1. Terceiro capítulo de "Papagiao Verde Versus Estrela do Norte", um original do nosso
camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490, Guiné,
1963/65):
CONTO DE NATAL
PAPAGAIO VERDE
Versus ESTRELA DO NORTE
A dois combatentes lucidamente
apaixonados pela Guiné-Bissau,
Drs. Mário Beja Santos e Carlos Silva
A velha aldeia de Lala…
A rapariga deixava, de quando em vez, desprender-se um
sorriso breve, talvez receoso. Sorria, e eu também. Era nessa língua
universal e doce que nos entendíamos naquela manhã. Diferente. Mas
também senti que, ao canto do seu sorriso, cor da manhã de fogo,
espreitavam enigmáticas palavras. Talvez incómodas e violentas, se as
deitasse fora da boca. O mais certo era de revolta. Jogava pelo seguro.
No silêncio. Talvez com a presença de João se abrisse… Não andaria em
sua busca?
3.º Episódio
Ah, o João! O Queta!
Neste ponto, outra tristeza, uma imensa tristeza, veio
habitar-me, de assalto. A lembrança de João plantou-me um remorso na
palma da mão, ou uma lâmina de fogo no peito, não o posso negar. Doeu-me
não ter feito algo mais para levá-lo para Lisboa, como ele tanto
desejava. O João (parece que ainda estou a vê-lo…), um exímio contador
de histórias, de sorriso largo, que gostava de usar óculos escuros, e o
Queta, destemido e de grande capacidade de sacrifício, pescoço sempre
adornado de amuletos e fetiches (os indispensáveis guardas de corpo),
supõe-se que vieram a ser fuzilados, após a independência. Era a caça, a
vingança desproporcionada, aos que, milícias ou comandos, haviam
combatido do nosso lado. Iam buscá-los ao fundo dos esconderijos, às
aldeias mais remotas e mais fechadas.
João e Queta, soube ao outro dia, andaram clandestinos
por algum tempo, viveram no Senegal e por muito outro chão, até que
vieram parar à aldeia de Algures que bem conheciam, julgando que a fúria
assassina que levava aos fuzilamentos e enterramentos em valas comuns,
Cumeré, Porto Gole, Mansabá, de antigos militares, cipaios, antigas
autoridades gentílicas, já havia passado. Sabiam que ali tinham amigos e
que todos, sobretudo, as mulheres, iriam rezar certamente a Alá pela
sua protecção, à noitinha de todos os dias. Aos irãs de todos os
entardeceres. E no seu coração de todas as horas.
Erraram em seu julgar.
Descobertos, de mãos amarradas atrás das costas, os
cubanos queimaram-lhes o peito, as mãos e os pés com lume de cigarro ou
de charuto. Moeram-lhes o corpo de punhadas, tatuaram-lhes sinistros
vergões, as costas ficaram em sangue vivo. Chegavam a desmaiar. Nessa
altura, enfiavam-lhes com a cabeça em baldes de água. Quando acordavam,
os carrascos (não se sabe também por que foram entregues aos cubanos
para o vergonhoso calvário…) repetiam a cena, entre cínicas gargalhadas,
vezes sem conta, insultando sempre. Até ao cansaço e ao esgotamento. E
gritavam-lhes, de raiva e sarcasmo: “não chorem, traidores, as lágrimas
podem fazer falta para amanhã”. [Amanhã era o dia do fuzilamento,
pensavam João e Keta, com mais insultos, mas sobretudo com uma alegria
enorme e aberrante, quase cantante]. “Aos traidores nunca se perdoa, não
valem um morrão de cigarro, estão vendidos ao imperialismo, ao
colonialismo! Lutaram contra os interesses do país e do povo. Não são
dignos de viverem à sombra da bandeira e do sangue dos outros.”
Segundo uma mulher, peles já amarrotadas como papel de
almaço velho e carregado de arabescos, não sei qual, mas com toda a
certeza a de mais de meia-idade – não, não fora aquela cuja pele vestia
panos, mas sobretudo muitas rugas e anos, e cujas feições, até pela cor,
me lembraram logo uma índia, já sei que isso é um rotundo disparate… –
segundo essa mulher, os cubanos haviam-nos também proibido de falar ou
gritar. Por cada palavra ou grito, uma intempestiva chicotada zunia no
espaço e vergastava-lhes os músculos, reduzia-lhes as defesas. O ódio
sempre foi, em todo o mundo, a força dos medíocres.
Ao mesmo tempo, atacavam o imperialismo americano e os
colonos brancos com um palavreado revolucionário, e de punho esquerdo
no ar. Também não esqueceram, fazendo forçadas comparações, os cubanos
anti-castristas que haviam fugido para a Florida, chamando-lhes muitos
nomes, como “puercos, cabrones, hijos da puta” e às mulheres “unas
cabras”… e soltavam, pois claro, gritos de vitória: “viva Amílcar
Cabral; viva Luis Cabral; viva Nino; viva “Guiné libre” e “tambien
Fidel, el comandante”; viva a revolução popular!”; “viva o povo”,
“viva…viva”.
O povo estava finalmente livre, “gracias a la guerra”.
Povo que não tardava a ser esquecido, e alguns combatentes também,
como, aliás acontece em todas as revoluções, com as patentes superiores a
puxarem a si os galões e o mando, às vezes, férreo, de algemas. É a
luta de facções, com os comandantes sempre muito nervosos.
João e Queta tiveram o azar de muitos, muitos outros.
Era a hora das trevas e do ódio. Depois, desapareceram. Foram fazer
estrume em valas comuns ou voaram nas asas dos terríveis jagudis?
Ninguém sabia exactamente como tudo se havia passado longe dali, como
num açougue. Tudo o que sabiam chegava, aos poucos, através de conversas
curtas, cochichadas no bentabá, entrecortadas de medos. Pequenos
pormenores apenas.
Ao terceiro dia, falaram-me de um antigo paiol do
exército, situado em Farim. Um buraco onde não entrava um raio de sol,
tão pouco uma réstea de ar, mas onde couberam dezenas de milícias.
Passado pouco tempo, haviam morrido todos por asfixia, à excepção de um a
quem deram um copo de água e um pouco de ar, mas, solidário no fim, foi
juntar-se ao amontoado de dezenas de mortos. Os corpos desapareceram e
nem tinham a certeza de que tudo fora assim como a notícia chegara a
Algures.
Eram, sem dúvida, perguntas incómodas. Ou, o mais
certo, poucos queriam recordar. Lembranças, mais do que dolorosas, eram
também aborrecidas. Evitavam, a todo o custo, a memória, o dia ou os
dias da grande ira, porque não foi uma só a hora nona das trevas e da
morte, do terrível ajuste de contas. Era a hora do ódio que restava da
guerra; cresciam a dor e o desassossego e faltava o amor. Isso era
notório, ninguém assumia falar na situação política do país, por vezes,
com o futuro armadilhado. Povo pasmado. A revolução já não era do povo,
como tanto haviam proclamado os novos senhores de Bissau, entendia-se no
seu entreabrir cuidadoso de palavras breves.
(Aqui está uma teia de casos e pistas a seguir e a
desbobinar por atento investigador, que não eu, pelos difíceis carreiros
da verdade. Decifrados todos os enigmas e paradoxos, isso daria, estou
certo, material bastante para um bom romance).
Mentiria se não dissesse que deixei correr algumas
lágrimas sobre um farrapo de esteira de bambu, desfeita como aquelas
vidas. Recolhi mesmo em meu peito espantado uma pequena flor de silêncio
e rezei-lhes por alma, ao mesmo tempo que prometi, já que não sabia em
que vala comum foram lançados os corpos (e jamais alguém saberia?) sem
choro, orações e batuque, ir lançar-lhas, em sua memória, nas brisas ou
nas canoas dos rios Corubal ou Geba. E por que não em ambos ou em
todos? Ou, pensando melhor, até pode ser no talhão dedicado aos
ex-combatentes no cemitério de Bissau. Ali até faz mais sentido. Aliás,
todo o sentido! Ou no cemitério de Bafatá, ainda que exiba a maior
degradação Aqui se misturam em correrias de inocência crianças, cabras,
cabritos e galinhas. Os cabritos são quem mais salta e cabriola sobre as
campas brancas ou verdes. Também as de alguns soldados negros, de
recrutamento local, lado a lado, tanto na vida partilhada de medos e
risos como no silêncio derradeiro e inútil. Se quer saber, o de
Bambadinca não está em melhor estado. Vedação escassa de esteira de cana
de bambu, é uma lixeira aberta.
Decidi-me pela primeira opção.
Um pouquinho mais de sorte teve o V. Seabra. Já ouviu falar neste nome? Só não
foi encostado ao muro e fuzilado, embora a morte o rondasse como abutre,
porque os maus-tratos, esses foram iguais, se não piores. E
prolongaram-se. Vagomestre de uma companhia do meu batalhão, resolvera
ficar. Casara em Bissau com uma bonita libanesa, locutora da rádio.
Montou empresas, empregou homens de cor. Uma delas foi responsável pela
limpeza da capital, durante muitos anos. Aproximou-se de Nino. Mas nem
esse cartão lhe serviu de nada. Os cubanos estavam em alta, achavam-se
também vencedores. Conheceu a perseguição feroz, a confusa e infecta
masmorra, o lume dos cigarros ou dos “habanos”, queimando-lhe as costas,
as mãos, os dedos, os ombros, partes íntimas do corpo. Já em carne
viva, mais para morrer do que para viver, não tentou a fuga sequer. E
tinha amigos para isso. Mudou várias vezes de actividade, mas o pior é
que não mais mudou o hábito da “sagrada libação” do uísque, que o levou à
degradação, quase um farrapo de homem, garrafa sobre garrafa, dia e
noite sobre noite e dia… como os maus-tratos o haviam levado à quase
loucura!
Como é a puta-da-vida, meu tenente-coronel! De bruços
sobre as mesas, enfrascava-se para esquecer. Respirava os restos da vida
nos vapores dos copos para sentir-se vivo. Tremiam-lhe as mãos, cheias
de marcas, grandes cicatrizes, por sob as palavras tensas, no mínimo
nervosas, na margem agreste da memória. Tremiam imenso. Vi-as tremer,
desamparadas, um dia, como cordas esfarrapadas de violino. No Gambrinus
ou no Arcádia. Tanto faz. Sei que foi em Lisboa. Doeram-me como dentadas
na carne. Hoje, felizmente, está a recuperar. Tentou até criar a
Associação de Amizade Portugal-Guiné/Bissau com o cantor Alcindo Antunes
(que, de vez em quando, enfia na cabeça um chapéu de palha, aba larga, e
uma pistola no alto cinturão, virando, de um momento para o outro,
cantor mexicano, o El Cindo, que canta canções sul-americanas, também de
Cuba, por acaso já o ouviu? Foi também como nós combatente no chão da
Guiné).
Quero ver se, além de amanhã, (já tentei a difícil
ligação por telemóvel), me encontro com ele num dos cafés da Avenida
Amílcar Cabral, para partir mantenhas, matar saudades e revisitar com
ele a cidade, tanta coisa! Pela amostra rápida que me foi permitida, a
cidade está envelhecida, de muitas e escusadas rugas. O Hospital
Militar, esventrado, dói. As acácias, essas magoam-me no seu vermelho
explosivo. As casas sujas adormecem melancolias indizíveis. Os passos
são lentos como os carreiros do mato. O Copilão é um labirinto de gente
sofrida. Havemos de percorrer-lhe, com calma, as veias da vida possível.
As cores e os aromas andam sobressaltados. Tanto como a alegria que
corre, por vezes, no fio de uma navalha. Não é necessário que ninguém
no-lo diga. Vê-se, pressente-se. Tarda a manhã definitiva, aureolada de
sol, sementes, sonhos e frutos, a qual vai nascendo nos olhos dos
meninos e morre, sem sentido, nas rugas dos combatentes ou nas mãos dos
mais velhos. Pode dizer-se que é uma manhã adiada, ou dito de outro
modo, um futuro combalido, apenas anunciado por palavras de
circunstância.
Iremos, se nos sobrar tempo do Copilom de Baixo, até
Cobom de Bandé, ou seja Bandim. Quero conhecer o lugar de onde saíram os
primeiros guerrilheiros e a nata dos dirigentes do PAIGC, que semearam
ideias e valores em que o povo acreditou e estão longe de cumprir-se.
Adiante!
Retomemos, afinal, de novo, o voo do Papagaio Verde de
há trinta e tal anos atrás. O outro, do neto de Abdul, lançado ontem
nos céus de fogo de algures, lá vai brincando com as brisas.
Chegados ao quartel, sem outros problemas para
resolver, passei parte da tarde e parte da noite da véspera de Natal a
fazer o papagaio. De jornais, por acaso, “O Século Ilustrado” e “A
Bola”, que chegavam às mãos do médico, com muitos dias ou semanas de
atraso e eram folheados com uma espantosa avidez, para saber novas do
Puto. “A Bola”, recordo, falava do Benfica, que então andava na roda
alta do futebol. Por ser bem maior, utilizei “O Século Ilustrado”. Nas
três pontas coloquei, para reforço das cruzetas, outros tantos
aerogramas de amor, que a minha namorada me enviara, dias antes, com um
sabor muito especial a Natal e a palavras de uma luminosa ternura, eu
diria a saber a carne e beijos escaldantes. Natal é amor, dissera, no
Natal do ano passado, o capelão. Escrevera isso também nesse Natal a
minha namorada, Amazilde Matos. Mas Natal ali naquele “cu do mundo” eram
sobretudo lágrima e saudade da casa paterna. Era uma maneira de fazer
com que aqueles desejos voassem e chovessem como uma bênção. Depois, o
garoto deveria delirar, ao encolher o fio ou a dar-lhe guita.
Achei graça ao que fizera com os aerogramas e fui
pedir outros, também de cor verde. Pedi mesmo aos soldados, cabos e
furriéis, que escrevessem uma mensagem, uma frase, alguns desejos.
Decentes, lembrei-lhes. Depois, com eles, forrei por dentro o papagaio.
Com o garoto do Abdul, hoje tranquilo avô, sempre por perto, de olhos
arregalados.
Após o recolher, fiquei na messe com os cabos do meu
pelotão, luz quase sombra, difusa; também com os outros alferes e o
capitão Varela e a mulher, a bela Mónica, que o fora visitar,
conversando sobre um Natal longe, comendo uns bolos secos e esvaziando
uma última garrafa de Vinho do Porto, que sobrara da nossa nostálgica,
apressada e curta ceia de Natal. Um ou outro ajudavam-me a cumprir
aquela promessa, quase ingénua, mas voando de ternura.
Dali a uns escassos vinte metros, ficava a caserna.
Era um velho armazém de um madeireiro, de nome
Brandão, natural das Ilhas de Cabo Verde, onde os soldados, os mais,
dormiam um sono de pedra, fatigados de uma semana diabólica. No armazém
àquela hora, os retardatários, à luz mortiça de feios candeeiros, pés
entrelaçados e dorso encostado à parede, cuja frescura naturalmente
apetecia (um calor sufocante e pegajoso trazia aos lábios um leve cheiro
a beatas pelo chão, suor ou até sexo) ficaram-se para ali a jogar
cartas, os menos, a escrevinhar umas mal anotadas regras, outros,
utilizando os aerogramas para as mães, as noivas, as namoradas, as
madrinhas de guerra. Com desejos de Natal que já havia passado, quando
os recebessem, ou de Bom Ano Novo, que vinha a caminho. Um deles, claro,
era o Azambuja (quem mais podia ser?), de bom costado, mas o soldado
mais romântico que eu tive ocasião de conhecer em África.
