Timor-Leste > Dili > Aeroporto Internacional > Estátua de Nicolau Lobato (1946-1978), 1º ministro (de 28 de novembro a 7 de dezembro de 1975) e 2º presidente da República Democrática de Timor Leste (1977/78). Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia...)
Viagem a Timor: maio/julho de 2016 - VI (e última) Parte: Regresso a Lisboa, via Singapura e Londres... E que Deus seja louvado!
por Rui Chamusco (*)
Rui Camusco e Gaspar Sobral (2017). A família Sobral
tem um antepassado comum que foi lurai, régulo,
no tempo dos portugueses. As insígnias do poder
(incluindo a espada) estão na posse do Gaspar,
que vive em Coimbra.
Foto: Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
29 de junho de 2016, quarta feira – Gaspar “sicut magíster”
Hoje temos o Dr. Gaspar na sua função de jurista. Um grupo de mais ou – menos 30 pessoas ligadas à comissão da luta contra a corrupção irão ouvir da sua cátedra o ilustre conferencista. Alguma ansiedade da sua parte, mas nada que lhe roube o sono ou lhe tire a lucidez. Pelo sim e pelo não, escreveu e fotocopiou duas folhas com os tópicos dos temas a falar.
Como atual companheiro de aventuras, dei-lhe um conselho em latim, que tem mais impacto: “ esto brevis et placebis…” que, em português corrente quer dizer: “sê breve e agradarás.”
Não sei se cumpriu, mas já são passadas cinco horas e ele ainda não voltou. Querem lá ver que já foi preso!... Não tarda que ele apareça a vangloriar-se da sua façanha. Bem me parece que com esta ação ele ganhou foram créditos, e quem sabe se os convites não irão agora cair como chuva. Prepara-te, amigo, que um longo caminho começou!...
E esta, hein?!... Caganitas de Laco
Vim agora a saber, em terra de café, de que há um animal - Laco - que se alimenta, exclusivamente, de grãos de café. Mais ainda, o grão é descascado e fica com uma película que o protege de qualquer contaminação no interior do animal. Os seus excrementos são, por assim dizer, o néctar do café. E por isso muita gente os procura e transforma em grande negócio – a galinha dos ovos de oiro – onde uma chávena de café deste produto pode custar, em Portugal, sete a oito euros. Na grande China é um produto muito apreciado, segundo conta o Painô.
Entretanto fui buscar o ramo de grãos de café moca que apanhei quando estive na montanha para que o mister Gaspar me explicasse aquilo que relatavam. Caganitas de oiro, direi eu. Nada me admira, pois já o Atílio da telenovela brasileira transformava os excrementos de vaca em oiro precioso, mesmo que fosse em ficção. Para mim, mais vale continuar a beber o cafezinho da praxe e deixar as extravagâncias de sabores e de preços.
A família de acolhimento “Sobral”
É inevitável ter que falar desta família, este núcleo da família Sobral: Eustáquio,
Aurora, Zinom, Zinomia (Eza), Zinígio (Amali), Zinígia (Adobe).
Um agrupado familiar composto por 6 pessoas que, apesar das carências sociais e económicas, é considerada como classe média. O Eustáquio é o chefe de família e é o homem mais desenrascado que eu conheci até hoje. É uma história viva e a vida tem o obrigado a fazer de tudo para garantir o sustento dos seus. Muito dinâmico, sempre bem disposto, capaz de tudo fazer e dar pelos outros.
O Eustáquio (cujo verdadeiro nome é João) e o Gaspar têm uma grande empatia. Talvez por isso, mas sobretudo porque a família recuperou e habita a casa paterna, é a casa que nos acolhe, o nosso hotel. Aurora é a esposa do Eustáquio.
Confesso que me surpreende, sempre pela positiva. A Aurora teve um AVC há cinco anos que lhe afetou os membros do lado esquerdo, tendo dificuldade de movimentos no braço e da perna. Esta mulher não pára. Muito ajudada pelos seus três filhos, Eza, Amali e Adobe, orienta as lides da casa com uma mestria que eu desejaria ver em muitas donas de casa sem limitações físicas.
