segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25809: Timor: passado e presente (16): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VII: As chacina de Aileu e Ainaro, em outubro de 1942... E a coragem da jovem Julieta Lopes, de 17 anos, que gritou aos assassinos, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric! (Na guerra não se matam mulheres e crianças!)



Timor Leste  > Dli >  c. 1936/40  > O Palácio do Governador



Timor Leste > Díli > c. 1936/40 > "Sua Excelência o Governador e S. E. Reverendissima o Bispo da Diocese"... Trata-se do governador Álvaro Fontoura (1891-1975), que exerveu o cargo antes dos acontecimentos aqui descritos, ou seja, entre 11/9/1937 e 10/5/1940. Duarante a Guerra Mundial, foi governador o cap inf Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho (1893-1968).



Timor Leste > Díli > 1937 > "Baleeira governamental quando da chegada de S. E. o Governador"


Timor Leste > Díli > c. 1936/40 > Baucau > "Residência do Governador (Vila Salazar)"



´Timor > Bacau ou "Vila Salazar > c. 1936-1940 > Um aspeto da vila

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo coma Wikimefdia Commons.




1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.

 Timor Leste, como é sabido, foi o único território  português ultramarino (na altura, designado como "colónia" , até 1951)  que foi invadido e esteve ocupado por forças estrangeiras, durante a II Guerra Mundial (entre dezembro de 1941 e setembro de 1945): tropas aliadas (anglo-australianas  e holandesas, primeiro, e japonesas depois),

O livro em apreço é um documento importante para se conhecer melhor este dramático  período da história de Timor. Devido à censura, o "caso de Timor", ou todo o seu horror,  só foi conhecido depois do fim da guerra. Timor foi uma "pedra" na bota de Salazar, que vociferou contra os aliados e praticamennte calou-se ante os nipónicos.

Para ajudar a leitura, reproduzimos no fim deste poste o mapa de Timor em 1940 (da autoria de José dos Santos Carvalho). Em termos administrativos, a atual República Democrática de Timor-Leste encontra-se dividido em 13 distritos: 

(i) Bobonaro, Liquiçá, Díli, Baucau, Manatuto e Lautém na costa norte;  | (ii) Cova-Lima, Ainaro, Manufahi e Viqueque, na costa sul;  ! (iii) Ermera e Aileu, situados no interior montanhoso;  | (iv) e Oecussi-Ambeno, enclave no território indonésio.

 

Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte VII:   As chacina de Aileu e Anaro,  em outubro de 1942... E a coragem da menina Julieta Lopes que gritou aos assassinos, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric!   (Na guerra não se matam mulheres e crianças!)


(i) Na madrugada de 1 de outubro de 1942, quinta feira, 
deu-se um dos episódios mais trágicos de toda a guerra 
no Timor português: o ataque à Companhia de Caçadores 
e à casa do seu comandante, o cap inf  Freire da Costa; 
uns morreram de armas na mão 
fazendo frente a uma "coluna negra",
 outros suicídaram-se. 

Segundo o adjunto da Companhia, o tenente Antóni0 Oliveira Liberato, dispunha de 200 homens, quase todos timorenses, 2 metralhadoras Vickers, 1 Lewis e 48 espingardas... do séc. XIX, Kropatchek, e umas escassas milhares de munições, velhas. Os prometidos morteiros, essenciais num território montanhoso,
ficaram, prometidos, em Lisbos. 

Toda a estratégia militar de Salazar e Santos Costa, na II Guerra Mundial, esteve orientada para a defesa das ilhas atlânticas (Madeira, Açores e Cabo Verde),  Tim0r foi, metaforicamente falando, 
riscada do mapa.

Nesta época, a população de Timor, de origem metropolitana, não ultrapassaria as duas centenas (não contando com as famílias): cerca de 90 deportados ("políticos e sociais"), meia centena de militares, umas escassas dezenas de funcionários administrativos, pessoal das missões católicas... Não havia colonos, ou contavam-se pelos dedos,
 

(...) Na tarde do dia 2 de outubro de 1942, o chanceler do consulado japonês, sr. Irié, veio ao hospital informar o engenheiro Canto de que em breve aí chegariam vários portugueses provenientes de Aileu.

De facto, cerca das 21 horas, apareceram três camionetas do exército nipónico, transportando portugueses de Aileu, entre os quais vinha o administrador Virgílio Castilho Duarte, o tenente reformado João Cândido Lopes e suas três filhas, o sargento António Lourenço da Costa Martins, o sargento Carlos de Miranda Relvas, o sargento Manuel dos Santos, os cabos Porfírio Soares e Jacinto Santos, e os enfermeiros Marcelo Nunes e Daniel Madeira.

Contou-nos, então o sargento Martins que na madrugada do dia 1 de Outubro, o aquartelamento da Companhia, instalado no depósito de degredados de Aileu, havia sido subitamente atacado e bombardeado por morteiros e, em seguida, por granadas de mão e alvo de tiros de metralhadora e espingarda, ouvindo-se gritos em língua indígena desconhecida no Timor português mas entre as quais se distinguia a palavra «Atambura» (1).

Tratava-se, pois, de uma coluna negra principalmente recrutada nessa cidade do Timor holandês. A guarda da Companhia, encurralada dentro dos muros do presídio, pois os japoneses haviam exigido que não patrulhasse as suas imediações, reagiu, saindo à portada, disparando uma metralhadora e espingardas, os cabos Evaristo Gregório Madeira e Júilo António da Costa, os soldados Álvaro Henrique Maher e João Florindo e vários soldados timorenses, tendo morrido, atingidos pela metralha, aqueles quatro europeus e seis soldados timorenses.

O ataque parou então, o que permitiu a fuga dos sobreviventes tendo, porém, alguns militares europeus ficado dentro do edifício do aquartelamento, escondidos e acaçapados no vão de um sobrado, coberto com as tábuas que tinham levantado. Assim se mantiveram até que, na manhã seguinte a tropa japonesa que visitou o edifício, os descobriu, com evidente surpresa e desapontamento.

A menina Julieta, filha do tenente Lopes (2) , eontou-me pormenorizadamente a tragédia que se tinha desenrolado na habitação em que estava instalado o comandante da Companhia e situada perto do aquartelamento.

Naquela noite, temerosos de acontecimentos terríveis que pressentiam, haviam-se acolhido à casa do comandante, o administrador Virgílio Duarte, o dr. Dinis Ângelo Arriarte Pedroso (delegado de saúde da zona oeste que habitava em Aileu desde o mês de junho), o secretário da administração de Aileu, José Gouveia Leite, sua esp
osa  [Cacilda] e dois filhos (um de sete anos de idade e outro ainda de peito), o chefe de posto auxiliar Antono Afonso, as três filhas do tenente Lopes  (2) e o filho do tenente Liberato, de doze anos de idade (3) .

O ataque principiou pelo quartel mas logo passou à casa do comandante que foi varrida por saraivadas de balas e a que começou a ser lançado fogo, pegando-o a uma dependência que servia de capoeira e lhe estava encostada. 

Não tendo dúvidas de que iriam ser mortos e torturados pelos assaltantes, tal como acontecera ao sr. Martins Coelho em Maubisse, e vendo que ficariam assados no braseiro em que a casa ameaçava tornar-se, todos os que ali se encontravam foram tomados do maior pânico, em especial os que temiam os piores vexames para as suas esposas que preferiam ver mortas

Em resultado deste estado de espírito, o capitão Freire da Costa suicidou-se com um tiro de pistola na cabeça, a sua esposa procedeu do mesmo modo com um pequeno revólver, o dr. Pedroso encostou uma espingarda ao peito e desfechou sobre o coração, e o secretário Gouveia Leite e o chefe de posto António Afonso meteram espingardas sob o queixo e dispararam. Em poucos instantes todos estes estavam mortos.