Quer ver?
Chegava a mandar em muitas cartas, senão em todas,
que, para isso substituíam os inconfidenciais aerogramas, uma ou duas
folhinhas secas de manjerico, que ia arrancar ao magro jardim, de sabor
beirão, com que o madeireiro enfeitara, antes da fuga, a alpendrada do
que era então residência do capitão e do médico, que era uma jóia de
homem. Ao contrário do capitão, que era pouco humano com os
prisioneiros. Ou mesmo nada. Não lhe entendia nem o sangue nem os
sonhos. Ali estava instalada igualmente a secção das transmissões.
Infelizmente, esse jardim, sem mão feminina que o
cuidasse e com o calor do tempo e da guerra, ali à mão dos soldados,
pouco tempo durou. Secara, mas o Azambuja, amoroso prevenido, arrecadara
algumas. Ainda que a menina de olho de pássaro azul o regasse ao
anoitecer de mais uma tarde incendiária.
– Como pode haver aqui flores, se o ódio as seca? – Questionava o
poeta Castro Maçãs, nortenho, de Vermoim, também terra do meu furriel
Carneiro, que, não sei se já sabe, faleceu, há largos anos. Doença ruim,
disseram-me na reunião do batalhão na Figueira da Foz. Olhe, na sua
cidade.
– Aqui só as flores que gerarmos por dentro de nós podem vingar, e
tão poucas vingarão… – respondia-lhe o médico, homem alto, desengonçado,
mas alma direitinha, ansiosa da paz entre os homens, de qualquer cor,
sempre solícito, que já não sei se disse, lembro-me, sentava, ao
sol-pôr, às vezes, no seu joelho, a pequena Usita, afiada de corpo,
vestindo panos coloridos ou de tronco nu, a menina que tinha os olhos de
pássaro azul. Ao cair da tarde ou no sossego das horas e dos mistérios
que corriam pelos matos em volta.
– Isso até parece, ó doutor, prédica de padre em véspera de Natal… –
intervim.
Quando as flores secaram e acabou o stock, o Azambuja
nunca mais enviou folhas de manjerico e a noiva perguntava
constantemente por elas, segundo me confidenciava, e se ele… já tinha
mudado de sítio. Ou se já a tinha trocado por uma negra. Nunca me
descosi. Depressa, o jardim foi a antítese da paz e da harmonia, uma
trincheira.
(Continua)
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10817: Conto de Natal (2): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (2) (Armor Pires Mota)
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
Guiné 63/74 - P10823: Parabéns a você (512): Humberto Reis, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71) e João Melo, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAV 8351 (Guiné, 1972/74)
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10807: Parabéns a você (511): António Paiva, ex-Soldado Condutor do HM 241 de Bissau (Guiné, 1968/70)
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10807: Parabéns a você (511): António Paiva, ex-Soldado Condutor do HM 241 de Bissau (Guiné, 1968/70)
terça-feira, 18 de dezembro de 2012
Guiné 63/74 - P10822: Mi querido blog, por qué no te callas?! (2): (i) A guerra também é capaz de revelar o que há de mais sublime nos seres humanos (Hilário Peixeiro); (ii) ... E eu estou nesta bela caravana há quase 9 anos (David Guimarães)...
1. Mensagem do Hilário Peixeiro, acabada de enviar (19h09), em comentário (off record) ao poste P10813 (*)
Caro Luis
Haverá várias razões para atitudes contra o que nos une no e ao blogue:
(i) uns porque "fugiram" à mobilização;
(ii) outros porque fugiram depois dela;
(iii) outros ainda porque tiveram a sorte de nascer depois da nossa geração;
(iv) etc;
Já assisti a comentários, semelhantes aos por si referidos, de camaradas meus que só conheceram a paz (graças a Deus) como se as nossas vivências os incomodassem ou os responsabilizássemos por as não terem vivido.
Uma guerra nunca é boa e é sempre uma tragédia para muitos. Mas quanta solidariedade, quanto do mais sublime que tem o ser humano, se manifesta só (infelizmente) nestas situações de sacrifício que pode ir até ao extremo?
Por isso o blogue irá viver por uns bons anos, se Deus quiser
Um forte abraço
Hilário Peixeiro
[Dx-comandante da CCAÇ 2403/BCAÇ 2851, Nova Lamego, Piche, Fá Mandinga, Olossato e Mansabá, 1968/70; atualmente, coronel na reforma]
2. Mensagem do grã-tabanqueiro nº 3, o David Guimarães, camarada da primeira hora, com data de 17 do corrente:
Caros amigos, caro Luís...
Tenho andado muito calado, mas sempre atento - naturalmente que coisas que vejo escritas com umas concordo, com outras afirmo "eu fui ator" e noutras vejo escritos romanceados.
No entanto tenho visto sempre respeito e curiosamente vejo efectivas correcções a eventuais escritos com certas imprecisões... Ainda bem que assim é, sinal da atenção e qualquer rectificação a um escrito feito só entra em benefício para que a história na circunstância fique mais precisa...
Muitos mais comentários possivelmente seriam de se colocar por aí mas contudo nota-se o receio de alguns, e serão milhares que nos lêem, e não escrevem (sei que gostarias que escrevessem). Torna-se evidente que quem não escreve, vai reparar na monopolização de artigos escritos, e bem, por outros nossos camaradas...
Certo é que há zonas, na circunstância, que são mais referidas do que outras, mas que fazer? Escrevam, a Guiné não está toda contada, a proposta inicial finalmente continua a ser cumprida e sei que pelo sacrificio de uns mais que outros... Refiro-me a editores e co-editores que fazem o favor de verem milhares e milhares de escritos que depois colocam em devido sítio... NÃO INVEJO O SEU TRABALHO MAS ELOGIO-OS POR TAL
... E cumpre-nos a todos ser uma coisa - camaradas, amigos...
Mas há gente que vive constantemente no "bota abaixo", coisa mais simples - e usando a adrenalina de quem não constrói nada e pouco sabe, pelos vistos, escreve coisas como essas que escreveu esse dito cujo anónimo... Se desse a cara, teria uma resposta, não a dando acho que ignorá-lo totalmente seria o melhor, pois não tem relevância o que diz nem fere em nada gente de bem como nós que andamos por aqui há tanto tempo a cruzarmos dados e batalhas, a contar a guerra que existiu e de que somos protagonistas. Esse às tantas nem lá andou ou às tantas, coitado, atingiu a senilidade antes de mim, paciência, isso é só de lamentar...
Assim passaria eu na minha opinião por cima disso, nem lhe teria dado resposta porque gente de boa fé não recorre ao anonimato.... Se estiver bem de saúde, ótimo, e então usaria o velho termo grosso popular: "Os cães ladram e a caravana passa"... Pois eu estou nesta bela caravana com 9 anos de existência, olha que bem... e vamos em frente!
Com um abraço,
David Guimarães
[Comentário de L.G.: Se a Tabanca Grande fosse uma empresa, e estivesse cotada na bolsa, o David Guimarães era um dos sócios fundadores, juntamente com o Sousa de Castro, o A. Marques Lopes, o Humberto Reis, e outros tertulianos da primeira hora, e hoje poderia estar... rico; foi fur mil, c/ a especialidade de minas e armadilhas, CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72].
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Caro Luis
Haverá várias razões para atitudes contra o que nos une no e ao blogue:
(i) uns porque "fugiram" à mobilização;
(ii) outros porque fugiram depois dela;
(iii) outros ainda porque tiveram a sorte de nascer depois da nossa geração;
(iv) etc;
Já assisti a comentários, semelhantes aos por si referidos, de camaradas meus que só conheceram a paz (graças a Deus) como se as nossas vivências os incomodassem ou os responsabilizássemos por as não terem vivido.
Uma guerra nunca é boa e é sempre uma tragédia para muitos. Mas quanta solidariedade, quanto do mais sublime que tem o ser humano, se manifesta só (infelizmente) nestas situações de sacrifício que pode ir até ao extremo?
Por isso o blogue irá viver por uns bons anos, se Deus quiser
Um forte abraço
Hilário Peixeiro
[Dx-comandante da CCAÇ 2403/BCAÇ 2851, Nova Lamego, Piche, Fá Mandinga, Olossato e Mansabá, 1968/70; atualmente, coronel na reforma]
2. Mensagem do grã-tabanqueiro nº 3, o David Guimarães, camarada da primeira hora, com data de 17 do corrente:
Caros amigos, caro Luís...
Tenho andado muito calado, mas sempre atento - naturalmente que coisas que vejo escritas com umas concordo, com outras afirmo "eu fui ator" e noutras vejo escritos romanceados.
No entanto tenho visto sempre respeito e curiosamente vejo efectivas correcções a eventuais escritos com certas imprecisões... Ainda bem que assim é, sinal da atenção e qualquer rectificação a um escrito feito só entra em benefício para que a história na circunstância fique mais precisa...
Muitos mais comentários possivelmente seriam de se colocar por aí mas contudo nota-se o receio de alguns, e serão milhares que nos lêem, e não escrevem (sei que gostarias que escrevessem). Torna-se evidente que quem não escreve, vai reparar na monopolização de artigos escritos, e bem, por outros nossos camaradas...
Certo é que há zonas, na circunstância, que são mais referidas do que outras, mas que fazer? Escrevam, a Guiné não está toda contada, a proposta inicial finalmente continua a ser cumprida e sei que pelo sacrificio de uns mais que outros... Refiro-me a editores e co-editores que fazem o favor de verem milhares e milhares de escritos que depois colocam em devido sítio... NÃO INVEJO O SEU TRABALHO MAS ELOGIO-OS POR TAL
... E cumpre-nos a todos ser uma coisa - camaradas, amigos...
Mas há gente que vive constantemente no "bota abaixo", coisa mais simples - e usando a adrenalina de quem não constrói nada e pouco sabe, pelos vistos, escreve coisas como essas que escreveu esse dito cujo anónimo... Se desse a cara, teria uma resposta, não a dando acho que ignorá-lo totalmente seria o melhor, pois não tem relevância o que diz nem fere em nada gente de bem como nós que andamos por aqui há tanto tempo a cruzarmos dados e batalhas, a contar a guerra que existiu e de que somos protagonistas. Esse às tantas nem lá andou ou às tantas, coitado, atingiu a senilidade antes de mim, paciência, isso é só de lamentar...
Assim passaria eu na minha opinião por cima disso, nem lhe teria dado resposta porque gente de boa fé não recorre ao anonimato.... Se estiver bem de saúde, ótimo, e então usaria o velho termo grosso popular: "Os cães ladram e a caravana passa"... Pois eu estou nesta bela caravana com 9 anos de existência, olha que bem... e vamos em frente!
Com um abraço,
David Guimarães
[Comentário de L.G.: Se a Tabanca Grande fosse uma empresa, e estivesse cotada na bolsa, o David Guimarães era um dos sócios fundadores, juntamente com o Sousa de Castro, o A. Marques Lopes, o Humberto Reis, e outros tertulianos da primeira hora, e hoje poderia estar... rico; foi fur mil, c/ a especialidade de minas e armadilhas, CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72].
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Nota do editor:
Guiné 63/74 - P10821: Tabanca Grande (373): João Manuel Pereira Rebola, ex-Fur Mil da CCAÇ 2444 (Guiné, 1968/70)
1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano João Manuel Pereira Rebola, ex-Fur Mil da açoriana CCAÇ 2444, Cacheu, Bissorã e Binar, 1968/70, com data de 17 de Dezembro de 2012:
Olá Luís Graça
Talvez por preguiça ou não, nunca tinha decidido partilhar no teu blog os momentos vividos e que foram muitos, desde que entrei na vida castrense até ao momento em que ela me deixou sair!
Assim, entendi que seria a partir de agora que o deveria fazer. E porquê?
Depois de ler o último artigo do Armando Pires, resolvi anuir ao pedido que lhe fizeste. " - convida o João Rebola....".
E cá estou.
Sou o João Manuel Pereira Rebola, ex-furriel mil. que cumpriu desde 15/11/68 a 20/08/70, a sua comissão na Guiné. Mas foi em Bissorã que conheci o furriel enfermeiro "ribatejano e fadista", Armando Pires e que ao fim de 40 anos nos reencontrámos!!!
O Armando, durante o tempo em que a minha companhia, a CCaç 2444 - "Os Coriscos", permaneceu em Bissorã, todos aos sábados, na messe dos sargentos do BCAÇ 2861, cantava fados como ninguém e tinha como acompanhantes o Vilas Boas e eu, que me encontro à sua direita, na foto, que confirma o epíteto de furriel fadista. Aqui está a prova real!!!!
Sou membro da Direcção da Tabanca Pequena de Matosinhos e gostaria de ser admitido na Tabanca Grande, para poder participar no v/ blog.
Um abraço do
João Rebola
Bissorã > Momento de fado, interpretado por Armando Pires, acompanhado pelas violas de João Rebola e Vilas Boas
2. Comentário de Luís Graça
João,
É uma grande honra receber-te aqui, de braços abertos, naquela que é a mãe de todas as Tabancas!... Claro que o teu pedido está mais que aceite e ratificado. O Armando Pires vai ficar feliz pela tua decisão, Todos somos poucos para gritar, bem alto, que somos portugueses de lei e guineenses de coração... Fizemos uma boa química com aquela terra, com aquela gente, e só queremos no futuro que aquele bom povo encontre os verdadeiros caminhos da independência, que são os da paz, do desenvolvimento sustentado, da democracia, da liberdade, da justiça.
Não sabia que estavas na direção da Tabanca de Matosinhos. Assim sendo, por certo, que partilhas esta ideia de que há futuro para a "nossa" Guiné e que a nossa geração, de combatentes, pode e deve ajudar também a fortalecer as pontes que ligam Portugal e a Guiné: a história, a língua, os afetos, a guerra, a paz, e a economia, por que não ?!... Bom, ficamos à espera de um história tua (é a jóia de entrada...). Espero ter a oportunidade de conhecer-te um dia destes ao vivo, aí no Norte. Vou passar o Natal à Madalena e depois vou passar dois ou três dias no Gerês, ficando na Pousada de Santa Maria do Bouro (de que gosto muito e cujo projeto tem a assinatura de um dos maiores arquitetos da atualidade, o Souto Moura) (Aproveito uma promoção, é a segunda vez que lá fico; na época alta, o preço é proibitivo).
João, és do Porto? Não sei se há mais alguma cidade do mundo com dois prémios Pritzker, o Nobel da arquitetura, o Siza Vieira e o Souto Moura... Às vezes tenho tenho a impressão de que nós, portugueses, não damos suficiente valor a nós mesmos, aos nossos talentos, às múltiplas coisas boas e lindas que temos... Vou pedir ao Carlos Vinhal que te apresente. É ele que tem este pelouro, o do apresentação dos novos membros da Tabanca Grande. E sabe fazê-lo com sabedoria de mestre.
