Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de Maio de 2007 > Encontro do pessoal de Bambadinca 1968/71 > A organização coube ao Fernando Calado (na foto, à esquerda), coadjuvado pelo Ismael Augusto, ambos da CCS/BCAÇ 2852 (1968/71).
O grupo (mais de 60 convivas) teve na dra. Rosa Calado (na foto, ao centro), elemento da direcção da Casa do Alentrejo, uma simpatiquíssima anfitriã. O editor do blogue e fotógrafo, à direita, chegou tarde, mas ainda a tempo de constatar que a organização esteve impecável e o que o sítio não podia er melhor, em pleno coração de Lisboa. O fotógrafo de circunstância foi o Ismael.
Foto (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-
1. O Fernando Calado, natural de Ferreira do Alentejo, vive em Lisboa há muito; é casado com a dra. Rosa Calado, uma das "almas alenetinas " que animam há muito a Casa do Alentejo, em Lisboa (, tem integrado sucessivas direções, exercendo o pelouro da cultura); foi alf mil trms, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70); trabalhou na GALP e na RTP; foi docente universitário; tem página no Facebook. tem cerca de dezena e meia de referências no nosso blogue.
Mandou-nos, no passado dia 26, a seguinte mensagem: "Conforme combinado, junto um exemplar do modelo do aerograma e um texto do conteúdo de um dos muitos que enviei. Um grande abraço. Fernando Calado"...
AEROGRAMA
por Fernando Calado
A guerra
colonial configura um acontecimento trágico que envolveu toda uma geração a
que pertenço.
Estão feitas algumas análises políticas e sociais,
mas, como é sabido, muito pouco é conhecido acerca do que pensavam e sobretudo do que sentiam
no dia a dia, os militares enquadrados em unidades operacionais de intervenção.
As razões deste silêncio contido são, do meu ponto de vista, as seguintes:
- condenação política generalizada, após 25 de
Abril, dos militares que participaram, obrigados pelo regime, na guerra
colonial, em contraponto com os elogios aos “heróis revolucionários” que
conseguiram escapar para Paris ou outras paragens conhecidas;
- insensibilidade quase total a esta questão, por parte das elites sociais dos últimos 44 anos;
- vergonha de comportamentos desumanos
praticados ou observados sem contestação e que sempre se registam em situações-limite como é o caso da guerra;
- participação em situações de extrema
violência das quais resultaram, em muitos casos, a morte daqueles que já eram nossos
amigos para sempre.
Como a maioria de vós
sabe, o pensamento e o sentimento que faziam parte do
quotidiano era, na maior parte dos casos, transmitido aos pais, à madrinha de
guerra ou à namorada através do celebérrimo aerograma.
Como também sabem, o aerograma era distribuído
no embarque pelo Movimento Nacional Feminino, estrutura do regime que tinha por
missão dar apoio moral aos militares nas três frentes de guerra (Angola,
Moçambique e Guiné)
Estive na Guiné de Julho de 1968 a Julho de
1970 num local designado por Bambadinca, a cerca de 30 km de Bafatá, onde, quase
diariamente, ao princípio da noite, escrevia o aerograma à minha namorada.
Gostava de partilhar com os leitores do blogue o
conteúdo de um desses aerogramas com as óbvias pequenas adaptações.
Bambadinca, 1 de Dezembro de 1969
Meu amor:
Esta manhã, acordei sobressaltado, e reparei que estavam no quarto 2 bajudas (mulheres jovens da Guiné) que nos traziam a roupa lavada e que riam à gargalhada.
Estava nu, de barriga e outras coisas para cima e transpirado como sempre.
Olhei para o camarada do lado que estava tão aflito como eu, e, à boa maneira europeia, tentei cobrir-me com um lençol que não tinha.
Perguntei então às bajudas porque se riam, tendo elas respondido o seguinte: alfero, sonho manga di bom hoje mesmo.
Para além do embaraço, pensei depois que afinal eu, um homem dito civilizado, tive uma postura naturalmente preconceituosa enquanto que elas, mulheres ditas primárias, tiveram uma postura naturalmente genuína, tendo expressado com rigor o que se tinha passado e rido com gosto a propósito de uma situação bastante caricata.