O administrador Virgílio Duarte teve, então, a ideia de se misturar com os cadáveres e se fingir morto. Assim fez, e foi isso que lhe salvou a vida. Entretanto, o fumo do incêndio, que alastrava, já quase asfixiava os sobreviventes, o que os obrigou a abrirem a porta para sair para o exterior. 

A turba ululante que se preparava para os exterminar foi então detida pela enérgica e decidida acção da menina Julieta Lopes (2), que, como conhecedora dos costumes primitivos timorenses,  se lhe dirigiu em alta voz, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric! (4). Assim, lembrando àqueles homens que na guerra não se matam mulheres e crianças, salvou a vida do desgraçado grupo.

Entrou a malta na casa e saciou o seu ódio disparando, ainda, tiros sobre os cadáveres, um dos quais feriu levemente no nariz, actuando de ricochete, o administrador Virgílio Duarte. As senhoras e crianças sobreviventes dirigiram-se então, livremente, para a residência do administrador que, tal como todas as casas de Aileu, com exceção do quartel e a do comandante, não havia sido atacada pela coluna negra.

Manhã cedo, militares japoneses vieram do seu acampamento vistoriar Aileu e foram eles que encontraram os militares portugueses escondidos nos escombros do quartel da Companhia e o administrador Virgílio na casa do comandante. 

Ficaram todos os sobreviventes da chacina de Aileu alojados na residência do administrador e, no dia seguinte, escoltados por soldados japoneses, tiveram de fazer a pé a longa caminhada entre Aileu e a ribeira de Cômoro onde encontraram as três camionetas que os transportaram ao hospital de Lahane, sendo recebidos com o carinho e a emoção fáceis de imaginar.

Passados poucos dias, seguiram a hospedar-se em casas de Liquiçá. Somente dias depois, soubemos em Lahane que em 2 de Outubro, dia seguinte à da chacina de Aileu, uma coluna de tropa japonesa acompanhada de timorenses havia assassinado em Ainaro, com requintes de selvajaria, os missionários, padres António Manuel Pires e Norberto de Oliveira Barros e o deportado Luís Ferreira da Silva que, na missão de Ainaro, prestava serviço como mestre-de-obras.

Devido a tantos acontecimentos desastrosos, o tenente Ramalho retirou-se do seu acampamento de Ai-Hou, daí saindo e dirigindo-se para leste, no dia 5 de outubro, chegando à Baucau a 24. 

O tenente Liberato ainda se manteve uns dias em Bobonaro, porém teve que retirar para Atsabe, no dia 12, seguindo a f ixar-se no lugar de Mânu-Tássi, a dois quilómeros da Hátu-Lia, cumprindo uma ordem do Governador que o incumbia de orientar a atuação nas áreas dos postos ainda ocupados pelas autoridades administrativas — Atsabe, Lete-Fóho, Hátu-Lia, Cailaco e Ermera — e cobrindo com as tropas as regiões de Liquiçá, Bazar-Tete e Boibau (6).

Entretanto, factos graves se passavam em Bazar-Tete e tropas japonesas, acompanhadas de indígenas, ameaçavam Lete-Fóho. Na primeira dessas localidades, apareceu de surpresa, à hora em que se realizava o bazar (7) , uma coluna negra, vinda de Aileu. Precedendo a sua entrada de breve fuzilaria, puseram em debandada os timorenses e os europeus que se encontravam no mercado.

O sr. Moreira Rato, chefe do posto, e família, perseguidos a tiro, conseguiram escapar aos assaltantes, refugiando-se no mato. Auxiliados por timorenses dedicados, alcançaram Liquiçá. Exaustos, rotos, corpos cheios de arranhaduras, entraram na vila, onde foram socorridos pelo chefe de posto José Nascimento. Incansáveis, ele e sua esposa, prestaram-lhes carinhosa assistência. Outro tanto haviam feito já aos refugiados de Aileu.

No dia 19 de outubro, os japoneses entraram em Lete-Fóho, afugentando os moradores com rajadas de metralhadora e incendiando as residências, armazéns, etc, e regressando a Hátu-Builícu, donde tinham ido. Dois europeus, o deportado Emílio Augusto Caldeira e o condenado João Romano da Silva, morreram às mãos dos indígenas que acompanhavam os nipónicos (6).


(ii) Isolados do mundo (com a estação radiotelegráfica de Taibessi nas mãos dos japoneses), não há sinais de esperança, vindos de Lisboa, pelo que o governador (e os restantes portugueses) acaba por ter de aceitar a "solução japonesa", a de os concentrar em Liquiçá e Maubara.

Entretanto, há já aviões norte-americanos a bombardear o território... Dois anos depois, em 28/11/1944,  a diplomacia portuguesa, jogando com o pau de dois bicos (a famosa "neutralidade colaborante") consegue assegurar a restituição da soberania de Timor, ao conceder aos EUA facilidades na utilização 
da base da ilha de Santa Maria, Açores. 



(...) Após as chacinas de Aileu e Ainaro, o Governador resolveu informar do acontecido a população europeia instalada em Baucau pedindo-lhe, ao mesmo tempo, para se pronunciar sobre a urgente necessidade de se enviar um telegrama para Lisboa, rogando a evacuação de Timor, da população que estava sistematicamente a ser dizimada. 

O caso, que primeiro foi tratado com os que residiam no hospital de Lahane, pessoalmente pelo Governador, revestia-se de excecional delicadeza. A nossa dificílima situação era motivada, não pela impotência de dominarmos os limitados focos de rebelião de timorenses-portugueses mas, sim, pela impossibilidade de podermos castigar e reprimir os bandos de indígenas do Timor holandês que os japoneses lançavam contra nós e que, sem dúvida alguma, protegeriam.

Ora, desde o dia 31 de maio que estávamos isolados de qualquer comunicação com o resto do mundo por os japoneses terem ocupado a nossa estação radiotelegráfica de Taibéssi e, somente por intermédio deles poderíamos enviar um SOS ao Governo central. 

Porém, como explicar-lhe que todas as nossas aflições resultavam da velada ação nipónica, em telegrama aberto, pois o cônsul japonês logo claramente informara o engenheiro Canto de que a mensagem, por razões de segurança das forças militares, não poderia ser em cifra ?

Seguiu então para Manatuto e Baucau o capitão Vieira, enviado do Governador, no dia 4 de outubro, tendo recebido o assentimento dos portugueses aí reunidos para se mandar ao Governo um telegrama que, pelo seu apelo desesperado, lhe desse a entender que estávamos inteiramente impossibilitados de garantir a vida de qualquer de nós. 

A resposta do Governo central não se fez esperar, tendo eu sabido, por meias palavras do engenheiro Canto, que nela não havia qualquer esperança de alívio para a nossa situação, julgada perfeitamente controlável pelos meios locais.

Não restou, assim, ao Governador outra hipótese de solução, senão aceitar o oferecimento, que já várias vezes tinha sido feito, de o exército japonês garantir a nossa segurança desde que todos os não-timorenses se concentrassem na zona constituída pelas povoações de Liquiçá e Maubara, por eles escolhida. Todos os portugueses de Lahane concordaram com esta ideia, o mesmo acontecendo com os da zona Leste, a quem o capitão Vieira foi novamente informar do que se passava, partindo para Baucau no dia 11 de outubro.

Era, então, absolutamente claro para todos, não podermos ter a mínima confiança em os nipónicos cumprirem a palavra  dada. Todavia, nada mais nos era dado escolher e tínhamos que nos sujeitar ao que entendíamos ser um subterfúgio para afastar as autoridades portuguesas dos seus postos de soberania

No dia 14 de outubro, passados os dois meses da minha estadia voluntária em Díli, voltei para Baucau e o dr. Rodrigues regressou ao hospital de Lahane, tendo deixado a sua esposa naquela vila, hospedada na residência do secretário Howell de Mendonça de cuja esposa era íntima amiga.