Temos agora um conflito: acabo, esta manhã. de oferecer o nº 592 da Tabanca Grande ao nosso camarada e escritor Armor Pires Mota; se ele aceitar o convite, tu serás o nº 593...
Um santo e feliz Natal para ti e família.
Luís Graça
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10780: Tabanca Grande (372): O resto da autobiografia do nosso último grã-tabanqueiro, nº 591, João Carvalho Meneses, 2º tenente fuzileiro especial na situação de reforma, DFA, a residir em Azoia de Cima, Santarém
Olá Luís Graça
Talvez por preguiça ou não, nunca tinha decidido partilhar no teu blog os momentos vividos e que foram muitos, desde que entrei na vida castrense até ao momento em que ela me deixou sair!
Assim, entendi que seria a partir de agora que o deveria fazer. E porquê?
Depois de ler o último artigo do Armando Pires, resolvi anuir ao pedido que lhe fizeste. " - convida o João Rebola....".
E cá estou.
Sou o João Manuel Pereira Rebola, ex-furriel mil. que cumpriu desde 15/11/68 a 20/08/70, a sua comissão na Guiné. Mas foi em Bissorã que conheci o furriel enfermeiro "ribatejano e fadista", Armando Pires e que ao fim de 40 anos nos reencontrámos!!!
O Armando, durante o tempo em que a minha companhia, a CCaç 2444 - "Os Coriscos", permaneceu em Bissorã, todos aos sábados, na messe dos sargentos do BCAÇ 2861, cantava fados como ninguém e tinha como acompanhantes o Vilas Boas e eu, que me encontro à sua direita, na foto, que confirma o epíteto de furriel fadista. Aqui está a prova real!!!!
Sou membro da Direcção da Tabanca Pequena de Matosinhos e gostaria de ser admitido na Tabanca Grande, para poder participar no v/ blog.
Um abraço do
João Rebola
Bissorã > Momento de fado, interpretado por Armando Pires, acompanhado pelas violas de João Rebola e Vilas Boas
2. Comentário de Luís Graça
João,
É uma grande honra receber-te aqui, de braços abertos, naquela que é a mãe de todas as Tabancas!... Claro que o teu pedido está mais que aceite e ratificado. O Armando Pires vai ficar feliz pela tua decisão, Todos somos poucos para gritar, bem alto, que somos portugueses de lei e guineenses de coração... Fizemos uma boa química com aquela terra, com aquela gente, e só queremos no futuro que aquele bom povo encontre os verdadeiros caminhos da independência, que são os da paz, do desenvolvimento sustentado, da democracia, da liberdade, da justiça.
Não sabia que estavas na direção da Tabanca de Matosinhos. Assim sendo, por certo, que partilhas esta ideia de que há futuro para a "nossa" Guiné e que a nossa geração, de combatentes, pode e deve ajudar também a fortalecer as pontes que ligam Portugal e a Guiné: a história, a língua, os afetos, a guerra, a paz, e a economia, por que não ?!... Bom, ficamos à espera de um história tua (é a jóia de entrada...). Espero ter a oportunidade de conhecer-te um dia destes ao vivo, aí no Norte. Vou passar o Natal à Madalena e depois vou passar dois ou três dias no Gerês, ficando na Pousada de Santa Maria do Bouro (de que gosto muito e cujo projeto tem a assinatura de um dos maiores arquitetos da atualidade, o Souto Moura) (Aproveito uma promoção, é a segunda vez que lá fico; na época alta, o preço é proibitivo).
João, és do Porto? Não sei se há mais alguma cidade do mundo com dois prémios Pritzker, o Nobel da arquitetura, o Siza Vieira e o Souto Moura... Às vezes tenho tenho a impressão de que nós, portugueses, não damos suficiente valor a nós mesmos, aos nossos talentos, às múltiplas coisas boas e lindas que temos... Vou pedir ao Carlos Vinhal que te apresente. É ele que tem este pelouro, o do apresentação dos novos membros da Tabanca Grande. E sabe fazê-lo com sabedoria de mestre.
Temos agora um conflito: acabo, esta manhã. de oferecer o nº 592 da Tabanca Grande ao nosso camarada e escritor Armor Pires Mota; se ele aceitar o convite, tu serás o nº 593...
Um santo e feliz Natal para ti e família.
Luís Graça
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10780: Tabanca Grande (372): O resto da autobiografia do nosso último grã-tabanqueiro, nº 591, João Carvalho Meneses, 2º tenente fuzileiro especial na situação de reforma, DFA, a residir em Azoia de Cima, Santarém
Guiné 63/74 - P10820: À volta do poilão da Tabanca Grande: Boas Festas 2012/13 (1): Flor de sal para purificar e perfumar o chão das gentes boas da Guiné-Bissau (AD - Acção para o Desenvolvimento)
1. Postal de boas festas que nos foi enviado pelos nossos amigos da AD - Acção para o Desenvolvimento.
Parcos em palavras, mas nem por isso menos ricos em conteúdo comunicacional. Os tempos estão feios por esse mundo fora, este mundo está feio, dos Estados Unidos da América à Europa, da África ao Próximo Oriente. Os tempos estão feios em Portugal e na Guiné-Bissau.
O ano que aí vem, dizem os "maus augúrios", vai ser mais um annus horribilis... mais um dos muitos por que a nossa geração de antigos combatentes já passou. E, no entanto, a esperança continua a ser a flor que queremos e precisamos de cultivar no jardim da nossa alma. A esperança, a paz, a justiça, a liberdade, o pão nosso de cada dia...O pão que deve levar sal q.b., a água sem a qual não há vida, os bons ares, a saúde, o arroz, o mafé, tudo aquilo que é essencial à vida humana e sem o qual a liberdade e a justiça, tão queridas, tão desejadas, não passam de conceitos abstratos...
Escolhi este postalinho, dos nossos amigos da AD - Pepito & Companhia - , justamente para abrir aqui um cantinho, sob o poilão da nossa Tabanca Grande, para a gente dar (e receber) os tradicionais votos de Boas Festa...
A quem e de quem ? Pois, claro, aos (e dos) muitos amigos e camaradas da Guiné, portugueses de cá, portugueses da díáspora, guineenses de cá e lá, caboverdianos, angolanos, moçambicanos, são tomenses, timorenses, macaenses, goeses, brasileiros e outros lusófonos, e demais cidadãos do mundo que nos honram com a sua presença, como editores, colaboradores, autores, críticos, comentadores, clientes, fornecedores, parceiros, patrocinadores, financiadores, shareholders, stakeholders, vizinhos da blogosfera, cibernautas, nativos de outros planetas, etc.
E que melhor imagem do que esta - "mulheres produzindo flor de sal" - para a gente invocar a proteção dos bons irãs da nossa Tabanca Grande ? Não sei qual o seu real poder, mas eu acredito na eficácia simbólica dos bons irãs e da sua invocação, para que abençoem a nossa terra comum, a nossa casa comum, a nossa Tabanca Universal, de que Portugal e a Guiné são apenas duas moranças...
Da leitura do sitío dos nossos amigos da AD (*), ficamos a saber (e ficamos felizes por isso) que "neste ano de 2012, 399 mulheres do sector de São Domingos e 230 mulheres do sector de Ingoré produziram respetivamente 50.485 Kg e 22.769Kg de sal solar (flôr-de-sal) com o apoio tecnico das animadoras da AD nas diferentes tabancas rodeadas pelas bolanhas salgadas." É pouco ? É uma gota no oceano ? Mas o que é oceano, amigos e camaradas, senão um imensão de gotas ?
Bons augúrios para 2013, para a Guiné-Bissau, para o seu povo, para os nossos queridos amigos e parceiros da AD - Acção para o Desenvolvimento (LG).
Fotos: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2012). Todos os direitos reservados
________________
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 3 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10108: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (24): questionário de opinião sobre o seu sítio na Net (que tem 8 anos) e sobre a sua página no Facebook (que tem 2 anos)
Guiné 63/74 - P10819: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (XVI): O "Mau agoiro"; O cadáver adiado; Encontro com a má fortuna; A regra ou excepção?
1. Mensagem do nosso camarada Vasco da Gama (ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74), com data de 13 de Dezembro de 2012.
BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO - XVI
O “ MAU AGOIRO “ ; O CADÁVER ADIADO ; ENCONTRO COM A MÁ FORTUNA; A REGRA OU A EXCEPÇÃO?
Confesso que não lera o P10786*, mas ao receber um comentário do fundador deste nosso Blogue, eivado de tristeza e de desconforto, deu-se-me um aperto no coração, pois se há algo com que não pactuo é com a leveza com que se classifica o trabalho das outras pessoas e, neste caso particular, a forma imerecida, indevida e injusta como se passa a “certidão de óbito” a um espaço vivo, repositório de enorme saber, consultado por “tudo que é gente” com um número enorme de leitores, onde a liberdade de expressão é um direito, onde tantos de nós conseguiram ultrapassar o silêncio que a nós se colara durante tantos e tantos anos e aqui, pela primeira vez, como foi o meu caso, conseguiram começar a falar da guerra da Guiné e onde receberam palmadas amigas nas costas e afectos tão importantes que nos ajudaram a deitar cá para fora o que tanto nos incomodava.
Que fique claro, esse espaço chama-se LUÍS GRAÇA % CAMARADAS DA GUINÉ a quem presto homenagem na pessoa do seu fundador o Camarada Luís Graça! Quer isto dizer que estou em total acordo com tudo o que é publicado? Não senhores, não estou e manifestei-o há tempos quando Camaradas meus foram insultados pela publicação de um texto vindo de um qualquer blogue e, que fique bem claro, não tenho nada contra a publicação da história de qualquer Companhia, mas apenas contra os insultos à laia de apresentação que caíram sobre camaradas meus na Guiné que comeram o pão que o diabo amassou.
Adianto até que, ao contrário do que pensava, não mereci da parte do Luís Graça uma qualquer resposta à minha intervenção, ele que havia sido o editor de tal publicação!
Quer isto dizer que nunca me aborreci com ninguém? Não, sofri pelo menos uma desilusão de quem apregoa amplas liberdades, mas que, quando alguém emite opinião diferente da sua, corta relações pessoais!
Mas que culpa tem o Blogue? Nenhuma! E se, Luís Graça, não viste nenhuma coruja pousar sobre a nossa Tabanca à meia noite, o Blogue não morrerá em breve, segundo S. Cipriano, para desanuviar!
O meu Camarada Alberto Branquinho que sempre leio com gosto e atenção, refere que a expressão “cadáver adiado que procria” é usada pelo poeta algarvio António Ramos Rosa para nos ensinar que todos nós somos falíveis, fugazes, efémeros mas o HOMEM, tal como o BLOGUE LUÍS GRAÇA & CAMARADAS DA GUINÉ, continuará a andar por aí.
Sem me querer armar aos cágados dizer que esta expressão é retirada de um poema de Fernando Pessoa, intitulado:
D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou o meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Lidos os comentários fui então ao Poste Má Fortuna do meu camarada e amigo José Dinis! O cenário deste episódio é em tudo idêntico a outros já relatados pelo autor; os actores principais são os mesmos, o Cap. Trapinhos e os dois primeiros sargentos e a conclusão também a mesma: roubaram à tripa forra.
Alguns camaradas dizem ter sido esta a regra, outros que este tipo de comportamento terá sido excepção. Deixo o assunto para quem apresente provas… e há tantos estudiosos!
Não sei se houve da parte do Zé Dinis coragem para lhes ter dito na cara o que agora escreve e, se sim, a minha admiração! Não, não me venham com essa dos galões pois quando há razão e provas… venha quem vier!
Curiosamente, após os quatro meses que fiz de estágio em Angola e no retorno a Mafra, onde pouco ou nada aprendi, havia da nossa parte, os então tenentes de proveta, uma conversa recorrente: como será o primeiro sargento? Se forem assim estamos feitos, se forem assado estamos safos!
Era o medo da entrega da Companhia no final da comissão que nos preocupava, emprenhados que estávamos com histórias e histórias que se contavam de sargentos que se ofereciam para fazer comissão atrás de comissão! Mas se lá, no Ultramar, ganham não sei quantas vezes mais… diziam uns.
Não é só o que ganham de ordenado é também o que ganham por fora, contavam outros e havia sempre um camarada que ouvira dizer que fulano ou beltrano ou sicrano enriquecera num instante, enfim à boa maneira portuguesa.
Eu que vivi no mato com os meus homens, tinha a secretaria em Aldeia Formosa, onde diariamente nos deslocávamos para ir buscar os géneros e só muito mais tarde, creio que em finais de 1973 vieram para o Cumbijã, já com outras condições de habitabilidade! O primeiro sargento da minha CCav 8351 chamava-se António Joaquim Redondeiro, já falecido, em quem sempre acreditei, que sempre, sem titubiezas, me apresentava o que eu pedia, pois ser economista tem algumas vantagens, que me abraçou a chorar quando tivemos a saga de Nhacobá, que sempre soube ter o pré no primeiro dia de cada mês, que nunca atrasou um mapa e que era respeitado por todos nós!
Aqui deixo a sua fotografia a modos de homenagem
Um bom Natal para toda a malta da Tabanca Grande!
Vasco Augusto Rodrigues da Gama
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 11 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10786: História da CCAÇ 2679 (57): Encontro com a má fortuna (José Manuel M. Dinis)
Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10279: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (XV): Que a ânsia de números e o bater de recordes não maltrate as pessoas
BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO - XVI
O “ MAU AGOIRO “ ; O CADÁVER ADIADO ; ENCONTRO COM A MÁ FORTUNA; A REGRA OU A EXCEPÇÃO?
Confesso que não lera o P10786*, mas ao receber um comentário do fundador deste nosso Blogue, eivado de tristeza e de desconforto, deu-se-me um aperto no coração, pois se há algo com que não pactuo é com a leveza com que se classifica o trabalho das outras pessoas e, neste caso particular, a forma imerecida, indevida e injusta como se passa a “certidão de óbito” a um espaço vivo, repositório de enorme saber, consultado por “tudo que é gente” com um número enorme de leitores, onde a liberdade de expressão é um direito, onde tantos de nós conseguiram ultrapassar o silêncio que a nós se colara durante tantos e tantos anos e aqui, pela primeira vez, como foi o meu caso, conseguiram começar a falar da guerra da Guiné e onde receberam palmadas amigas nas costas e afectos tão importantes que nos ajudaram a deitar cá para fora o que tanto nos incomodava.
Que fique claro, esse espaço chama-se LUÍS GRAÇA % CAMARADAS DA GUINÉ a quem presto homenagem na pessoa do seu fundador o Camarada Luís Graça! Quer isto dizer que estou em total acordo com tudo o que é publicado? Não senhores, não estou e manifestei-o há tempos quando Camaradas meus foram insultados pela publicação de um texto vindo de um qualquer blogue e, que fique bem claro, não tenho nada contra a publicação da história de qualquer Companhia, mas apenas contra os insultos à laia de apresentação que caíram sobre camaradas meus na Guiné que comeram o pão que o diabo amassou.
Adianto até que, ao contrário do que pensava, não mereci da parte do Luís Graça uma qualquer resposta à minha intervenção, ele que havia sido o editor de tal publicação!