Passei a manhã a tratar da organização das transmissões de vários grupos operacionais escalados para operações e mais uma vez os comandantes de pelotão disseram-me que os rádios são uma merda e que, por vezes, não funcionam em situações de emergência.
Eu bem sei que me disseram sempre que os rádios são os mesmos da 2ª. guerra mundial mas, mesmo assim, custa-me anos de vida quando não se consegue fazer o contacto para evacuação de feridos.
Sinto assim, apesar dos meus 24 anos, que tenho uma responsabilidade excessiva e não me resta outra alternativa senão tentar ser o mais eficiente possível.
Antes do almoço, depois do 2º. banho do dia, dirigi-me ao bar onde saboreei descontraidamente o meu whisky com água Perrier.
Gosto particularmente deste momento do dia.
Diz-se aqui, que na Guiné existem apenas 2 coisas boas: o whisky com água Perrier e o avião para a Metrópole.
Chegou depois o meu colega de quarto e a propósito de qualquer coisa que já não me recordo, ocorreu uma discussão de tal ordem que quase andámos ao murro.
Foi uma vergonha e fomos até ameaçados de ser castigados. São horas, dias, semanas, meses, anos a aturar-nos, sempre em tensão e dentro deste espaço ladeado por arame farpado.
Na verdade, penso que as discussões, a batota, os copos, o calor, os ataques, as emboscadas, etc. criaram uma cumplicidade tal, que tudo indica que seremos amigos do peito para toda a vida
Como se isso não bastasse durante o almoço o médico veio comunicar-me que mais de metade dos soldados da companhia estavam infectados com blenorragia (designação apropriada do termo de calão muito conhecido que dá pelo nome de esquentamento e que se reporta a uma infecção nos órgãos genitais).
Segundo ele, a penicilina não está a actuar em virtude do calor excessivo e da elevada taxa de humidade e, portanto, é necessário organizar uma reunião de esclarecimento com todos os soldados disponíveis.
Soube depois que o pedido a mim dirigido, resultava afinal, do facto do meu pelotão ter a maior taxa de elementos infectados.
Durante a tarde algumas pessoas conseguem dormir a folga, coisa que nunca consegui e ainda menos com este calor e esta humidade.
Eu, como todos os dias que não saio do aquartelamento, cumpri algumas tarefas burocráticas que a tropa, mesmo em guerra, não dispensa.
Mais tarde vagueei, uma vez mais, dum lado para o outro sempre com a sensação de estar encurralado, na ânsia de conseguir gastar o tempo que me falta para me livrar disto.
Por vezes ocorrem, no final do dia, momentos de alguma descontracção. Conversamos sobre a nossa vida na Metrópole e damos umas voltinhas de jeep.
Não tenho carta de condução, mas conduzo. Recebi umas lições do meu colega de quarto e desenrasco-me. De qualquer modo ninguém, nesta situação, está interessado em saber se tenho ou não carta de condução.
Já anoiteceu e partir de agora e até pegar no sono, o que acontecerá lá para as tantas da manhã, instala-se o medo e a saudade.
Eu, que sempre gostei da noite, juro-te que aqui odeio a noite. Estamos todos fartos de fumar, de beber e de jogar, mas a verdade é que estas actividades aliviam, de facto, o medo e a saudade.
Hoje é feriado [, 1º de Dezembro, dia da Restauração da Independência de Portugal, ] e a probabilidade de haver problemas aumenta. A malta está mais concentrada, fala mais baixinho. [No dia 28 de Maio de 1969, Bambadinca tinha sido atacada em força.]
A questão do medo é surpreendente. Há camaradas que parecem não ter medo nenhum. É como se estivessem em casa ou numa esplanada e, mesmo debaixo de fogo, funcionam normalmente.
Depois, talvez a maioria, tem imenso medo, mas mercê de um enorme esforço consegue controlar a situação (julgo que me enquadro neste grupo).
