra foi transferido para uma companhia de africanos em Mansabá, uma zona de muita porrada. Numa das saídas para o mato, pisou a mina anti-pessoal que lhe levou a perna.
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O Potra, o alferes nomeado em minha substituição na companhia 3460, devia encontrar-se no Cacheu, onde praticamente não há guerra. Está em Bissau, no hospital militar, sem a perna direita, desfeita pelo rebentamento de uma mina anti-pessoal. O Rocha, o alferes meu amigo que comanda um pelotão no Bachile é que me deu a notícia, no bar de oficiais do CAOP. Foi como se tivesse recebido um soco no estômago, caí como um pedregulho numa das cadeira de lona e lá permaneci um pedaço, sem mexer. Quantos homens sem pernas, quantos mortos, mas eu não os conheço e a vida continua!… Desta vez foi o Potra, podia ter sido eu. Que mal fez o rapaz para merecer tal sorte?
Ele permaneceu apenas durante dois meses no Cacheu. Como tinham militares a mais na vila, o Potra foi transferido para uma companhia de africanos em Mansabá, uma zona de muita porrada. Numa das saídas para o mato, pisou a mina anti-pessoal que lhe levou a perna.
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[1] Quando o batalhão 3863 deixou a Amadora e viajou para a Guiné, metamorfoseei a cantiga “Partindo-se” de João Roiz de Castelo-Branco, escrita no século XIV, assim:
Partem tão tristes os tristes,
Tão tristes de levar guerra
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns nesta terra.
Tão tristes, amargurados,
Tão doentes nesta vida,
Tão doídos, revoltados,
Em tempo de despedida.
Partem tão tristes, chorosos,
Tão longe de esperar bem,
Tão perdidos, tão saudosos
“Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém”.
[2] Para a história resumida do Batalhão de Caçadores 3863 e da “minha” companhia 3460, ver Resenha, 7º. vol., tomo II, pag. 157-158.
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(...) Canchungo, 25 de Setembro de 1972
No início de Outubro vou a Bissau, tratar da minha primeira viagem de férias a Portugal e comprar uma máquina fotográfica. Vai-me fazer bem sair daqui, mudar de ares. Como é que vou para Bissau? De avião, a passarola pode cair, de coluna, por estrada, estamos sujeitos a ser emboscados. Mas estas coisas são tão raras que nem se podem ter em conta. A morte não espreita atrás de cada palmeira. É verdade que todos os dias acontecem desgraças - o Potra ficou sem uma perna, - mas é preciso não mistificar, nem mitificar a situação militar. Eu não sou um operacional, sei onde me meto.
Ultimamente isto tem andado num virote, a guerra A, B, C, tantas letras até ao fim do alfabeto! (...)
(...) Canchungo, 30 de Setembro de 1972
O capitão Morgado veio do Cacheu até cá, o que sucede com alguma frequência, para tratar de pequenas operações com o meu coronel ou de outros assuntos com o seu comandante de batalhão. O Morgado é miliciano e comandante da Companhia 3460, a que pertenci. Sempre mantivemos um bom relacionamento, é boa pessoa, afável no trato e nas ideias. Hoje dizia-me: “Você não sabe o que perdeu em não vir para a minha Companhia, aquilo lá no Cacheu é uma estância de férias formidável:” E ria, ria. Não lhe falei nos fuzileiros mortos, recordei-lhe apenas a perna desfeita do alferes Potra, meu substituto. Já não riu, não me falou mais nas delícias do Cacheu.
Mas é verdade que o lugar, uma das vilas mais antigas da Guiné, vive em paz, não é atacada. O problema é a Caboiana e Jopá, as zonas libertadas do PAIGC perto do Cacheu e de Canchungo. A companhia 3460 não vai lá, por isso vivem tranquilos.
Sinal de paz e boa vida, o capitão trouxe-nos uns quilos de camarão cozido, fabuloso, grande, gostoso, pescado nas águas do rio Cacheu.
(...) Mansoa, 15 de Maio de 1973
Não há evacuações de helicóptero directamente do mato por isso os rapazes de Mansabá chegaram aqui ontem, os corpos sujos, as caras cobertas de pó, os olhos cheios de lágrimas, com um soldado que tinha uma perna desfeita por uma mina. O médico fez o que pôde e depois o infeliz foi levado para o hospital de Bissau. Lembrei-me do alferes Potra, meu substituto, que também ficou sem perna em Mansabá. Compreender estes homens, o porquê disto tudo. Sem literaturas. Eu, quase sem reacção, o coração ainda dói mas a cabeça esfria.
[, Foto à esquerda: o AGA, em Cufar, 1973]
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Nota do editor:
Último poste da série > 30 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10597: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (19): A pobreza em chão manjaco