Quer isto dizer que nunca me aborreci com ninguém? Não, sofri pelo menos uma desilusão de quem apregoa amplas liberdades, mas que, quando alguém emite opinião diferente da sua, corta relações pessoais!
Mas que culpa tem o Blogue? Nenhuma! E se, Luís Graça, não viste nenhuma coruja pousar sobre a nossa Tabanca à meia noite, o Blogue não morrerá em breve, segundo S. Cipriano, para desanuviar!
O meu Camarada Alberto Branquinho que sempre leio com gosto e atenção, refere que a expressão “cadáver adiado que procria” é usada pelo poeta algarvio António Ramos Rosa para nos ensinar que todos nós somos falíveis, fugazes, efémeros mas o HOMEM, tal como o BLOGUE LUÍS GRAÇA & CAMARADAS DA GUINÉ, continuará a andar por aí.
Sem me querer armar aos cágados dizer que esta expressão é retirada de um poema de Fernando Pessoa, intitulado:
D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou o meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Lidos os comentários fui então ao Poste Má Fortuna do meu camarada e amigo José Dinis! O cenário deste episódio é em tudo idêntico a outros já relatados pelo autor; os actores principais são os mesmos, o Cap. Trapinhos e os dois primeiros sargentos e a conclusão também a mesma: roubaram à tripa forra.
Alguns camaradas dizem ter sido esta a regra, outros que este tipo de comportamento terá sido excepção. Deixo o assunto para quem apresente provas… e há tantos estudiosos!
Não sei se houve da parte do Zé Dinis coragem para lhes ter dito na cara o que agora escreve e, se sim, a minha admiração! Não, não me venham com essa dos galões pois quando há razão e provas… venha quem vier!
Curiosamente, após os quatro meses que fiz de estágio em Angola e no retorno a Mafra, onde pouco ou nada aprendi, havia da nossa parte, os então tenentes de proveta, uma conversa recorrente: como será o primeiro sargento? Se forem assim estamos feitos, se forem assado estamos safos!
Era o medo da entrega da Companhia no final da comissão que nos preocupava, emprenhados que estávamos com histórias e histórias que se contavam de sargentos que se ofereciam para fazer comissão atrás de comissão! Mas se lá, no Ultramar, ganham não sei quantas vezes mais… diziam uns.
Não é só o que ganham de ordenado é também o que ganham por fora, contavam outros e havia sempre um camarada que ouvira dizer que fulano ou beltrano ou sicrano enriquecera num instante, enfim à boa maneira portuguesa.
Eu que vivi no mato com os meus homens, tinha a secretaria em Aldeia Formosa, onde diariamente nos deslocávamos para ir buscar os géneros e só muito mais tarde, creio que em finais de 1973 vieram para o Cumbijã, já com outras condições de habitabilidade! O primeiro sargento da minha CCav 8351 chamava-se António Joaquim Redondeiro, já falecido, em quem sempre acreditei, que sempre, sem titubiezas, me apresentava o que eu pedia, pois ser economista tem algumas vantagens, que me abraçou a chorar quando tivemos a saga de Nhacobá, que sempre soube ter o pré no primeiro dia de cada mês, que nunca atrasou um mapa e que era respeitado por todos nós!
Aqui deixo a sua fotografia a modos de homenagem
Foste a regra ou foste a excepção?
Um bom Natal para toda a malta da Tabanca Grande!
Vasco Augusto Rodrigues da Gama
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 11 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10786: História da CCAÇ 2679 (57): Encontro com a má fortuna (José Manuel M. Dinis)
Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10279: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (XV): Que a ânsia de números e o bater de recordes não maltrate as pessoas
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Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné,
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Tigres de Cumbijã,
Vasco da Gama
Guiné 63/74 - P10818: Convívios (487): Uma viagem por terras da Lusitânia (José Câmara)
1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 11 de Dezembro de 2012:
Caro mano Carlos, amigos e camaradas,
Junto encontrarão mais uma pequena artigo do que foi a minha viagem por terras da Lusitânia e do convívio das CCaç 3326, 3327 e 3328.
Se algum camarada, e muito especialmente destas três companhias, estiver interessado em mais fotos do convívio, agradeçco que me contactem.
Para todos os meus votos de boa saúde.
Abraço transatlântico.
José Câmara
As Companhias de Caçadores 3326, 3327 e 3328 reuniram em convívio
Esta nossa viagem por terras da Lusitânia foi meticulosamente preparada pelo casal Fur. Mil. João e Fernanda Cruz. Para além dos já referidos encontros com o Juvenal e o mano Carlos e a muito simpática esposa Dina*, a simbiose entre a paisagem natural e histórica permitiu que eu e a minha esposa vivêssemos momentos de êxtase indescritíveis. Portugal é lindo em ambas vertentes!
Por terra de Óbidos, durante a Feira Medieval, tivemos a oportunidade de observar um povoado parado no tempo. Muralhas bem mantidas, pórtico altaneiro, ruas limpas, casario pintado, estabelecimentos asseados, muitos estudantes estrangeiros, vestidos ao rigor de épocas passadas, a viverem a história de Portugal. Os jovens portugueses pareciam contentes em observá-los. A ginjinha em copo de chocolate é uma autêntica delícia. Experimentei-a uma à entrada das muralhas. Quando saí tomei-lhe o gosto novamente.
Na serra do Buçaco fechámos os olhos e vimos os franceses a serem desbaratados e a regressarem a seu país cabisbaixos, derrotados. Não uma vez, mas três vezes. Agora, naquela serra vive-se o silêncio e a paz que as lindas árvores centenárias parecem pedir. As águias-reais nos seus voos majestosos são mais um ornamento a encher os olhos dos mais requintados. O belo Mosteiro, transformado em pousada turística, rodeado de belos e bem tratados jardins completa a paisagem.
O conjunto arquitetónico, o arranjo primoroso dos jardins e o silêncio da paisagem transformam Buçaco num lugar idílico.
Dali ao Luso foi um instante. Como antigamente, pela palma da mão, bebemos água da fonte. Adoro aquela água. É pena chegar aos EUA não ao preço da chuva, mas ao preço do ouro. O constante vaivém das pessoas a carregarem a água da fonte chamou-nos a atenção. Cinco garrafas por pessoa é o autorizado. A sombra do fim do dia convidava a um passeio por entre os jardins daquela bem tratada avenida. Foi isso que fizemos! Em Alcobaça, ficámos surpreendidos com a grandeza do Mosteiro que dá por aquele nome. A altura do Mosteiro, a beleza das suas colunas, a criatividade dos altares e dos túmulos levam-nos a outras épocas e a perguntar: como foi possível construir tanta magia, tanta beleza? No seu interior vivemos a história de um amor proibido. Os lamentos e as esperanças, os gritos da agonia da morte e os de revolta ecoam pela imensidão daquele espaço. Trágico, cruel! Os dois amantes, Pedro e Inês, conseguiram na morte a justiça que em vida lhes foi negada. Ficaram juntos! Como testemunha eterna têm a Cruz do Salvador.
Na Nazaré, lá do alto da escarpa, apreciámos a bela e imensa praia e a imensidão do mar que a beija. Mas a nossa atenção foi mesmo para a Ermida da Memória. Ali fomos convidados pelo navegador Vasco da Gama, a ajoelhar-nos perante a veneranda imagem de N.ª Sra. da Nazaré. Dizia-nos ele que aquela Senhora, mais do que outra qualquer, o iria ajudar no seu grande empreendimento, a descoberta do caminho marítimo para a Índia. O resultado obtido certamente que é um grande testemunho da sua fé.
Ao sairmos da Ermida demos de caras com o D. Fuas Roupinho. Acabara de perseguir um veado que se atirara pela escarpa. Homem de grande fé, dava graças à N.ª Sra. da Nazaré por lhe ter salvado a vida, quando o seu cavalo refreou a corrida a tempo de não cair pela enorme falésia. A atestar as suas palavras lá estavam os sulcos feitos pelas patas da sua montada e a ponta da falésia criada pelo arrasto das pedras debaixo das patas do cavalo. Nas mesmas circunstâncias também teria feito agradecimento semelhante. Do veado, não sabia o que lhe tinha acontecido depois de cair daquelas alturas. Mas lá foi acrescentando que devia ser o mesmo que eu, algumas vezes, tivera na mira da minha G3, algures nas matas da Guiné. Assim, com esta simplicidade, se fez história e lenda através dos tempos.
No Sábado, dia 21 de Julho, marcámos presença em Reguengo do Fetal, no restaurante Pérola do Fetal. Um autêntico retiro, acolhedor, amplo, com excelentes espaços circundantes. Foi aqui que as CCaç 3326, 3327 e 3328 marcaram presença. Pela segunda vez, desde que saíram da Guiné, os militares destas companhias se reuniram em convívio. Companhias independentes, formadas no antigo BII17, Angra do Heroísmo, com destinos e comandos diferentes na Guiné, têm como elo de ligação mais importante a grande amizade que havia entre os seus militares.
Um convívio desta natureza, que no caso destas companhias deve ser raro, possivelmente único, só é possível com o máximo de colaboração entre aqueles que se encarregam de levar a bom porto um evento desta natureza. O José Santos, Cabo Enfermeiro da CCaç 3326, que acabou por não poder estar presente, o Fur Mil João Cruz da CCaç 3327 e o Fur Mil Victor Costa da CCaç 3328 foram os responsáveis por um convívio impecável na organização e no convívio social. Eles estão de parabéns por um evento muito bem conseguido.
Foram escolhidos os representantes de cada companhia para se dirigirem aos camaradas e seus familiares presentes. Das palavras proferidas, há que ressalvar o compromisso que nós, militares que fomos, ainda temos para com a história. Para além do reconhecimento e agradecimento pela presença de todos, foi recapitulada a história dos nossos convívios. Também se falou da nossa história ultramarina, quando fomos chamados a combater na Guiné. Foi relembrado que nenhum de nós tinha que se envergonhar por ter cumprido o seu dever.
É sempre confortante reencontrar aqueles com quem convivi muitos meses, alguns bem difíceis, em terras da Guiné. Na chegada, o abraço é um matar saudade. No fim do convívio levámos os últimos abraços e as últimas palavras de esperança. A dolorosa despedida. Um até para o ano, possivelmente na linda Ilha de São Miguel.
A caminho de Lisboa fomos deixando os quilómetros para trás. E com eles fomos revendo, entusiasmados, as delícias sociais do dia. Chegámos à capital já noite e ali outro abraço de despedida aos meus bons e grandes amigos que, no convívio de 2010, nos tinham recebido na sua casa, no Algarve, o casal Luís Pinto e a Samara Araújo. Deles trago sempre um saco de bom companheirismo e camaradagem e amizade.
Ainda nos estava reservada uma grande surpresa para aquela noite. O João Cruz levou-nos ao Monumento aos Mortos dos Combatentes do Ultramar. Ali, pela primeira vez, tive a oportunidade de apreciar o que o meu País fez pelos seus filhos, que não se coibiram de sacrificar a vida por ela. Aproveitei a oportunidade para lhes prestar a minha singela homenagem enquanto ex-militar e católico. Conversei um pouco com o Manuel Veríssimo, um garboso militar da CCaç 3327, cuja vida a Pátria requisitou e Deus chamou ao Seu regaço.
No regresso ao Hotel, o nosso Capitão Alves ainda esperava por nós. Tal como nos tempos da Guiné ele está sempre ao nosso lado. A noite já ía longa, mas isso não interessa. Havia que aproveitar todos os minutos. Finalmente a despedida. Ao Cap. Alves e ao casal Picanço que foi do Canadá, via Graciosa.
Um agradecimento muito especial aos nossos amigos João e Fernanda Cruz pelo cuidado e pelo carinho que puseram em todos os detalhes, para que nos sentíssemos como se estivéssemos em casa.
Já no avião que nos levava de regresso aos Açores, a minha madrinha de guerra, a minha esposa, ainda surpreendida com tudo o que nos acontecera de bom, e que foi muito, perguntou:
- Tu tens amigos maravilhosos. Como é possível tanta amizade ao fim de tantos anos?
Respondi:
- Esses amigos maravilhosos, que agora conheces, são parte de uma família muito especial. A amizade quando é baseada no respeito e na honestidade sobrevive independentemente das circunstâncias da vida.
A viagem até ao Faial ainda demoraria algum tempo. O corpo pedia um fechar de olhos. Foi isso que fiz sonhando com o próximo ano, com o próximo encontro.
Sim eu tenho amigos maravilhosos.
José Câmara
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 12 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10372: Blogoterapia (216): As amizades são para serem vividas (José Câmara / Carlos Vinhal)
Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10814: Convívios (486): Almoço/Convívio de Natal da Tabanca dos Melros, ou o Último Voo de 2012 (Jorge Teixeira - Portojo)
Caro mano Carlos, amigos e camaradas,
Junto encontrarão mais uma pequena artigo do que foi a minha viagem por terras da Lusitânia e do convívio das CCaç 3326, 3327 e 3328.
Se algum camarada, e muito especialmente destas três companhias, estiver interessado em mais fotos do convívio, agradeçco que me contactem.
Para todos os meus votos de boa saúde.
Abraço transatlântico.
José Câmara
As Companhias de Caçadores 3326, 3327 e 3328 reuniram em convívio
Esta nossa viagem por terras da Lusitânia foi meticulosamente preparada pelo casal Fur. Mil. João e Fernanda Cruz. Para além dos já referidos encontros com o Juvenal e o mano Carlos e a muito simpática esposa Dina*, a simbiose entre a paisagem natural e histórica permitiu que eu e a minha esposa vivêssemos momentos de êxtase indescritíveis. Portugal é lindo em ambas vertentes!
Por terra de Óbidos, durante a Feira Medieval, tivemos a oportunidade de observar um povoado parado no tempo. Muralhas bem mantidas, pórtico altaneiro, ruas limpas, casario pintado, estabelecimentos asseados, muitos estudantes estrangeiros, vestidos ao rigor de épocas passadas, a viverem a história de Portugal. Os jovens portugueses pareciam contentes em observá-los. A ginjinha em copo de chocolate é uma autêntica delícia. Experimentei-a uma à entrada das muralhas. Quando saí tomei-lhe o gosto novamente.
No Castelo de Óbidos o tempo parou dentro das suas muralhas
Na serra do Buçaco fechámos os olhos e vimos os franceses a serem desbaratados e a regressarem a seu país cabisbaixos, derrotados. Não uma vez, mas três vezes. Agora, naquela serra vive-se o silêncio e a paz que as lindas árvores centenárias parecem pedir. As águias-reais nos seus voos majestosos são mais um ornamento a encher os olhos dos mais requintados. O belo Mosteiro, transformado em pousada turística, rodeado de belos e bem tratados jardins completa a paisagem.
O conjunto arquitetónico, o arranjo primoroso dos jardins e o silêncio da paisagem transformam Buçaco num lugar idílico.