A Aurora é um exemplo vivo da força do querer, do “antes quebrar do que torcer”. Ainda há dias, superando as suas limitações, a vi subir e descer à volta de 400 degraus, para acompanhar a sua filha Adobe na jornada de limpeza na praia... Mulher pequena em estatura, mas enorme na sua missão de esposa e mãe. Mulher por quem tenho um grande respeito uma grande admiração…
Zinom é o filho mais velho que neste momento está a trabalhar em Inglaterra. Não o conheço pessoalmente mas com certeza que é um rapaz às direitas, com sentimentos nobres. Quem sai aos seus não degenera”, e com certeza que o Zinom é um Sobral de estirpe. Boa sorte, rapaz!...
A Eza é a rapariga mais velha da família. Bonita de corpo e de alma, muito dinâmica, capaz de por a mexer todo o mundo que a rodeia. Nada lhe mete medo. Acabou os seus estudos e para aqui anda este talento perdido até que alguém a leve. Este fenómeno é reincidente: estudantes que acabam o ensino obrigatório com boas médias ( conheço uma moça que teve média de 19) e para aqui ficam porque não têm ninguém nos ministérios que influenciem a atribuição de uma bolsa de estudos. Corre por aqui o boato que as bolsas são para filhos e amigos de ministros.
Amali é o rapaz que se segue. Muito amável, sempre pronto para todo o serviço (sai ao pai). Está a terminar os estudos básicos. É pau para toda a colher. Mas para nós, que pouco ou nada sabemos de informática, é o nosso salvador. Já o pus a tocar acordeão e tem um jeito para a música impressionante. Toca e canta como se fosse um verdadeiro artista. Acaba de me dizer que quando acabar os estudos quer ir trabalhar para a Inglaterra onde já reside o irmão.
A ver vamos, pois o futuro no Reino Unido está incerto. Adobe, que é a minha afilhada, é a mais nova (nove anos). Dela já falei abundantemente em e relatos anteriores. Frequenta a Escola de Referência de Taibessi e penso que terá um futuro promissor. Tem uma grande vontade e faz um enorme esforço em aprender e falar o português. Também com a minha ajuda há de conseguir os seus / nossos objetivos.
Aqui está esta família modelo, que se recomenda, onde os laços afetivos e emocionais são tão fortes que dificilmente quebrarão. Amor, simpatia, amizade, simplicidade, pobreza, riqueza espiritual, ternura – tantos e tantos valores que eu desejaria ver em todas as famílias do mundo.
Muito obrigado família Sobral por me considerares também família. Na verdade, sinto mesmo que faço parte deste aglomerado familiar.
Surpreendente!...
Esta noite, depois de uma longa conversa com o trio Gaspar, Eustáquio e eu mesmo, sobre o projeto da construção da Escola em Manati/Boebau, surge de novo o assunto sobre o meu futuro. Diz o Eustáquio: “Nós não queremos que o Tio Rui acabe os s seus dias num lar em Portugal. Vem para aqui que eu e os meus filhos tratamos do Ti Rui”. E de novo oferece um terreno em Liquiçá para que, se eu quiser, construa lá uma casa. O futuro só a Deus pertence, mas esta vontade enorme de me quererem cá faz-me pensar.
Em Timor é impensável, por enquanto, que um filho deposite o pai ou a mãe num lar para aí viverem o resto das suas vidas. Por isso a atitude do Eustáquio é compreensível.
O que é surpreendente é esta preocupação comigo, pois não tenho qualquer laço de sangue com esta família. Eles dizem que passo a ser o avô de todos. Mais uma vez tenho de estar-lhes profundamente reconhecido.
Dia 30 de junho de 2016, quinta feira – Em contagem decrescente
É isso mesmo. Até nós já vamos dizendo: faltam sete dias; de hoje a 8 dias a estas horas estamos em Singapura, estamos em Londres, estamos em Lisboa, etc…
Então o Gaspar, que tem pânico de voar e enjoa, já só pensa nos comprimidos que há de tomar. Mas, à medida que o tempo escasseia, parece que ´há sempre mais coisas a fazer. Às minhas pressas o Gaspar remata sempre com provérbios “devagar que tenho pressa”, ou então “Roma e Pavia não se fizeram num dia”, aos quais eu respondo “ não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”. E assim andamos fiel da balança, para um lado e para o outro de modo a atingir o equilíbrio.
Os dias passam e nós também. Somente fica aquilo fomos ou fizemos. Repito aqui o comentário de São Francisco de Assis perante os seus confrades: “ Irmãos comecemos, porque até agora pouco ou nada ainda fizemos”.
Aqui ou em Portugal temos de continuar a trabalhar e a lutar por este projeto no qual acreditamos, apesar das muitas dificuldades. Desistir só a cabra que, por a corda a que estava presa à estaca lá não chegar, abandonou o seu intento de comer o molho de erva que avistava.
