Camarada
Aqui vai mais um texto meu.
Tive dificuldade em o construir e por isso saiu uma série de personagens esboçadas.
À consideração "superior".
Um Ab
A Minha Guerra a Petróleo (4)
Em Mansabá, os Últimos Tempos de Guerra
Vista aérea da povoação e quartel de Mansabá
Foto de Carlos VinhalConheci Mansabá em finais de Novembro de 1972. O quartel vasto era agora guarnecido por uma Companhia de Artilharia – a CArt 3567 (“Os Insaciáveis") – e duas Secções de Artilharia (obuses 8,8 cm), quando já fora sede de Batalhão e depois de um COp. Levar-nos-ia longe a análise da constituição dos Comandos Operacionais (COp), em diversos locais da Guiné e não cabe aqui discutir soluções tácticas, mas antes falar de pessoas. Dos que ali foram parar e dos que ali viviam o seu dia-a-dia. Hoje, passados todos estes anos, creio que ninguém tinha uma ideia acerca do que pretendia. Todos esperavam. Os nascidos e criados naquela terra e arredores deveriam ter dificuldade em entender o que se passara e o que se passava para que tivessem de viver circunscritos a uma localidade, sem puderem deslocar-se livremente e contactar com os seus, que residiam noutros locais, cultivar a terra um pouco mais longe, comerciar, em resumo: viver.
Mal ou bem, mas labutar no dia-a-dia. E, o que era pior, sabiam que, se fossem “apanhados”, teriam de passar a viver em condições muito mais difíceis quando não em situações de dolorosa inferioridade. É que, se a vida de guerrilheiro e da população que o apoia é duríssima, a vida de um prisioneiro será sempre um calvário. Não sabe onde e como estão os que teve de deixar para trás e, na sua nova situação, ser-lhe-ão sempre atribuídas as tarefas mais humilhantes, para além da desconfiança que sentirá sempre à sua volta. E não adianta tentar “comprar” o ex-inimigo…
Naquela altura os campos já estavam extremados. Quem estava de um lado sabia que não tinha possibilidades de se inserir e sobreviver no outro.
Não contactei muito intimamente com a população. Senti mesmo uma certa distância dela em relação a mim, ou seria a todos nós? Sim, nós, os outros, os que fôramos daqui para lá para… para quê? Para combater pela Pátria, pois claro! Para proteger aquelas populações da barbárie, das garras do “comunismo internacional” e assegurar o desenvolvimento pacífico daquela terra e (quem sabe?) “assegurar a passagem a uma maior autonomia”. Enfim, íamos fazer o que se dizia e era sabido que íamos fazer…
É, no mínimo, estranho que a guerra se constitua como factor de aceleração do desenvolvimento e de autonomia. Será que, se não houvesse guerra o desenvolvimento económico e social não se daria? Ou seria retardado? É-me difícil admitir outra forma de desenvolvimento que não seja assente na paz. No fundo, estamos a dizer que quem se revoltou tinha razão e assim conseguiu que a população vivesse melhor, embora pagasse caro essa melhoria. Verdadeiramente insanável esta contradição.
A “guerra” levava, naquela altura, dez anos e, hoje, parece-me que aquela terra e aquela gente padeciam de uma espécie da gangrena que as apodrecia cada vez mais. Os guerrilheiros faziam a guerrilha. Era o seu dever patriótico de homens que queriam ser livres. Imolavam-se, se necessário fosse, em combates curtos, mas intensos, contra um número considerável de conterrâneos seus e contra os que, vindos da “Metrópole”, os perseguiam por vezes com grande violência. Saberiam eles bem porque lutavam? Direi que sabiam.
Naquele tempo, parece-me que todos tínhamos (muitas) certezas. No meio estavam uns que suportavam, que aturavam as vicissitudes daquela situação sem puderem invertê-la. É o drama habitual das grandes massas de um povo que, não sabendo ou não achando necessário participar activamente, limitam-se a tentar sobreviver, oscilando, como um ponteiro desgovernado sobre o painel do momento. Normalmente, a História não regista o seu sofrimento, nem justifica a sua acção… ou falta dela.
Ao contrário da primeira comissão, desta vez, também nunca falei com nenhum guerrilheiro, nem com alguém que com eles tivesse vivido.