Dali ao Luso foi um instante. Como antigamente, pela palma da mão, bebemos água da fonte. Adoro aquela água. É pena chegar aos EUA não ao preço da chuva, mas ao preço do ouro. O constante vaivém das pessoas a carregarem a água da fonte chamou-nos a atenção. Cinco garrafas por pessoa é o autorizado. A sombra do fim do dia convidava a um passeio por entre os jardins daquela bem tratada avenida. Foi isso que fizemos! Em Alcobaça, ficámos surpreendidos com a grandeza do Mosteiro que dá por aquele nome. A altura do Mosteiro, a beleza das suas colunas, a criatividade dos altares e dos túmulos levam-nos a outras épocas e a perguntar: como foi possível construir tanta magia, tanta beleza? No seu interior vivemos a história de um amor proibido. Os lamentos e as esperanças, os gritos da agonia da morte e os de revolta ecoam pela imensidão daquele espaço. Trágico, cruel! Os dois amantes, Pedro e Inês, conseguiram na morte a justiça que em vida lhes foi negada. Ficaram juntos! Como testemunha eterna têm a Cruz do Salvador.
Mosteiro de Alcobaça, conjunto harmónico de rara beleza: arquitetura, religião, história.
Na Nazaré, lá do alto da escarpa, apreciámos a bela e imensa praia e a imensidão do mar que a beija. Mas a nossa atenção foi mesmo para a Ermida da Memória. Ali fomos convidados pelo navegador Vasco da Gama, a ajoelhar-nos perante a veneranda imagem de N.ª Sra. da Nazaré. Dizia-nos ele que aquela Senhora, mais do que outra qualquer, o iria ajudar no seu grande empreendimento, a descoberta do caminho marítimo para a Índia. O resultado obtido certamente que é um grande testemunho da sua fé.
Monumento a imortalizar a passagem do navegador Vasco da Gama por Nazaré.
Ao sairmos da Ermida demos de caras com o D. Fuas Roupinho. Acabara de perseguir um veado que se atirara pela escarpa. Homem de grande fé, dava graças à N.ª Sra. da Nazaré por lhe ter salvado a vida, quando o seu cavalo refreou a corrida a tempo de não cair pela enorme falésia. A atestar as suas palavras lá estavam os sulcos feitos pelas patas da sua montada e a ponta da falésia criada pelo arrasto das pedras debaixo das patas do cavalo. Nas mesmas circunstâncias também teria feito agradecimento semelhante. Do veado, não sabia o que lhe tinha acontecido depois de cair daquelas alturas. Mas lá foi acrescentando que devia ser o mesmo que eu, algumas vezes, tivera na mira da minha G3, algures nas matas da Guiné. Assim, com esta simplicidade, se fez história e lenda através dos tempos.
No Sábado, dia 21 de Julho, marcámos presença em Reguengo do Fetal, no restaurante Pérola do Fetal. Um autêntico retiro, acolhedor, amplo, com excelentes espaços circundantes. Foi aqui que as CCaç 3326, 3327 e 3328 marcaram presença. Pela segunda vez, desde que saíram da Guiné, os militares destas companhias se reuniram em convívio. Companhias independentes, formadas no antigo BII17, Angra do Heroísmo, com destinos e comandos diferentes na Guiné, têm como elo de ligação mais importante a grande amizade que havia entre os seus militares.
Bolo comemorativo do convívio 2012.
Um convívio desta natureza, que no caso destas companhias deve ser raro, possivelmente único, só é possível com o máximo de colaboração entre aqueles que se encarregam de levar a bom porto um evento desta natureza. O José Santos, Cabo Enfermeiro da CCaç 3326, que acabou por não poder estar presente, o Fur Mil João Cruz da CCaç 3327 e o Fur Mil Victor Costa da CCaç 3328 foram os responsáveis por um convívio impecável na organização e no convívio social. Eles estão de parabéns por um evento muito bem conseguido.
Os Furriéis João Cruz e Victor Costa, dois dos responsáveis pelo convívio 2012.
Foram escolhidos os representantes de cada companhia para se dirigirem aos camaradas e seus familiares presentes. Das palavras proferidas, há que ressalvar o compromisso que nós, militares que fomos, ainda temos para com a história. Para além do reconhecimento e agradecimento pela presença de todos, foi recapitulada a história dos nossos convívios. Também se falou da nossa história ultramarina, quando fomos chamados a combater na Guiné. Foi relembrado que nenhum de nós tinha que se envergonhar por ter cumprido o seu dever.
José Câmara e o Alf Mil Francisco Magalhães, Cmdt do 4.º GCOMB
É sempre confortante reencontrar aqueles com quem convivi muitos meses, alguns bem difíceis, em terras da Guiné. Na chegada, o abraço é um matar saudade. No fim do convívio levámos os últimos abraços e as últimas palavras de esperança. A dolorosa despedida. Um até para o ano, possivelmente na linda Ilha de São Miguel.
O Alf Mil Ferraz e a Esposa. Mais atrás o Alf Mil Neves. Na mesa, José Câmara, Tesoureiro-Adjunto.
(Foto Cortesia de Luís Pinto)
A caminho de Lisboa fomos deixando os quilómetros para trás. E com eles fomos revendo, entusiasmados, as delícias sociais do dia. Chegámos à capital já noite e ali outro abraço de despedida aos meus bons e grandes amigos que, no convívio de 2010, nos tinham recebido na sua casa, no Algarve, o casal Luís Pinto e a Samara Araújo. Deles trago sempre um saco de bom companheirismo e camaradagem e amizade.
Já não conseguimos juntar todos para a foto da despedida.
Ainda nos estava reservada uma grande surpresa para aquela noite. O João Cruz levou-nos ao Monumento aos Mortos dos Combatentes do Ultramar. Ali, pela primeira vez, tive a oportunidade de apreciar o que o meu País fez pelos seus filhos, que não se coibiram de sacrificar a vida por ela. Aproveitei a oportunidade para lhes prestar a minha singela homenagem enquanto ex-militar e católico. Conversei um pouco com o Manuel Veríssimo, um garboso militar da CCaç 3327, cuja vida a Pátria requisitou e Deus chamou ao Seu regaço.
No regresso ao Hotel, o nosso Capitão Alves ainda esperava por nós. Tal como nos tempos da Guiné ele está sempre ao nosso lado. A noite já ía longa, mas isso não interessa. Havia que aproveitar todos os minutos. Finalmente a despedida. Ao Cap. Alves e ao casal Picanço que foi do Canadá, via Graciosa.
Um agradecimento muito especial aos nossos amigos João e Fernanda Cruz pelo cuidado e pelo carinho que puseram em todos os detalhes, para que nos sentíssemos como se estivéssemos em casa.
Já no avião que nos levava de regresso aos Açores, a minha madrinha de guerra, a minha esposa, ainda surpreendida com tudo o que nos acontecera de bom, e que foi muito, perguntou:
- Tu tens amigos maravilhosos. Como é possível tanta amizade ao fim de tantos anos?
Respondi:
- Esses amigos maravilhosos, que agora conheces, são parte de uma família muito especial. A amizade quando é baseada no respeito e na honestidade sobrevive independentemente das circunstâncias da vida.
A viagem até ao Faial ainda demoraria algum tempo. O corpo pedia um fechar de olhos. Foi isso que fiz sonhando com o próximo ano, com o próximo encontro.
Sim eu tenho amigos maravilhosos.
José Câmara
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 12 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10372: Blogoterapia (216): As amizades são para serem vividas (José Câmara / Carlos Vinhal)
Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10814: Convívios (486): Almoço/Convívio de Natal da Tabanca dos Melros, ou o Último Voo de 2012 (Jorge Teixeira - Portojo)
Guiné 63/74 - P10817: Conto de Natal (2): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (2) (Armor Pires Mota)
1. Segundo capítulo de "Papagiao Verde Versus Estrela do Norte", um original do nosso
camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490, Guiné,
1963/65):
CONTO DE NATAL
PAPAGAIO VERDE
Versus ESTRELA DO NORTE
A dois combatentes lucidamente
apaixonados pela Guiné-Bissau,
Drs. Mário Beja Santos e Carlos Silva
A velha aldeia de Lala…
Consegui saber naquele momento pouco menos do que nada. Que acompanhara o João na clandestinidade, na fuga ao inevitável cutelo ameaçador, mas já não chegara com ele a Algures, adiantou uma mulher alta em seus ombros estreitos, deitando algumas lágrimas que escondeu com as mãos. Foi como que um segredo que fez crescer o alforge das angústias e das perplexidades. Ficámos por ali. Mas prometi-lhes que ainda havíamos de falar noutra altura. O grupo fechara-se nesse aspecto, adensando a nebulosa de um mistério. Talvez as lágrimas fossem o caminho para desvendar mais alguma coisa, pensei, mas a sós. Noutra ocasião. Queria, no fundo, sacudir alguns fantasmas, que estavam a surgir, mas alguns pingos apressados de chuva rasgaram as nuvens e mataram naquele ponto a conversa. Fomos uns para cada lado.
2.º Episódio
Vamos a uma coisa de cada vez.
A gente de Algures, enquanto a chuva tamborilava nas chapas de zinco, essa deixou escoar-se de vivas emoções, cercando-me e tocando-me as mãos, os ombros, os sentimentos, a pele da alma, como se eu fosse estranho irã, mas amado de algum modo.
O chefe Gibril serviu-me, de mãos trémulas, um belo chá e as mulheres bolos de farinha de arroz, fatias de manga, enquanto eu e os homens íamos relembrando nomes e histórias. Além do prato de bolos de arroz, em forma arredondada, iguaria muito usada nos casamentos, metáfora da fecundidade da terra e da mulher, havia ainda um prato de nozes de cola. Não toquei neste fruto, um elixir afrodisíaco. Aliás, nunca me fora à boca. Não era necessário, embora servisse de prova de amizade. Também me ofereceu vinho de caju. Eu escusei-me, dizendo, delicadamente, que, àquela hora, não ia mesmo nada, andava sofrendo do estômago por causa de uma hérnia. Juro-lhe que não mentia.
Na casa de adobe, além de uma mesa de mogno mal aparelhada, e de esteiras de bambu, havia um balouço de rede para corpo cansado e tambores de diversos tamanhos. Julgo ter contado cinco. E também um rádio portátil, o tom um pouco alto, que Gibril fez questão de desligar. Todavia, por minha sugestão, que só o desligasse quando Cesária Évora, a rainha das mornas, com brutos calos nos pés, que a impedem de saltar nos palcos, acabasse de cantar, como só ela sabe, mornas de Cabo Verde. Uma reporta-se, com grande nostalgia e acesa dor, à emigração para S. Tomé, para o duro trabalho das roças e do suor mal pago e, tantas vezes, vergastado. Julgo que se intitula Sôdade. Corrija-me, se estiver errado, quando nos encontrarmos aí pelo Porto, no Café Ancoradouro ou no Café Progresso. Pode ser neste último, que é mais para a nossa idade. Está a ver. Fica próximo da Praça dos Leões.
– Há trinta chuvas… nosso alfero! – Começou por dizer o chefe. – Então, era um rapaz.
– Chuvas que muito sangue e lágrimas, ódio e preconceitos lavaram… Não acredita? – Repliquei. – Ao contrário, puseram-nos cabelos brancos na cabeça e alguma ferrugem nos ossos.
– Eu acredita.
A conversa abriu caminho. Eu estava pronto a ouvi-lo, mais do que a falar. Todavia, confesso que me havia prometido não levar para o verde capim as lembranças da velha que andara por S. Tomé e fumava longo cachimbo de cana e se perdia por um bom café. Às vezes, também enrolava folha de tabaco, cortada em diagonal, para depois fazer o seu charuto. Era quando mais falava palavras mansas, talvez desconexas, mas era assim que desentaramelava a língua, a alma, embrulhando ao mesmo tempo os restos do sol e do sonho, quando se aproximavam os irãs que andavam pela floresta, sua natural morada, e vinham falar com as pessoas, apoderando-se do seu coração. Os poilões eram as árvores preferidas para se guardarem dos vivos.
Passado algum tempo, talvez uma hora, não mais, o chefe carregou e ofereceu-me um cachimbo, de madeira, com boquilha, trabalhado, bem bonito. Fez o mesmo ritual relativamente a um mais pequeno e ambos fumámos melancolias, lembranças, alguma breve cumplicidade de outros tempos, mas, como é óbvio, também longa serenidade e bem-estar. Era a paz. Mulheres e homens já não partem e chegam das bolanhas e das lalas, tristes, metidos entre dois fogos, mas, à guisa do salmista, chegam das colheitas com alegria e a paz pintadas no rosto (“os que semeiam em lágrimas recolhem com alegria… À volta, vêm a cantar, trazendo os molhos de espigas”).
O mesmo sucede com os que vão à caça ou à pesca e com os pastores que regressam de crias aos ombros, cantando, ao cair da tarde em fogo, na sua língua nativa, seguros em seus passos e seu destino curto.
Em vez do progresso, uma grande calmaria passa por aqui. Calma pobreza que, no entanto, não lhes ceifa o sorriso. De quando em vez, inquietante. Algures, efectivamente, mudou-se, mas não mudou. A pobreza contra que se batera Amílcar Cabral continua a ser um estigma. Aliás, fora uma das justificações para a luta que, cumprida, depressa deu lugar ao ócio e à fome, ao medo e às vinganças. Os comandantes e os dirigentes aburguesaram-se. Têm automóveis e concubinas. Alguns enriqueceram, não se sabem, claramente, os motivos. O povo, que passa fome, não sabe como, mas desconfia. Fala-se em rotas de drogas…
O chefe da tabanca de Algures ia-me revelando muitas coisas que se haviam passado, após a independência, que ele festejara com algumas reservas. Só evitava, a todo o transe, trazer para a conversa o João, que fora do meu pelotão. Por mim, entendi não insistir. Talvez no outro dia. Foi neste momento que o avô Abdul me fez um inesperado pedido: que fizesse para os netos, o Cherno e companhia, e também para as outras crianças, um papagaio como o Papagaio Verde. Disse-lhe, escusando-me, que ainda não era Natal. Não importava, respondeu, de pronto e com um sorriso miúdo de pássaro. Alá e o seu Profeta não deixam de rir sempre lá em cima, nas brisas, por cima das nuvens. Frisou mesmo que tinha, à minha espera, há trinta anos ou mais, já nem sabia bem, algumas folhas de jornais, cana, cola e cordão e folhas de papel, da cor da sua bandeira nacional… Sempre pensara, disse com um brilho muito especial nos olhos, que, um dia, eu havia de voltar, como tantos, confessou… E insistia:
– Ensina-os a fazer o papagaio, nosso alfero Casanova?
– Ensino, Abdul! Por que não havia eu de ensiná-los? Mas, olha, já não vai ter a cor do Papagaio Verde, mas as cores de um país novo…Acabaram-se os aerogramas, há muito, onde nós escrevíamos, às vezes com lágrimas, a nossa guerra e falávamos, com admiração e temor, dos riscos que vocês corriam por nossa causa.
– Não importa. Pode chamar-se ”Estrela do Norte” e cada ponta representará um desejo: a paz, o pão, a fraternidade…
– Está assente. Vejo que tens belas ideias e lindos sonhos. Não te posso negar, por mais esta razão.
– Vai fazer mesmo?
– Sim, por que não? Vamos, então, à obra! – Fiz uma pausa. – Chama lá os netos… – levem tudo para o bentabá.
