1. Mensagem do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/Ranger da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 31 de Janeiro de 2011:
Meus camarigos editores
E assim de repente lembrei-me de uma conversa que tive em Lisboa, passados uns tempos de ter chegado da Guiné.
E então escrevi isto a que posso chamar um Conto com Toques de Verdade!
Fica á vosa disposição como sempre.
Um abraço amigo do
Joaquim
O REGRESSO
O homem sentado ao seu lado, ao balcão daquela cervejaria, olhava para ele com uma expressão entre o incrédulo e o trocista.
Há algumas horas que estavam ali sentados, bebendo cervejas atrás de cervejas, e conversando.
Não se conheciam de antes daquele dia, mas o facto de estarem os dois numa tarde de semana sentados ao balcão de uma cervejaria, tinha levado, depois de alguns apartes, ao início de uma conversa sobre tudo e mais alguma coisa e como não podia deixar de ser, ao estado do país.
Destacamento de Mato Cão > O nome condiz com as instalações
Indubitavelmente a guerra do Ultramar veio à conversa e, perante os comentários errados e ignorantes daquele que estava ao seu lado sobre o assunto, ele decidiu dizer-lhe que tinha regressado há escassas semanas da Guiné, onde terminara uma comissão militar de 24 meses.
Ou pelas expressões do outro, ou pelas cervejas já bebidas, ou por uma necessidade interior de contar o que tinha visto e vivido, (pois que à família e amigos lhe era difícil falar do assunto), deu por si a relatar as operações, as emboscadas, as colunas, as minas, as coragens e os medos porque tinha passado e estavam tão vividas e sentidas em si.
As palavras saíam-lhe em catadupa, e parecia que estava a falar mais para si do que para o outro, que o escutava, por vezes entediado e outras poucas vezes, interessado.
De vez em quando uma frase desgarrada do outro, tal como, “isso é impossível”, ou “foi mesmo assim?”, levavam-no a quase parar a sua narrativa, mas a verdade é que ele ansiava por falar sobre a guerra, e um desconhecido era o interlocutor ideal para o ouvir.
As cervejas iam sendo colocadas no balcão e bebidas, e agora era ele quem as pagava, porque o outro tinha feito menção de se ir embora e ele não queria ficar ali sozinho a remoer nas suas recordações e sobretudo não queria perder aquele momento de contar a sua guerra, sobretudo a si próprio.
Que faço eu aqui?
Parecia-lhe que à medida que ia contando os factos, eles deixavam de fazer tanta mossa nos seus sentimentos, e embora sentisse que tudo aquilo o tinha marcado e continuava a marcar por muito tempo, percebia um certo alívio em libertar-se de algum modo daquelas memórias dolorosas.
Percebia que o outro o olhava de um modo estranho, às vezes quase com medo, mas ele ia-o tranquilizando com expressões mais calmas e sobretudo com mais uma cerveja.
Sucediam-se as emboscadas, as colunas, o medo, o anseio sentido ao levantar esta ou aquela mina.
Queria expressar as dificuldades, a sede, o medo do desconhecido, os sons da mata e os cheiros das bolanhas, mas as palavras pareciam-lhe poucas e sobretudo sem exprimirem verdadeiramente aquilo que ele tinha sentido e ainda sentia.
Falava-lhe já dos soldados africanos que com ele tinham combatido e sentia-os próximos, sentia uma saudade inexplicável daquelas noites no planalto, à luz da vela, tentando perscrutar para além do negro da mata que os rodeava.
A única coisa que naquele momento o ligava àquele balcão era a cerveja e a sua presença física, porque tudo o resto que era o seu ser, se tinha transportado para a Guiné.
Falava de rajada, as palavras lançadas para a frente como facas, a incompreensão das vidas ceifadas tão novas, misturadas com uma noção de dever ainda tão arreigada, mas sobretudo o pensamento de que estava a falar para nada, que estava a falar para ninguém, porque afinal ninguém queria ouvir o que estava a contar.
Primeiro porque pela expressão do outro, percebia a incredulidade com que o ouvia, pois deveria parecer-lhe que ele estava a descrever um qualquer filme americano de guerra.
Um Oficial do Exército Português em pleno uso das suas faculdades mentais. Até o Dick prefere ignorar, olhando para o lado.
Depois, porque percebia também que o outro não queria ser incomodado com algo que podia ser verdade, muito verdade, e se assim fosse teria de ser objecto de uma reflexão que ele, o outro, não queria fazer.
Era essa a sensação que tinha desde que tinha regressado da Guiné!
Os que por aqui estavam e viviam as suas vidinhas, não queriam saber!
Tinha regressado bem? Estava vivo?
Ainda bem! Mas agora escusava de vir contar histórias de uma guerra longe, muito longe, que não tinha nada que vir afectar as suas vidas.
Por um lado as palavras sobre a guerra saíam da sua boca, mas por outro lado o pensamento insistente de que estava a dar uma seca ao outro, que não queria acreditar no que contava, que não queria incomodar-se com guerra nenhuma, cada vez mais era premente na sua cabeça.
De repente calou-se e olhando para o outro perguntou:
- Você não acredita em nada disto pois não?
O outro abriu um sorriso, e numa expressão amigável disse:
- Eu logo vi que o amigo estava a brincar! Mas gaita que você tem cá uma imaginação!
Olhou-o então nos olhos e disse-lhe em tom pausado, mas firme:
- Também eu pensava assim quando lá cheguei, e até ouvir e sentir os primeiros tiros a passarem ao meu lado. Só então tomei consciência que aquilo era uma guerra onde morria gente. Não se preocupe com isso, e vamos beber outra cerveja.
Num instante olhou para o lado contrário, para que o outro não visse a lágrima teimosa que lhe rolou pela cara abaixo.
Estava no seu país, e ninguém o conhecia, ninguém queria saber o que tinha passado.
Era um estranho na sua própria casa!
Monte Real, 31 de Janeiro de 2011
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 11 de Janeiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7592: Blogpoesia (105): P'rá vala, p'ra vala (Joaquim Mexia Alves)
Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7712: Blogoterapia (174): Posso decepcionar os amigos, mas não os camarigos (Luís Graça)