É certo que algo melhorara nos últimos tempos de guerra. Agora havia uma estrada asfaltada que levava a Bissau ou a Farim, estava montada uma rede de assistência médica e medicamentosa como nunca existira e o arroz era vendido a um preço simbólico: “cinco pesos e meio”. Ainda me recordo de uma grávida, em trabalho de parto, que foi evacuada para Bissau, por via aérea pelo, hoje general Martins de Matos.
Actualmente, nada disso por lá existe e, mesmo cá, as transmontanas têm os filhos nas ambulâncias…
Vivia-se em paz no interior da tabanca. Contudo numa tensão permanente. Havia que manter o inimigo à distância. Inimigo de quem ou de quê, isso é que era mais complicado de dizer… Para isso lá estávamos, mais de centena e meia de jovens – sim éramos jovens, é bom que se diga – que, com uma certa regularidade, faziam demonstrações de força e, com elas, garantiam que “os outros” não se aproximavam.
Vivia-se numa espécie de equilíbrio tenso e susceptível de se alterar ao menor sopro do acaso. Era a tal gangrena que minava e, cada dia, agudizava mais a situação. Uns já não, outros ainda não. Mas já não ou ainda não, o quê? O que é que cada um de nós, homem ou mulher, velho ou novo, nascido ali ou vindo de outro local, queria, em última análise? Dava a impressão de que aquela situação de equilíbrio iria alterar-se a qualquer momento. De que modo?
Andávamos todos à procura de sermos felizes. Cada um à sua maneira, construindo o seu amanhã à medida dos seus anseios e, quando não os identificava claramente, pelo menos queria que “aquilo” acabasse. Não me peçam estatísticas, percentagens ou tendências. Isso são abstracções de sociólogos ou de políticos carreiristas a justificarem – uns e outros – a marcha de um fenómeno que decorria naquele momento e não era possível parar nem condicionar.
O que pensaria o “Moisés Tchombé”, o chefe do posto, daquilo tudo? Chamávamos-lhe assim pela semelhança física com o ex-dirigente congolês. Será que exercia as suas funções a pensar no dever quotidiano a cumprir ou na simples sobrevivência, esperando que, quando “aquilo” acabasse, pudesse continuar tranquilamente a ser um bom “chefe de posto”? E os dois funcionários da Casa Gouveia, já aliciados para o “Partido”? Que esperariam eles, quando tudo acabasse, se acabasse? Claro que teria de acabar, mas… de que maneira? E o comerciante libanês (outro membro do “Partido”) que vivia como os seus colegas de profissão, num dia-a-dia de compra e vende toda e qualquer coisa que fosse necessária? E os velhos da tabanca, dotados da sabedoria que a idade sempre traz, o que pensariam daquilo? Como visualizariam o fim? Pensariam que o PAIGC, estava condenado a vencer e a tomar conta de tudo e, nesse caso, qual seria o papel deles? E se fosse a “Tropa” – reparem na expressão que usei e que usávamos – a ganhar, como ficaria todo o resto?
Há um indício técnico que, confesso, negligenciei: o Pelotão de Milícia estava incompleto e, embora o método de recrutamento estivesse modificado, centralizando-se num período de recruta num centro de instrução (que chegou a funcionar em Mansabá), parecia não haver interessados em recompletá-lo…
Estranho, para quem tinha que se defender diariamente de um inimigo que não se pode dizer que fosse muito contemplativo, como se viu naquele ataque “ao arame” em que arderam 21 casas. O que pensaria a população, em geral, das possibilidade de evolução da guerra? Valeu-nos naquela altura a Companhia de (instrução) Comandos Africanos que estava em formação e que fez as vezes dos bombeiros, apagando o incêndio, com baldes e bacias. Pedi às instâncias superiores cerca de 250 contos para reabilitar as casas e repor os bens daqueles que tudo tinham perdido. Nem um tostão veio. Não compreendi, na altura, a dificuldade em se aceitar que, em cada casa, houvesse pouco mais de dez contos em bens e alimentos. O PAIGC, vindo dos lados do Morés, atacou ostensivamente a tabanca e incendiou os telhados das moranças a tiro de RPG. O Amadu fala deste ataque, no seu livro e também não o entende(1). O conjunto tabanca mais quartel era grande e tinha um perímetro bem conhecido dos guerrilheiros. Um ataque cirúrgico, como hoje se diz, e que me pareceu um “ajuste de contas”, uma espécie de “perda de estado de graça”. Depois, veio o ataque à coluna de Cutia, a emboscada à coluna da CArt e à própria coluna grande de Bissau a Farim e volta. Terá sido o virar de uma situação de “equilíbrio”.