As nuvens corriam mais calmas no céu. Os garotos correram do terreiro. Daí a pouco, eram já mais de dez. Upa, upa!
Nesse instante, aproximaram-se com seus guinchos e gritos estridentes e impertinências, bem nossas conhecidas, alguns macacos fulas, que desarticularam o sossego natural. Se calhar, também sonhavam com estrelas, disse, em tom de brincadeira, às crianças a quem os pais andam ensinando ritmos e bandeiras de um país novo, que tarda a chegar, a cada passo.
Os miúdos giravam à minha volta, movendo muito os olhos e as cabecitas de uma infinita alegria, que ia voando à medida que a estrela ia ficando em condições de conquistar o céu. Os maiores eram quem ia trabalhando, às minhas ordens. Era a história da cana de pesca de Mao, revolucionário, de que alguns haviam ouvido falar. Alguns homens abanaram, afirmativamente, a cabeça. Para almofadar o estrado, utilizámos algumas edições de Nô Pintcham, que também serviram na perfeição para armar o papagaio. Bem como amarelecida propaganda de outros tempos do PAIGC. Onde procurei ler, em vão, alguma coisa de interesse. O que mais vi foram rostos de Che Guevara, Fidel, Marx, Mao, Nino e Amílcar Cabral, sobraçando frases, pensamentos, desenhando futuros.
A última coisa que as crianças fizeram foi pegar num marcador verde e escrever aquelas três palavras mágicas – ou melhor, pedi que três deles as escrevessem: paz, pão, fraternidade. Aos mais velhitos indiquei-lhes que, ao centro, deveriam desenhar a palavra Guiné, o que fizeram, radiantes. Como se fossem voar também. Depois, um deles, fixando-me os olhos, um nadinha papudos, cercou as palavras com um coração vermelho e abriu um sorriso do tamanho de uma flor de caju. Ou foi da largura do terreiro e da tarde? Talvez da altura do poilão, que, sagrado, também dava sombra ao bentabá. Enorme, secular, gigantesco, raízes fundas furando séculos. Como na antiga aldeia de Algures, onde era necessária mais de meia dúzia de soldados para dar-lhe um simples abraço. Fizemos esse jogo, pouco tempo depois de arribarmos àquele buraco, um dos muitos de um inferno extenso, com línguas de fogo, turbilhões de medos e calvários de dor e morte por toda parte.
“Estrela do Norte” voando sobre a aldeia de Algures foi o delírio da miudagem, naquele fim de tarde, tal como há trinta e mais anos. Isso fez também voar um sorriso nostálgico dos lábios dos que, um dia, brincaram com o Papagaio Verde.
Quanto a esta terra, de gente simpática e boa, começa a ser tempo de lhe dizer que, um dia, havia de mudar de nome, mais ou menos após o acantonamento da minha companhia de cavalaria (a pé) e do primeiro Natal, aqui passado. Pelo menos, na gíria militar, mas também entre a população, sobretudo a miudagem, que achava graça ao caso. Por uma coisa tão simples como um papagaio, imagine, um Papagaio Verde…
– Então, como vai Papagaio Verde? – Perguntava, meio a brincar, meio a sério, o comandante do batalhão, que bem conhece. Estava acantonado em Farim. Às vezes, em tom de gozo, mesmo zombeteiro de quem vivia no ar condicionado. Exagero meu. Para dizer a verdade, sempre em tom de chacota. Sabe como era.
– Ainda tem as asas muito presas ao chão – respondia, à letra, o capitão Varela, soltando um sorriso sardónico…
– Como assim?
– É a guerra…
– Vamos, então, ao que importa – cortava o comandante do batalhão. Mas, meu tenente-coronel, a verdade é que havia uma razão para a troca de nome. É espantoso como um gesto, às vezes insignificante, pode mudar a vida das pessoas e das coisas.
Espere, eu conto.
Era uma vez uma rapariga, de perfil quase perfeito e de uma notória beleza sensual, pontuada por seios redondos e generosos, direitos e inocentemente provocatórios do olhar… logo guloso, logo faminto, dos soldados. Redondos como os da Usita, nos dezoito anos, altivos. Faço comparações, ainda com a foto da Usita nas mãos, que desfolham lembranças, rumores da floresta vitoriosa, liturgias, quase em tom de conversa, de mil pássaros. E era também, uma vez, um garoto, de olhos rasgados e líquidos de sonho manso, e um burrico, que se nomeia por também ser filho de Alá, nosso Senhor.
Adiantando um pouco, quando a rapariga arreou do burro para a tropa deitar a maca no dorso, felizmente vazia, e aliviá-lo ainda do peso ingrato e bruto do Beja, que se havia acavalitado, rindo um dente malandro, ela exibiu um corpo flexível que só visto, uma boca modulada em música breve, naturalmente açucarada de caju maduro, talvez mais manga, e a sofisticação da raça fula. Por sua vez, o garoto, medroso como pássaro, de tenra idade - todos disseram que teria três chuvas e pico e a rapariga, mama firme, que para aí quinze, dezasseis… - tinha os olhos líquidos de sonho manso. Como a rapariga, só mesmo a menina que tinha olhos de pássaro azul.
Encontrei-os no mato sem fim, de mil perigos e feitiços, no mês de Dezembro, ia no segundo ano de comissão, que estava prestes a acabar, e já não era sem tempo. A alma já cheirava a sangue ou bolor, o corpo a cicatrizes, que doíam por terra alheia. Era uma mata de aromas carnosos que saltavam das árvores em desalinho por entre a redonda e infindável seara de capim que acoitava bicharia sem conta. E, como também sabe, muita gente disposta a correr com a tropa. E também por vezes, gente a fazer jogo duplo, os gajos dos informadores.
Era um verdadeiro quadro saído das mãos de um qualquer Goya africano aquela rapariga, escarranchada no dorso magro do burrico e o garoto ao seu colo. O animal parece que trotava sem destino e sem pressa. Tinham-se perdido, fugindo aos guerrilheiros? Não cheguei a saber claramente nessa ocasião. Nunca se sabia de que lado estava aquela gente. Açoitada pelos ventos do nada, nos carreiros da miséria.
A toda e qualquer pergunta, a resposta era inevitável, como bem sabe o meu tenente-coronel: mim cá sibi, mim cá sibi!
Com a rapariga em cima, mais o garoto, aquele quadro lembrou-me, ainda que impropriamente, a fuga de Nossa Senhora com S. José e o Menino para o Egipto, temendo as espadas de Herodes. E nós ali também não temíamos as armas de Nino e outros comandantes como Osvaldo Máximo Vieira, que comandava nas fechadas matas do Oio, impenetrável “império dos Oincas”? [As matas hoje estão a ser devastadas para a extracção de madeiras exóticas]. Como se me tivesse de convencer que vinha aí a noite de Natal. O calendário litúrgico pelo menos assim rezava. Só faltava S. José. Mas esse papel poderia fazê-lo, se necessário, o Meia Lavada da Silva, que tinha barbas, por acaso, mal aparadas num queixo pensativo. Por sinal, até era carpinteiro de profissão. Deus me perdoe, mas creia, meu tenente-coronel, que foi isso que parvamente me ocorreu. Maliciosamente, direi, porque, sempre que podia, deitava o olhar cobiçoso nas mangas especiais, que eram os seios redondos da rapariga. Gaita! Era toda boa. Vá lá, não se ria. Era realmente uma ideia tosca, abocanhada de saliva lasciva, quase pecaminosa, mas confesso que foi aquela que me surgiu com mais força. E quem confessa a verdade… Olhe, lembro-me bem que também me inundou uma onda de azul ternura pela rapariga e pelo menino, por todos os meninos da tabanca do mundo, que passavam fome ou já pegavam em armas.
Quanto ao burro… Quando, nessa manhã, verde e esbraseante de Dezembro, lhe roubei a rapariga e o garoto, sacudiu as orelhas num arremesso de raiva e desferiu dois relinchos, agudos e doridos, que espantaram, como violento coice, alguns bicos-de-lacre e tarambolas, que saltaram, de repente, do capim, que estava a ser penteado por uma brisa agradável. Quase me cuspiu em jeito de quem odeia. Mas ele, garanto, não era como nós, brancos e negros em armas. Não odiava.
Palmilhadas as aldeias de Sare Tenem e Bricama, onde nos levara uma noite de lua duvidosa, aquele Platero ronceiro era o primeiro da fila, seguindo a rapariga, Fatumata de nome. Aqui está um belo ícone de África. Vim a saber que assim se chamava, depois de meia hora de caminho. O garoto dava pelo nome de Abdul. Pelo menos, foi isso que entendi. E foi assim que sempre o tratei, errado ou certo. Certo, disse-me um mês depois. O animal ia agora armado de cartucheiras e cantis batendo-lhe na barriga. Imprevidências de soldados em fim de comissão! E, espiando-o por debaixo do capacete, via que ele me olhava de viés, descontente, talvez assustado da minha cor, mas continuava a vencer o caminho, estreito e enovelado, como serpente. Perigoso quanto bastava. Por vezes, soldado havia, que, abusando, nele se escarranchava, à vez, para cá da ponte. Onde, um dia, o meu pelotão foi emboscado. Foi uma refrega dos diabos com feridos e um morto, o transmontano Rui Montalvão, do morteiro, que me apertou a mão e me olhou, espantado na despedida. Morreu nos meus braços. Com o enfermeiro, tentando estancar-lhe o rio de sangue. Em vão. O rio era demasiado profundo e definitivo. Adiante, que ainda dói.
Uns adoçavam-lhe a dentuça com mãos-cheias de erva. Outros, brincando à toa, zangavam-no com mordiscadelas nas orelhas ou no rabo. Até se esqueciam que estavam em guerra.
Parecia que íamos todos a caminho de romaria das Almas ou de Belém. Mais de Belém, sim, que, na noite desse dia, seria Natal. E, em minhas cogitações clandestinas, prometi ao garoto um papagaio para ele atirar às estrelas, ao céu, como uma ânsia de asa aberta. Seria a minha boa acção de escuteiro, que já havia sido em Chão de Mouros.
– Jubi, vou fazer-te um papagaio. Amanhã, Abdul, é dia de Natal – disse assim, embora sabendo que não entendia nada, mesmo nada, e muito menos sabia o que era isso de Natal. Noite de Natal... Não vinha no Alcorão. – Mim cá sibi – Isto é, descodificando, o garoto não entendia nada do que eu ia para ali a tagarelar. Se o idioma nos separava, muito mais o chão, o sangue.
À rapariga, de tez fortemente acobreada, que iria ser, sem dúvida, o encanto, a flor maior, a mais cobiçada de muitos dias no quartel de Algures, onde os soldados, uma vez ou outra, batucavam com as bajudas, coração a galope, não lhe prometi nada, mas talvez o soldado João, o negro e bom João, igualmente de raça fula, que, à viva força, queria vir connosco para Lisboa, se pudesse enamorar dos seus seios redondos, macieza de pêssego, do seu corpo flexível e grácil, da sua coxa bem torneada. Do rosto, nem se fala. Era plasmado de beleza exultante e simpática. Como a Usita. Não sabendo bem a relação entre ela e o garoto, se filho, irmão ou familiar, ou até entre ela e o negro João, se irmão ou namorado, perguntei-lhe sorrateiramente:
– Jubi, bó tem catota? – Não entendeu, ou fez que não entendeu, o mais provável, e perguntei de outra forma: – Bó tem cabaço? – Não descerrou os lábios. Já conhecia certamente a mania do branco querer ser sempre o primeiro a provar aquilo, entre mil promessas. Resumindo, e descodificando também aqui, o que eu queria saber era se ainda era virgem ou não. Aquelas tontarias que os soldados procuravam saber, quase sempre junto das negras mais jovens. Sabe como era. E, afinal, que me interessava isso, se a tropa havia combinado não tocar em ventre de mulher? Já no apalpar…
A rapariga deixava, de quando em vez, desprender-se um sorriso breve, talvez receoso. Sorria, e eu também. Era nessa língua universal e doce que nos entendíamos naquela manhã. Diferente. Mas também senti que, ao canto do seu sorriso, cor da manhã de fogo, espreitavam enigmáticas palavras. Talvez incómodas e violentas, se as deitasse fora da boca. O mais certo era de revolta. Jogava pelo seguro. No silêncio. Talvez com a presença de João se abrisse… Não andaria em sua busca?
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 17 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10812: Conto de Natal (1): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (1) (Armor Pires Mota)
CONTO DE NATAL
PAPAGAIO VERDE
Versus ESTRELA DO NORTE
A dois combatentes lucidamente
apaixonados pela Guiné-Bissau,
Drs. Mário Beja Santos e Carlos Silva
A velha aldeia de Lala…
Consegui saber naquele momento pouco menos do que nada. Que acompanhara o João na clandestinidade, na fuga ao inevitável cutelo ameaçador, mas já não chegara com ele a Algures, adiantou uma mulher alta em seus ombros estreitos, deitando algumas lágrimas que escondeu com as mãos. Foi como que um segredo que fez crescer o alforge das angústias e das perplexidades. Ficámos por ali. Mas prometi-lhes que ainda havíamos de falar noutra altura. O grupo fechara-se nesse aspecto, adensando a nebulosa de um mistério. Talvez as lágrimas fossem o caminho para desvendar mais alguma coisa, pensei, mas a sós. Noutra ocasião. Queria, no fundo, sacudir alguns fantasmas, que estavam a surgir, mas alguns pingos apressados de chuva rasgaram as nuvens e mataram naquele ponto a conversa. Fomos uns para cada lado.
2.º Episódio
Vamos a uma coisa de cada vez.
A gente de Algures, enquanto a chuva tamborilava nas chapas de zinco, essa deixou escoar-se de vivas emoções, cercando-me e tocando-me as mãos, os ombros, os sentimentos, a pele da alma, como se eu fosse estranho irã, mas amado de algum modo.
O chefe Gibril serviu-me, de mãos trémulas, um belo chá e as mulheres bolos de farinha de arroz, fatias de manga, enquanto eu e os homens íamos relembrando nomes e histórias. Além do prato de bolos de arroz, em forma arredondada, iguaria muito usada nos casamentos, metáfora da fecundidade da terra e da mulher, havia ainda um prato de nozes de cola. Não toquei neste fruto, um elixir afrodisíaco. Aliás, nunca me fora à boca. Não era necessário, embora servisse de prova de amizade. Também me ofereceu vinho de caju. Eu escusei-me, dizendo, delicadamente, que, àquela hora, não ia mesmo nada, andava sofrendo do estômago por causa de uma hérnia. Juro-lhe que não mentia.
Na casa de adobe, além de uma mesa de mogno mal aparelhada, e de esteiras de bambu, havia um balouço de rede para corpo cansado e tambores de diversos tamanhos. Julgo ter contado cinco. E também um rádio portátil, o tom um pouco alto, que Gibril fez questão de desligar. Todavia, por minha sugestão, que só o desligasse quando Cesária Évora, a rainha das mornas, com brutos calos nos pés, que a impedem de saltar nos palcos, acabasse de cantar, como só ela sabe, mornas de Cabo Verde. Uma reporta-se, com grande nostalgia e acesa dor, à emigração para S. Tomé, para o duro trabalho das roças e do suor mal pago e, tantas vezes, vergastado. Julgo que se intitula Sôdade. Corrija-me, se estiver errado, quando nos encontrarmos aí pelo Porto, no Café Ancoradouro ou no Café Progresso. Pode ser neste último, que é mais para a nossa idade. Está a ver. Fica próximo da Praça dos Leões.