Noite de 30 de junho rica em emoções
Já previa o que iria acontecer. O Anô mandou recado que queria falar comigo sobre o projeto da escola em Boebau, que ele está a ultimar. Quase ao cair da noite, estava ele sentado na campa da avó Felismina (hábito aqui em Timor) quando eu saí da casa do Eustáquio.
Claro que fui de imediato ao seu encontro. Falamos sobre o projeto e de mais coisas em linguagem possível, pois nem eu domino o tetum nem ele o português, graças a uma miscelânea de palavras que deu bem para nos entendermos. Ao nosso lado estava o Mari (Mariano), um dos irmãos Sobral que mora ao lado e que nos ia traduzindo as palavras e as frases em que não nos conseguíamos entender.
A certo ponto diz-me o Anô: "Ti Rui, eu tenho vergonha de ter feito mal ao Pai (tio) Eustáquio e à família. Desculpa…desculpa!..
Percebi logo o que se iria passar: um pedido formal de desculpas sobre as cenas já relatadas no dia 28 de Maio. Entretanto chega o Gaspar que vem de um encontro com um seu amigo em Dili. Sabendo eu já da situação tensa que desde há dias estava presente, chamei o Gaspar e disse-lhe” o Anô precisa de conversar contigo”.
De modo que arranjei uma desculpa para me ausentar por perto, de modo a que eles pudessem conversar livremente. Chegou também o Painô (filho do irmão Zé já falecido) que se juntou ao grupo. E eu, de ouvido atento, comecei a sentir movimento e saí do quarto para ver em que paravam as modas. Caso fosse necessário intervir como instrumento de paz. E que vejo eu? À soleira da porta de mãos dadas ou abraçados, os ofensores e os ofendidos falando, chorando… com certeza pedindo perdão e perdoando.
Uma atitude nobre dos irmãos Anô e Aquino, que reconhecendo o mal que fizeram, vem “prostrar-se” à frente de quem ofenderam. Abracei-os e dei-lhes ânimo dizendo-lhes: “tudo está bem quando tudo acaba bem”. Não importa os erros que cometemos se reconhecermos que fizemos mal, pedimos perdão a quem ofendemos e aprendermos quenão os devemos repetir.
Disse-me o Gaspar que ficou emocionado e profundamente bem impressionado com a atitude dos sobrinhos, porque, em Timor, “prostrar-se” é a posição mais humilde de quem pede perdão. Claro que depois estivemos em amena conversa até às tantas. Bebeu-se café, fumaram-se cigarros, falou-se de futebol porque jogava (às 4 da manhã) Portugal. Foi uma noite cheia de emoções até ao raiar do sol, até porque Portugal alcançou as meias finais. Viva Portugal! Viva a família Sobral!
Este rir escancarado da família Sobral
Sé é verdade que rir faz bem, nem se imaginam as risadas abertas quando três ou mais Sobrais se juntam: gargalhadas sonoras e retumbantes que contagiam qualquer ouvinte.
E quem como eu muitas vezes não percebe porque assim se riem, fica contagiado pelo seu riso, sempre que isto acontece. Não sei porquê mas gosto da maneira como se riem.
É mesmo uma catarse. Só o fato de os ouvir rir já me faz bem. E estou a lembrar-me dos grupos que nos países mais evoluídos do mundo praticam a terapia do riso. Aqui a terapia do riso é natural, não forçada, e não custa dinheiro. É fruto da boa disposição que cada um cria ao contar as suas piadas.
Claro está que família que tanto se ri tem de ter boas relações. Confirmo que a família Sobral é mesmo assim. E vai daí é rir até mais não poder. Rir mas à gargalhada. E viva a boa disposição!...
1 de julho de 2016, sexta feira – Canções do Bartolomeu
Hoje tive a oportunidade de ouvir tocar e cantar o vizinho Bartolomeu, algumas
canções emocionantes de sua autoria. O Gaspar fez a gravação e um órgão e quatro violas, prometeu fazer a tradução para que possamos, com autorização do autor, cantá-las.
São canções de mensagem, com uma forte componente afetiva. Por isso ao ouvi-las sabendo o que se canta, as lágrimas afloram. Já uma vez ganhou um prémio: um órgão e quatro violas que num gesto de altruísmo, ofereceu a uma igreja pois não havia qualquer instrumento musical para a animação litúrgica.