Decorridos três dias, fui surpreendido em Baucau pela notícia de que a família do Governador tinha chegado na noite da véspera trazendo consigo outras pessoas e que todos estavam instalados no «palácio», uma residência de férias dos governadores. Imediatamente, como me cumpria, me dirigi ao palácio para apresentar os meus cumprimentos e no seu átrio encontrei o capitão Vieira que me informou do que se passara em Manatuto, no dia 16 de outubro. 

Aviões com o distintivo americano, haviam, então bombardeado a estrada de Manatuto a Saututo, tendo caído bombas muito perto da residência do administrador, o que motivara a vinda de todos os que aí habitavam para Baucau com exceção do dr. Mendes de Almeida e do secretário Augusto Padinha.

Estavam, assim, no palácio, a senhora D. Cora Ferreira de Carvalho e as suas três filhas, o capitão Vieira e sua esposa e filha, a esposa do tenente Alves e suas duas filhas e um filho, a esposa do administrador dr. Mendes de Almeida e a esposa do secretário Padinha e seus filho e filha. 

No dia 24 de outubro, à tarde, as filhas do Governador e a do capitão Vieira estavam a jogar o ténis comigo. Com grande surpresa, nossa, avistámos, marchando, uma coluna de tropa portuguesa à frente da qual comandava o tenente Ramalho. Era, de facto, este oficial que voltava da sua missão de combater a rebelião de Maubisse e que ia alojar a sua tropa no belo edifício da escola de Baucau, a cerca de quinhentos metros para norte da vila. 

Fui visitá-lo, na manhã do dia seguinte, tendo-lhe oferecido roupas interiores e umas calças minhas que ele, reconhecidamente aceitou, pois não tinha possibilidade de substituir as que ainda usava, rasgadas pelos espinhos do mato, durante as árduas lutas em que tomara parte.

No dia seguinte ao da chegada do tenente Ramalho apareceram, em Baucau o engenheiro Canto e o tenente Alves que convocaram uma reunião onde compareceram quase todos os portugueses não-timorenses. Deram então conhecimento de que tinha sido concluido o acordo com o comando nipónico, negociado por intermédio do engenheiro Canto e do cônsul japonês, pelo qual aceitávamos a sua protecção, e a deslocação para a zona de Liquiçá e Maubara e de que traziam instruções sobre a forma como esta última se havia de processar.

O meio de transporte seria o vapor Oé-Kússi (5) que ainda demoraria a vir cerca de duas semanas, e que começaria por fazer viagens somente com géneros alimentícios (que se deviam juntar em Baucau pois a zona era muito pobre em agricultura) e com bagagens dos passageiros, os quais seguiriam depois. Vários dos assistentes à reunião tomaram então a palavra, sendo o primeiro o Coronel Castilho e seguindo-se-lhe os administradores, tenente Pires e Sousa Santos. Todos foram unânimes na opinião de que não tinham a mínima confiança nas promessas dos japoneses, mas que para nós não havia outra alternativa senão a de seguir para a zona de concentração, que, à boca pequena, se classificava como «o açougue dos portugueses».

As disposições relativas à concentração dos portugueses, tomadas de acordo com o comando nipónico, foram então referidas, de um modo vago, pelo engenheiro Canto e encontramo-las num dos livros do capitão Liberato (6), do qual as passo a transcrever.

«A zona de concentração, necessidade premente, imposta pela situação aflitiva que a colónia atravessava, abrangeria as áreas dos postos administrativos de Liquiçá e Maubara. 

"Ali se concentrariam todos os portugueses. Os destacamentos militares, o meu e o do tenente Ramalho dos Santos, estabelecer-se-iam respectivamente em Boebau (8), área de Liquiçá, e nas montanhas de Maubara, com a missão de defender a integridade da zona, contra os ataques dos indígenas. 

"Cada português poderia conservar em seu poder uma arma de fogo para defesa pessoal. Os indivíduos cujas funções obrigassem a permanecer em Díli, residiriam no hospital Dr. Carvalho, em Lahane».

O acordo foi firmado em bases imprecisas, porque os nipónicos sempre se recusaram a reduzir a escrito os pormenores regulando a sua execução, como insistentemente lhes foi pedido è nas próprias bases era prometido. Manhosos, velhacos, nunca quiseram firmar um compromisso que de certo modo lhes pudesse cecear a sua acção sobre os portugueses. Jamais se decidiriam a penhorar á sua palavra, assinando um documento que no fúturo constituísse a demonstração insofismável da sua desleal conduta (9).

Em minha casa, onde ficou hospedado, me contou o engenheiro Canto que tinha trazido um pedido do Governador para o administrador de Manatuto adquirir, juntar e enviar para Baucau todo arroz que lhe fosse possível obter, para embarcar no OeKussi. 

Transmitidas pelo tenente Pires as instruções do Governador ao administrador de Lautém, todos começaram os seus preparativos para a deslocação, mas sem qualquer ansiedade pois havia um razoável período de espera pelo transporte.

So mais tarde eu soube que no dia 28 de outubro, bastantes portugueses dos lados da Hátu-Lia e Ermera e que se encontravam albergados na plantação de Fátu-Béssi,  haviam abandonado esse local e ido para parte incerta, para não seguirem para a zona.

Conta-nos o dr. Cal Brandão (10) que um oficial australiano que a passara com a sua guerrilha, os informara não ser do conhecimento do seu comando a criação duma zona neutra e que, assim, eles não se julgariam obrigados a respeitar uma convenção feita sem o seu assentimento. 

Depois, o major Bernard Callinan (11), segundo-comandante australiano, declarara que o seu comando criaria também, uma zona de protecção às famílias portuguesas, a evacuar para a Austrália em caso de necessidade, com a condição dos homens lhe prestarem ajuda, ficando como seus intérpretes e colaboradores (10) .

«O facto tornou-se conhecido, fizeram-se os preparativos necessários para a viagem, que podia ser acidentada, e era demorada por certo. No dia 28 de outubro, logo de manhã cedo, com doze australianos a proteger-nos a retirada e sentinelas colocadas nas encruzilhadas em que seria possível um mau encontro, pôs-se a caminho uma caravana de cerca de oitenta pessoas, muitas mulheres e crianças, umas a pé outras a cavalo, em bicha indiana serpeando pelos estreitos carreiros cavados nas encostas de íngremes montanhas» (10) .

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Notas do autor (complementadas pelo editor LG):


(1) Atambua era uma cidade do Timor holandês, situada próximo da nossa fronteira.

(2) O intendente militar, tenente reformado João Cândido Lopes , tinha 3 filhas, entre elas a Julieta Lopes (aqui citada pelo autor), de 17 anos. 

(3) O tenente António Oliveira Liberato, viúvo, deixara o seu filho Luís Filipe, de 12 anos,  à protecção do capitão Freire da Costa, quando partira com o destacamento da Companhia a combater a rebelião dos povos da Fronteira.  Casará depois, em 1943/44, com a Cacilda, viúva do secretário da administração de Aileu, Júlio Gouveia Leite.  (O casal tinha chegado a Timor em setembro de 1936.)  

António Liberato e Cacilda vão reencontrar.se no campo de concentração, com os 3 filhos (dois dela, um dele).

(4) Esta frase, em tétum, significa: "Não se devem matar (após a vitória em combate) as mulheres e as crianças".

(5) O vapor Oé-Kússi, havia sido tomado pelos japoneses para seu serviço no mês de maio de 1942, depois de repetidas vezes, a sua cedência ou aluguer lhes serem negados pelo governador.

(6) Vide Capitão António Oliveira Liberato, O Caso de Timor, Portugália, Lisboa.

(7) Em Timor os mercados públicos têm a designação comum de «bazar».