– Há trinta chuvas… nosso alfero! – Começou por dizer o chefe. – Então, era um rapaz.
– Chuvas que muito sangue e lágrimas, ódio e preconceitos lavaram… Não acredita? – Repliquei. – Ao contrário, puseram-nos cabelos brancos na cabeça e alguma ferrugem nos ossos.
– Eu acredita.
A conversa abriu caminho. Eu estava pronto a ouvi-lo, mais do que a falar. Todavia, confesso que me havia prometido não levar para o verde capim as lembranças da velha que andara por S. Tomé e fumava longo cachimbo de cana e se perdia por um bom café. Às vezes, também enrolava folha de tabaco, cortada em diagonal, para depois fazer o seu charuto. Era quando mais falava palavras mansas, talvez desconexas, mas era assim que desentaramelava a língua, a alma, embrulhando ao mesmo tempo os restos do sol e do sonho, quando se aproximavam os irãs que andavam pela floresta, sua natural morada, e vinham falar com as pessoas, apoderando-se do seu coração. Os poilões eram as árvores preferidas para se guardarem dos vivos.
Passado algum tempo, talvez uma hora, não mais, o chefe carregou e ofereceu-me um cachimbo, de madeira, com boquilha, trabalhado, bem bonito. Fez o mesmo ritual relativamente a um mais pequeno e ambos fumámos melancolias, lembranças, alguma breve cumplicidade de outros tempos, mas, como é óbvio, também longa serenidade e bem-estar. Era a paz. Mulheres e homens já não partem e chegam das bolanhas e das lalas, tristes, metidos entre dois fogos, mas, à guisa do salmista, chegam das colheitas com alegria e a paz pintadas no rosto (“os que semeiam em lágrimas recolhem com alegria… À volta, vêm a cantar, trazendo os molhos de espigas”).
O mesmo sucede com os que vão à caça ou à pesca e com os pastores que regressam de crias aos ombros, cantando, ao cair da tarde em fogo, na sua língua nativa, seguros em seus passos e seu destino curto.
Em vez do progresso, uma grande calmaria passa por aqui. Calma pobreza que, no entanto, não lhes ceifa o sorriso. De quando em vez, inquietante. Algures, efectivamente, mudou-se, mas não mudou. A pobreza contra que se batera Amílcar Cabral continua a ser um estigma. Aliás, fora uma das justificações para a luta que, cumprida, depressa deu lugar ao ócio e à fome, ao medo e às vinganças. Os comandantes e os dirigentes aburguesaram-se. Têm automóveis e concubinas. Alguns enriqueceram, não se sabem, claramente, os motivos. O povo, que passa fome, não sabe como, mas desconfia. Fala-se em rotas de drogas…
O chefe da tabanca de Algures ia-me revelando muitas coisas que se haviam passado, após a independência, que ele festejara com algumas reservas. Só evitava, a todo o transe, trazer para a conversa o João, que fora do meu pelotão. Por mim, entendi não insistir. Talvez no outro dia. Foi neste momento que o avô Abdul me fez um inesperado pedido: que fizesse para os netos, o Cherno e companhia, e também para as outras crianças, um papagaio como o Papagaio Verde. Disse-lhe, escusando-me, que ainda não era Natal. Não importava, respondeu, de pronto e com um sorriso miúdo de pássaro. Alá e o seu Profeta não deixam de rir sempre lá em cima, nas brisas, por cima das nuvens. Frisou mesmo que tinha, à minha espera, há trinta anos ou mais, já nem sabia bem, algumas folhas de jornais, cana, cola e cordão e folhas de papel, da cor da sua bandeira nacional… Sempre pensara, disse com um brilho muito especial nos olhos, que, um dia, eu havia de voltar, como tantos, confessou… E insistia:
– Ensina-os a fazer o papagaio, nosso alfero Casanova?
– Ensino, Abdul! Por que não havia eu de ensiná-los? Mas, olha, já não vai ter a cor do Papagaio Verde, mas as cores de um país novo…Acabaram-se os aerogramas, há muito, onde nós escrevíamos, às vezes com lágrimas, a nossa guerra e falávamos, com admiração e temor, dos riscos que vocês corriam por nossa causa.
– Não importa. Pode chamar-se ”Estrela do Norte” e cada ponta representará um desejo: a paz, o pão, a fraternidade…
– Está assente. Vejo que tens belas ideias e lindos sonhos. Não te posso negar, por mais esta razão.
– Vai fazer mesmo?
– Sim, por que não? Vamos, então, à obra! – Fiz uma pausa. – Chama lá os netos… – levem tudo para o bentabá.
As nuvens corriam mais calmas no céu. Os garotos correram do terreiro. Daí a pouco, eram já mais de dez. Upa, upa!
Nesse instante, aproximaram-se com seus guinchos e gritos estridentes e impertinências, bem nossas conhecidas, alguns macacos fulas, que desarticularam o sossego natural. Se calhar, também sonhavam com estrelas, disse, em tom de brincadeira, às crianças a quem os pais andam ensinando ritmos e bandeiras de um país novo, que tarda a chegar, a cada passo.
Os miúdos giravam à minha volta, movendo muito os olhos e as cabecitas de uma infinita alegria, que ia voando à medida que a estrela ia ficando em condições de conquistar o céu. Os maiores eram quem ia trabalhando, às minhas ordens. Era a história da cana de pesca de Mao, revolucionário, de que alguns haviam ouvido falar. Alguns homens abanaram, afirmativamente, a cabeça. Para almofadar o estrado, utilizámos algumas edições de Nô Pintcham, que também serviram na perfeição para armar o papagaio. Bem como amarelecida propaganda de outros tempos do PAIGC. Onde procurei ler, em vão, alguma coisa de interesse. O que mais vi foram rostos de Che Guevara, Fidel, Marx, Mao, Nino e Amílcar Cabral, sobraçando frases, pensamentos, desenhando futuros.
A última coisa que as crianças fizeram foi pegar num marcador verde e escrever aquelas três palavras mágicas – ou melhor, pedi que três deles as escrevessem: paz, pão, fraternidade. Aos mais velhitos indiquei-lhes que, ao centro, deveriam desenhar a palavra Guiné, o que fizeram, radiantes. Como se fossem voar também. Depois, um deles, fixando-me os olhos, um nadinha papudos, cercou as palavras com um coração vermelho e abriu um sorriso do tamanho de uma flor de caju. Ou foi da largura do terreiro e da tarde? Talvez da altura do poilão, que, sagrado, também dava sombra ao bentabá. Enorme, secular, gigantesco, raízes fundas furando séculos. Como na antiga aldeia de Algures, onde era necessária mais de meia dúzia de soldados para dar-lhe um simples abraço. Fizemos esse jogo, pouco tempo depois de arribarmos àquele buraco, um dos muitos de um inferno extenso, com línguas de fogo, turbilhões de medos e calvários de dor e morte por toda parte.
“Estrela do Norte” voando sobre a aldeia de Algures foi o delírio da miudagem, naquele fim de tarde, tal como há trinta e mais anos. Isso fez também voar um sorriso nostálgico dos lábios dos que, um dia, brincaram com o Papagaio Verde.
Quanto a esta terra, de gente simpática e boa, começa a ser tempo de lhe dizer que, um dia, havia de mudar de nome, mais ou menos após o acantonamento da minha companhia de cavalaria (a pé) e do primeiro Natal, aqui passado. Pelo menos, na gíria militar, mas também entre a população, sobretudo a miudagem, que achava graça ao caso. Por uma coisa tão simples como um papagaio, imagine, um Papagaio Verde…
– Então, como vai Papagaio Verde? – Perguntava, meio a brincar, meio a sério, o comandante do batalhão, que bem conhece. Estava acantonado em Farim. Às vezes, em tom de gozo, mesmo zombeteiro de quem vivia no ar condicionado. Exagero meu. Para dizer a verdade, sempre em tom de chacota. Sabe como era.
– Ainda tem as asas muito presas ao chão – respondia, à letra, o capitão Varela, soltando um sorriso sardónico…
– Como assim?
– É a guerra…
– Vamos, então, ao que importa – cortava o comandante do batalhão. Mas, meu tenente-coronel, a verdade é que havia uma razão para a troca de nome. É espantoso como um gesto, às vezes insignificante, pode mudar a vida das pessoas e das coisas.
Espere, eu conto.
Era uma vez uma rapariga, de perfil quase perfeito e de uma notória beleza sensual, pontuada por seios redondos e generosos, direitos e inocentemente provocatórios do olhar… logo guloso, logo faminto, dos soldados. Redondos como os da Usita, nos dezoito anos, altivos. Faço comparações, ainda com a foto da Usita nas mãos, que desfolham lembranças, rumores da floresta vitoriosa, liturgias, quase em tom de conversa, de mil pássaros. E era também, uma vez, um garoto, de olhos rasgados e líquidos de sonho manso, e um burrico, que se nomeia por também ser filho de Alá, nosso Senhor.
Adiantando um pouco, quando a rapariga arreou do burro para a tropa deitar a maca no dorso, felizmente vazia, e aliviá-lo ainda do peso ingrato e bruto do Beja, que se havia acavalitado, rindo um dente malandro, ela exibiu um corpo flexível que só visto, uma boca modulada em música breve, naturalmente açucarada de caju maduro, talvez mais manga, e a sofisticação da raça fula. Por sua vez, o garoto, medroso como pássaro, de tenra idade - todos disseram que teria três chuvas e pico e a rapariga, mama firme, que para aí quinze, dezasseis… - tinha os olhos líquidos de sonho manso. Como a rapariga, só mesmo a menina que tinha olhos de pássaro azul.
Encontrei-os no mato sem fim, de mil perigos e feitiços, no mês de Dezembro, ia no segundo ano de comissão, que estava prestes a acabar, e já não era sem tempo. A alma já cheirava a sangue ou bolor, o corpo a cicatrizes, que doíam por terra alheia. Era uma mata de aromas carnosos que saltavam das árvores em desalinho por entre a redonda e infindável seara de capim que acoitava bicharia sem conta. E, como também sabe, muita gente disposta a correr com a tropa. E também por vezes, gente a fazer jogo duplo, os gajos dos informadores.
Era um verdadeiro quadro saído das mãos de um qualquer Goya africano aquela rapariga, escarranchada no dorso magro do burrico e o garoto ao seu colo. O animal parece que trotava sem destino e sem pressa. Tinham-se perdido, fugindo aos guerrilheiros? Não cheguei a saber claramente nessa ocasião. Nunca se sabia de que lado estava aquela gente. Açoitada pelos ventos do nada, nos carreiros da miséria.
A toda e qualquer pergunta, a resposta era inevitável, como bem sabe o meu tenente-coronel: mim cá sibi, mim cá sibi!
Com a rapariga em cima, mais o garoto, aquele quadro lembrou-me, ainda que impropriamente, a fuga de Nossa Senhora com S. José e o Menino para o Egipto, temendo as espadas de Herodes. E nós ali também não temíamos as armas de Nino e outros comandantes como Osvaldo Máximo Vieira, que comandava nas fechadas matas do Oio, impenetrável “império dos Oincas”? [As matas hoje estão a ser devastadas para a extracção de madeiras exóticas]. Como se me tivesse de convencer que vinha aí a noite de Natal. O calendário litúrgico pelo menos assim rezava. Só faltava S. José. Mas esse papel poderia fazê-lo, se necessário, o Meia Lavada da Silva, que tinha barbas, por acaso, mal aparadas num queixo pensativo. Por sinal, até era carpinteiro de profissão. Deus me perdoe, mas creia, meu tenente-coronel, que foi isso que parvamente me ocorreu. Maliciosamente, direi, porque, sempre que podia, deitava o olhar cobiçoso nas mangas especiais, que eram os seios redondos da rapariga. Gaita! Era toda boa. Vá lá, não se ria. Era realmente uma ideia tosca, abocanhada de saliva lasciva, quase pecaminosa, mas confesso que foi aquela que me surgiu com mais força. E quem confessa a verdade… Olhe, lembro-me bem que também me inundou uma onda de azul ternura pela rapariga e pelo menino, por todos os meninos da tabanca do mundo, que passavam fome ou já pegavam em armas.
Quanto ao burro… Quando, nessa manhã, verde e esbraseante de Dezembro, lhe roubei a rapariga e o garoto, sacudiu as orelhas num arremesso de raiva e desferiu dois relinchos, agudos e doridos, que espantaram, como violento coice, alguns bicos-de-lacre e tarambolas, que saltaram, de repente, do capim, que estava a ser penteado por uma brisa agradável. Quase me cuspiu em jeito de quem odeia. Mas ele, garanto, não era como nós, brancos e negros em armas. Não odiava.
Palmilhadas as aldeias de Sare Tenem e Bricama, onde nos levara uma noite de lua duvidosa, aquele Platero ronceiro era o primeiro da fila, seguindo a rapariga, Fatumata de nome. Aqui está um belo ícone de África. Vim a saber que assim se chamava, depois de meia hora de caminho. O garoto dava pelo nome de Abdul. Pelo menos, foi isso que entendi. E foi assim que sempre o tratei, errado ou certo. Certo, disse-me um mês depois. O animal ia agora armado de cartucheiras e cantis batendo-lhe na barriga. Imprevidências de soldados em fim de comissão! E, espiando-o por debaixo do capacete, via que ele me olhava de viés, descontente, talvez assustado da minha cor, mas continuava a vencer o caminho, estreito e enovelado, como serpente. Perigoso quanto bastava. Por vezes, soldado havia, que, abusando, nele se escarranchava, à vez, para cá da ponte. Onde, um dia, o meu pelotão foi emboscado. Foi uma refrega dos diabos com feridos e um morto, o transmontano Rui Montalvão, do morteiro, que me apertou a mão e me olhou, espantado na despedida. Morreu nos meus braços. Com o enfermeiro, tentando estancar-lhe o rio de sangue. Em vão. O rio era demasiado profundo e definitivo. Adiante, que ainda dói.
Uns adoçavam-lhe a dentuça com mãos-cheias de erva. Outros, brincando à toa, zangavam-no com mordiscadelas nas orelhas ou no rabo. Até se esqueciam que estavam em guerra.
Parecia que íamos todos a caminho de romaria das Almas ou de Belém. Mais de Belém, sim, que, na noite desse dia, seria Natal. E, em minhas cogitações clandestinas, prometi ao garoto um papagaio para ele atirar às estrelas, ao céu, como uma ânsia de asa aberta. Seria a minha boa acção de escuteiro, que já havia sido em Chão de Mouros.
– Jubi, vou fazer-te um papagaio. Amanhã, Abdul, é dia de Natal – disse assim, embora sabendo que não entendia nada, mesmo nada, e muito menos sabia o que era isso de Natal. Noite de Natal... Não vinha no Alcorão. – Mim cá sibi – Isto é, descodificando, o garoto não entendia nada do que eu ia para ali a tagarelar. Se o idioma nos separava, muito mais o chão, o sangue.