Uma morança de Mansabá atingida por fogo IN em 12 de Novembro de 1970
Foto de Carlos VinhalTive contacto com o chefe da tabanca, logo no dia da minha chegada e, depois, só me pedia apoio para satisfazer qualquer necessidade da sua gente. Vi que os habitantes da tabanca viajavam pouco. Poderiam ir a Mansoa nas colunas da CArt. e daí a Bissau ou a Farim, na “coluna grande”, mas inexplicavelmente… não iam. Que se passaria para que tal sucedesse?
Dentre os habitantes da tabanca havia uns que não consegui entender. Não eram africanos. O senhor Zé, a mulher, D. Olinda, e uma filhota de três para quatro anos que tinham. Ele tinha explorado a Serração, alguns quilómetros a Sul, à beira da estrada, e hoje ainda abatia uma ou outra árvore que arrastava numa espécie de chassis que normalmente “até andava” fazendo uma fumarada de gasóleo não queimado. Ela cuidava da horta de casa e fazia funcionar um “restaurante barra café”. A filha enervava-se muito com os tiros da artilharia e com os ataques e o filho, com onze anos, acabara por obrigar os pais virem deixá-lo a casa de familiares, em Leiria.
Mansabá > 13ABR71 > Festa de Batisado da filha do senhor José Leal e dona Olinda > Nesta foto, da direita para a esquerda: Cap Mil Jorge Picado, senhor José Leal, Chefe de Posto (“Moisés Tchombé”) referido no texto, a esposa e uma das professoras ou filha do casal.
Foto de Jorge Picado, com a devida vénia.
Mansabá > OUT71 > A D. Olinda, esposa do senhor José Leal, e a filha de ambos no dia da festa do 1.º aniversário da menina
Foto de Carlos VinhalA dado momento, colocaram ali duas professoras “de primeiras letras”: a Sérgia, cabo-verdiana, gorda e que não parecia muito interessada na sua actividade e a Maria do Socorro, balanta, já havia concorrido ao título de miss Guiné, mas o júri teve de a eliminar por falta de qualidades estéticas… Tinha uma outra atitude e parecia querer dinamizar o funcionamento da escola. Suspeitei dela por evitar sistematicamente as colunas da CArt e procurar sempre seguir na “coluna grande”. Um dia impedi-lhe o embarque numa delas e, então, não tive dúvidas. Aos saltos em cima do unimog desatou a gritar “que estava farta dos cães colonialistas portugueses”. Então detectei “as malhas que o Império tecia”. O comandante do Batalhão ameaçou-me e obrigou-me a soltá-la. A rapariga estava fortemente “apoiada nas NT” e eu estava a pouco tempo de me vir embora. Após a independência, talvez em consequência dos “apoios” foi funcionária do Exército, no Estado-maior do Exército e na Repartição de Oficiais. Sei que continuou muito preocupada com o que não tinha – a beleza – ao ponto de comprar a uma daquelas vendedoras que frequentavam as unidades militares e as empresas, o bronzeador mais caro. Ao que me disseram assassinaram-na numa das viagens que fez à Guiné. O móbil do crime terá sido o simples roubo.
Que pensariam estas duas mulheres que viviam numa casa anexa à escola. Esta, que tinha sido um posto de comando e um centro de transmissões, era um edifício, de paredes sólidas, construído no “ano dos centenários” – 1946. Há fotos deste tipo de edifícios. Este era contemporâneo do Posto Administrativo, onde o “Moisés” vivia e cumpria as suas obrigações burocráticas, que eu, devo confessar, nunca entendi bem. Por despacho do General Spínola, o director da escola era eu e o segundo comandante do Batalhão era o inspector da circunscrição escolar na sua área. Por mim, nunca intervim no “processo de alfabetização em curso” a não ser para transmitir as instruções que me davam, prontamente contestadas pela Socorro. A escola foi inspeccionada uma vez, durante as férias e na ausência das professoras. Os resultados foram hilariantes e até deram direito a uma música com letra do alferes Rui Serras e música do Yellow Submarine. Prometo que conto um dia destes…
O que pensariam estas mulheres jovens, na altura, do que se passava à sua volta e o que terá sido feito da Sérgia?
