Há tempos (21 de Outubro de 2008), o camarada António Varela que foi Fur Mil Sapador na CCS/BART 2865, Catió, 1969/70, e já aqui nos contou a estória do seu baptismo de fogo (agora, deve-se escrever batismo, sem p), mandou-nos o seguinte mail (deve-se dizer: mensagem de correio electrónico):
Caro Luis, Carlos e Virgínio: Em anexo segue um artigo do Correio da Manhã de Dez/2006 sobre "Pulo genético une Portugal á Guiné Bissau", que eu penso ter interesse para o Blogue.
Um abraço. António Varela
Respondi-lhe no dia seguinte, nos seguintes termos: António: Obrigado pela tua atenção. Claro que a divulgação da investigação neste domínio (biologia das populações) nos interessa. Mas é preciso ter cuidado com os nossos jornais... Aqui o jornalista queria dizer "pool" genético... Pool=base, e não pulo=salto... Este erro (grosseiro) ficou "gravado" na Net, replicado, reproduzido noutros jornais... Um grande abraço. Luís
Reproduz-se acima o infeliz título de caixa alta... (Na foto, o então investigador da Universidade da Madeira, Doutor Hélder Spínola, que não teve nada a ver com o erro grosseiro do jornalista).
Foto: Correio da Manhã, 30 de Dezembro de 2006. (Cortesia do António Varela).
1. Mensagem de
Norberto Gomes da Costa, com data de 22 de Outubro último:
Assunto - A malfadada 'estória'
Meus caros Luís Graça, Carlos Vinhal e V. Briote,
Leio sempre com muito interesse todas as mensagens que os amigos tertulianos enviam para o nosso blogue. Pode dizer-se que a grande maioria, se não a quase totalidade dos textos tem interesse; estão até, relativamente, bem escritos. Porém, é raro haver um que não contenha a malfadada palavra "estória".
Confesso que "encanito" deveras com essa pseudo-palavra, que não faz parte do léxico português de Portugal, que não consta de nenhum dicionário sério da língua portuguesa, que, segundo penso, só é usada pelos nossos amigos brasileiros e para se referirem aquelas histórias que as avós contam (ou contavam) aos seus netos, à lareira nas noites de Inverno. Ou seja, histórias que nunca existiram, sendo, portanto, inventadas.
Ora, as nossas histórias em terras da Guiné são bem reais, aconteceram e algumas delas bastante dramáticas, como sabemos. Assim sendo, merecem ser "histórias" e não essa "coisa" que não é nada e só, francamente, nos diminui.
Meus amigos, eu tenho hesitado em desabafar do modo que estou a fazer, até porque quem sou eu para dar lições a quem quer que seja. Mas custa-me ver os gloriosos e, por vezes, heróicos acontecimentos que, de uma maneira ou de outra, todos vivemos nas matas e bolanhas da Guiné, alcunhados de "estórias". Gostaria imenso que esse vocábulo fosse banido dos escritos da
Tabanca Grande.
Não queria terminar sem antes pedir desculpa pela minha intervenção, podendo
parecer que estou a tentar ser uma espécie de provedor da língua de Camões, o que, de modo algum, corresponde à realidade. Mas, este impulso "anti-estorial" é mais forte que eu.
Um grande abraço a todos,
Norberto Gomes da Costa
2. Fica também aqui a mensagem de
António Fernando da Fonseca Moreira , com data de 6 de Março de 2008, a propósito do mesmo tópico (
estória/história):
Assunto - Dúvida ortográfica
Exmo. Senhor Luís Graça
Como também fui obrigado a ir para a guerra de Angola, uns amigos meus, que estiveram na Guiné, indicaram-me o vosso blogue para ir visitar.
Acabei de o fazer neste momento e fiquei admirado por aparecer a palavra «estória» que, por não conhecer, fui ver a vários dicionários e não a encontrei.
Por esta razão e apelando à sua boa vontade venho pedir-lhe o especial favor de me dizer em que fonte de saber poderei encontrá-la para assim enriquecer o meu léxico.