O Bartolomeu aprendeu a tocar numa guitarra que ele próprio construiu. Por isso falta-lhe alguma técnica que ele supera com uma destreza impressionante. Admiro este homem de quem já fiz referência e alguma descrição na página catorze, pelos seus dons musicais – é um talento perdido que precisava de mais divulgação – mas também pela suas atitudes de tolerância e de perdão. O Bartolomeu é um dos líderes jovens desta localidade a quem os jovens mais novos guardam respeito. Não nos cansamos de ouvir as suas histórias e canções.
Música no coração
Se tivesse de escolher um título de filme para esta gente Sobral seria com certeza
“Música no Coração”. É impressionante a capacidade que todos têm de cantar e de tocar. Sempre que a família se junta temos orquestra com certeza. Agora vejam lá aonde veio parar um músico de profissão. Só poderei comentar dizendo “há tanto talento há espera de oportunidades”. Será que o “God Talent” ou o “ The Voice Timor “ demoram em chegar aqui?
Entretanto e enquanto não chegam por cá continuamos nós a ouvir, a estimular, a tocar, a cantar espontaneamente que é mais natural. O que falta a esta gente para serem estrelas brilhantes? Eu tenho a resposta: oportunidades e apoios. Em Timor há cantores de qualidade, há grupos musicais, há potencial para muito mais. Mas não existe um conservatório de música, não existe orquestra, e poucas escolas de música (normalmente ligadas a instituições de igreja) desenvolvem este dom. No programa escolar constam disciplinas como Educação Moral e Religiosa, Educação Física e outras. A disciplina de Educação Musical não aparece. Então não sabem que a música é um meio extraordinário de educar? Já o sábio filósofo grego Platão nos alertava para tal.
Confesso que gostaria ver em Timor maior apoio estatal ao ensino e divulgação desta arte divina. Como diziam os latinos “ Sine musica nulla vita “ que quer dizer não há vida sem música. Se não acreditam perguntem a esta gente. (...)
A tolerância e o respeito
A Adobe, minha afilhada, veio até mim com uma proposta: "Pai Rui, telefone ao
Professor Olderico a dizer que eu sexta feira não vou à escola porque quero ir ao
aeroporto para a despedida “. A minha reação foi imediata: “ Nem pensar! Vais à escola que eu não telefono “.
De tarde, quando voltou da escola, a rapariga estava toda contente porque deu-se conta que nos dias 6 e 7 de Julho as escolas estariam fechadas por motivos religiosos. Ao tentar verificar esses motivos, fiquei profundamente bem impressionado. O governo timorense, por respeito e igualdade, decidiu que as escolas e os outros serviços de estado estariam encerrados porque era o fim do Ramadão. E portanto, por respeito aos irmãos mulçumanos, aqui temos na prática o que é o princípio da tolerância que tanta falta nos faz, em qualquer sociedade do mundo. Obrigado Timor
por mais esta lição…
Timor-Leste > Dili > Cemitério de Santa Cuz > Sepultura de Sebastião Gomes (1972-1991). O massacre de Santa Cruz deu-se aqui,em 12 de novembro de 1991, por ocasião da procissão fúnebre à campo do jovem resistente timorense. Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia...)
6 de julho de 2016, quarta feira – Sacros costumes
Hoje, véspera do nosso regresso, o Painô convidou-nos para irmos prestar um
homenagem ai pai e à mãe, sepultados no cemitério de … Faz hoje anos que o pai Zé ( irmão mais velho ) faleceu. No táxi do Eustáquio, lá fomos eu, o Gaspar, a Adobe e o condutor. Foram espalhadas pétalas de flores e folhas em cada campa e acendidas as velas. Rezou-se (foi a Jinha que conduziu a oração ) e depois de alguns momentos de silêncio fomos saindo dos locais, com alguma emoção.
O Gaspar não aguentou a carga emotiva, desatou a chorar e teve que sair mais cedo. Explicou-nos ele que lhe passaram pela mente todos momentos que, sobretudo em criança, compartiu com o irmão. De seguida o Eustáquio decidiu levar-nos ao Cemitério de Santa Cruz, onde já tínhamos estado no dia da chegada, a fim de, na campa do pai José Sobral, cumprimos o mesmo ritual. O Eustáquio fez uma oração demorada agradecendo ao pai tudo o que aconteceu durante a nossa estadia e pedindo a sua intercessão junto de Deus para que a nossa viagem de regresso decorresse da melhor forma.