(8) Onde hoje fica a ESFA (Escola de São Francisco de Assis), construída pela ASTIL - Associação de Solidariedade com Timor Leste.

(9) Vide Capitão António de Oliveira Liberato, Os japoneses estiveram em Timor, Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(10) Vide Carlos Cal Brandão, Funo. Porto, 1946.

(11) E não Callini, lapso do autor ou gralha tipográfica. (Nasceu em 1913 e faleceu em 1995, sendo um grande amigo de Timor Leste).

Fonte: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pp. 44-53.

 
(Seleção, revisão / fixação de texto, título, notas introdutórias, reorganização das notas, itálicos e negritos: LG)






Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.   Na II Grande Guerra, conheceu por duas vezes a invasão e ocupação por tropas estrangeiras (os Aliados, em 17 de fevereiro de 1941; e depois os japoneses, em 20 de fevereiro de 1942). Na altura teria pouco mais de 400 mil habitantes. O território era administrado por Portugal desde o início do Séc. XVIII.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 2 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25802: Timor-Leste: passado e presente (15): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VI: e o terror continuou no 2º semestre de 1942...

domingo, 4 de agosto de 2024

Guné 61/74 - P25808: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte V: Na lha do Como...Jusfificação do impedido sobre o rombo que tinha levado o garrafão do vinho do pessoal: "Teve visitas, meu alfero!"...

Foto à direita: os alferes milicianos José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho"), do QG / CTIG (em 1º plano, à esquerda), e João Sacôto, da CCAÇ 617/ BCAÇ 619, em 2º plano, à direita

1. Estamos a publicar algumas das memóras do ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, membro  nº 890 da nossa Tabanca Grande:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não podemos precisar a data);

 (iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QCCTIG); 

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

 (v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964); 

(vi) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(vii) tornou-se também amigo dos então alferes milicianos 'comandos' Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos), quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG;

 (viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.); 

(ix) é empresário reformado.

Voltando às memórias do José Álvaro Carvalho, estamos agora em 1964, em Catió, no BCAÇ 619, 1964/66: ele está destacado com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo, pertencente à Bateria de Artilharia de Campanha (BAC). 

Este Pel At participaria em grandes operações no setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A atuação do seu comandante, no campo operacional valeu-lhe, em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe.

Estamos agora na Ilha do Como, no decorrer da Op Tridente (jan-mar 1964).


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) (**)

Parte V: Na ilha do Como...Justificação do impedido sobre o rombo que tinha levado o garrafão do vinho do pessoal: "Teve visitas, meu alfero!"...


Definido o local de estacionamento, o oficial dos abastecimentos do batalhão ficou de arranjar tendas e outros equipamentos necessários, o que disse ainda ia levar alguns dias, mas acabou por nunca aparecer.

O pessoal do pelotão era constituído por africanos que  na ausência de qualquer abrigo, se propuseram construir na areia da praia, barracas com uma estrutura de paus coberta por ramos de palmeira entrelaçados. Cada barraca fazia parte do semicírculo que todas formavam, atrás dos obuses já instalados e virados para a mata de terra firme que constituía o centro da ilha, cerca de 30% do total e formado por árvores de porte elevado. Os atrelados com munições foram estacionados atrás de cada obus.

A barraca do alferes Carvalho era a primeira a oeste do semicírculo e tinha um pequeno alpendre que a distinguia das outras por ser ele o chefe.

Atribuíram-se tarefas: cozinha, armazém limpeza, etc. 

O vinho semanal armazenado em garrafões ficava religiosamente guardado na sua barraca, à responsabilidade do impedido, um africano enorme da etnia Papel, com cerca de 2 metros de altura, que tinha sido criado dum médico e lhe arranjava primorosamente a pouca roupa que levara (duas camisas e dois calções que lavava na água do mar e colocava em seguida entre algumas caixas de granadas, cujo peso se assemelhava ao efeito de passar a ferro).

Este impedido foi de grande utilidade para um oficial dos comandos, seu amigo dos primeiros tempos de África, que entrava sempre em operações com o fato de combate impecavelmente preparado por ele e também um lenço de seda azul que levava ao pescoço como se fosse para alguma festa, para daí a meia hora se enterrar na lama, nalguns casos até à cintura.

Era também o responsável pelo vinho do pessoal e pela sua distribuição. Um dia após regressar do almoço na messe de oficiais do batalhão, onde às vezes ia, verificou que o vinho tinha levado um rombo assustador, tendo-se este justificado:

 
  Teve visitas,  meu alfero.

As visitas eram só uma e constituída por um soldado africano comando, estacionado também naquela praia paredes meias e que lá ia com frequência. O impedido foi por isso castigado com um dia de prisão, que cumpriu num posto de sentinela.

Não sabia se tinha exagerado. O impedido era um bom soldado, mas nessa altura já estava farto de guerra e de beber naquela praia whisky com água e gelo amarelo, da cor do whisky feito com a única água que se obtinha e nem sempre bem filtrada.

Os mosquitos eram poucos, uma das grandes qualidades daquele acampamento, mas o Sol era sempre o mesmo: rompia a neblina e incidia forte e quente na pele.

A comida era à base de arroz como de costume,  que aliás o seu cozinheiro fazia muito bem. Cozinhavam em pequenas marmitas que arranjaram junto do outro pessoal do batalhão.

(Continua)


(Revisão/fixação de texto, título, negritos: LG)

__________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 29 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25788: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte IV: de indisciplinados a bravos do pelotão

Guiné 61/74 - P25807: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (29): "Um bramido de raiva"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Um bramido de raiva

Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas entranhas tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da inglória, velocidade rebentando a dor, direto à morte que está em pé na berma do cais pela mão de uma criança. O pai, nos braços de um escombro deste mundo sem sol nem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada com o filho contra a majestade de um gélido cadafalso de ferro, parido pela força de um desumano progresso, contra o qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em contramão.

Meu menino sonâmbulo de olhos negros e pálida doçura quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na verdade desfeita em sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma sociedade podre.

Podia ser um menino nascido no berço do lado, ao colo de um pai ou de um avô, trabalhador-milionário, desiludido porque a sua fortuna não havia atingido o limiar do absurdo, o que não deixava de ser triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada mais te deu do que um pai sem nada, sem prendas, sem força nem entreatos que te enxergassem melhor sorte do que a morte.

O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a brida, o ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco, a vida estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil cai em pedaços sobre os bonecos das tuas meias no pavoroso silêncio dos teus olhitos redondos.

E o mundo continua como se nada tivesse acontecido.

Quando vi que eras tu, o menino que estava no curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a fome e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.

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Nota do editor

Último post da série de 28 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25785: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (28): "O presépio de Laila"

Guiné 61/74 - P25806: (De) Caras (215): "Da minha varanda continuo a ver o mundo"... Parte I (Valdemar Queiroz, DPOC, Rua de Colaride, Agualva-Cacém, Sintra)

 

Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8


Foto nº 9


Foto nº 10


Sintra > Agualva-Cacém > Rua de Colaride > Julho de 2024>    Da mimha varanda continuo a ver  o mundo... "

Fotos (e legenda): © Valdemar Queiroz (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada Valdemar Queiroz:


Data - domingo, 28/07/2024, 15:08

Assunto - Da minha varanda continuo a ver o mundo (*)


Boa tarde, Luís


Como este belo tempo, um pouco quente mas sem o sol a abrasar, continuo a ver passar os meus novos vizinhos caminhando na minha rua, sempre coloridos.

Agora, já apanharam o hábito do telemóvel quase como em tempos o cigarro ou a pastilha elástica, inseparável. Até a sombra da frondosa e quase cinquentenária nespereira serve para fazer um 'mi liga' a meia da tarde. 

Também já existem telemóveis que enviam legendas-grafites e outros que nem sequer criam
inveja antes olhar a loirinha à fresca ligando.