Sem mais, fazendo votos de sucesso para o blogue e ficando a aguardar a sua prezada informação, peço aceite os meus melhores cumprimentos.
António Fernando da Fonseca Moreira
Alameda Eça de Queirós, 36-1º centro
4410-282 Canelas VNG
3. Comentário de L. G.:
Meus caros Norberto Gomes e António Fernando, combatentes da mesma guerra (um na Guiné, outro em Angola):
Mais de meio ano para responder à pergunta do António, convenhamos que é muito tempo. Infelizmente não somos editores a tempo inteiro, nem eu nem o Carlos Vinhal nem o Virgínio Briote, meus queridos co-editores.
Como devem imaginar, é-nos humanentemente impossível responder a toda a correspondência que nos chega. Usamos, por isso, critérios de oportunidade e interesse editoriais, priveligiando
as coisas e as loisas da Guiné… Mas já que ambos levantam a questão da
estória 'versus’
história, vou dar-vos a minha opinião…
(i) Uma coisa é uma
estória (com elementos ficcionais ou não, com alguma efabulação, e preocupações literárias; escritores lusófonos gostam do termo e cultivam-no…);
(ii) outra coisa é a
história, enquanto disciplina científica, ou a nossa
história de vida (biografia), mais factual, mais memorialística… Ou a ainda
história da nossa unidade, mais documental, mais técnica, em linguagem mais neutral…
(iii) Temos, no blogue, várias séries que operam esta distinção:
estórias (ficção, inspirada na realidade vivida, texto mais livre, em que o rigor factual não é tão importante, em que há uma certa reconstrução do real, do vivido…) e
história (narrativa, depoimento, relato mais documentado, mais factual, mais detalhado, com mais precisão, com números, datas, lugares…); por exemplo, "estórias cabralianas" e "história de vida"... mas também "estórias de Guileje"!
(iv) O
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (em 6 volumes, que é um dos meus livros de... cabeceira, e que é, em minha opinião, uma verdadeira obra-prima da lexicografia da nossa língua...) diz o seguinte a respeito do termo
estória:
Vocábulo que remonta ao Séc. XIII. O mesmo que História. No Brasil, a partir de 1912, passa a designar 'narrativa de cunho popular e tradicional; história'. Etimologicamente, vem do inglês
story (Séc. XIII-XIV): 'narrativa em prosa ou verso, fictícia ou não, com o objectivo de divertir e/ou instruir o ouvinte ou o leitor'.
Story, por sua vez, vem do anglo-francês
estorie, do francês antigo
estoire, e este do latim
historia,ae.
(v) O termo
história é polissémico, tendo vários sentidos ou sinónimos: (a) biografia, história de vida; (b) confusão, trapalhada, problema, embrulhada...; (c) enredo, intriga, trama...; (d) evolução, desenvolvimento (por ex., história da guerra, da literatura da guerra colonial); (e) melindre, escrúpulo, hesitação..; (f) mentira, conversa, fábula, invenção... (Vd.
Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa).
(vi) Eu sei que os historiadores não gostam da palavra
estória, optando por lembrar a distinção que os ingleses fazem entre
history e
story... Esta última remeteria mais para a ideia de conto, mito, narrativa ficcional... enquanto
history é a narrativa estrutura, sistemática, objectiva, dos acontecimentos, dos factos, dos feitos, etc. de um povo... Em português, seriam apenas grafias diferente de um mesmo vocábulo. A forma
estória não se justificaria...
(vii) Também sei que os especialistas do
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa detestam o vocábulo
estória... que não seria mais do que uma grafia, antiga, medieval de
história. O nosso grande Camões não tem pejo em falar de
histórias a respeito das aventuras (reais ou imaginárias) dos portugueses... (Devo dizer que tenho muito apreço pelo trabalho feito pela equipa do
Ciberdúvidas em defesa da língua portuguesa, e é também um dos sítios a que recorro quando tenho dúvidas, e se tenho muitas!...).