À rapariga, de tez fortemente acobreada, que iria ser, sem dúvida, o encanto, a flor maior, a mais cobiçada de muitos dias no quartel de Algures, onde os soldados, uma vez ou outra, batucavam com as bajudas, coração a galope, não lhe prometi nada, mas talvez o soldado João, o negro e bom João, igualmente de raça fula, que, à viva força, queria vir connosco para Lisboa, se pudesse enamorar dos seus seios redondos, macieza de pêssego, do seu corpo flexível e grácil, da sua coxa bem torneada. Do rosto, nem se fala. Era plasmado de beleza exultante e simpática. Como a Usita. Não sabendo bem a relação entre ela e o garoto, se filho, irmão ou familiar, ou até entre ela e o negro João, se irmão ou namorado, perguntei-lhe sorrateiramente:
– Jubi, bó tem catota? – Não entendeu, ou fez que não entendeu, o mais provável, e perguntei de outra forma: – Bó tem cabaço? – Não descerrou os lábios. Já conhecia certamente a mania do branco querer ser sempre o primeiro a provar aquilo, entre mil promessas. Resumindo, e descodificando também aqui, o que eu queria saber era se ainda era virgem ou não. Aquelas tontarias que os soldados procuravam saber, quase sempre junto das negras mais jovens. Sabe como era. E, afinal, que me interessava isso, se a tropa havia combinado não tocar em ventre de mulher? Já no apalpar…
A rapariga deixava, de quando em vez, desprender-se um sorriso breve, talvez receoso. Sorria, e eu também. Era nessa língua universal e doce que nos entendíamos naquela manhã. Diferente. Mas também senti que, ao canto do seu sorriso, cor da manhã de fogo, espreitavam enigmáticas palavras. Talvez incómodas e violentas, se as deitasse fora da boca. O mais certo era de revolta. Jogava pelo seguro. No silêncio. Talvez com a presença de João se abrisse… Não andaria em sua busca?
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 17 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10812: Conto de Natal (1): Papagaio Verde Versus Estrela do Norte (1) (Armor Pires Mota)
Guiné 63/74 - P10816: Do Ninho D'Águia até África (36): O Life Boy (Tony Borié)
1. Novo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:
Do Ninho D'Águia até África (36)
O Life Boy...
...Namorava, e não namorava uma das filhas do Libanês!
Podia dizer-se, que namorava semana sim, semana não, pois
quando estava de bem com ela, era só sorrisos, abraços e talvez
alguns beijinhos, dizendo que era a rapariga mais bonita e
jeitosa que havia no mundo, e quando estava zangado com ela,
dizia que ela era muito feia, que era só perfumes e pinturas,
que era “um paninho de armar” e que se fosse sorrir, lá para os
da terra dela, pois ele era europeu, como se isso tivesse alguma
influência em ser europeu. Mas dizia sempre que era europeu,
pois a sua cara tinha feições “achinezadas”, pelo menos nos
olhos, e alguns diziam:
- O Life Boy, deve ser filho de algum chinês.
O Curvas, alto e refilão, ao ouvi-lo, dizer todas estas coisas, cheio de experiência, pois passou a sua juventude, em algumas ruas escuras de Lisboa, respondia-lhe, na linguagem que todos lhe conheciam, mais ou menos nestas palavras:
- Caral... ta fo.., não percebes mesmo nada de “garinas”, tu não vez que apesar do teu focinho ser achinesado, és branco e europeu, e estás aqui de passagem, essa rapariga, que por sinal até é bastante bonita, e não digo que não daria uma boa esposa, é do tipo que, primeiro uma aliança no dedo, depois sim, vem o namoro, e se der para o torto, manda-te dar uma volta ao bilhar grande, que tu, apesar dessa cara achinesada, és um “patêgo”, não tens sensibilidade para acariciar uma mulher daquelas, nem sabes o que isso é - e logo de seguida - pois não está para aturar um palerma como tu, arranja outro, que goste mesmo dela, que saiba acariciá-la, e que a faça feliz!. Nem tu nem ela sabem se gostam um do outro, na cama. Sabes o que tu és em questões de amor? És um atrasadinho mental!
Chamavam-lhe o “Life Boy”, talvez por vender entre outras coisas, barras de sabão “Lifebuoy”, e era um soldado condutor, de uma companhia de artilharia, que estava estacionada no aquartelamento, também talvez tivesse uma costela de “Libanês”, pois tinha no aquartelamento, um pequeno negócio, onde vendia braceletes para relógios, pasta e escovas dos dentes, que só os furriéis, sargentos e oficiais lhe compravam, lenços tabaqueiros que era o melhor negócio, pois quase todos os soldados usavam, ou ao pescoço, ou no bolso dos calções, com um bocado de fora para se ver, ou pendurado no cinto das cartucheiras, quando saíam em patrulha, e diziam que era para lhes dar sorte, sabonetes “lifebuoy”, carrinhos de linhas, e agulhas, alguns botões, baterias para o rádio portátil e outros produtos que se usavam no dia a dia, também conseguia relógios de pulso de contrabando, com cronómetro da marca “Cauny”, mas só por encomenda, e também outros produtos, que não interessa agora mencionar.
Tinha conhecimento com dois tripulantes do navio “Ana Mafalda” que visitava a Guiné periodicamente, descarregando militares e equipamento bélico, seguindo depois a caminho da América do Norte, onde normalmente ia carregar tabaco ao porto de Philadélfia. Na altura em que este navio atracava na capital da província, o Life Boy ia ver o Pastilhas, dava parte de doente, indo no carro dos doentes à capital abastecer-se de todo o seu material.
Era um pequenino negociante dentro do aquartelamento, estava tudo bem para ele, pedia desculpa, trocava os produtos, se pudesse cobrava duas vezes, em caso de dúvida, ele era o culpado, emprestava um lanço de linha, com uma agulha na ponta para pregar um botão, depois tornava a vender o carrinho de linhas e a agulha, como se fosse novo, ia vendendo, e no fim do mês metia mais uns “pesos” na conta, se dessem por ela, pedia desculpa, se não dessem, era lucro para o negócio. Talvez não acreditem, mas certa manhã, o Cifra foi ao estabelecimento do Libanês, comprar alguns rebuçados, pois ia visitar algumas bajudas e crianças à tal aldeia com casas cobertas de colmo que existe próximo do aquartelamento, foto do Cifra em cima, e sem querer ser “coscuvilheiro”, nem coisa que se pareça, pois eles estavam à vista de toda a gente, só não via quem não quisesse, mas o Cifra encarou-os, e deu assim um sorriso um pouco malicioso, tal como aquelas velhas “coscuvilheiras” da aldeia, quando viam um casal de namorados, que os fez baixar os rostos, talvez com um pouco de vergonha, e então aí o Cifra, que repito, não era nada “coscuvilheiro”, viu-os com os seus próprios olhos que a terra há-de comer, sim, eram eles, os dois juntos, o Life Boy com a filha do Libanês.
Estavam em frente um ao outro, ela dentro, e ele fora do balcão, mas olhando-se de frente, nos olhos, pois tinham reparado no Cifra, mas agora não reparavam em mais ninguém, estavam concentrados um no outro, com as mãos juntas, passando os dedos um no outro, tal como se via nos filmes em cenas de amor, o Cifra não sabe se o Life Boy já a sabia acariciar, e estavam acariciando-se e trocando promessas de amor eterno, e fazendo juras de que seriam um do outro para o resto das suas vidas, pois o Cifra estava um pouco retirado e não conseguiu ouvir, e também não era “coscuvilheiro” a esse ponto, ou se nesse momento, o achinesado Life Boy, estava tentando roubar um anel muito lindo, com uma pedra azul turquesa, que ela usava no dedo, mas o Cifra, sempre ficou convencido que ele estava pedir-lhe para convencer o pai a lhe dispensar uma caixa de sabonetes, gravura ao lado, para ele vender no aquartelamento, pois pela manhã tinha-lhe pedido uma barra de sabão, e ele já não tinha produto para as encomendas no aquartelamento, já que o navio “Ana Mafalda”, só tornava a passar pela Guiné, talvez para no mês seguinte. Mas duma coisa estava o Cifra certo, nessa semana sim, namoravam e pelas feições das suas caras, o futuro parecia risonho.
(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10805: Do Ninho D'Águia até África (35): Boas Festas, camaradas amigos (Tony Borié)
Do Ninho D'Águia até África (36)
O Life Boy...
...Namorava, e não namorava uma das filhas do Libanês!
- O Life Boy, deve ser filho de algum chinês.
O Curvas, alto e refilão, ao ouvi-lo, dizer todas estas coisas, cheio de experiência, pois passou a sua juventude, em algumas ruas escuras de Lisboa, respondia-lhe, na linguagem que todos lhe conheciam, mais ou menos nestas palavras:
- Caral... ta fo.., não percebes mesmo nada de “garinas”, tu não vez que apesar do teu focinho ser achinesado, és branco e europeu, e estás aqui de passagem, essa rapariga, que por sinal até é bastante bonita, e não digo que não daria uma boa esposa, é do tipo que, primeiro uma aliança no dedo, depois sim, vem o namoro, e se der para o torto, manda-te dar uma volta ao bilhar grande, que tu, apesar dessa cara achinesada, és um “patêgo”, não tens sensibilidade para acariciar uma mulher daquelas, nem sabes o que isso é - e logo de seguida - pois não está para aturar um palerma como tu, arranja outro, que goste mesmo dela, que saiba acariciá-la, e que a faça feliz!. Nem tu nem ela sabem se gostam um do outro, na cama. Sabes o que tu és em questões de amor? És um atrasadinho mental!
Chamavam-lhe o “Life Boy”, talvez por vender entre outras coisas, barras de sabão “Lifebuoy”, e era um soldado condutor, de uma companhia de artilharia, que estava estacionada no aquartelamento, também talvez tivesse uma costela de “Libanês”, pois tinha no aquartelamento, um pequeno negócio, onde vendia braceletes para relógios, pasta e escovas dos dentes, que só os furriéis, sargentos e oficiais lhe compravam, lenços tabaqueiros que era o melhor negócio, pois quase todos os soldados usavam, ou ao pescoço, ou no bolso dos calções, com um bocado de fora para se ver, ou pendurado no cinto das cartucheiras, quando saíam em patrulha, e diziam que era para lhes dar sorte, sabonetes “lifebuoy”, carrinhos de linhas, e agulhas, alguns botões, baterias para o rádio portátil e outros produtos que se usavam no dia a dia, também conseguia relógios de pulso de contrabando, com cronómetro da marca “Cauny”, mas só por encomenda, e também outros produtos, que não interessa agora mencionar.
Tinha conhecimento com dois tripulantes do navio “Ana Mafalda” que visitava a Guiné periodicamente, descarregando militares e equipamento bélico, seguindo depois a caminho da América do Norte, onde normalmente ia carregar tabaco ao porto de Philadélfia. Na altura em que este navio atracava na capital da província, o Life Boy ia ver o Pastilhas, dava parte de doente, indo no carro dos doentes à capital abastecer-se de todo o seu material.
Era um pequenino negociante dentro do aquartelamento, estava tudo bem para ele, pedia desculpa, trocava os produtos, se pudesse cobrava duas vezes, em caso de dúvida, ele era o culpado, emprestava um lanço de linha, com uma agulha na ponta para pregar um botão, depois tornava a vender o carrinho de linhas e a agulha, como se fosse novo, ia vendendo, e no fim do mês metia mais uns “pesos” na conta, se dessem por ela, pedia desculpa, se não dessem, era lucro para o negócio. Talvez não acreditem, mas certa manhã, o Cifra foi ao estabelecimento do Libanês, comprar alguns rebuçados, pois ia visitar algumas bajudas e crianças à tal aldeia com casas cobertas de colmo que existe próximo do aquartelamento, foto do Cifra em cima, e sem querer ser “coscuvilheiro”, nem coisa que se pareça, pois eles estavam à vista de toda a gente, só não via quem não quisesse, mas o Cifra encarou-os, e deu assim um sorriso um pouco malicioso, tal como aquelas velhas “coscuvilheiras” da aldeia, quando viam um casal de namorados, que os fez baixar os rostos, talvez com um pouco de vergonha, e então aí o Cifra, que repito, não era nada “coscuvilheiro”, viu-os com os seus próprios olhos que a terra há-de comer, sim, eram eles, os dois juntos, o Life Boy com a filha do Libanês.
Estavam em frente um ao outro, ela dentro, e ele fora do balcão, mas olhando-se de frente, nos olhos, pois tinham reparado no Cifra, mas agora não reparavam em mais ninguém, estavam concentrados um no outro, com as mãos juntas, passando os dedos um no outro, tal como se via nos filmes em cenas de amor, o Cifra não sabe se o Life Boy já a sabia acariciar, e estavam acariciando-se e trocando promessas de amor eterno, e fazendo juras de que seriam um do outro para o resto das suas vidas, pois o Cifra estava um pouco retirado e não conseguiu ouvir, e também não era “coscuvilheiro” a esse ponto, ou se nesse momento, o achinesado Life Boy, estava tentando roubar um anel muito lindo, com uma pedra azul turquesa, que ela usava no dedo, mas o Cifra, sempre ficou convencido que ele estava pedir-lhe para convencer o pai a lhe dispensar uma caixa de sabonetes, gravura ao lado, para ele vender no aquartelamento, pois pela manhã tinha-lhe pedido uma barra de sabão, e ele já não tinha produto para as encomendas no aquartelamento, já que o navio “Ana Mafalda”, só tornava a passar pela Guiné, talvez para no mês seguinte. Mas duma coisa estava o Cifra certo, nessa semana sim, namoravam e pelas feições das suas caras, o futuro parecia risonho.
(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10805: Do Ninho D'Águia até África (35): Boas Festas, camaradas amigos (Tony Borié)
Guiné 63/74 - P10815: Álbum fotográfico de Fernando Súcio (3): Bula, 1972/74
1. Terceira e última série de fotos do álbum do nosso camarada Fernando Súcio (ex-Soldado Condutor do Pel Mort 4275, Bula, 1972/74), referentes à sua estadia na Guiné.
Bula, 1972/74 > João Landim > Fernando Súcio reboca um obus para a jangada
Bula, 1972/74 > Fortim dos Fulas > Fernando Súcio e Celso Carvalho
Bula, 1972/74 > BCAV 8320 > Fernando Súcio com a mini-Honda do Fur Mil Leonel Olhero
Fernando Súcio durante uma travessia do Rio Mansoa
Armamento capturado ao PAIGC
Bula, 1972/74 > Fernando Súcio à sombra de um embondeiro
Fernando Súcio durante uma estadia no HM 241 de Bissau
Bula, 1972/74 > Esq Rec Panhard 3432 > Noite de S. João de 1973 > Fernando Súcio canta o fado
Bula, Agosto de 1974 > Pel Mort 4275 > Jantar de fim de comissão
Bula, 1972/74 > Fim de comissão > Pessoal do Pel Mor 4275
Bula, 1972/74 > Em fim de comissão, os condutores do Pel Mort 4275 com o Alf Mil P. de Almeida F. Teixeira.
____________Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10810: Álbum fotográfico de Fernando Súcio (2): Bula, 1972/74
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