Queridos amigos,
Arrebitou-me a orelha quando soube que o Convento de Jesus de Setúbal abrira ao público, depois de nova requalificação. É uma agradável surpresa que se pode agora contemplar depois de uma nova fase de trabalhos, a igreja e o convento têm a cara lavada e a harmonia do claustro desvanece-nos. Não há templo como este, e pode muito bem acontecer que o trabalho de Diogo Boitaca possa ser visto como o ensaio-geral do que irá acontecer nos Jerónimos e no Convento de Cristo em Tomar. O que acontece é a estreita harmonia que o arquiteto encontrou no rasgado das janelas, tira aquele ar sombrio que tantas vezes encontramos em templos parecidos.
Era inevitável a visita à Galeria Municipal, a obra-prima de Jorge Afonso e aquele retábulo de catorze quadros é um deslumbramento. Não percam.
Um abraço do
Mário
Convento de Jesus de Setúbal, com o restauro recente, ainda mais belo!
Mário Beja Santos
Confesso que esta igreja do antigo Mosteiro de Jesus ou Convento de Jesus de Setúbal sempre me fascinou, sempre que visitava a cidade era inevitável pôr-lhe os olhos em cima, contemplar esta delicadeza do que terá sido o ensaio geral do estilo manuelino que irá consagrar-se nos Jerónimos e no Convento de Cristo, em Tomar. Fiquei várias vezes à porta, a igreja conheceu os seus períodos de estaleiro, instâncias internacionais chegaram a alertar para o estado de degradação deste templo magnífico. Em outubro reabriu para nosso desfrute, convido todos a visitar a maravilha, foi desenhado por um nome sonante da época, Diogo Boitaca, estávamos em 1494, tudo começou por um voto da ama de D. Manuel I, freira que viveu em conúbio com um frade, até nasceu prole, em arrependimento nasceu este templo em brecha da Arrábida, que não tem rival. Proponho aos curiosos que cirandem antes de entrar, há outro olhar mais rasgado que agora o novo relvado permite, numa das últimas visitas que aqui fiz havia uma pista de skate, múltiplos grafitis, era um desconchavo na perspetiva, a bota não batia com a perdigota. O relvado, que se irá mostrar, harmoniza a aproximação e a despedida.
Dentro do restauro até o hornaveque foi reabilitado, por incultura fui ver o que era o hornaveque, pois fiquei a olhar para este belo pano da capela-mor e a sua aprimorada janela.
Foi inicialmente ocupado por freiras Clarissas, melhor dito por um grupo de freiras Franciscanas da Ordem de Santa Clara. Rezam os cartapácios que é indiscutivelmente o primeiro ensaio em Portugal de uma igreja-salão, daí este pormenor de que o espaço é etéreo, houve o cuidado de Boitaca em pôr as três abóbadas à mesma altura.
A capela-mor é revestida de azulejos verdes e brancos datados do século XVI e nas paredes laterais podemos ver painéis de azulejos do século XVII. Quem aprecia azulejaria tem aqui muito para mirar e se deleitar, vejam estes detalhes.
A porta surpreende o visitante, parece inusitada, há para ali uma espécie de agressão ou intromissão fora do tempo, ou os azulejos foram partidos porque a porta veio depois, alguma coisa aconteceu. A menina que serve de rececionista explicou que por aquela escada o sacerdote subia até ao coro alto para dar a comunhão às monjas. É inusitado, mas regala o olhar. Feita a visita, sai-se para outra novidade, o Museu de Setúbal com diferentes núcleos, podemos visitar os chamados pintores de Setúbal, pintores portugueses do século XVI. Bem se procura na papelada consultada em que local se ratificou o Tratado de Tordesilhas, aquele em que dois monarcas peninsulares julgavam ser possível repartir o mundo. Tanto quanto me é dado lembrar, nunca visitei o claustro, e daí o meu embasbacamento. Foi-se à procura de notícia nos jornais sobre esta reabertura, e encontrou-se a saga. O convento fechou várias vezes nas últimas décadas, devido aos riscos de ruína. Teve obras de requalificação e reabriu em 2012, foi encerrado em 2015 para uma nova fase de trabalhos, que incluíram a recuperação da zona dos claustros, Sala do Capítulo, Coro Alto e espaço envolvente do convento, o tal hornaveque. Depois da abolição das ordens religiosos meteu-se aqui um hospital, com o nome de Espírito Santo, e funcionou até 1959. Veja-se agora o claustro e a harmonia do seu traço, mais brecha da Arrábida, oxalá que depois da pandemia aqui se encontre espaço para eventos culturais, é bem merecedor.
Estamos agora no Coro Alto, houve restauro da pintura, mais um acervo de beleza, é o culminar das obras de requalificação, ainda há muito para fazer, a presidente da Câmara de Setúbal numa entrevista disse que os contribuintes setubalenses já aqui investiram seis milhões de euros.
Depois do regalo à visita, um último olhar ao Convento de Jesus, a toda esta sensação de leveza, e de transporte para os céus, encontraram-se aqui soluções inovadoras para a época, como os arcos de volta perfeita, a abóbada assente sobre arcos abatidos e redes de nervuras, não sei ser mais encomiástico, procuro seduzir o leitor a arranjar oportunidade para me dar razão.
E daqui saio para a Galeria Municipal, sita na Avenida Luísa Todi, abriu ao público em 2013, o edifício foi a representação do Banco de Portugal em Setúbal entre 1917 e 1994, a traça é de Adães Bermudes, um dos sumo-sacerdotes da arquitetura da época, há ali linhas evocativas da Arte Nova, entra-se e chegou a altura de ver o belo retábulo do altar-mor do convento.
Tive direito a visita-guiada, a única dúvida que não vi resolvida é se estas catorze tábuas, uma das obras-primas da pintura religiosa portuguesa e seguramente o trabalho mais importante de Jorge Afonso, nome cimeiro da Arte Seiscentista, estavam no altar-mor, atenda-se à dimensão, para o caso não tem importância, se estou a incorrer num disparate alguém entendido que me corrija sobre a localização do retábulo. O fundamental é que se deve ter um guia de todos os pormenores das peças, saber um pouco da história religiosa e contemplar estas preciosidades dá mais sentido à fruição estética, o visitante que se previna, textos alusivos na internete não faltam.
Daqui a um bocado vamos sentir o prenúncio do lusco-fusco, tenho procurado, devido à pandemia em viajar em sentido contrário às horas de ponta, gosto muito do meu passe de 20€ que me dá direito ir até Algés ou a Cascais, visitar Palmela ou Vila Franca de Xira, ou sair do comboio em Sintra e ir ver o mar. Despeço-me que ainda tenho uma boa caminhada pela frente até à estação da CP, e espero que gostem do relvado que substitui a pista de skate e que tanta harmonia traz a este esplendoroso monumento nacional.
Até à próxima.
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Nota do editor
Último poste da série de 16 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22012: Os nossos seres, saberes e lazeres (441): Vicente, o corvo do Parque da Cidade do Porto, que não empatiza por dádivas, mas somente por quem estiver na mesma onda (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)