Eu, agarrado a oxigénio, cá estou na minha varanda a ver passar a nova vizinhança de cabo- verdianos e guineenses e um ou outro dos antigos vizinhos já muito raros. Anexo umas fotos tiradas da varanda e ver os vizinhos passar.

Bons dias de Verão e umas malguinhas de verde fresco. (**)
Valdemar Queiroz

Anexo - 24 fotos



Valdemar Queiroz, minhoto de Afife,  Viana do Castelo, por criação, lisboeta por eleição (ou necessidade...), ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70 (aqui por obrigação, em foto, tirada em Contuboel, 1969).  Entrou para a Tabanca Grande em 16 de fevereiro de 2014. Estivemos juntos no CIM de Contuboel de 2 de junho a 18 de julho de 1969. Ele foi um dos instrutores da recruta das 100 praças do recrutamento local, que fomos receber para fazer a guerra, a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, junho de 1969 / março de 1971). Tem mais de 180 referências no nosso blogue, de que é um leitor e comentador assíduo.


2. Comentário do editor LG:

Grande Valdemar, já não há, em julho, nêsperas nem flores lilases de jacandará, mas o mundo continua a passar pela tua janela ou pela varanda do teu apartamento na Rua de Colaride, Agualva-Cacém... O mundo, os teus vizinhos, e as memórias que eles te trazem do seu mundo (que afinal é cada vez mais só um...).

E tu continas a sorrir para o mundo, ou pelo menos a câmara do teu novo telemóvel,  que já não é tão "fatela" como a do ano passado...a avaliar pela "qualidade" das imagens que me mandas agora... Ou é a mesma ? (Tenho ideia que  Menino Jesus neerlandês te deu um novo telemóvel pelo Natal.. se não te deu, bem o merecias.)

Continuas a viver hoje, sozinho, em casa, em Agualva-Cacém. Felimente que a tua rua é "colorida". E tem vida...  E renova-se... 

Tens o teu filho e netos, longe, nos Países Baixos, mas mesmo assim ao alcance de um "clique". (Lembras-te, na Guiné, naquele tempio, era preciso dormir na estação dos correios em Bissau, para se conseguir, no dia seguinte, uma chamada para casa, aqueles de nós, muito poucos, que tinham o privilégio de ter telefone fixo, em casa...).

E vez em quando, lá vais (é a tua sina!) de "charola" para o Hospital Amadora-Sintra com uma crise aguda, devido à sua "DPOC de estimação"... Aprendeste a lidar com a ela, a filha da mãe..., com o teu sempre desconcertante mas saudável humor (de caserna)... E com a preciosa ajudinha do teu/nosso SNS que já conhece a tua rua... (Que Deus Nosso Senhor lhe continue, ao teu/nosso SNS,  dar "saudinha da boa", e por muitos anos...).

O voto dos teus amigos e camaradas da Guiné é que continues a ser mais teimoso do que o raio da tua "doença de estimação" que te vai acompanhar para o resto da vida.  E que a "menina dos teus olhos" continue a poder ver o mundo, e a encontrar motivos para sorrir e o fixá-lo em humaníssimos e ternurentos instantâneos como estes...  (Tens razão, o raio do telemóvel também veio para ficar como o Toyota, a "covide" e por aí fora...).

Obrigado, pelas fotos que nos mandaste e de que fizemos uma seleção. (**) 
__________________

Notas do editor:

(`*) Vd. postes anteriores:



15 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24400: (De) Caras (198): "Da minha varanda também vejo o mundo... Ou uma nesga, o da da minha rua" (Valdemar Queiroz, DPOC, Rua de Colaride, Agualva-Cacém, Sintra) - II (e última) Parte

(**) Último poste da série > 31 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25797: (De)Caras (305): Cecílica Supico Pinto: a "líder carismática" do Movimento Nacional Feminino, com acesso privilegiado a Salazar, que veio preocupadíssima com a situação na Guiné, na véspera do 25 de Abril de 1974

sábado, 3 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25805: Os nossos seres, saberes e lazeres (639): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (164): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Mandava a lógica das coisas que se começasse esta romagem por Figueiró dos Vinhos e Pedrógão Grande. Se este primeiro dia foi um tanto borrascoso, o chão a parecer oleoso, lama aqui e acolá, a promessa de, no segundo dia, se encetar viagem à povoação vizinha de Pedrógão Pequeno, onde se teve uma bela casa sob a barragem do Cabril, houve a deceção da chuva persistente a convidar mais a visita a interiores e a dissuadir liminarmente a visita sacramental ao Vale do Cabril. Remodelados os planos, percorreu-se Pedrógão Pequeno, onde também se amesendou, e debaixo da tal chuva irritante se regressou a Pedrógão Grande para visitar um museu dedicado a um artista hoje praticamente esquecido que foi um grande companheiro de Amadeo de Souza-Cardoso em Paris, Pedro Cruz, mais adiante vamos falar dele e o que este museu nos oferece.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (164):
Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior – 3


Mário Beja Santos

O texto que se oferece ao visitante sobre a freguesia de Pedrógão Pequeno tem o seu encanto, diz que alguém apelidou a região como a Sintra da Beira Baixa, o romantismo do lugar foi exaltado por poetas, pintores e até fotógrafos como Camões, Malhoa ou Carlos Relvas. Este espetáculo cénico move-se à volta do telúrico Vale do Cabril, no assombroso Monte da Nossa Senhora da Confiança, é local de beleza, durante séculos, graças à ponte filipina que ligava Pedrógão Grande à Sertã. Pedrógão Pequeno, onde vivi numa moradia que teve que ser reconstruída, bordejada a granito, estava toda podre no seu interior por pura negligência do anterior proprietário, a EDP. Da varanda da casa desfruta-se o espetáculo cénico inigualável, ali perto está a ponte filipina, avista-se em toda a sua dimensão a aldeia de xisto, indo pelo chamado Moinho das Freiras pode percorre-se o Vale do Cabril, situado num enclave granítico, entre maciços xistosos. Aqui se fazem percursos pedestres entre estas paisagens deslumbrantes, há uma romaria de tradições seculares à Nossa Senhora da Confiança, vale a pena passear sob a Barragem do Cabril e a povoação orgulha-se de ver parte da rota da Estrada Nacional 2. Foi recentemente inaugurado no Penedo do Granada um passadiço, como o dia não prometia andar em pisos molhados ficou uma razão muito forte para aqui voltar.

Nas divagações do meu texto anterior, contei como, estando a remodelar uma casa de agricultores em Casal dos Matos, concelho de Pedrógão Grande, num passei pela Barragem do Cabril, deu-se uma súbita paixão por uma casa à venda, belas paredes orladas de granito, deixara-se apodrecer o telhado e o tempo fez o resto a destruir o interior. Estavam refeitas as duas casas, e já não me sentia propriamente bem em fechar uma e abrir outra, separadas a uma distância de 7/8 km. Eu tinha dois amores, não sei qual dos dois mais esfusiante, felizmente que as circunstâncias e a própria idade induziram à separação. Se no primeiro dia desta romagem de saudades era inevitável ir a Figueiró dos Vinhos e começar a percorrer Pedrógão Grande, o segundo dia teria de começar por Pedrógão Pequeno, como aconteceu. Foi pena o tempo não ter ajudado. Uma chuva miudinha e irritante e um Vale do Cabril um tanto enlameado limitaram um matar de saudades.
O Zêzere visto do alto da barragem do Cabril, ainda há neblina que se vai dissipando em dia frio e chuvisco
À entrada do tempo encontra-se informação sobre o histórico desta igreja matriz de Pedrógão Pequeno:
“Tem como orago São João Baptista, foi edificada em inícios do século XVI. Segundo documentação do reinado D. João III, a igreja já existia em 1522. De planta longitudinal, composta por dois corpos retangulares justapostos, a igreja está dividida por três naves e capela-mor, com duas sacristias de planta quadrangular adossadas às naves laterais e torre sineira adossada à fachada. A fachada principal possui três registos, sendo delimitada lateralmente por pilastras toscanas rematadas por pinhas. O interior do templo é dividido em três naves separadas por quatro arcos torais de volta perfeita assentes em colunas toscanas, sendo a central a mais alta. Ao fundo, o coro-alto em madeira está assente em dois pilares em cantaria. Possui quatro altares laterais com retábulos em talha dourada. A cobertura do templo é em madeira com caixotões lisos; na nave central cinco caixotões estão pintados com cenas da vida de São João Baptista.”

