1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2011:
Queridos amigos,
Sei muito bem que partilham comigo a alegria daquele domingo de festa.
Segue-se a homenagem àqueles camaradas da Guiné que em Bambadinca partilharam angústias, mágoas e esperanças nos dias melhores.
Agora vou de viagem numa romagem de saudade.
Fiquem atentos.
Um abraço do
Mário
Operação Tangomau (14)
Beja Santos
Aquele domingo de festa no Bambadincazinho
1. Na véspera, depois da visita à Ponta do Inglês, faz-se um alto em Amedalai, há sempre saudades de Mamadu Djau, há sempre nostalgia em virar à direita e visitar de surpresa Taibatá, Demba Taco e Moricanhe, há vínculos que nunca morrem. Eis senão quando, enquanto se espera a chegada de Mamadu Djau e família, chega com placidez mas com gestos determinados José Carlos Suleimane Baldé, 1.º Cabo da CCaç 12, já aqui apresentado, e a quem o Tangomau pedira uma lista dos soldados ali residentes para divulgar junto dos camaradas portugueses. José Carlos entrega ao Tangomau uma folha e este lê: “Os soldados africanos ainda com vida, para além de mim próprio, que vivo em Amedalai são Sori Modjo Baldé, Suleiman Baldé, Cherno Baldé e Bobo Gomó de Taibatá; de Amedalai temos Djambalo Baldé e Totala Baldé; de Demba Taco o Mamadu Sori Baldé; há um Califo Baldé do Cossé e outro Califo Baldé de Galomaro; e Dembra Djau de Bambadinca. Estes, tenho a certeza que estão vivos, mas a maioria já morreu”. E terminava com um apelo: “Furriel Reis, não te esqueças de mim, tu sabes que a crise aqui é permanente”.
O Tangomau lê e guarda a missiva destinada a quem em Portugal fez parte da CCaç 12. O cansaço é quase extremo, sente ânsias em percorrer com os olhos as bolanhas a partir do Bairro Joli, é para ali que Lânsana Sori o conduz. Irá presenciar um prodigioso lusco-fusco, tem na mão uma leitura falsamente ligeira “Maigret e o Cliente do Sábado”, desta feita o mais famoso comissário da polícia judiciária francesa é visitado aos sábados por alguém que chega e parte discretamente, um dia segue o comissário até casa e faz-lhe confissões dolorosas sobre a vontade que tem em matar a mulher. Léonard Planchon, tímido, titubeante, pesaroso, derrotado, pequeno industrial, foi escorraçado pela mulher, sujeita-se em viver na sua própria casa com o amante dela, seu colaborador. Se dúvidas houvesse quanto ao talento inconfundível, a arquitectura magistral dos diálogos, a descrição dos ambientes, a carga de ódio vivida em silêncio dos executores do crime, este livro de Georges Simenon dissipa as últimas reticências. Anoiteceu, o Tangomau vai descrever ao jantar, à Dada e ao Mio, enquanto bebe sumo de papaia, o que viu na estrada para a Ponta do Inglês e como gostaria de ter calcorreado pelos seus próprios meios a extensa bolanha do Poidom, entre Ponta Varela até à Ponta Luís Dias. Daquele fim de tarde ressuscita-se uma imagem em Amedalai, José Carlos está sentado entre Samba Gebo e Madiu Colubali. Repare-se na firmeza do olhar, a pose séria, importa não esquecer que ele quer dar um sinal de vida aos camaradas da CCaç 12 que ele não esqueceu, até porque ele sabe que os seus SOS têm chegado a bom porto. E continuarão a chegar.
2. O Tangomau já prevê, antegoza, as alegrias da festa deste domingo, 28 de Novembro. De manhã à tarde, sem subterfúgios, ele pertence a quem viaja de longe ou de perto, é um dia para matar saudades, para estar sentado e recordar vivos e mortos, pedir ao Deus misericordioso que lhes dê mais esperança, a começar pela esperança de vida, pois mesmo com artroses, os corpos esquálidos, os olhos doentes, não há nada de mais lindo do que ir ao encontro de quem nos estima e não nos esqueceu – o Tangomau aprendeu com esta voz silenciosa que os sinais da esperança são como os do amor, intempestivos, imprevisíveis e que impactam uma extrema doçura, dá mesmo vontade que se repitam pela vontade desse mesmo Deus misericordioso. Chegou Calilo Dahaba, primeiro as vitualhas para o Bairro Joli, a seguir as azafama do foleré, a saber a carne de vaca que já se encomendou àquele energúmeno Rachide, o mesmo que teve audácia em mandar carne pode para o Bairro Joli, desta vez faz-se a encomenda na presença de vários latagões de olhar frio, avisa-se mesmo que se a carne tiver vício oculto ele a comerá toda, incluindo os ossos; segue-se a ida à praça, à procura de batata inglesa, batata-doce, candja, orégãos e djacatu; o resto é comprado nas lojas dos mauritanos e dá pelo nome de alho, calda de tomate, óleo, sal e cebola. Parecem detalhes insignificantes, não é? Pois não são, comprar é uma epopeia, parece um rally paper, de uns sítios somos atirados para outros, há faltas aparentes que acabam por ser supridas graças a uma informação benfazeja. Faltam as bebidas frescas, álcool é impensável, seria tomado como gesto afrontoso, estamos entre fulas, mandinga e beafadas, aqui prevalece o Corão. É nisto, de comprar e levar os carregamentos até Aidjá, a sacerdotisa da cozinha que surge M’Fon Na Bra, comandante de bi-grupo em Ponta Varela, também já referenciado. Vem por dois motivos: tirar fotografia, pois agora somos amigos, nada de bazucadas nas embarcações do Geba, como há 40 anos atrás; e vem mortinho de curiosidade, nunca acreditou naquela festa, confessa-se surpreendido com gente que chega de vários regulados. “Tira fotografia, branco!”. E branco tira fotografia, pois.
