1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2011:
Queridos amigos,
São poucos os livros que se podem gabar de ter uma capa tão expressiva como esta que o Rogério Petinga concebeu para as primeiras edições de “Nó Cego”.
Não conheço outro livro com esta dimensão, tão poderosa galeria de retratos, com tantos diálogos tão afins à nossa experiência de combatentes.
É o mais universal de todos os horrores de uma guerra, em Nó Cego sente-se que o cansaço daquele capitão iria desaguar no 25 de Abril.
Um abraço do
Mário
“Nó Cego”, a obra-prima absoluta da nossa literatura de guerra
Beja Santos
A acção passa-se em Moçambique mas, com ligeiras adaptações, podia ser transferida para qualquer teatro de operações em África, tal o classicismo com que a prosa se impôs. Publicado em 1983, “Nó Cego”, de Carlos Vale Ferraz, é muito mais do que um livro irrepetível, continuamos a lê-lo em transe hipnótico, a soletrar a crueza dos diálogos que ouvimos décadas atrás, o que ali se escreve, o peso dos silêncios, foi vivido por qualquer um de nós, no emaranhado das matas, no ambiente dos aquartelamentos, nos suspiros dados a olhar, impotentes, o travejamento dos nossos abrigos, nesses lugares ermos por onde pernoitamos.
Foi uma obra de estreia de um oficial do quadro permanente que combateu nas três frentes da guerra. Não importa o que de autobiográfico o livro contém, é pouco crível que tudo quanto aqui se escreve seja fruto da imaginação ou contado por outro. O que importa é que este romance continua a ser o número um, detém a supremacia absoluta de todas as obras de grande qualidade. Nenhum outro livro foi mais ao fundo da raiva e do medo, contornando sempre com pudor a linha do intimismo mesmo no trânsito abundante dos termos chocantes, da exibição das misérias, daquele cansaço sem fim que se vai apoderando do narrador e que é transmitido como um vírus ao leitor. O classicismo de “Nó Cego” assenta porventura na magia da comunicação: é tudo limpo, sóbrio, brusco, eficiente, apologético (toda a arquitectura impele-nos para o horror da guerra e, sobretudo, para a perda de sentido daquela guerra em particular). Vale Ferraz não se subtrai aos desastres da guerra, graças ao esquematismo, à ausência de lágrimas, ele abre-nos sem disfarce o caminho para se compreender estas máquinas de justiceiros do mato, é uma companhia de Comandos, têm as suas normas próprias, os seus ritos e uma cadeia de comando muito particular. Um livro dedicado às mulheres que os amaram, aos que combateram dando o melhor da juventude e aos próprios guerrilheiros. O autor entende que precisamos de uma apresentação: o que ele escreve é ficção, as pessoas e situações narradas não aconteceram nem existiram; o autor, por sinal, é pacato e gordo, cai-lhe o cabelo e escreve de noite com os óculos na ponta do nariz. Posto este labirinto, abre-se a efabulação, estamos na primeira operação, com o sol a pino e todos a marchar na bicha de pirilau. Ouve-se uma explosão, o capitão orientou os grupos de combate, o enfermeiro partiu para os primeiros socorros:
“Dava as ordens com voz calma, como se tudo não passasse de um exercício. Depois aproximou-se do soldado ferido deitado no chão, com um dos pés transformado numa bola de massa onde se misturavam o coiro preto da bota, a terra castanha empapada em sangue e de onde surgiam tendões brancos desligados dos ossos.
À vista deste espectáculo empalideceu, não o podia evitar, sentou-se a observar o LM: uma injecção de morfina, apertar o garrote para estancar o sangue, uma injecção de vitamina K para facilitar a coagulação e, por fim, limpar o melhor possível a pasta avermelhada para a envolver num penso. Era o que restava do que fora um pé”.
