1. Mais um episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (20)
Ida à capital da Província
O trajecto entre a capital da província e o aquartelamento
,
onde o Cifra está estacionado, são mais ou menos setenta
quilómetros de estrada. Pelo menos até à data, não houve
minas, ou qualquer ataque às forças militares, dizem que
não interessa aos guerrilheiros, pois esta via, é um forte
meio de circulação e abastecimento, durante a noite, para as
suas bases no interior, pelo menos, é o boato que por aqui
corre.
Esta estrada atravessa um grande rio, com uma ponte em
cimento, mais seis pântanos, com duas pontes em madeira, e nos
restantes, transita-se com alguma água, na época das chuvas, e
quase seco na época quente. Todos estes lugares estratégicos,
estão mais ou menos guardados por militares durante o dia.
De noite, dizem que a circulação é livre.
O Cifra está no seu dia de folga. Levanta-se, vai tomar
banho à parte sul do aquartelamento, onde se fizeram três furos
de água, que vem quente, muito quente, a cheirar a enxofre ou
coisa parecida. Há uma fila de bidons, com água do dia anterior,
que está morna. Toma banho, nú, veste roupa lavada, incluindo
umas meias rotas na ponta, mas que dobrava e ficavam perfeitas,
calça as botas de pano, já um pouco coçadas.
Vem ao refeitório, levanta a mão, em sinal de olá ao
“Arroz com pão”, que é o cabo do rancho, que lhe estende uma
caneca de café negro, sem açúcar, e lhe diz:
- Toma lá, para ver se a podes “curtir” mais depressa.
O Cifra, nem lhe responde, mas o “Arroz com pão” devia se
referir a algum excesso de álcool, mas adiante, não vamos perder
mais tempo com pormenores, pois se os aprofundarmos, de certeza
que vão envergonhar um pouco o Cifra, bebe a caneca do café e
coloca um cigarro “três vintes” na boca. Era uma sexta-feira,
levanta a cabeça, olha em frente, vê o carro dos doentes, abre
mais um pouco os olhos, em sinal de alguma alegria, e logo
pensa:
- Que bom passeio à capital.
Se melhor pensou, melhor o fez. Dirige-se ao cabo
enfermeiro, e pergunta:
- Ouve lá, oh “Pastilhas”, há lugar no carro dos doentes?
“Pastilhas”, era o nome com que baptizaram o cabo
enfermeiro, pois muitas vezes fazia de doutor, e só receitava
pastilhas. Qualquer militar que fosse à enfermaria, com dores
numa perna, num braço, na barriga, na cabeça, nos dentes, ou
qualquer outra enxaqueca, o curativo era o mesmo, e dizia:
- Toma estas pastilhas, de quatro em quatro horas, com água,
e deixa de beber álcool, por uns dias, se não morres.
Bem, mas em resposta ao Cifra, ele, conhecedor da tramóia,
responde-lhe:
- Eu não sei nada, até nem sou de cá.
O Cifra, salta para a viatura, onde já se encontrava o
Setúbal, na mesma situação. Ruma à capital.
O carro dos doentes fica no hospital que está situado
quase à entrada da cidade, para quem vem do interior da
província, e regressa às cinco da tarde.
No hospital, o Cifra e o Setúbal, arranjam boleia em
qualquer viatura militar que os leva até à avenida principal,
onde ao fundo havia o palácio do governador, (foto ao lado), e
que era o ponto de referência e de
encontro, quando alguém se
perdia, ou por qualquer
circunstância se separava do
grupo, era ali que se
encontravam de novo, para
regressarem às suas unidades
militares. A polícia militar, que
estava estacionada no forte da
“Amura”, andava sempre por ali,
mas quando via militares de farda
amarela, grandes bigodes, com
alguns embrulhos nas mãos ou debaixo dos braços, sabiam que eram
militares que estavam de passagem e tinham vindo do interior da
província, e faziam “vista grossa”.
Na cidade, dão uma volta pelo mercado. Cheira a tabaco seco,
carne fresca e coca. Há mangos e papaia, fruta de caju, amendoim
verde, a que chamam mancarra, bananas, batata doce, peixe seco,
mandioca, balaios de arroz, aguardente de palma vendida ao
púcaro, macacos, periquitos e outras aves exóticas, pano de
diferentes cores vendido à peça, colares e bujigangas, figuras
em madeira representando animais, há alguns gatos empoleirados
no muro do mercado, assim com alguns cães que circulam por ali,
com o rabo entre as pernas, e outros deitados próximo das bancas
onde se vende carne fresca, que de vez em quando dão ao rabo
sacudindo as moscas e outros insectos, moscas e insectos esses,
que saltam dos cães para cima da carne fresca, e mais um
amalganhado de coisas sem fim. Saem do mercado meio tontos.