(viii) A favor do uso do vocábulo
estória/estórias, poderíamos, todavia, usar um outro argumento de autoridade (embora eu não goste muito de invocar e sobretudo de usar deste tipo de argumento): grandes escritores da língua portuguesa como o angolano
Luandino Vieira (n. 1935, Lagoa do Furadouro, Portugal; Prémio Camões 2006) usam (e popularizaram) o termo
estória… ou o moçambicano
Mia Couto (n.1955, filho de colonos portugueses, e que escreveu, por exemplo, em 1994, as
Estórias Abensonhadas)
Luandino Vieira é autor, por exemplo, de
Velhas Estórias (Lisboa, Caminho, 2006; Col ‘Outras Margens’, 51), um dos seus livros recentes, com o termo “estórias” no próprio título…
Mas o título mais conhecido e que o consagrou foi
Luaanda – Estórias, um livro de contos a que foi atribuído, em 1965, pela júri da Sociedade Portuguesa de Escritores, o Grande Prémio da Novelística… Acontece que o então jovem escritor, ‘contador de estórias’, militante do MPLA, José Luandino Vieira, estava preso no Tarrafal a cumprir uma pena de prisão de 14 anos por ‘práticas terroristas’ (sic)... Como classificar estes três
estórias que foram escritas no pavilhão prisional da PIDE em São Paulo, Luanda, no ano de 1963, quando o escritor ainda não tinha sido transferido para o Tarrafal ? Não são seguramente histórias da carochinha... O Luuandino Vieira ousou na altura violar os códigos linguísticos da sua língua... Hoje é considerado um inovador...
O livro foi publicado pelas Edições 70 em 1972, sendo a sua 2ª edição apreendida pela PIDE/DGS e a Editora multada em 30 contos, por despacho assinado pelo director-geral da Informação da época. Grandes escritores portugueses como
Ferreira de Castro e
Jorge de Sena vieram em defesa da obra e do autor: este último salientou, por exemplo, o seu papel primordial no “desenvolvimento da literatura angolana de expressão portuguesa»…
(viii) Confesso que eu também não tenho (ou não teria) pejo em usar
histórias em vez de
estórias... Mas não me apetece banir nem menos proibir o seu uso, no nosso blogue... Além disso, seria uma maçada rever todos os postes em que
estória deveria ser substituída por
história... Mais importante ainda:
não sou (nem me sinto) dono da língua portuguesa...
(ix) Mas aqui fica o
conselho, aviso ou advertência do nosso camarada
Norberto Gomes da Costa: "as nossas histórias em terras da Guiné são bem reais, aconteceram e algumas delas bastante dramáticas, como sabemos" , [pelo que] merecem ser 'histórias' e não essa 'coisa' que não é nada e só, francamente, nos diminui"... (Estou-lhe grato por levantar esta questão, e de frontal e saudavelmente discordar dos editores - pelo menos de um deles, o L.G. - que toleram ou até consagram o uso do vocábulo
estória. (O Carlos Vinhal, esse, já manifestou publicamente as suas reservas).
(x) No entanto, e para finalizar, e antes de voltar a rever este pequeno
pomo de discórdia, gostava de ouvir a opinião (sábia, serena...) de alguns membros da nossa Tabanca Grande,
menos ortodoxos ou mais desalinhados , que escrevem aqui no blogue: o
Jorge Cabral, por exemplo, que já escreveu 40 saborosíssimas, fantásticas, picarescas, divertidas, grotescas, absurdas...
estórias cabralianas; ou os nossos amigos guineenses, formados por universidades portugueses, e com excelente domínio da escrita, o
Leopoldo Amado e o
Pepito, por exemplo. Ao Jorge Cabral aproveito, inclusive, a oportunidade para lhe recomendar a leitura do recorte de jornal acima citado: pode ser que o "pulo genético" (sic)... que une portugueses e guineenses lhe inspire mais uma desconcertante, desalinhada, heterodoxa, marginal, absurda, quase porno-humorística e quiçá inconveniente, politicamente incorreta,
estória cabraliana...