De campa em campa neste imenso cemitério e sobretudo à saída invadiu-me um forte sentimento de revolta pelo que fizeram as tropas indonésias durante as invasões. A forma com que quiseram impor-se é hedionda. Mais de duzentas mil mortes, muitas delas neste mesmo local, dizimaram uma grande parte da população de Timor.
Contaram-me que para aterrorizarem o povo, junto à porta principal deitaram o corpo de Nicolau Lobato (1946-1978) para que fosse pisado por todos, servindo assim de lição a toda esta gente. O que a gente sofre!...
Festa de despedida
O Painô, sendo o filho mais velho do irmão mais velho que já faleceu, organizou uma festa de despedida na noite do dia 6. Mais de cinquenta pessoas juntaram-se neste santuário de família para uma fausta refeição com assados de carne e peixe e muita música. Primeiro as crianças e depois os adultos foram progressivamente alimentando o corpo.
A música nunca parou, tal é a apetência e convivência desta família para esta nobre arte. Violinos, guitarra, cavaquinho (ukelele), acordeão, canções tudo ali teve lugar. Ainda se tentou difundir música de dança mas, ou porque a técnica não ajudou ou por outras várias razões, ficamos por ali. Entretanto, notava-se já a movimentação com gritos a clamar “Portugal!..” porque o jogo entre Portugal e o País de Gales estava aproximando-se rumo às quatro da madrugada.
As meias finais do campeonato europeu de futebol 2016
Mesmo sem televisão para vermos o jogo desta meia-final do campeonato europeu entre Portugal e o País de Gales, confesso que um nervoso miudinho nos ia invadindo. Liguei o computador para ir de vez em quando verificar o resultado. Eram mais ou menos cinco horas da manhã quando se ouviu um enorme grito acompanhado de outros sons, também foguetes. Sobressaltado saí da cama para ver o resultado no computador. Uma grande satisfação com o desejo que o jogo acabasse já. Mas não. Ainda mal tinha regressado à cama, outro enorme grito. O mesmo ritual de verificação e constatei o segundo golo de Portugal.
Depois, até final, já não arredei pé à espera que chegasse o Eustáquio que tinha ido para casa de um vizinho ver o jogo. A satisfação era tanta que já não fomos à cama, pois já passava das seis da manhã. A vibração dos timorenses com a vitória continuava com lançamento de foguetes, bandeiras desfraldadas, toques de buzinas… uma verdadeira loucura… Menos o Gaspar que só soube do resultado quando se levantou e lhe fomos dizer “ Portugal ganhou! E vai à final com a França”. Claro que também ele ficou contente. É timorense mas vive em Portugal…
7 de julho de 2016, quinta feira – A partida em Ailok Laran
Começaram logo de manhã os afazeres da partida: arrumar e ver o peso da mala,
explicar e deixar os medicamentos à família, mais isto, mais aquilo. O almoço foi
antecipado a fim de estarmos a tempo e horas no aeroporto. A família Gaspar foi-senjuntando, porque todos faziam questão de irem ao aeroporto connosco.
Uma comitiva com mais de cinquenta pessoas, incluindo muitas crianças que neste dia não tinham escola pelo motivo que já antes expliquei. Até o Alaka, que vai a fazer três anos, tiveram de levar porque se desfazia num autêntico berreiro por o pai o não querer levar.
Mas foi!
Antes da partida de Ailok Laran o Eustáquio chamou-nos para dentro de casa ( a mim e ao Gaspar ) para, em clima de intimidade, junto da sua família nos agradecer a nossa visita e estadia na sua casa. Disse palavras tão sentidas que eu, emocionado e sem palavras, apenas pus a mão no coração e consegui dizer “ Obrigado! Obrigado! “
E saí de casa a morder os lábios para não chorar. Claro que eles notaram e ficaram a chorar..
Dias 7/8 de julho de 2016, quinta e sexta feira – Alguns episódios na viagem de regresso
Depois da despedida no aeroporto de Dili, lá vamos nós rumo ao avião da Silkair que nos levará a Singapura.
O Gaspar, talvez levado pela excitação da viagem, ao receber um copo de água fresca das mãos de uma hospedeira de bordo desequilibrou-se e enfia com o seu conteúdo sobre mim. Valeu que o calor era muito e até soube bem. Para onde estaria ele a olhar? Para a beleza da hospedeira?....