Interior da igreja matriz de Pedrógão Pequeno
O teto em caixotão da igreja matriz de Pedrógão Pequeno com pinturas singelas
Impressiona pela sua beleza e austeridade este nicho com moldura em granito, pela é ter desaparecido a imagem votiva ou talvez um tema da paixão de cristo.
Uma pia batismal também impressionante pelo desenho austero
Passadiço do Penedo do Granada, equipamento de lazer situado no sopé do Monte de Nossa Senhora dos Milagres, na zona de confluência da Ribeira de Pera com o rio Zêzere e que proporciona uma agradável vista da paisagem do Cabril.
Penedo do Granada, fotografia de João Viola
O Cabril, visto por Luigi Manini, nas suas deambulações com Alfredo Keil no Zêzere
O ponto em que a ribeira de Alge se junta ao Zêzere no Cabril

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 27 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25782: Os nossos seres, saberes e lazeres (638): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (163): Uma romagem de saudades pelo Pinhal Interior - 2 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25804: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte II: c. 1500 mobilizados, 41 mortos


SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal- In:  Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.


1. Na "Intodução", Artur Ferreira Coimbra (n. 1956), escreveu:

"A Guerra Colonial foi um período fortemente traumatizante para toda uma geração de portugueses, que viveram, recriaram e pensaram o último meio século da vida colectiva deste país.

"Não esqueçamos que mais de um milhão de jovens com idade em redor dos 20 anos, impreparados, mal armados, deficientemente treinados, deslocados abruptamente das suas aldeias, vilas e cidades, passaram, em comissões com uma média de duração de 24 meses, pelas colónias de Angola, Guiné e Moçambique, sobretudo,  onde a espada da guerra foi mais acesa e o troar das metralhadoras mais acentuado. Com aquelas condições, o mínimo que se pode afirmar é que os nossos soldados deslocados para África foram autênticos heróis.

"Daquele número global, mais de 10 mil jovens tombaram, impunemente, na frente de combate ou em acidentes diversos, cerca de 120.000 foram feridos, mais de 20 mil ficaram estropiados ou deficientes para a vida e estima-se que cerca de 140.000 ficaram a sofrer de 'Stress Pós Traumático de Guerra', cujas consequências funestas nunca mais os abandonaram. (...)

"Do concelho de Fafe (...), foram coagidos a participar nos três teatros operacionais mais de 1500 jovens (...)"  (pp. 9/10)




Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. 1946): (i)  foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii)  tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii)  viveu em Angola até 1974; (iv)  licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v)  professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de cultura e desporto; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte;  (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 85 referências no nosso blogue.



2. Estamos qa reproduzir, por cortesia do autor (e com algumas correções de pormenor),   excertos do  extenso estudo do nosso camarada e amigo Jaime Silva, na parte sobretudo que diz respeito a: ((i) introdução e contextualização (pp. 25-39); (ii)  mortos do concelho de Fafe, e nomeadamente no TO da Guiné, incluindo alguns testemunhos recolhidos pelo autor  (pp. 39-84).


Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal   Excertos ]  - Parte II (pp. 39-43)

por  Jaime Silva


(...) 6. A participação e enquadramento dos militares de Fafe durante a Guerra – Questões concretas a levantar

É já neste contexto (*) que os jovens de Fafe, como todos os jovens do seu país, foram também obrigados a contribuir para o esforço da guerra. Como a partir de 1961, início da guerra em Angola, nem todos foram mobilizados para África e nem todos tiveram uma especialidade de combate, será forçoso, por isso, colocar e tentar esclarecer um conjunto de questões, se queremos conhecer e perceber melhor qual o tipo de participação, enquadramento e grau de dificuldade na atuação de cada fafense durante os dois anos ou mais de comissão num dos três teatros de operações em África.

As questões que me parecem pertinentes levantar, pelas razões aduzidas, têm como referência a minha experiência pessoal no terreno de operações de um dos teatros de guerra, Angola (Norte e Leste), durante uma comissão que durou cerca de trinta meses, sempre operacional e durante a qual, em quase todas as operações de combate em que participei e comandei, houve tiros, confronto, guerrilheiros mortos ou feridos ou armas capturadas. 

Em consequência dos confrontos, um soldado do meu Pelotão foi morto na sequência de um assalto a um acampamento do MPLA nos Montes Mil e Vinte, outro ficou sem uma perna, devido ao rebentamento de uma mina (eu e mais dois soldados passámos pelo mesmo sítio e não pisámos a mina!) e um sargento ficou ferido na sequência do rebentamento de uma armadilha, todos no Norte de Angola.

Será com esta preocupação que tentarei, por isso, enumerar e encontrar a resposta a um conjunto de questões que me parecem mais pertinentes para compreender o envolvimento dos militares de Fafe, no contexto da sua atuação no âmbito das Forças Armadas, durante a sua Comissão de Serviço no Ultramar. Concretamente:

1. Quantos fafenses foram chamados às inspeções militares (às sortes) entre janeiro de 1961 e dezembro de 1974?

2. Quantos ficaram “aptos para todo o serviço militar” ou “livres de todo o serviço militar”, na sequência da “Inspeção Sanitária”, por doença crónica ou “grande cunha”?

3. Quantos cumpriram o serviço militar na Metrópole ou nas Ilhas?

4. Quantos decidiram “dar o salto” para o estrangeiro, para fugirem à Guerra, antes de irem às inspeções, após serem “apurados para todo o serviço militar”, ou depois de saberem que tinham sido mobilizados para o Ultramar?

5. Quantos fafenses foram mobilizados e cumpriram uma Comissão de Serviço militar em África?

Destes, dos que foram mobilizados para África, qual o seu envolvimento pessoal na orgânica e dinâmica das ações levadas a cabo pelas Unidades Militares onde estavam destacados, concretamente:

I. Quantos prestaram serviço em cada um dos três ramos das Forças Armadas: Exército, Marinha ou Força Aérea?

II. Quantos fizeram parte do Quadro Permanente (oriundos da Academia Militar) ou, sendo milicianos, optaram por fazer carreira nas fileiras das Forças Armadas?


III. Quantos pertenceram às tropas especiais (paraquedistas, fuzileiros, comandos ou rangers) e, destes, quantos tomaram a iniciativa de se oferecer para estas com o objetivo de não serem mobilizados para a Guiné ou outra razão?

IV. Quantos se casaram antes de “assentar praça” na expetativa de não serem mobilizados para o Ultramar, já eram casados e tinham filhos quando partiram para África ou casaram, depois, “por procuração”?

V. Quem optou por emigrar para Angola ou Moçambique para, mais tarde, ser incorporado localmente nas fileiras das Forças Armadas e, assim, não ser mobilizado para a Guiné ou poder vir a ter uma especialidade diferente da de “atirador”?

VI. Quantos participaram em operações de combate, tiveram de apontar ao “inimigo” e atirar primeiro para não morrer, ou foram vítimas das emboscadas e viram os seus colegas de pelotão ficarem feridos, amputados ou mortos?