E a “malta”? O que pensariam e como aceitariam aquilo tudo, os alferes – nunca tive mais de três devido à escassez de pessoal – os sargentos – entre os quais também existiam faltas, pelo mesmo motivo – e as praças?
Corro o risco de ser injusto, mas a avaliação que faço hoje é fruto de análise de pequenas situações que foram sucedendo então e que me sugerem que se tratava de uma unidade de “homens independentes”. Havia, penso, um núcleo de mentores que lideravam naturalmente. O primeiro-sargento Cipriano Canelas, amigo de outras situações, homem sensato, competente e dedicado, tinha uma característica que pode ser considerada uma forma de resistência: procurava vestir sempre bem, fardado ou à paisana. Aglutinava à sua volta o alferes Silva, ex-seminarista e, por consequência treinado para liderar, como todos os padres; o Bateira, furriel atirador com a valentia própria de quem conheceu os “ambientes do Brasil” e que manejava a MG 42; o Rui Serras, estudante falhado de medicina, angolano de Portalegre ou portalegrense de Angola, persuasivo e alegre que, como vi mais tarde, sabia bem congregar vontades; o Mota e Silva furriel atirador eficaz e reservado.
Depois havia outros, como os malogrados Vale das Transmissões, Sá Lopes, Ranger, sempre pronto a fazer jus à sua qualificação e o Costa, gigante atirador e marido da Júlia. Ainda me lembro do Ramos, magro e louro, meu companheiro naquela coisa das minas… e o Antero Paiva. E o Carvalho, o furriel “Enfermeiro”, que fazia os possíveis por assistir a população e a “malta”, com cuidado e a qualidade possível. Havia também o Alves da Artilharia, sempre sisudo, mas pronto na “hora do aperto” e eficaz no desempenho das tarefas que lhe tocavam.
Entre os soldados, relembro o “Boxista” que tinha andado a aprender a “Nobre Arte” mas com resultados modestos, o Pilo (é nome e não alcunha) pescador do bacalhau e que preferia estar ali com os pés no chão a andar aos tombos num dóri; o Valdez das Transmissões que tocava, na flauta de bisel “El Condor Pasa” acompanhado à viola pela Sousa Pinto da mesma secção.
Todos cumpriam e bem, mas sem entusiasmo excessivo. As coisas, faziam-nas porque era necessário fazê-las, desde a guerra às tarefas de guarnição. Dir-se-ia que resistiam à provação que lhes era imposta.
Não creio que “sofressem de patriotismo exacerbado”. A Pátria, para eles, não era ali… Não notei que odiassem o inimigo, mas distanciavam-se dele. Defendiam-se e faziam a guerra porque a isso os obrigavam e não detectei que nutrissem ódio pelo inimigo, mas também não me pareceu que tivessem qualquer simpatia ou compreensão pela parte contrária. Esta atitude de reserva vinha desde a primeira baixa sofrida pela Companhia, quando tinham pouco tempo de Guiné e eu ainda não estava com eles. Fora um ferido com mina lá para os lados de Manhau. Penso que se sentiram injustiçados e daí nasceu em espécie de revolta surda de quem não teme, mas que também não acredita e, sem outra saída, mantêm uma atitude de fria independência e de liberdade escondida.
Sem grandes alardes de valentia tive prazer em os comandar, mais como cidadãos do que como soldados.
(1) - Djaló, Amadu Bailo, "Guineense, Comando Português", (pág. 246 e 247), Ed. Associação de Comandos, Col. Mama
Sume, Lisboa, Março de 2010.
____________
Notas de CV:
Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7874: Em busca de... (157): Camaradas da CART 3567 (António J. Pereira da Costa)
Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6614: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (3): Gente de Cacoca e outros