Finalmente há camaradas, alguns deles aparentemente corajosos, que em quase todas as situações, entram em pânico total e que precisam sempre de ajuda. São obviamente os que sofrem mais, quer durante a situação, quer sobretudo pela vergonha que sentem depois.
Tenho saudades de tudo na metrópole: das pessoas, das ruas, dos jornais, da rádio, dos carros e até dos comboios que aqui não existem.
Quanto a ti, meu amor…
Acredita, nunca imaginei que a saudade que sinto de ti me provocasse tamanha dor física. Dói-me a cabeça, dói-me as pernas, dói-me o peito… enfim dói-me tudo.
Sei que estou desesperado, mas não resisto a dizer-te que dava anos da minha vida, se é que os vou ter, para estar neste momento contigo.
São 8 horas da noite e a temperatura nesta altura é um pouco mais amena.
Eu, como todos os dias que não saio do aquartelamento, cumpri algumas tarefas burocráticas que a tropa, mesmo em guerra, não dispensa.
Mais tarde vagueei, uma vez mais, dum lado para o outro sempre com a sensação de estar encurralado, na ânsia de conseguir gastar o tempo que me falta para me livrar disto.
Por vezes ocorrem, no final do dia, momentos de alguma descontracção. Conversamos sobre a nossa vida na Metrópole e damos umas voltinhas de jeep.
Não tenho carta de condução, mas conduzo. Recebi umas lições do meu colega de quarto e desenrasco-me. De qualquer modo ninguém, nesta situação, está interessado em saber se tenho ou não carta de condução.
Já anoiteceu e partir de agora e até pegar no sono, o que acontecerá lá para as tantas da manhã, instala-se o medo e a saudade.
Eu, que sempre gostei da noite, juro-te que aqui odeio a noite. Estamos todos fartos de fumar, de beber e de jogar, mas a verdade é que estas actividades aliviam, de facto, o medo e a saudade.
Hoje é feriado [, 1º de Dezembro, dia da Restauração da Independência de Portugal, ] e a probabilidade de haver problemas aumenta. A malta está mais concentrada, fala mais baixinho. [No dia 28 de Maio de 1969, Bambadinca tinha sido atacada em força.]
A questão do medo é surpreendente. Há camaradas que parecem não ter medo nenhum. É como se estivessem em casa ou numa esplanada e, mesmo debaixo de fogo, funcionam normalmente.
Depois, talvez a maioria, tem imenso medo, mas mercê de um enorme esforço consegue controlar a situação (julgo que me enquadro neste grupo).
Finalmente há camaradas, alguns deles aparentemente corajosos, que em quase todas as situações, entram em pânico total e que precisam sempre de ajuda. São obviamente os que sofrem mais, quer durante a situação, quer sobretudo pela vergonha que sentem depois.
Tenho saudades de tudo na metrópole: das pessoas, das ruas, dos jornais, da rádio, dos carros e até dos comboios que aqui não existem.
Quanto a ti, meu amor…
Acredita, nunca imaginei que a saudade que sinto de ti me provocasse tamanha dor física. Dói-me a cabeça, dói-me as pernas, dói-me o peito… enfim dói-me tudo.
Sei que estou desesperado, mas não resisto a dizer-te que dava anos da minha vida, se é que os vou ter, para estar neste momento contigo.
São 8 horas da noite e a temperatura nesta altura é um pouco mais amena.
Se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom.
Do teu para sempre
Fernando
Do teu para sempre
Fernando
[Revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG; negritos e realce a amarelo, da responsabilidade do autor]
Nota do editor:
Último poste da série > 4 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20122: (De)Caras (111): Carlos Marques de Oliveira, membro da Magnífica Tabanca da Linha, ex-fur mil, Pel Mort 2115, 5º Pel Art e 7º Pel Art (Catió e Cabedu, 1969/71): tive o privilégio de comandar valentes artilheiros
______________
Nota do editor:
Último poste da série > 4 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20122: (De)Caras (111): Carlos Marques de Oliveira, membro da Magnífica Tabanca da Linha, ex-fur mil, Pel Mort 2115, 5º Pel Art e 7º Pel Art (Catió e Cabedu, 1969/71): tive o privilégio de comandar valentes artilheiros