Em Singapura, depois de cinco horas de espera que deram para revisitar espaços e comer alguma coisa ( o Gaspar, talvez para me fazer impressão, dizia que era carne de cão ) fomo-nos dirigindo para a zona do chek in. Tudo normal não fora o companheiro de viagem, carregado de jornais e de tarecos, começar a largar pelo caminho os seus pertences: jornais, pasta de documentos, violino, etc… Mais atrás ia eu que, a chorar de riso, lhe chamava a atenção com a expressão carinhosa “caganitas de laco” olha o que estás a fazer!...
Tive de tomar a decisão de cuidar dele pois o meu amigo perdeu a noção do tempo e do espaço. A viagem na British Airways de Singapura a Londres foi muito longa, mais de 13 horas.
Chegados a Londres, com duas horas de espera e com tanto espaço a percorrer, tivemos de nos despachar. No entanto o sr. Gaspar teve necessidade de ir ao wc, e eu estava e ver que nunca mais se despachava e o tempo a passar. Que horas são? Perguntou ele lá de dentro. É que este senhor decidiu não alterar a hora de Portugal desde que de lá saímos há dois meses.
À rasca, lá conseguimos entrar no avião da British Airways que nos levaria a Lisboa. Azar dos azares, o Gaspar acabou por não tomar o comprimido do enjoo e, a partir daqui começaram as cenas de má disposição.
Não vomitou no avião mas ao aterrar em Lisboa, felizmente nas casas de banho,
descarregou tudo quanto dentro tinha. Mais meia hora de espera, até que conseguimos sair do aeroporto. Eu que escrevo sempre em forma, e o meu amigo de rastos à espera que o seu automóvel chegasse pelas mãos do seu cunhado Tó Barroco em companhia da Glória Sobral. Efusivos cumprimentos, piadas, risos e algumas lágrimas e lá vamos nós para os locais de onde partimos.
Conclusões sobre a viagem e estadia em Timor
1. Esta viagem foi programada no âmbito de um projeto “Uma Escola em Timor”. Não foi portanto uma viagem com caraterísticas puramente turísticas. Durante dois meses não utilizamos hotéis mas sim as habitações comuns de bairros de periferia, com muitas carências e dificuldades. Não foi por isso uma estadia nada fácil.
2. Nada nem ninguém nos conseguirá desviar dos nossos objetivos. Lutamos e
continuaremos a lutar pela concretização dos nossos projetos. O que nos levou a
Timor foi um projeto de solidariedade que se irá concretizar na construção e funcionamento da escola e no programa de apadrinhamento de crianças com
dificuldade de prosseguir os seus estudos devido a dificuldades económicas.
3. Esta onda de solidariedade criou laços afetivos que perdurarão para sempre. Os timorenses abrangidos manifestaram a sua gratidão e reconhecimento de uma maneira efusiva. O carinho e a amizade que nutrem por nós não tem preço. Amam Portugal, mas amam sobretudo quem se preocupa e interessa por eles.
Quase todos os timorenses têm nomes ou apelidos portugueses. A família Sobral
é a única existente em todo o território de Timor, embora estejam distribuídos por várias localidades. Tenho o privilégio de os conhecer quase todos ( a tribo tem mais ou menos 200 elementos, com um número elevado de crianças) e de ser conhecido e amigo de muitos deles. Por isso vamos fazer todo o possível para os salvar e ajudar.
4. Qualquer descrição por mim feita tem valor relativo. Refiro-me particularmente às referências ao amigo Gaspar Sobral. Só uma grande amizade me permite dizer coisas tão particulares. Ele sabe bem que é assim. Sem ofensas mas, se por acaso algo está errado, peço o seu perdão.
5. A todos os que tiveram, têm ou terão oportunidade de ler estas crónicas quero
agradecer o seu interesse e, ao estilo de Francisco de Assis, não o político mas o santo, que seja tudo para glória de Deus. Que Deus Seja Louvado!
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Conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)
IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4
(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)
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Nota do editor:
Último poste da série > 31 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25587: Viagem a Timor: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte V: um país apaixonante, cheio de contrastes... e contradições
Vd. postes anteriores da série;
26 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25562: Viagem a Timor: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte IV: um encontro, privado, com Ramos Horta, colega de escola do Gaspar Sobral
23 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25553: Viagem a Timor: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte III: uma igreja ou uma escola ? está decidido, vamos construir uma escola
21 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25546: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte II - A caminho das montanhas
20 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25544: Viagem a Timor-Leste: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: As primeiras emoções e impressões