VII. Quantos viveram o drama de verem um seu camarada morrer, transportaram às costas um camarada morto, ferido ou estropiado, ou deram sangue no local para o salvar, na sequência de uma emboscada ou rebentamento de mina?

VIII. Algum matou, por represália, algum guerrilheiro ou cortou-lhe alguma parte do corpo com a faca de mato ou teve que tomar a iniciativa de dar o “tiro de misericórdia” a algum guerrilheiro ou elemento da população que ficaram às portas da morte e sem hipóteses de sobrevivência em consequência do resultado dos combates?

IX. Na sequência das emboscadas ou assaltos aos acampamentos, quem capturou guerrilheiros, material de guerra ou documentos políticos dos Movimentos Independentista Africanos?

X. Quantos tiveram a sorte de nunca participar numa operação de combate, nunca saíram das cidades ou, pelo menos, das sedes de Companhia ou Batalhão, ou puderam participar numa atividade civil paralela, como praticar desporto federado, ou exercer a sua profissão, etc.?

XI. Quantos tiveram a possibilidade económica de vir de férias ao “Puto” ver a família?

XII. Quantas mulheres fafenses acompanharam os maridos durante a comissão, viveram em cidades ou em zonas de combate?

XIII. Quem comandou ou fez parte dos Grupos Especiais de tropa africana apoiados e organizados pelas Forças Armadas Portuguesas, como os GE ou Flechas[1] em Angola, Comandos africanos na Guiné ou de paraquedistas em Moçambique, entre outros?

XIV. No seu relacionamento com a população nativa, quem deixou por lá os chamados “filhos do vento” ou assumiu, perfilhando-os e trazendo-os consigo para a Metrópole?

XV. Desertou algum para combater ao lado do “Inimigo”?

XVI. Algum foi feito prisioneiro de guerra pelas tropas dos movimentos independentistas?

XVII. Quantos ficaram sepultados em África?

XVIII. Quantos pertenceram a Companhias que tiveram de se cotizar para pagar ao Estado a trasladação do corpo dos camaradas que morreram?

XIX. Há algum militar fafense desaparecido em combate?

XX. Quantos foram louvados, condecorados ou apanharam “porradas” (sanção disciplinar)?

XXI. Quantos ficaram a sofrer de Stress Pós-Traumático de Guerra ou adquiriram outras doenças crónicas (paludismo, hepatite, etc.)?

XXII. Quantos ficaram feridos em combate, devido a minas, rebentamento de armadilhas ou acidentes e ainda têm estilhaços de granadas ou minas no corpo?

XXIII. Quantos morreram em consequência dos combates, do rebentamento de minas ou armadilhas, de acidente ou doença?


Enfim, um mundo de vivências e circunstâncias que, a conhecê-las, permitir-nos-ão dar um pequeno passo, mas decisivo, na construção da História da participação dos jovens militares de Fafe na Guerra Colonial.


7. História da participação dos militares de Fafe durante a Guerra - O estado atual da informação


A História da participação dos Militares de Fafe durante a Guerra Colonial ainda está por fazer. A pouca informação disponível sobre este tema ainda não está organizada e sistematizada e encontra-se no processo individual de cada um, depositado no Arquivo Geral do Exército, da Força Aérea ou da Marinha, e só poderá ser consultada pelos próprios, os familiares ou alguém com autorização da família, de acordo com o Dec. Lei n.º 46/2007 de 24 de agosto, ou, ainda, na documentação dispersa em poder dos próprios combatentes ou familiares.

Apesar de se estar no início da sistematização da informação, já podemos responder com segurança ou encontrar caminhos para prosseguir a investigação a algumas das questões levantadas durante a minha intervenção, nomeadamente:


1. Quantos fafenses foram chamados às inspeções militares (“às sortes”) entre janeiro de 1961 e dezembro de 1974?


Não sabemos. Será possível sabê-lo, no entanto, consultando os Editais Municipais com as listas dos “mancebos” que eram chamados “às sortes”, existentes no Arquivo da Câmara Municipal de Fafe.


2. Quantos militares de Fafe morreram em consequência dos combates, do rebentamento de minas ou armadilhas, de acidente ou doença?


Durante a Guerra Colonial, tombaram em África quarenta e um militares de Fafe.

Este número está de acordo com a lista que me foi enviada pelo Arquivo Geral do Exército e da pesquisa efetuada no concelho por mim e pelos dirigentes da Direção da Delegação de Fafe da APVG (Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra). Sabemos quem, onde, quando e as circunstâncias que causaram a sua morte e onde estão sepultados.

Apresentamos um quadro detalhado por cada Província Ultramarina: Angola, Guiné e Moçambique (...), realçando, a partir de cada um deles, alguns elementos mais relevantes, de acordo com o conhecimento mais circunstanciado que fomos obtendo através das diferentes fontes históricas mencionadas.

Numa primeira análise geral feita aos três quadros, podemos verificar que em relação aos que tombaram em África (n=41): 

(i) todos os mortos pertenceram à Arma do Exército, não havendo, ainda, conhecimento de ocorrência que tivesse provocado a morte ou ferimento grave nas fileiras da Força Aérea ou Marinha; 

(ii) a primeira morte na Guerra ocorre no dia 3 de julho de 1961, três meses após os massacres no Norte de Angola e foi o soldado atirador Artur de Sousa, natural da freguesia de Ardegão, e que ficou sepultado em Sanza Pombo; 

(iii) o último a tombar na Guerra Colonial foi o 1.º Cabo José Pereira Dias no dia 27 de setembro de 1975, em Cabinda, Angola; natural de Armil, onde está sepultado;

(iv) seis militares eram casados (Angola, 1; Moçambique, 4 e Guiné, 1); 

(v) em relação ao posto, desapareceu em combate um Furriel em Moçambique, morreram dois Alferes milicianos (1 en Angola outro em Moçambique), vinte e oito soldados e dez 1.ºs cabos; 

(vi) quanto às causas de morte: 

  • três por acidente de viação (em Angola);
  • quatro por acidente por afogamento (2 em Angola, 1 na Guiné e outro em Moçambique);
  • quatro por acidente com arma de fogo ;2 em Angola, 1 na Guiné e outro em Moçambique);
  • um acidente  outras causas, sendo o total de acidentes de 12 (Angola:  8; Guiné: 2; Moçambique: 2);
  • vinte e três em combate (7 em Angola, 7 na Guiné, 9 em Moçambique), sendo 4 em minas e armadilhas (2 em Angola, 1 na Guiné e outro em Moçambique); 
  • quatro por doença (2 na Guiné, 1 em Angola, e 1 em Moçambique);
  •  e, finalmente, dois, em Moçambique, por causas desconhecidas (incluindo um desaparecido em combate).


(vii) Após a Revolução de 25 de Abril de 1974 e já depois do final da Guerra, ainda morreram cinco fafenses em África: quatro em Moçambique (Agostinho Carvalho, Francisco Carvalho, Manuel Carneiro e Norberto Salgado) e um em Angola, o último, José Dias, em 27 de setembro de 1975.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos:  LG)
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Nota do autor:

[1] Forças especiais criadas pela PIDE em Angola.

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O livro supracitado resultou do "Curso Livre de História Local: O Concelho de Fafe e a guerra colonial (1961-1974)", organizado pelo Núcleo de Artes e Letras de Fafe, com o apoio de diversas entidades, entre elas a Câmara Municipal de Fafe e o Museu da Guerra Colonial, com sede em  V. N. Famalicão, e cujo programa na devida divulgámos no nosso blogue, na série "Agenda Cultural". Decorreu entre 21 de outubro e 24 de novembro de 2013.

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Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > 30 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25792: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte I: Maçaricos, periquitos, checas... 

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25803: Notas de leitura (1714): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1869) (14) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Está a findar o ano de 1869, a questão dominante destes números do Boletim Oficial prende-se com temíveis casos de saúde pública, não param as epidemias e as condições de vida em Cabo Verde estão abaladas pelas fomes e penúrias. A Guiné não conhece novo regulamento para a sua organização, há poucas novidades, o distrito tem dois concelhos, aparecem juntas municipais e define-se a magistratura administrativa; o governador deve visitar em cada ano, duas vezes pelo menos, a praça de Cacheu, e uma vez os presídios e povoações do distrito. Há uma junta consultiva que tem o governador como presidente, os Grumetes têm a sua própria administração, a fazenda também tem o seu próprio regulamento e o mesmo se dirá da organização militar. E ficamos a saber que houve missionação no Sul da Guiné e 90 batismos.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1869) (14)


Mário Beja Santos

O que mais impressiona as informações que o Boletim Official acolhe neste ano de 1869 prende-se com o estado de saúde deplorável de Cabo Verde, um noticiário sobre a Guiné continua a ser residual, mas abrir-se-á uma exceção com a publicação do regulamento para a organização administrativa da Guiné, procurava-se dar um salto e melhorar a presença portuguesa.

No Boletim Official n.º 19, de 8 de maio, temos um extrato das notícias da Guiné recebidas pela escuna Bissau, o estado sanitário era bom, excelente o alimentício, animado o comercial e quanto à segurança pública não se lhe conheciam alterações; a Alfândega de Bissau rendeu nos meses de janeiro, fevereiro e março 9:379$339 reis, e a de Cacheu, nos meses seguintes, 1:735$447 reis; em janeiro, havia-se efetuado em Geba a paz com os Mandingas de Gófia, e em março, com os Mandingas de Teligi, eles tinham atacado o presídio de Geba, haviam sido rechaçados denodadamente e perseguidos até longa distância pelos Grumetes do presídio. Em Bissau, continuava a reconstrução o Forte do Pidjiquiti e em Cacheu haviam terminado consertos dos baluartes; os pagamentos aos funcionários públicos estavam em dia.

Neste mesmo Boletim Official, na secção dos avisos, pode ler-se que por participação do Governador da Guiné Portuguesa, em ofício n.º 37, de 13 de abril, consta que em data de 7 de março do corrente ano aportou no ponto da colónia de Rio Grande um escaler conduzindo cinco náufragos pertencentes à barca da americana Gem, propriedade de Charles Hoffman de Salena, nos Estados Unidos, capitão Miller, naufragado nos bancos da ilha de Orango no dia 3 do mesmo mês. Havia aquele barco saído de Rio Nunes com destino ao porto de Bissau com nove pessoas de tripulação e carga de várias mercadorias. Logo depois de encalhado, e abandonado pela população, o navio incendiou-se em consequência da explosão de uma porção de pólvora, que fazia parte do seu carregamento. Os náufragos, incluindo o capitão foram recebidos a bordo do patacho Btomac pertencente à mesma Casa Hoffman.

Passando agora para o Boletim n.º 22, de 29 de maio, o fundamental do seu conteúdo tem a ver com o regulamente da organização administrativa da Guiné Portuguesa. Importa salientar os dados que podem ser tidos como mais relevantes: a Guiné Portuguesa constitui um distrito dividido em dois concelhos, o de Bissau e o de Cacheu, e cada um destes em Praças e Presídios; o concelho de Bissau compõe-se da vila de S. José ou Praça de Bissau, do Presídio de Geba, da colónia do Rio Grande de Bolola e mais território desta dependência, e da ilha de Orango; o concelho de Cacheu compõe-se da Praça deste nome, dos presídios de Farim e Ziguinchor, e das povoações de Matta, Bolor e outras desta dependência. O distrito é administrado por um governador e os concelhos são regidos por administradores. Os presídios, a colónia e as povoações dependentes dos concelhos por chefes. Há um título do regulamento dedicado às juntas municipais e outro aos magistrados administrativos. Insere-se matéria sobre a organização da fazenda, dizendo-se que a fazenda pública é administrada na Guiné Portuguesa por uma delegação fiscal, composta do Governador do distrito, como presidente, e também pelo subdelegado do procurador da Coroa e fazenda em Bissau, do diretor da alfândega da vila e do primeiro escrivão da mesma alfândega. Outro dado importante é o regulamento para a organização militar. A Guiné Portuguesa constitui um distrito militar sujeito ao governo da província de Cabo Verde. O distrito é divido em dois comandos militares: o de Bissau e o de Cacheu, sendo o de Bissau exercido pelo governador do distrito, e o de Cacheu pelo comandante da força militar ali estacionada. Há na praça de Bissau um corpo de infantaria de segunda linha e na de Cacheu uma companhia, tendo à frente o capitão.

Neste mesmo Boletim fica-se a saber quais as escolas de instrução primária na Guiné: Nossa Senhora da Candelária e Nossa Senhora da Purificação (não se sabe se ambas em Bissau ou Bissau e Cacheu), S. Francisco Xavier (Bolor), Nossa Senhora da Graça (Farim e Geba).

No Boletim nº23, de 5 de junho, constam as instruções para o registo dos libertos, a cada pessoa que registar o seu liberto se dará para seu título certidão conforme um modelo assinado pela comissão e entregue no ato de ser feito o registo.

É de ter atenção de que nestes boletins referentes a este ano, além da febre amarela, fala-se em casos de varíola e sarampo.

No Boletim n.º 30, de 24 de julho, informa-se que continuam os trabalhos de beneficiação no Forte de Belchior e estão a ser tomadas medidas idênticas para instalações na praça de Bissau. Neste mesmo Boletim vêm notícias da Guiné Portuguesa, escreve-se o seguinte: Em Bargny, Rufisque, Dacar, Goré, Gâmbia e outros portos vizinhos reinava o cólera asiático, tendo já feito imensos estragos. O governador do distrito, ouvido o respetivo delegado da Junta de Saúde, havia tomado as necessárias e convenientes providencias para evitar a introdução ali do terrível flagelo.

No Boletim n.º 33, de 14 de agosto, informa-se que era regular o estado sanitário do distrito e bom o alimentício, continuando inalteráveis a ordem e a tranquilidade públicas. Por participação do chefe da colónia do Rio Grande constava que o cólera asiático grassava em Carabane, ponto no rio Casamansa vizinho a Cacheu; e, por participações extraoficiais, constava grassar também aquela epidemia em Mansoa Camancó, ponto próximo do presídio de S. Belchior. Em Geba, segundo participa o chefe naquele presídio, havia sido feita a paz com os gentios Mandingas de Ganadu e Mansomini, que a haviam solicitado. Era bastante animado o comércio, tendo sido abundante a colheita de cera.

Em Farim, reinava o sossego, havendo as melhores relações de amizade entre os génios daquelas paragens e o presídio. Continuavam as plantações e sementeiras de milho, mandioca, batata, arroz, mancara, etc.

No Boletim n.º 34, de 24 de agosto, anuncia-se a visita do cónego missionário Joaquim Vicente Moniz que percorreu o Sul da Guiné e batizou 90 gentios. Estamos a chegar ao final do ano e, como vemos, é a saúde deplorável que é alvo do maior número de informações.
Este suplemento ao n.º 14 do Boletim Official do Governo Geral da Província de Cabo Verde e da Costa de Guiné, de 5 de abril de 1869, anuncia a chega do novo Governador, o Excelentíssimo Senhor Conselheiro Caetano Alexandre de Almeida e Albuquerque, conferiu-lhe posse o seu antecessor, o Excelentíssimo Senhor Conselheiro José Guedes de Carvalho e Menezes
Rua da Alfândega, Bissau
Ponte-cais de Bissau, construída pelo governador Carlos Pereira na década de 1910
Ponte-cais Correia e Leça, Bissau, cerca de 1890
Ilustração de Augusto Trigo representando um aldeamento em manual colonial português

(continua)

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Notas do editor:

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