3. Não vale a pena esconder as afinidades afectivas, Mamadu Djau merece sempre um retrato à parte. De manhã ao entardecer, o Tangomau não se cansará de recordar o que lhe deve, no fundo o que todos lhe devem, o que ele não esqueceu e até já registou em dois livros, e sempre comovido. O que ele gostava mesmo era que o Mamadu tivesse um telemóvel, para haver uma conectividade permanente, nos dias bons e nos dias maus, nos dois sentidos. O pretexto hoje para a conversa foi a Ponta do Inglês, o que ali se sofreu. Mal sabe o Mamadu que alguém vai estar atento ao apelo do Tangomau lá no blogue. Trata-se do camarada Manuel Bastos, que viu nascer o destacamento da Ponta do Inglês e quer prestar declarações pormenorizadas. Como vai acontecer. Mamadu olha a câmara, está pimpão, sente-se bem, vai falar pelos cotovelos com aquela discrição habitual dos valorosos genuínos.
4. Depois das efusões chegam as petições, inexoravelmente. Quem vive à míngua, tem sempre coisas a pedir: dinheiro, um visto, um bem de consumo, por exemplo. O Tangomau bem se esforça por considerar estes pedidos dentro da esfera da lógica, não é fácil. Estes camaradas vêm à espera de um milagre, foi dito uma vez, mil vezes se escrevesse e tudo continuaria incompreensível: se ele veio é porque recebeu mandato do presidente da República ou do primeiro-ministro para nos dar uma pensão; se não pode dar uma pensão, compete-lhe dar-nos um jeito à vida, não se viaja de um Eldorado até este vulcão de precisões só para dar abraços e falar na dignidade e na admiração, coisas assim, o que nós precisamos é de comer, ter uma bicicleta, ir ao médico ou fazer operação, confiarmos no futuro, não vivermos entre a vida e a morte sem lhe conhecer a fronteira. O Tangomau enquanto ouve estas petições lembra-se do dia em que lhe apareceu Abudu Cassamá, que era um menino com as costas retalhadas devido à deflagração de uma granada incendiária, eventos vividos em Finete, corria o ano de 1967. Pois voltou a vê-lo em 1991, apareceu-lhe bem crescido e com uma cabeleira de juba de leão. Abraçou-o mas Abudu vinha exigente na petição: um rádio, um relógio e um saco de arroz. O Tangomau sentiu-se amargado, demorou a digerir o que considerou um encontro interesseiro, esquecido que há diferenças substanciais nas relações entre as pessoas que têm acesso aos bens e as que tudo lhes é negado. É esta a realidade, mas dói muito todos estes encontros com petições possíveis e impossíveis. Por isso o Tangomau chora, rendido, vergado pela força do destino. E assim começou a festa, com toda aquela gente a cirandar, aproveitando as sombras dos alpendres. O Tangomau está esfuziante com a alegria de todos.
5. O foleré parece bem apetitoso, é uma da tarde, as bajudas trazem cântaros de água refrescada, mais tarde virão os gelados, depois a fruta. O Tangomau não pára, vagabundeia, pede opiniões, faz perguntas insólitas a Djiné Baldé, a Sadjo Seidi, ao Príncipe Samba, dá-se ao cúmulo de misturar o passado com o presente, de exigir que todos fiquem com trabalho de casa, uns haverão de encontrar Quebá Sissé, Adulai Djaló, Jobo Baldé, Tomani Sanhá, Sadibi Camará, entre outros. Hoje não aceita que lhe revelem mais mortos, os vivos serão procurados e em tal convocatória referir-se-á, assim pede a todos os mensageiros, que se deixam abraços sem fim, votos de felicidade e longa vida.