Descem a avenida e passeiam à beira do rio, é altura da
maré baixa, é só lama, mesmo assim alguns barcos em madeira,
pintados com cores garridas, baloiçam numa parte do rio, onde há
alguma água, dizem que é o cais de embarque Pigiguiti, ou coisa
parecida, e é daí, que partem barcos para as ilhas de Bolama,
também vêm a fortaleza de S. José da Amura, (foto acima) que
próximo, tem uma estátua de alguém que se notabilizou, por
atravessar mares nunca antes navegados, frase esta que o Cifra
aprendeu na escola primária da vila, onde pertencia a sua aldeia
do Ninho d’Águia, lá ao
fundo vêm o ilhéu do Rei, assim como o cais
de embarque, onde
alguns navios pequenos
conseguem atracar na
maré cheia. Há alguma
azáfama de pessoas
indo e vindo de um
barco, que neste
momento está atracado,
mas pela água que existe em redor do cais, concerteza que o seu
casco está em contacto com a lama. Uma garotita africana, quase
nua, só com um trapito a cobrir-lhe parte do corpo, com a cara
suja, o dedo na boca, movendo os lábios, dando a impressão que
estava a comer baba e ranho, que lhe vinha do nariz, aproxima-se
com a mão estendida e diz mais ou menos isto:
-
Patacão pra comprá bianda.
Levou algumas moedas, e começou a correr em direcção, a quem
possívelmente era a mãe, que estava um pouco distante, em frente
a um balaio de mancarra torrada, que vendia ao púcaro. Mas
voltando à beira do rio, alguns africanos procuram qualquer
coisa na lama, que logo apanham e põem numa saca, que trazem à
cinta. Não sabem o que é, mas também não interessa.
A brisa é boa, e o lugar até se torna agradável.
Passam duas raparigas africanas, com um vestido às flores,
que lhe cobre quase o corpo todo, não parece um vestido, parece
mais uma peça de pano inteira em que vão enroladas, mas muito
justa ao corpo, com outra tira de pano cor de rosa, amarrado à
cinta, na cabeça também levam um pano amarrado, da mesma cor da
cinta, duas argolas de um metal com algum brilho caiem das
suas orelhas, os braços vão descobertos, tendo algumas pulseiras
feitas de missangas com diversas cores, ao pescoço também levam
uns colares de missanga que lhe fazem sobressair o rosto, que
tem uma cor preta com a tonalidade do chocolate, mas muito
brilhante, onde sobressaiem uns olhos que denunciam qualquer
coisa como um mistério, e nos pés levam umas sandálias rasas, de
plástico, brancas. Caminham, bamboleando o corpo, talvez sabendo
que são observadas, que ao passarem pelo Cifra e o Setubal,
olham de lado, com um olhar algo comprometedor.
O Cifra assobia, um assobio um pouco provocativo.
Elas voltam-se e sorriem, provocativas, também.
O Setúbal, segura por um braço o Cifra, que tentava avançar
para as raparigas e diz-lhe, como se fosse uma ordem:
- Tem juízo homem, não te chegou o problema com as
guerrilheiras, lembra-te que andas na guerra!
Sobem a rua que vem do rio, entram numa transversal e
páram em frente a um estabelecimento, que era a casa Gouveia,
que tinha na montra vários objectos, entre os quais uma máquina fotográfica que ficou nos olhos do Cifra. Entram,
perguntam o preço, o Cifra não tinha dinheiro suficiente, mas o
Setúbal, vendo a cara do Cifra, diz-lhe:
- O nosso dinheiro junto, tirando este para comer, ainda
sobra para a tua máquina, portanto compra.
O Cifra comprou, parecendo um miúdo a quem dão o seu
primeiro brinquedo. Continuam caminhando e entram numa pequena
rua também transversal, que vai dar à taverna do Transmontano,
pois é assim que lhe chamam.
É uma casa de um só piso, metade é casa e a outra metade é
um grande cabanal, com mesas e cadeiras ao comprido.
É aí que os militares, quando vêm à capital, normalmente
comem. A cozinha, ao lado do cabanal, coberta com folhas de
zinco, formando duas abas, tem três fogões, feitos em adobe,
cada um tem um grande buraco em cima, de onde sai forte
labareda. Três africanas, bastante fortes na estatura, mexem-se
rápido em frente aos fogões. Uma enorme rima de lenha, ao fundo
do cabanal, completa o cenário.
O transmontano e a esposa, também bastante forte na
estatura, estão ao balcão a dirigir o serviço. Não tiram os
olhos das duas filhas, jeitosas e morenas, que andam numa
azáfama, a servir nas mesas. Um pequeno pormenor, que não passa
despercebido, têm duas espingardas caçadeiras penduradas atrás
do balcão. A comida é boa, com sabor português/africano e muito
gindungo, a bebida normal é a cerveja, que se bebe à temperatura
ambiente.
Lá para o fim da tarde passaram pela “Tasca dos
Trovadores”, (a que o Curvas, alto e refilão, na sua reles
linguagem, dizia que era a tasca dos paneleiros), pois era assim
que chamavam a uma taverna, que ficava para os lados do quartel
da Marinha, que vendia a melhor cerveja gelada da capital,
onde o “Zé Manel”, um fuzileiro ali estacionado, ajudava no
balcão e sabia tirar um “fino” como ninguém. Era quase uma
passagem obrigatória de todos os militares que visitavam a
capital da província, vindos do interior, onde os militares e
não só, que se julgavam cantores, tinham oportunidade de o
mostrar, pois havia um palco com microfone ligado e tudo.
No regresso, dizia o Cifra para o Setúbal:
- Parece que não andamos na guerra.
O Setubal, ri-se, levanta os olhos e diz:
- Fuma o cigarro e cala-te, pois daqui a umas horas estás
de novo no aquartelamento, circundado de arame farpado.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Outubro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10549: Do Ninho D'Águia até África (19): Furriel Roger, o Herói (Tony Borié)