Não se pode imaginar mais secura, logo a seguir há contacto, as transmissões procuram desesperadamente um helicóptero. Os figurantes vão sendo apresentados: o cabo Cabral, o da calva nascente, o Pedro, que vai sempre à frente e que ficará sem o pé, o Vergas, alto e patilhudo, o Torrão (que fora pastor no Alentejo), o Chamusca, o Casal Ventoso, o Espanhol. Existem ali conversas possíveis, afinal aquelas máquinas de matar têm sentimentos, basta conferir: “O meu capitão sabe que é raro um alentejano vir para os comandos? – e continuou: – Gozavam comigo por eu ser assim miúdo, chamavam-me alentejano dum cabrao, mesmo os oficiais e os cabos milicianos da recruta, que alentejanos e cães de caça era tudo gente de uma raça. Para lhes fazer ver que era igual aos outros, ofereci-me. Também porque me disseram que se dava menos tempo de tropa… preciso de tratar da vida… – o capitão parecia não ligar muito à conversa, mas o Torrão continuava: – O Alentejo, conhece? –e sem esperar resposta: – Aquilo é que é terra, o ar é limpo, vê-se até longi… – falava sem precisar de ouvinte. Necessitava de desabafar, de se sentir no meio de gente, a floresta assustava-o e voltava ao linguarejar cantado da sua terra – … Guardava porcos, um dia fiquei-me a ver o comboio a caminho do Algarvi, por causa dêli tive de fugir de casa, dois bácoros perderam-se, o capataz do monti queria bater-mi, queria obrigar o mê pai a pagá-los, pagar… – abanou a cabeça a olhar o céu – … Era a miséria mais negra…”. Contraponto é dado pela recordação daquele oficial que quis ir para a Academia Militar, mesmo contrariando a vontade do pai. Segue-se a brutalidade com o guia, um velho Maconde, permanentemente ameaçado pela tortura e de que ainda vai levar mais porrada na PIDE. A galeria dos figurantes vai engrossando: Pierre, o estivador, Evaristo, o guia Maconde, a companhia atravessa um vale, são surpreendidos pelas morteiradas do inimigo, o Preguiça ficou despedaçado, caiu-lhe uma granada mesmo em cima. Igualmente os alferes vão sendo apresentados, são provenientes de vários estratos sociais, o Lencastre vem de uma família com pergaminhos, entre Estoril e Cascais. Bem, a operação não foi um êxito e o novo comandante militar a seu tempo irá repontar. Vamos assistindo à tensão que se irá desenvolvendo entre o recém-chegado e os combatentes que já não vão nas lérias da estridência vã da defesa da civilização ocidental. Chega a hora desta companhia de comandos ir para nova operação, desta vez à Volta ao Mundo, temos aqui outra narrativa fulgurante: “Mueda, no dia da saída da coluna para a Volta ao Mundo, assemelhava-se a um formigueiro rebentado; camiões que andavam de um lado para o outro aparentemente sem sentido, soldados que corriam uns pelos outros, oficiais que procuravam juntar os seus pelotões, artilheiros que tentavam desesperadamente atrelar as peças e bocas-de-fogo às Berliets, caixas de raçoes espalhadas, viaturas que não pegavam e eram empurradas, barulho de motores acelerados, cheiro a óleo queimado, tudo fazia parte de uma caótica confusão da qual parecia ser impossível sair ou, pelo menos, encontrar algum responsável”. De novo embrenhados no mato, o silêncio da noite é atravessado por um grito, ficam todos em alvoroço:
“Um grito horrendo a eriçar a pele em picos de lixa, carregado de electricidade.
Um grito com vida nascendo de um uivo de suicida caindo no abismo; mal nascido e logo fugido para o negrume de árvores sombrias a receberem-no quais fantasmas baloiçando braços descarnados de ramos rendilhados em teias negras; a prolongar-se num eco de mil latidos.
Vindo de um só peito vinha de todos amplificado no estrondo das minas, nos gemidos do sargento cego a chamar pela mulher…”. É naquela confusão que se descobre que o Bento teve um ataque de epilepsia. E depois, quando retomou a caminhada, o capitão conduzia a coluna a passo de caracol pela picada onde as minas nasciam como cogumelos em estrume húmido.
(Continua)
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Notas de CV:
Carlos Vale Ferraz é o pseudónimo literário de Carlos Matos Gomes, hoje Coronel Cav COMANDO na situação reserva
Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7715: Notas de leitura (198): Repórter de Guerra, de Luís Castro (Mário Beja Santos)