6. Os estômagos estão saciados, todos recusam estar mais tempo vergados sobre as caçarolas da bianda. O Príncipe Samba informa que vai fazer um discurso, tem coisas importantes a dizer. Mas é Fodé quem abre as hostilidades, como se estivesse a gritar para que toda a vizinhança ouvisse até ao porto de Bambadinca, esclarece que recebera uma carta do Tangomau a pedir-lhe suporte para uma viagem/romagem, ele fez o que pôde, justifica-se, pôs os carros de combate ao serviço da missão, telefonou e enviou mensagens. Queria que todos soubessem que este encontro nada tinha a ver com a guerra do passado, eram saudades entre camaradas. É nesta vociferação que Fodé se comove, embarga-se-lhe o discurso, chora corajosamente, lembra o acidente que o vitimou, lembra o Cuor, diz que lamenta estar cego e não poder ver todos aqueles com quem esteve na picada. O Príncipe Samba toma a palavra, o Tangomau sente a pele de galinha, Albino Amadu Baldé parece um profeta, inicia a sua oração dizendo: “Em nome do Deus misericordioso a quem devemos a existência, aqui estamos a prestar contas desta amizade imorredoira, pedi vezes sem conta para rever este inesquecível amigo, é bom rever quem já tinha esquecido, quer que todos saibam que vou guardar lealdade a este amigo até Deus me subtrair a existência. Aqui estou a responder à chamada. Daqui não partirei sem orar a Deus por todos nós, que tenhamos paz e que se cumpra a justiça”. Como se tivesse passado ali um trovão, mal se calou cavou-se um silêncio profundo. Foi então que o Tangomau se levantou, pediu a todos que se formasse um círculo, como em Missirá ou em Finete, pois ia falar e pedia ao Príncipe Samba para traduzir em crioulo. Estava tão exaltado, sentia uma tal beatitude que quando mais tarde alinhavou as notas do evento esqueceu o essencial da prosódia. Terá dito coisas como isto: estou a viver um dos mais belos momentos da minha vida, sim, Deus é misericordioso ao dar-me esta oportunidade, chegar a Madina de Gambiel e ser reconhecido sem me apresentar, ter batido à porta desta casa Manco Cotou, aquela mulher que ficou ferida na explosão da granada incendiária que também feriu o Abudu Cassamá, com um sorriso nos lábios disse nunca me ter esquecido, olho para todos vós e recordo as atribulações vividas, agradeço-vos terem vindo, amo-vos muito e quero exprimir a gratidão que sinto por tudo quanto me deram em dedicação. E sentou-se prostrado pelo peso da declaração. É nisto que vê Zeca Braima Sama que tudo grava e fotografa e que também pede a palavra para dizer que é uma das mais lindas cerimónias de toda a sua vida. Os que vão para mais longe anunciam que chegou a hora da partida, vão fazer oração e de bicicleta ou toca-toca regressarão a suas tabancas. Dispara-se uma fotografia e é neste entremês que o Tangomau começa a soluçar, temeroso pela despedida. Atenda-se à solenidade dos rostos, ninguém acredita que é um encontro de antigos combatentes, parece uma reunião de antigos alunos, um grupo excursionista, coisa que o valha. Mas não, estes são alguns dos homens que acompanharam o Tangomau até à quinta dos infernos. Que esta imagem consagre essa lealdade e essa dedicação.
7. Agora reina a confusão, os que partem querem tirar fotografia com os que ficam, o Tangomau deixa seguir, que se misturem, que se divirtam, que acamaradem. Siga a festa!
8. O Príncipe Samba anuncia a oração. O Tangomau pede licença para captar o momento, está autorizado. É a oração da tarde, Deus seja mil vezes louvado por tudo quanto criou e que os homens o louvem com o coração brando, imaculado. O Tangomau não sabe se é exactamente isto que se está a passar, Albino avisou que ia rezar por todos. Então, que haja louvor por todos estes homens que até durante a guerra foram sinceramente louvados.
9. A glorificação está praticamente no fim. Quem vai para o Corubal ou para os fundos dos Cuor, até mesmo para o Enxalé, abraça quem fica. Há muitos olhos líquidos, vozes embargadas, compreende-se. Faz parte das leis da vida que não se pode brincar ou apoucar o irrepetível. E partem. Ainda há mais conversa, naquela cálida tarde. É nisto que se ouve o ribombar da motocicleta do Lânsana Sori, está marcada para agora a última viagem desta peregrinação nos arrabaldes de Bambadinca. É uma homenagem ao Luís Graça e à CCaç 12, vamos a locais inesquecíveis, que a todos marcou. O motociclo arranca, pela estrada diz-se adeus a quem prossegue até casa. Adeus e até ao meu regresso. É no meio destes acenos que o Tangomau indica o último destino deste último dia deste local onde viveu e combateu qualquer coisa como dois anos.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7590: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (13): Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês