quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10569: (Ex)citações (201): Não me lixem com o Pifas! (Salvador Nogueira)

1. Mensagem do nosso leitor (e camarada, ex-oficial paraquedista que passou pelos 3 TO da guerra de África), Salvador Nogueira (de quem, naturalmente, não temos nenhum foto já que já não é nem pretende vir a ser grã-tabanqueiro):

Data: 23 de Outubro de 2012 19:50

Assunto: Desabafo

Amigo Luís,

tu, tendo estado 24 meses à espera do avião para Lisboa - presumo- qualquer que fora a tua especialidade, operacionalidade, efectividade, produtividade e outras coisas acabadas em 'ade', estiveste no mato e,  tendo vivido lá, com tudo o que isso deixa entrever de bom ou mau - nem todos tinham que ter a mania de ser 'desportistas'- poupa-me aqueles merdas do Pifas e do caraças!

Se há coisa que ainda hoje não consigo conter é uma agressividade surda em relação aos galarozes que ficavam em Bissau porque sim. Isto, sem falar na Polícia Militar, claro... é outro nível de merdice e é, era!,  para tratar à porrada ou a cagar de muito alto.

Bem, o Pifas é um boneco sem graça, descaracterizado. Lembra estranhamente aquele mamarracho da Expo98, também descaracterizado, estúpido; mas é um boneco. Agora, a recordação periódica daqueles merdas da rádio e das suas actividades pseudo-sérias, é para irritar quem dormiu em Madina Xaquili ou para verificar o desportivismo de quem fazia emboscadas às guardas de flanco do PAIGC no corredor do Guileje?

Em bom jargão - não me f... ! Que eu bem me lembro quem fazia e quem não fazia nenhum lá na Guiné; a começar por alguns vistosos acólitos do General Caco e a acabar nuns alferes filhos-d'algo, passando p'os pifas e fifas e ...

desculpa o estendal!

Um abraço, Salvador.

PS - E se publicasses este palavreado todo havia porrada no Rossio ou continuávamos todos muit'amigos como dantes? Não eu e tu, a malta do tabancal...
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Nota do editor:


Guiné 63/74 - P10568: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (10): Hoje, no Porto Canal, às 22h00, o Programa Testemunho Directo vai ser dedicado aos ex-combatentes da guerra do Ultramar




1. De acordo com informações chegadas ao nosso Blogue, ontem dia 24 de Outubro de 2012, através do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), hoje dia 25 de Outubro pelas 22h00, irá para o ar no Porto Canal o programa televisivo Testemunho Directo com apresentação de Carla Ascenção. 

Um dos intervenientes será o nosso camarada António da Silva Batista, o morto-vivo, que feito prisioneiro pelo PAIGC, foi dado como morto pelas autoridades militares.

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2. Pela mesma via recebemos esta informação de João Sobral, Presidente da Direcção da Associação APOIAR:

PORTO CANAL- 25 OUTUBRO, 22 HORAS - Testemunho Directo

O Testemunho Directo é o espaço onde o PORTO CANAL dá tempo à grande reportagem. 
Um programa em que os assuntos que mais interessam à sociedade são falados, pensados e sentidos na primeira pessoa. 

Esta semana a grande reportagem será sobre os ex-combatentes da Guerra do Ultramar e por isso será do maior interesse o seu contributo para a compreensão do stress pós-traumático enquanto doença que afecta de modo muitas vezes incapacitante uma (%)percentagem dos ex-combatentes. Perceber a luta que a Apoiar e outras associações tem levado a cabo em nome destes homens, vitórias obtidas e caminho ainda a percorrer. 

A NÃO PERDER

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3. Mensagem do nosso camarada José Colaço (ex-Soldado Trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), com data de 24 de Outubro de 2012:

Caro Carlos Vinhal
Só para conhecimento, amanhã 25/10/2012 às 22 horas passa no Porto Canal uma pequena reportagem comigo sobre o tema o que a guerra fez com que a minha vida desse uma reviravolta.
De certeza que tem alguns lapsos devido à inexperiência do autor.

Um abraço
José Colaço

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4. Recebemos também ontem, dia 24, esta informação complementar do nosso camarada Sousa de Castro (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74)

O programa Testemunho Directo do Porto Canal a ir para o ar amanhã, dia 25 de Outubro pelas 22h00, será retransmitido nos dias:
26 (sexta-feira) às 13h00;
27 (sábado) à 01h00;
28 (domingo) às 19h00 e
31 (quarta-feira) às 15h00

Sousa de Castro
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10379: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (9): associações de militares e ex-militares, procuram-se (Valdemar Reis, doutorando em Ciência Política pela NOVA)

Guiné 63/74 - P10567: Agenda cultural (225): Doclisboa'12, de 18-28 de outubro de 2012: Um filme a não perder: "Terra de ninguém", de Salomé Lamas (estreia mundial absoluta, a 24, na Culturgest; repetição a 26, no cinema São Jorge, 16h)




Terra de Ninguém / No Man’s Land

Salomé Lamas | 72' / Portugal / 2012

COMPETIÇÃO PORTUGUESA - LONGAS

ESTREIA MUNDIAL PRIMEIRA OBRA

Sinopse: Paulo oferece retratos sublimados das crueldades e paradoxos do poder, assim como das revoluções que o depuseram, apenas para erguer novas burocracias, novas crueldades e paradoxos. O seu trabalho como mercenário encontra-se na franja destes dois mundos.

24 OUT. 21:30 - Culturgest - Gr. Auditório / 26 OUT. 16:00 - São Jorge - Sala 3




Comentários:

(i)  Jorge Mourinho:

Terra de Ninguém é o título do filme de Salomé Lamas (Culturgest, amanhã, 21h30, e São Jorge, sexta, 16h) que se instala de corpo inteiro na questão da identidade. Identidade de tema - Paulo de Figueiredo, ex-comando tornado mercenário conta a sua história frente à câmara - mas também de formato - Terra de Ninguém inscreve-se na forma tradicional do documentário, mas, pela natureza da história do Portugal pós-revolucionário que Paulo conta, levanta questões sobre a natureza da realidade e sobre o próprio documentário enquanto seu registo. Salomé Lamas tem trabalhado na fronteira entre a arte e o cinema, e ao explorar de modo assumido esse limbo, Terra de Ninguém é tão fascinante conceptualmente como absorvente narrativamente. E mais não dizemos. (Excerto de Jorge Mourinho, Ypsilon, Público, 23/10/2012)

(2) Luís Graça:

Filme que me surpreendeu, da jovem e talentosa realizadora Salomé Lamas... Sério candidato ao prémio  das longas metragens - competição portuguesa...Paulo Figueiredo, 66 anos, conta a sua história de vida, em quatro dias, em 80 curtíssimas cenas, numeradas de 1 a 80, respondendo a perguntas de um guião que nunca se ouvem, apenas as respostas, secas, curtas, telegráficas, assertivas, onde a ausência de emoção é a nota dominante e obsessiva... Se bem apanhei toda a história, Paulo Figueiredo, estatura meã, seco de carnes, já meio calvo, nasce em Malanje, Angola, em 1945 ou 1946. Guarda as melhores recordações da infância despreocupada e feliz, do convívio entre brancos e negros em Malanje..."Angola poderia ter sido um grande Portugal"... Diz-se "engenheiro", profissão que nunca terá exercido...

Neto do homem que fundou o Casino Estoril (Fausto de Figueiredo, 1880-1950), filho de mãe alemã judia, de olhos azuis, 1,90 m de altura, que terá emigrado para Angola, na II Guerra Mundial (presumo). Paulo terá 15 anos em 1961, quando "rebenta o terrorismo" no norte de Angola. As imagens de cabeças cortadas e  corpos empalados,  de mulheres e crianças, parecem persegui-lo... Faz o serviço militar em Angola, oferece-se para os comandos, é alferes numa Companhia de Comandos  (14ª ? 19ª ?., não consegui fixar), e numa outra (4021ª ?) (, há aqui uma referência a Jaime Neves, que não percebi)... Em princípio, terá sido comando entre 1967 e 1974, a acreditar na sua história... Era conhecido como o "alferes granadas". E às granadas chamava "sanzalas"...

Há relatos, sempre secos, da sua atuação como militar em Angola, alguns pouco ou não verosímeis, estereotipados...  Depois vem o 25 de abril (a notícia só lhe chega "dois meses depois", o que é muito pouco provável...), a guerra civil, a independência, a retirada dos portugueses, a vinda para Portugal... Sente-se inadaptado em Portugal. Precisa do "cheiro a sangue e a pólvora", confessa. Dá-lhe "adrenalina" (sic) ir às urgências do Hospital de São José...  É segurança na Fidelis, empresa ligada a um grupo de antigos comandos (, trabalhou por exemplo no Pão de Açucar, nos Olivais). É guarda costas (?) de Kaúlza de Arriaga, de Sá Carneiro, defende herdades no Alentejo... Até que surge, através da CIA, um convite para atuar  como "mercenário" para combater a guerrilha na América Latina (Nicarágua, El Salvador), depois de ter explorado a hipótese (não concretizada) de "trabalho" na Rodésia...

De "mercenário" passaria por fim a "killer" (sic)  ao serviço de um dos GAL - Grupos Antiterroristas de Libertação, espanhóis, que entre 1983 e 1987 praticaram o chamado "terrorismo de Estado". A sua  missão era eliminar "etarras", por  10 milhões de pesetas por cabeça (sic)...  Faz sempre questão de distinguir o seu trabalho como "mercenário" (mas "militar", sempre) e como "killer" (sic)... Faz questão de sublinhar a existência de um código de ética que o levava, por exemplo, a abortar uma ação quando havia vidas de "inocentes" (crianças, mulheres) em jogo... Na sua contabilidade da morte, como "killer" fala de 15 alvos abatidos, eliminados, liquidados... Nada lhe pesa na consciência... É frio, cerebral, racionalizador... "O terror combate-se com o terror"...

Acaba por ser preso em França e condenado em Espanha a 30 anos de prisão... Passou por diversas cadeias espanholas de alta segurança, tendo sido libertado ao fim de 15 anos... Criminoso, amoral, psicopata, mitómano, justiceiro  ?...A realizadora descobre-lhe o rasto em Portugal, e está interessada apenas em "ouvir" e "documentar" a "verdade" do Paulo... Nunca faz nenhum "juízo moral" sobre o seu entrevistado e o seu comportamento passado. De resto, as suas "confidências" têm coerência e parecem ser consistentes... Nos quatro dias em que tem um "palco" e uma "audiência", ele conta a sua história de vida. E que vida!... Agarra o espectador, consegue inclusive ser empático e sedutor, tem algum sentido de humor (negro) que nos leva a esboçar um sorriso amarelo... Não se percebe bem se chegou a constituir família, se tem filhos e netos... Mas, numa das raras confidências em que "fraqueja", ele diz que a coisa que mais desejaria, antes de morrer, era poder sentar-se no sofá a ver televisão, rodeado dos filhos e dos netos...

As últimas cenas do filme mostram-nos a sua condição de "sem abrigo", vivendo algures em Lisboa, debaixo de um viaduto, com dois negros...A realizadora, que acabou o filme muito recentemente, prometera-lhe que ele seria o primeiro espectador do seu filme... Perdeu-lhe definitivamente o rasto. Há um dedicatória, no fim, a este homem que terá morrido recentemente, sem papéis, sem identidade, sem documentos,  na "terra de ninguém". e que é parte da nossa história, da história da geração dos homens que fizeram a guerra colonial e o 25 de abril... Perturbante, perturbador, a não perder... (Luís Graça)
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de outubro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10557: Agenda cultural (224): Lançamento do livro póstumo “Golden Gate - Um quase diário de guerra”, de José Niza (1938-2011), ex-alf mil médico em Angola (BCAÇ 2877, 1969/71) (Carlos Pinheiro)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10566: Ciganos, meus camaradas (Tino Neves, ex-1º cabo escriturário, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71)

1. Texto enviado pelo nosso camarada Constantino (ou Tino) Neves, ex-1º Cabo Escriturário,  CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71), membro da nossa Tabanca Grande desde 2006

Assunto - Ciganos

Desta vez, não vou contar histórias nem enviar fotos, simplesmente lançar um "mote" ou "tema" como queiram chamar, que é: ex-Combatentes de etnia cigana. Este  tema ainda não foi abordado na nossa Tabanca Grande.

E porque é que me lembrei disso ? Porque na minha Companhia (CCS/Bcaç 2893) havia um, que vivia no Bonfim, Porto, o qual se vangloriava muito desse estado e do qual eu vou contar uma pequena história.

Já em Bissau, de regresso à Metrópole, estávamos sentados na esplanada da Cervejaria  MarSol  (assim se chamava,  se a memória não me falhar, ou algo parecido, pois era a Cervejaria maior e mais conhecida de Bissau). Foi quando por lá passou um daqueles vendedores ambulantes, vestidos de branco,  a vender um rádio portátil, e pedindo por ele 3.000 pesos. O meu camarada cigano ofereceu-lhe 500 pesos, e o vendedor praguejou qualquer coisa e foi-se embora. Mas,  passados alguns minutos,  apareceu outra vez, com o mesmo rádio, julgo eu,  e vendeu-o então ao meu camarada pelos 500 pesos.

Era ver a satisfação do meu camarada que dizia em voz alta e em bom som:
- Eu sou cigano e sei fazer bons negócios!...

Mas houve um imprevisto, cinco  minutos depois de o rádio estar a tocar no seu som máximo, "pifou",   deixou de tocar mais, O meu camarada surpreendido tratou logo de abrir o rádio a ver o que se passava com ele, e acabou por ver o que não queria, uma caixa quase vazia, somente tinha 2 transistores e alguns fios.

Como não podia deixar de ser, o seu orgulho foi seriamente atingido, e correu logo à procura do "nharro" que conseguiu enganar um cigano... "para o matar", dizia ele,  muito irritado.

Conto esta história,  não tendo a intenção de ofender os ciganos, pois tenho conhecido e conheço actualmente muitos ciganos e tenho-os por amigos, e mesmo o meu camarada da história sempre foi bom amigo e boa pessoa, somente ficou muito irritado por se sentir enganado.

E também conheci lá em Nova Lamego outro cigano, não me recordo a que companhia pertencia, pois passou por lá apenas alguns meses, falava com ele muitas vezes e só fiquei a saber que era cigano porque ele me confidenciou esse facto, pois se o não fizesse nunca o viria a saber. 

 Mais tarde vim a saber que ele era jogador de futebol, não me lembro ao certo a equipa, mas talvez o Beira Mar, só me lembro de ser numa equipa do norte. Ele se chama Montoya ou Montoia.

Sem mais

Um Abraço a todos os Camarigos da Tabanca Grande

Tino Neves

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Tino, por te teres lembrado dos nossos camaradas "ciganos portugueses" que fizeram a guerra colonial como todos nós.  E por nos teres contado uma história protagonizada por um "cigano português", teu camarada, nosso camarada...

Não sabemos ao certo quantos "ciganos" passaram pelos três teatros de operações de África. Nem mesmo hoje sabemos, ao certo, quantos são os "ciganos portugueses", até por que ao longo dos séculos houve misturas com populações não ciganas, apesar da maior prevalência de práticas endogâmicas entre as comunidades ciganas... São 50 mil ? 100 mil ?...

Seria interessante que aparecessem aqui, no nosso blogue, testemunhos em primeira mão e na primeira pessoa de camaradas nossos, "ciganos"...

Concordo contigo: o tema é delicado, sensível, recomendo a consulta do sítio do Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural (ACIDI). Os "ciganos portugueses" não são diferentes, geneticamente, dos "outros portugueses"... Nem hoje ninguém fala já dos portugueses de origem judia,  berbere (moura) ou africana subsariana (descentes de escravos) ... Continuamos a falar dos "ciganos", das "comunidades ciganas", do "povo cigano", muitas vezes por más razões, já que são vítimas de discriminação e de estereótipos sociais, e têm maiores dificuldades de integração e de participação como cidadãos portugueses...

Pessoalmente, tenho reservas ao uso do conceito de "etnia" ou "minoria étnica" aplicado aos portugueses de origem cigana... Mas este é assunto que dá pano para mangas...Há uma "União Romani - União de Todos os Ciganos Portugueses" que tem tomado posições públicas sobre estas questões de "identidade", mas que não tem - ao que eu saiba - uma página na Net.

Por último, e não menos importante, ainda bem  que a Constituição da República Portuguesa consagra, no seu artigo 13.º,  o Princípio da igualdade de todos os cidadãos ("1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.  2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever  em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas,  instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.")...

Sabemos, contudo, que da lei fundamental à prática quotidiana vai, muitas vezes e em muitos casos, uma distância considerável, continuando nós a usar indevidamente (na comunicação social, nas nossas conversas, nos nossos escritos...) conceitos como "raça", por exemplo, "raça cigana"...

PS - O título do poste é da responsabilidade do editor. A expressão "o meu camarada cigano" é da autoria do Tino Neves.

Guiné 63/74 - P10565: Convívios (478): I Encontro, nos Açores, do Pessoal da CCAÇ 3414 - BII17 - Ilha Terceira, levado a efeito no passado dia 25 de Agosto de 2012 (Joaquim Carlos Peixoto)

1. Em mensagem do dia 20 de Outubro de 2012, o nosso camarada Joaquim Carlos Peixoto (ex-Fur Mil Inf MA, CCAÇ 3414, Bafatá e Sare Bacar, 1971/73) enviou-nos uma reportagem do último Convívio do pessoal da sua Unidade, levada a efeito na Ilha Terceira no passado dia 25 de Agosto de 2012:


I CONVÍVIO DA CCAÇ 3414 NO BII 17

ANGRA DO HEROISMO – ILHA TERCEIRA 

No ano passado manifestei a alegria que tive ao conseguir organizar o primeiro convívio da minha Companhia a CCAÇ 3414. Foi muito difícil a organização porque os soldados eram na maioria do Arquipélago dos Açores e apenas os graduados e alguns soldados eram do Continente.
Ultrapassando todas as dificuldades, conseguimos que este nosso primeiro encontro, realizado em Coimbra, fosse um êxito embora só tenham aparecido os camaradas do Continente.

Fiz o relato deste encontro e o camarada José Câmara escreveu:

“O ano passado a minha CCAÇ 3327 teve o seu primeiro convívio em Coimbra. Depois de amanhã parto para os Açores para outro convívio no BII 17… Deixa-me sugerir que tentes a experiência nos Açores. Não será fácil, mas digo-te que valerá a pena.”

Seguindo o conselho do camarada J. Câmara, formamos uma equipa encarregue de organizar o convívio de 2012 nos Açores, mais precisamente em Angra do Heroísmo onde estava sediado o BII 17. Começaram-se a fazer os contactos, e desde logo se notou uma certa dificuldade na deslocação aos Açores (a crise…).

Então organizou-se um primeiro convívio em Setúbal. Quem pensava que este convívio não teria a mesma emoção que o do ano anterior, enganou-se. Apareceram outros camaradas que não tinham ido no ano anterior. Foi grande a alegria no reencontro com estes novos camaradas.

Aproximava-se o dia do Convívio nos Açores. Partimos para o aeroporto das Lages. Como iria decorrer o reencontro com os soldados que já não víamos há 39 anos? A emoção começou logo à chegada ao aeroporto. Alguns camaradas estavam à nossa espera. Desnecessário será dizer que ninguém se conhecia. Mas passado o primeiro impacto, começou-se logo a rever os velhos tempos passados na Guiné.

Chegou finalmente o dia do Convívio. Logo de manhã dirigimo-nos para o quartel, antigo BII 17 e actual Guarnição 1. Fomos recebidos pelo Comandante Coronel Araújo e pelo Subcomandante Coronel Silveira. Começaram aqui os abraços com aqueles que iam chegando. Claro que cada um tinha que se apresentar. A falta de cabelo, as barrigas e a idade dificultavam o reconhecimento. Pessoalmente, fiquei muito emocionado ao rever principalmente os soldados do meu pelotão. Com um deles tive grande dificuldade com a pronúncia.

Começou-se com uma homenagem aos camaradas mortos na Guiné. Foi um momento emocionante. Após depositar uma coroa de flores no monumento que imortaliza os militares mortos daquela unidade, quando o ex-alferes Gomes (em representação do Comandante de Companhia) usou da palavra para recordar o Parreira e o Ribeiro (mortos em combate), viram-se as lágrima a correr pela face de quase todos.

Deposição coroa de flores

Foi um momento verdadeiramente penoso.

Recordou que aquando da morte do Parreira no rebentamento duma mina, os soldados não deixaram que o corpo fosse abandonado e durante dois dias acompanhou-nos até chegar ao nosso quartel.

Foto da praxe

Percorremos toda a área do quartel; as gargalhadas e as conversas enchiam o ar de vida. E assim de conversa em conversa, lá fomos seguindo para a quinta onde nos esperava um “repasto” altamente rico e requintado.

"ANTES MORRER LIVRES QUE EM PAZ SUJEITOS"

O ambiente era alegre. Todos queriam fazer ouvir a sua voz. Os organizadores olhavam atentos para que nada faltasse. E tudo corresse pelo melhor. Até a RTP Açores nos acariciou com a sua presença, fazendo uma reportagem sobre este encontro.

RTP Açores 

No decorrer do almoço fomos surpreendidos por um grupo musical açoriano que abrilhantou o convívio com os seus cantares.

Grupo musical "Os Se7e da Vida Airada "

O Subcomandante Coronel Silveira, que nos acompanhou na visita ao quartel e durante o almoço, usou da palavra elogiando o trabalho prestado ao País e o espirito de camaradagem e solidariedade que nos une. No final, como prova da sua simpatia e simbolizando a gratidão por todos nós, ofereceu-nos uma pequena lembrança. Foi lida uma mensagem do ex-comante de Companhia, Capitão Ribeiro de Faria, explicando o motivo da sua ausência.

Finda a refeição houve uma “Largada de Touros”, mas poucos foram os que participaram, pois o respeito que tinham pela sua integridade física era maior que pegar “o touro pelos cornos”.

Assim se passou um dia inesquecível, ficando o entusiasmo e vontade que no próximo ano possamos desfrutar de outros momentos iguais. Quero agradecer ao Caldeira e à sua simpática esposa, assim como a todos quantos contribuíram e trabalharam para que encontro fosse uma realidade.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10502: Convívios (477): 13.º Encontro do pessoal da CCS/BCAÇ 3852, dia 27 de Outubro de 2012 em Vila do Conde (Manuel Carmelita)

Guiné 63/74 - P10564: Bibliografia de uma guerra (65): As nossas Enfermeiras Pára-quedistas vão editar um livro, precisando de depoimentos daqueles que com elas tenham trabalhado (Miguel Pessoa)

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado) com data de 21 de Outubro de 2012:

Amigo Carlos
Sendo de há muito defensor das causas das nossas enfermeiras pára-quedistas e pretendendo elas fazer circular um pedido de colaboração aos camaradas que com elas tenham trabalhado, procuro ajudá-las enviando-te para publicação este texto que elas prepararam tendo em vista a eventual inclusão de depoimentos de terceiros no livro que as enfermeiras pára-quedistas pretendem editar sobre a sua vivência durante a guerra de África.

E este blogue, pela importância que já ganhou, visível no largo leque de amigos e camaradas que o acompanham, parece-me ser um óptimo local para divulgar este pedido.

Com um abraço
Miguel Pessoa


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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10389: Bibliografia de uma guerra (64): Heróis do Ultramar, de Nuno Castro (Maria Teresa Almeida)

Guiné 63/74 – P10563: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (40): O avô da Matilde, um vizinho especial

1. Mensagem do nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO), ex- Fur Mil da CCAÇ 675, (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 24 de Setembro de 2012: 

Boa noite meu caro amigo Carlos
Com votos que estejas em forma e preparado mais uma "mudança de hora" cumprimento-te com particular estima.
Mando-te uma longa história de Verão já em tempo de Outono. No calendário e na vida. Resultou de uma brincadeira de duas miúdas que na praia das crianças (São Martinho do Porto) fizeram aproximar dois avós. Com cabelos brancos e com memórias dos seus tempos da Guiné.

Segue em anexo o resultado final... de dois "rapazes" maiores de 70.

Um grande abraço de Alcobaça,
JERO


HISTÓRIAS DO JERO (40)

O avô da Matilde, um vizinho especial

Uma das vantagens de ser avô é poder conhecer através dos nossos netos pessoas que, em circunstâncias normais, nos passariam “ao lado”. Nas férias do mês de Agosto deste ano, em São Martinho do Porto, a minha neta Mariana começou a brincar com a Matilde e daí até conhecer o seu avô foi um instante.

Nas primeiras palavras que troquei com o Avô da Matilde adivinhei que estava na presença de um ex-combatente, o que se confirmou no momento seguinte quando trocámos nomes, idades e interesses…

Ambos tínhamos 72 anos e, no nosso passado, a Guiné dizia-nos muita coisa.

O Carlos Ferreira quando me disse que tinha 2 comissões na Guiné e tinha sido sargento-chefe paraquedista deixou-me …altamente interessado em cimentar a nossa relação. Ficou logo combinada uma conversa para mais tarde. E, no momento, em que passo ao papel estas linhas já tivemos duas ou três conversas, o que já permite fazer o seu B.I., com os seus dados militares.

Carlos Herculano da Silva Ferreira nasceu em Braga em 16 de Dezembro de 1940. Em 4 Maio de 1961, com quase 20 anos e meio, assentou praça na Escola do BA 3- Tancos. Frequentou o 14.º Curso de paraquedistas e foi “brevetado” em Julho desse ano.

Nos meses seguintes está envolvido em diversas ”diligências”, sendo colocado em Monsanto “para fazer guarda às antenas”, que tinham um papel importante nas comunicações com as nossas províncias ultramarinas. A guerra já tinha então começado em Angola (Fevereiro de 1961).

Regressa a Tancos em 1962 e em 1963 é mobilizado para a Guiné.

Viaja de Tancos para Bissau num “Skymaster”, integrado de um contingente de cerca de 50 paraquedistas.
Chega à Guiné em Junho de 1963 e em meados de Janeiro de 1964 integra as primeiras tropas da “Operação Tridente”, que invadem a Ilha do COMO.

Permanece no Como até ao final operação, que termina em 22 de Março. E continua na Guiné até Agosto de 1964.
Era então soldado-paraquedista e chefe de equipa.

Regressa à Metrópole e casa em Janeiro de 1965.
Frequenta em Tancos o curso de Sargentos.

Em Setembro de 1967, já então como Furriel, segue para Angola, onde cumpre mais uma comissão, até Novembro de 1969 (1.ª Companhia 121).

Mais um regresso a Tancos onde vai permanecer até inícios do ano de 1972.
Durante esse período colabora na instrução de 14 “cursos de combate”. Passam-lhe “pelas mãos” centenas de paraquedistas.

Em Fevereiro de 1972 segue de novo para a Guiné em rendição individual. Foi substituir o Furriel Pires, de Setúbal, morto em combate. Cumpre uma comissão muita dura, que vai prolongar-se até 28 de Março de 1974. Integra muitas operações, passando por Guidage, integrado no 2.º Pelotão da Companhia 121, onde tiveram 4 mortos. Regressa à Metrópole a tempo de “apanhar” a Revolução de Abril.

Estava colocado em Tancos quando, em 25 de Abril, é chamado para integrar um grupo de paraquedistas que, entre várias operações, têm “responsabilidades” junto da sede da PIDE e na prisão de Caxias.

Encontra então nessa prisão um alto funcionário da Pide que tinha conhecido em Bissau durante a sua última comissão na Guiné. Segue depois para a segurança do Aeroporto de Lisboa, onde está em serviço durante algumas semanas.

Mais um regresso a Tancos e, passado algum tempo, é chamado para próximo do General António Spínola.

Presta serviço na Presidência da República de 1974 a 1977. Em 1979 faz o Curso de Sargento-Chefe e é colocado em Monsanto. Passa à reforma em Fevereiro de 1988.

E, à distância no tempo, o que mais o marcou nas suas 2 comissões na Guiné!?

Em relação à primeira comissão ainda hoje recorda as más condições da sua estadia inicial em Bissau.

Foram 29 dias a dormir no chão debaixo de um alpendre com telhado de zinco. Foi um período em que quase deu em doido e que lhe valeram 10 dias de prisão… «Um cabo de serviço embirrou comigo, saltou-me a “tampa” e ofendi-lhe a mãe».
A “porrada” foi despenalizada mas não deixou de a apanhar.

«Depois a vida dá muitas voltas e um dia, durante uma operação no mato, tive que o carregar às costas.»

Depois, em Janeiro de 1964, fez parte do pelotão de paraquedistas que integrou os mais de 1000 homens que fizeram parte do contingente da Operação Tridente, para a recuperação da soberania da Ilha do Como, ocupada pelo PAIGC desde 1963.

Foram dias muito duros. À distância no tempo recorda um momento para o qual ainda hoje - tantos anos passados - ainda não encontra uma “boa explicação”. Já estava no Como há 2 ou 3 dias quando integrou uma “coluna” para entrar no “mato”.
Com a floresta à vista - deslocavam-se “em bicha de pirilau em cima do “separador” da bolanha - e as uns 30 metros da mata ouviu um barulho suspeito. «Era o 4.º da fila e vi um “vigia” deles saltar de uma árvore. Logo a seguir aparece um tipo, fardado de caqui, que nos faz um sinal de “alto”.» Logo após o salto do “vigia” ficámos no chão e pedimos pela rádio apoio de fogo de morteiro. O inimigo desapareceu e as nossas tropas recuaram.

Que quis dizer aquele gesto de “alto” !?
Não quiseram fazer fogo, não queriam guerra? Tinham a “surpresa” do lado deles e não a aproveitaram. Ainda hoje, 48 anos passados, a cena não se apagou da “sua cabeça” e o enigma mantém-se.

Em relação à “Operação Tridente” não se pronuncia pois a sua crónica está contada e ao tempo - não teve tempo nem espaço, nem informação - que valha a pena acrescentar mais alguma coisa ao que está escrito e …já passou à história.

Quanto à segunda comissão, que como já foi referido cumpriu em rendição individual, prolongou-se de Fevereiro de 1972 até 28 de Março de 1974.

Das muitas operações em que esteve envolvido recorda especialmente a invasão do Cantanhez. «A minha Companhia estava em Teixeira Pinto e veio para Bissau para preparar a operação. Na data prevista fomos hélio-transportados até à orla da Mata do Cantanhez. Fui o primeiro militar do primeiro “heli” a saltar. Era então 2.º Sargento e o meu chefe directo era o Alferes Silva, que é hoje Coronel. A nossa missão consistia em limpar a área para se montar um aquartelamento. Estivemos vários dias na zona e fomos atacados durante uma noite. Ao fim de 3 dias o “Caco Baldé” aparece lá e vai falar com o Comandante de Companhia, o Capitão Augusto Martins, que chegou a General.»

Mandaram-me chamar ao Comando porque o General Spínola queria conhecer a mata. «Foi comigo e fomos sempre a falar. No final da visita deu-me os seus parabéns e disse-me que tinha gostado de me conhecer.»
«Foi para mim um dia e uma ocasião muito especial. Que não mais esqueci.»

Ficámos um mês no Cantanhez. Tempos depois, numa operação na zona de Bambadinca, fomos sobrevoados por um helicóptero.
Para meu espanto o “héli” baixou e veio aterrar perto dos meus homens.

O “Caco” vinha a bordo e, quando me aproximei, perguntou-me se estava tudo bem e se era preciso alguma coisa. Reagi de imediato e pedi-lhe: «Meu General vá-se embora, que me dá cabo da operação.»
- Se precisares de alguma coisa chama. Acenou-me com o bengali e o “héli”afastou-se.
 «Nunca mais esqueci o momento».

«Deixo para o fim a recordação de uma ocasião muito dolorosa e marcante.
Um dos meus homens – o 1.º Cabo Melo – ganhou o Prémio Governador da Guiné e teve direito a um período de férias no Continente. Podia ter vindo para Bissau para apanhar o avião para Lisboa mas fez questão de entrar numa operação comigo, porque sabia que fazia falta. Nessa operação foi morto em combate. Em Junho de 1973. 
Foi o maior desgosto da minha vida de militar. Andei 8 dias bêbado.»

À distância no tempo… o Avô da Matilde emociona-se e cala-se.
Mais tarde diz-me que lhe fez bem falar.


Daqui para a frente sempre que for a São Martinho do Porto vou tocar à campainha do apartamento do Sargento-Chefe Carlos Ferreira. Um vizinho especial.

JERO
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 – P9045: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (39): O 1º Cabo Cond Auto/ Rádio VELEZ

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10562: Efemérides (111): 3 de Outubro de 1968 - Já lá vão 44 anos desde que deixei Lisboa a caminho de Bissau (Carlos Pinheiro)

1. Mensagem de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2012:


Já lá vão 44 anos! 

Como recordar é viver, há dias que nunca esqueceremos, e o dia 23 de Outubro de 1968 é um desses dias.

Era meio-dia em ponto quando o UÍGE silvou várias vezes a querer dizer que estava pronto para mais uma viagem.

O pessoal já tinha embarcado ao som de marchas militares. Os cumprimentos oficiais, da praxe, já tinham sido feitos. As escadas já tinham sido retiradas. O cordame também já tinha sido recolhido. E os dois rebocadores que o haviam de levar até ao meio do Tejo já estavam a postos.

No cais a multidão ainda era imensa. Os lenços acenavam das varandas da gare a corresponder aos lenços que das amuradas do barco também acenavam. Eram as despedidas.

Navio Uíge - Com a devida vénia a http://navios.no.sapo.pt/

A banda militar estava a acabar os seus acordes e o UÍGE lá se encaminhou para o melhor local do Tejo para iniciar mais uma viagem de 5 dias até às terras da Guiné. Depois foi o passar sobre a Ponte Salazar a caminho do Oceano e tudo isso pareceu muito rápido. Depois foram cinco dias de mar e céu, com mais ou menos acompanhamento dos chamados peixes voadores, a passagem relativamente perto das Canárias e a chegada ao largo de Bissau a 28 de Outubro.

A Ponte Salazar em 1966 - Com a devida vénia a http://www.skyscrapercity.com/

Foram só cinco dias, mas dias inesquecíveis. E como a maioria viajou nos porões, nessas grandes caves fechadas de onde só se via a luz do dia pela buraco por onde entrávamos, nem vale a pena dizer nada sobre essas “maravilhosas” acomodações.

Foi um bom princípio, sem dúvida, para o que nos estava guardado. Depois, bem depois, foram vinte e cinco meses e dez dias, passados todos naquela terra quente que, ao fim deste tempo todo, nunca mais consegue encontrar a paz a que tem direito e de que tanto precisa.

Carlos Pinheiro
23.10.2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10450: Efemérides (110): Leiria homenageou os seus combatentes no passado dia 23 de Setembro de 2012 (José Marcelino Martins)

Guiné 63/74 - P10561: O PIFAS de saudosa memória (16): Compactos de gravação, Parte II: excerto áudio de "Noite 7" (emissão especial aos sábados) (Garcez Costa, ex-fur mil, 1970/72, ex-radialista)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2011:

Queridos amigos,
“Alvorada em Abril” é um testemunho determinante para se entender o desencadeamento das operações que levaram ao derrube do antigo regime.
Otelo Saraiva de Carvalho rememora acontecimentos militares e descreve o que viu na Guiné, teatro de operações que teve um papel crucial na génese do Movimento dos Capitães.
A tal propósito, deixa-nos as suas impressões sobre os acontecimentos de 1970 a 1973, naturalmente controversos mas com uma importância soberana.

Um abraço do
Mário


Otelo Saraiva de Carvalho e a Guiné

Beja Santos

"Alvorada em Abril "é o título das memórias de uma figura lendária do 25 de Abril em torno da história portuguesa dos anos 50 aos anos 70, culminando com a concepção e execução do derrube do regime chefiado por Tomás e Caetano. Temos nestas memórias o que para ele foi determinante, no seu percurso pessoal e no seu modo de interpretar os acontecimentos contemporâneos, a génese e o triunfo do Movimento dos Capitães e como este desaguou no 25 de Abril ("Alvorada em Abril", Editorial Notícias, 4ª Edição, 1998). A sua terceira e última comissão foi na Guiné, pelo que tem todo o sentido fazer o registo das suas lembranças e observações.

Ele parte para a Guiné em Setembro de 1970 e logo recorda que se encontrava em Nova Lamego, em 22 de Novembro, quando soube da invasão da Guiné-Conacri. A notícia deixou-o estupefacto, ele que trabalhava em Bissau de nada sabia e acrescenta que posteriormente veio a saber que o assunto já era discutido pelas mulheres dos oficiais nos cabeleireiros da Baixa de Bissau antes de se ter realizado. Nessa noite, enquanto decorria a operação, houvera vigília em Bissau, Spínola aguardava ansioso das notícias da missão rodeado dos seus leais colaboradores, tenente-coronel Robin de Andrade, major Firmino Miguel e major Jorge Pereira da Costa. E adianta: "Ainda hoje desconheço quais seriam, exactamente, os objectivos da missão, mas parece não restarem dúvidas de que, entre eles, estariam os assassínios de Amílcar Cabral e de Sékou Touré, o silenciamento da Rádio Conacri, a destruição de sede do PAIGC, a destruição de aviões na base aérea local e a libertação de prisioneiros de guerra portugueses retidos nas prisões da cidade".

Dá-nos em água-forte um retrato de Spínola que culmina com uma apreciação corrosiva: "Medularmente vaidoso e autoritário, sempre o reconheci totalmente incapaz de se atribuir o mínimo erro ou de debitar a mais suave autocrítica. Sendo detentor da razão e da verdade absolutas, era com displicência e sem remorso que liquidava o bode expiatório escolhido para arcar com as responsabilidades de qualquer falhanço pessoal... demagogo em extremo nunca entendi com clareza se as qualidades que nele admirava era autênticas e humanas ou se cultivadas com esforço a fim de construir artificialmente uma personagem".

Descreve o seu trabalho no QG e alude mesmo o nome de oficiais milicianos, da extrema-direita, que mais tarde acompanharão Spínola na aventura do MDLP. Colocado na Subsecção de Operações Psicológicas, assistiu ao exibicionismo propagandístico é à construção de imagem que Spínola quis criar em Portugal e internacionalmente, o que ele procurava era sugerir um extraordinário surto de progresso na Guiné com a sua governação e minimizar os êxitos no combate do PAIGC. Narra peripécias com jornalistas internacionais, certames de propaganda, a realização de Congressos do Povo. Refere os efectivos militares, do lado português e os do PAIGC, as argumentações de aliciamento, de um lado e do outro. A narrativa não é cronológica, dá saltos, vai até ao futuro repentinamente, conta histórias passadas, de supetão. Está-se a falar da propaganda do PAIGC, seguem-se referência ao seu programa político, destaca-se a figura de Rafael Barbosa como agitador, que foi preso em Março de 1962, tendo permanecido encerrado num cubículo durante quase 8 anos, onde foi espancado e torturado. Em Agosto de 1969, Spínola ordenou que fosse libertado. Tempos mais tarde, Rafael Barbosa manifestará publicamente o seu arrependimento por ter aderido à luta armada. Em 1977, será julgado em Bissau pelo PAIGC pelo crime de traição ao partido e ao povo e ser-lhe-á comutada para 15 anos de prisão a pena de prisão perpétua a que fora inicialmente condenado.

Já em 1973, o autor descreve a chegada dos mísseis terra-ar Strella e depois depõe sobre o controverso "I Congresso dos Combatentes do Ultramar". Para Otelo, os organizadores eram antigos oficiais milicianos com ideologia de extrema-direita que garantiam publicamente ao regime a entrega devotada dos oficiais das Forças Armadas à nobre missão de, através da continuidade da guerra colonial, assegurar a perenidade da Pátria. Os oficiais do quadro ter-se-ão apercebido da essência da manobra e reagiram. Almeida Bruno terá sido quem mais actividade desenvolveu, promovendo uma resposta concertada. Para os oficiais na Guiné já não subsistiam dúvidas que o Governo procurava tirar dividendos da "entusiástica adesão dos patrióticos combatentes do Ultramar". E escreve: "Enquanto em Lisboa Ramalho Eanes, Hugo dos Santos, Vasco Lourenço e outros encabeçavam um vasto movimento de protesto, eram recolhidas na Guiné 400 assinaturas de oficiais do QP com a mesma intenção, subscrito em primeiro lugar por oficiais possuidores das mais elevadas condecorações”. O autor inscreve estes acontecimentos num processo mais vasto de descontentamento das Forças Armadas que veio a ser ateado pelo Decreto-Lei nº 353/73, nova peça da bola de neve que irá conduzir à queda do regime.

Passando para outro campo de considerações, Otelo de Saraiva de Carvalho fala dos acontecimentos de Guileje, em Maio de 1973, quando o major Coutinho e Lima mandou evacuar o aquartelamento, para tal escrevendo: "Para o major Coutinho e Lima o motivo era suficientemente forte: incontável número de flagelações da artilharia inimiga tinha destruído quase por completo as instalações aquartelamento e o moral do pessoal. Apesar dos pedidos insistentes e aflitivos, o apoio aéreo não fora concedido, no receio de que a acção fosse um chamariz para o abate de mais alguns aviões. Ao ter notícia da evacuação, Spínola não viu outra alternativa senão ordenar a prisão de Coutinho e Lima e mandar instaurar-lhe um auto de corpo de delito por crime essencialmente militar de cobardia: abandono de praça militar ao inimigo". É neste contexto que surge Manuel Monge, graduado em major, foi sobre os seus ombros que caiu a responsabilidade de aguentar a tragédia de Gadamael.

Estamos praticamente no final na sua narrativa referente à Guiné. Marcelo Caetano decidira, em 1972, apoiar a nomeação de Américo Tomás para novo mandato. Spínola considerava que gozava de alguns apoios muito influentes do panorama político e financeiro português (Azeredo Perdigão, Jorge de Melo, Manuel Vinhas, António Champalimaud). Em Agosto de 1973, Spínola regressa a Portugal, é promovido a general de 4 estrelas e nomeado vice-chefe do EMGFA. Spínola mudara, observa o autor. Fizera um longo, longo percurso, fora administrador e colaborador do boletim da Legião Portuguesa, no início da carreira; baseado na sua experiência guineense, sentia-se agora apto a defender o federalismo para contornar uma guerra não susceptível de ter solução militar.

Em Setembro de 1973, Otelo Saraiva de Carvalho participa pela última vez numa reunião do Movimento de Capitães, em Bissau. E escreve: "Exactamente três meses depois da minha chegada a Bissau seguirei para a metrópole em fim comissão. Recebo a incumbência de, em Lisboa, de me integrar no Movimento e ser o porta-voz das preocupações que assaltam os camaradas no TO da Guiné". Preocupações que ele desenha num quadro de tintas carregadas: é previsível que o PAIGC irá proclamar a independência do território. Nas reuniões do Movimento dos Capitães em embrião já se debate o que irá mudar com essa independência reconhecida pela ONU. E escreve: ”O Governo Central não proporcionará às Forças Armadas no TO da Guiné qualquer apoio, provocando a sua derrota calculada para as transformar em bode expiatório da perda da colónia como acontecera antes com o Estado da Índia, e canalizar todo o esforço militar para a defesa de Angola.”

E tece o seu comentário sobre o que se estaria a passar na mente de Marcelo Caetano:” Em entrevista concedida por Marcelo Caetano no Brasil, em 1977, a um jornalista português, o antigo Presidente do Conselho confirma que tencionava na verdade provocar a queda da Guiné através de uma derrota militar para, salvando a face do regime, reforçar a todo o custo a defesa de Angola por tempo ilimitado. Não posso acreditar que Spínola não estivesse perfeitamente consciente de todo este drama. Considero, pelo contrário, que essa seria a razão fundamental que o teria levado a não regressar para concluir o sexto ano do seu mandato. Ele não poderia nunca, após mais de cinco anos de intensa actividade desenvolvida na Guiné e que era para si motivo de orgulho e honraria, transformar-se no comandante-chefe de umas Forças Armadas enxovalhadas e derrotadas em consequência da ineficácia do regime.”
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8209: Notas de leitura (235): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10560: In memoriam (131): Nelson Fontes Ribeiro, ex-Alf Mil do COT 1 (Guiné, 1970/71)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Picado (ex-Cap Mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 23 de Outubro de 2012:

Amigo Carlos
Tomei agora conhecimento de que na quinta ou sexta-feira passada faleceu Nelson Fontes Ribeiro, ex-Alferes Mil que esteve na Guiné em 1970-71.

Não sei a que Unidade pertenceu, pois que na minha Agenda apenas conta um apontamento que recolhi em Bissau, não sei se nos finais de 1970 ou já em 1971 que assinala: "Alf Mil Fontes Ribeiro COT-1 Paúnca sul esq. Pirada SPM 5668".

Este apontamento resulta com toda a certeza de o ter encontrado algures em Bissau e de já o conhecer, pois ele casou com uma "moça" de Ílhavo onde viveu e presidiu à Comissão Administrativa que geriu a respectiva Câmara após o 25A74.
Vivia em Aveiro e não sei se teve conhecimento deste Blogue. No entanto, na perspectiva de que algum camarigo pertencesse à sua Unidade ou alguém que o tivesse conhecido, resolvi enviar esta notícia, já que é mais um dos nossos que partiu.

Abraço
JPicado


2. Comentário de CV:

Mais um camarada nos deixou. É lugar comum dizer que cada vez somos menos, mas é uma verdade indesmentível.

À família enlutada, os camaradas do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné apresentam os mais sentidos pêsames.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10516: In memoriam (130): Francisco Parreira (1948-2012), ex-1º cabo mec elect auto, Grupo de Artilharia nº 7, Bissau, 1970/72:o "pai Chico", um "herói anónimo" (Filomena Parreira)

Guiné 63/74 - P10559: Do Ninho D'Águia até África (20): Ida à capital da Província (Tony Borié)

1. Mais um episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (20)

Ida à capital da Província

O trajecto entre a capital da província e o aquartelamento, onde o Cifra está estacionado, são mais ou menos setenta quilómetros de estrada. Pelo menos até à data, não houve minas, ou qualquer ataque às forças militares, dizem que não interessa aos guerrilheiros, pois esta via, é um forte meio de circulação e abastecimento, durante a noite, para as suas bases no interior, pelo menos, é o boato que por aqui corre.

Esta estrada atravessa um grande rio, com uma ponte em cimento, mais seis pântanos, com duas pontes em madeira, e nos restantes, transita-se com alguma água, na época das chuvas, e quase seco na época quente. Todos estes lugares estratégicos, estão mais ou menos guardados por militares durante o dia. De noite, dizem que a circulação é livre.

O Cifra está no seu dia de folga. Levanta-se, vai tomar banho à parte sul do aquartelamento, onde se fizeram três furos de água, que vem quente, muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida. Há uma fila de bidons, com água do dia anterior, que está morna. Toma banho, nú, veste roupa lavada, incluindo umas meias rotas na ponta, mas que dobrava e ficavam perfeitas, calça as botas de pano, já um pouco coçadas.

Vem ao refeitório, levanta a mão, em sinal de olá ao “Arroz com pão”, que é o cabo do rancho, que lhe estende uma caneca de café negro, sem açúcar, e lhe diz:
- Toma lá, para ver se a podes “curtir” mais depressa.

O Cifra, nem lhe responde, mas o “Arroz com pão” devia se referir a algum excesso de álcool, mas adiante, não vamos perder mais tempo com pormenores, pois se os aprofundarmos, de certeza que vão envergonhar um pouco o Cifra, bebe a caneca do café e coloca um cigarro “três vintes” na boca. Era uma sexta-feira, levanta a cabeça, olha em frente, vê o carro dos doentes, abre mais um pouco os olhos, em sinal de alguma alegria, e logo pensa:
- Que bom passeio à capital.

Se melhor pensou, melhor o fez. Dirige-se ao cabo enfermeiro, e pergunta:
- Ouve lá, oh “Pastilhas”, há lugar no carro dos doentes?

“Pastilhas”, era o nome com que baptizaram o cabo enfermeiro, pois muitas vezes fazia de doutor, e só receitava pastilhas. Qualquer militar que fosse à enfermaria, com dores numa perna, num braço, na barriga, na cabeça, nos dentes, ou qualquer outra enxaqueca, o curativo era o mesmo, e dizia:
- Toma estas pastilhas, de quatro em quatro horas, com água, e deixa de beber álcool, por uns dias, se não morres.

Bem, mas em resposta ao Cifra, ele, conhecedor da tramóia, responde-lhe:
- Eu não sei nada, até nem sou de cá.

O Cifra, salta para a viatura, onde já se encontrava o Setúbal, na mesma situação. Ruma à capital.

O carro dos doentes fica no hospital que está situado quase à entrada da cidade, para quem vem do interior da província, e regressa às cinco da tarde.

No hospital, o Cifra e o Setúbal, arranjam boleia em qualquer viatura militar que os leva até à avenida principal, onde ao fundo havia o palácio do governador, (foto ao lado), e que era o ponto de referência e de encontro, quando alguém se perdia, ou por qualquer circunstância se separava do grupo, era ali que se encontravam de novo, para regressarem às suas unidades militares. A polícia militar, que estava estacionada no forte da “Amura”, andava sempre por ali, mas quando via militares de farda amarela, grandes bigodes, com alguns embrulhos nas mãos ou debaixo dos braços, sabiam que eram militares que estavam de passagem e tinham vindo do interior da província, e faziam “vista grossa”.

Na cidade, dão uma volta pelo mercado. Cheira a tabaco seco, carne fresca e coca. Há mangos e papaia, fruta de caju, amendoim verde, a que chamam mancarra, bananas, batata doce, peixe seco, mandioca, balaios de arroz, aguardente de palma vendida ao púcaro, macacos, periquitos e outras aves exóticas, pano de diferentes cores vendido à peça, colares e bujigangas, figuras em madeira representando animais, há alguns gatos empoleirados no muro do mercado, assim com alguns cães que circulam por ali, com o rabo entre as pernas, e outros deitados próximo das bancas onde se vende carne fresca, que de vez em quando dão ao rabo sacudindo as moscas e outros insectos, moscas e insectos esses, que saltam dos cães para cima da carne fresca, e mais um amalganhado de coisas sem fim. Saem do mercado meio tontos.


Descem a avenida e passeiam à beira do rio, é altura da maré baixa, é só lama, mesmo assim alguns barcos em madeira, pintados com cores garridas, baloiçam numa parte do rio, onde há alguma água, dizem que é o cais de embarque Pigiguiti, ou coisa parecida, e é daí, que partem barcos para as ilhas de Bolama, também vêm a fortaleza de S. José da Amura, (foto acima) que próximo, tem uma estátua de alguém que se notabilizou, por atravessar mares nunca antes navegados, frase esta que o Cifra aprendeu na escola primária da vila, onde pertencia a sua aldeia do Ninho d’Águia, lá ao fundo vêm o ilhéu do Rei, assim como o cais de embarque, onde alguns navios pequenos conseguem atracar na maré cheia. Há alguma azáfama de pessoas indo e vindo de um barco, que neste momento está atracado, mas pela água que existe em redor do cais, concerteza que o seu casco está em contacto com a lama. Uma garotita africana, quase nua, só com um trapito a cobrir-lhe parte do corpo, com a cara suja, o dedo na boca, movendo os lábios, dando a impressão que estava a comer baba e ranho, que lhe vinha do nariz, aproxima-se com a mão estendida e diz mais ou menos isto:
- Patacão pra comprá bianda.

Levou algumas moedas, e começou a correr em direcção, a quem possívelmente era a mãe, que estava um pouco distante, em frente a um balaio de mancarra torrada, que vendia ao púcaro. Mas voltando à beira do rio, alguns africanos procuram qualquer coisa na lama, que logo apanham e põem numa saca, que trazem à cinta. Não sabem o que é, mas também não interessa.

A brisa é boa, e o lugar até se torna agradável.

Passam duas raparigas africanas, com um vestido às flores, que lhe cobre quase o corpo todo, não parece um vestido, parece mais uma peça de pano inteira em que vão enroladas, mas muito justa ao corpo, com outra tira de pano cor de rosa, amarrado à cinta, na cabeça também levam um pano amarrado, da mesma cor da cinta, duas argolas de um metal com algum brilho caiem das suas orelhas, os braços vão descobertos, tendo algumas pulseiras feitas de missangas com diversas cores, ao pescoço também levam uns colares de missanga que lhe fazem sobressair o rosto, que tem uma cor preta com a tonalidade do chocolate, mas muito brilhante, onde sobressaiem uns olhos que denunciam qualquer coisa como um mistério, e nos pés levam umas sandálias rasas, de plástico, brancas. Caminham, bamboleando o corpo, talvez sabendo que são observadas, que ao passarem pelo Cifra e o Setubal, olham de lado, com um olhar algo comprometedor.

O Cifra assobia, um assobio um pouco provocativo. Elas voltam-se e sorriem, provocativas, também. O Setúbal, segura por um braço o Cifra, que tentava avançar para as raparigas e diz-lhe, como se fosse uma ordem:
- Tem juízo homem, não te chegou o problema com as guerrilheiras, lembra-te que andas na guerra!

Sobem a rua que vem do rio, entram numa transversal e páram em frente a um estabelecimento, que era a casa Gouveia, que tinha na montra vários objectos, entre os quais uma máquina fotográfica que ficou nos olhos do Cifra. Entram, perguntam o preço, o Cifra não tinha dinheiro suficiente, mas o Setúbal, vendo a cara do Cifra, diz-lhe:
- O nosso dinheiro junto, tirando este para comer, ainda sobra para a tua máquina, portanto compra.

O Cifra comprou, parecendo um miúdo a quem dão o seu primeiro brinquedo. Continuam caminhando e entram numa pequena rua também transversal, que vai dar à taverna do Transmontano, pois é assim que lhe chamam.

É uma casa de um só piso, metade é casa e a outra metade é um grande cabanal, com mesas e cadeiras ao comprido. É aí que os militares, quando vêm à capital, normalmente comem. A cozinha, ao lado do cabanal, coberta com folhas de zinco, formando duas abas, tem três fogões, feitos em adobe, cada um tem um grande buraco em cima, de onde sai forte labareda. Três africanas, bastante fortes na estatura, mexem-se rápido em frente aos fogões. Uma enorme rima de lenha, ao fundo do cabanal, completa o cenário.

O transmontano e a esposa, também bastante forte na estatura, estão ao balcão a dirigir o serviço. Não tiram os olhos das duas filhas, jeitosas e morenas, que andam numa azáfama, a servir nas mesas. Um pequeno pormenor, que não passa despercebido, têm duas espingardas caçadeiras penduradas atrás do balcão. A comida é boa, com sabor português/africano e muito gindungo, a bebida normal é a cerveja, que se bebe à temperatura ambiente.

Lá para o fim da tarde passaram pela “Tasca dos Trovadores”, (a que o Curvas, alto e refilão, na sua reles linguagem, dizia que era a tasca dos paneleiros), pois era assim que chamavam a uma taverna, que ficava para os lados do quartel da Marinha, que vendia a melhor cerveja gelada da capital, onde o “Zé Manel”, um fuzileiro ali estacionado, ajudava no balcão e sabia tirar um “fino” como ninguém. Era quase uma passagem obrigatória de todos os militares que visitavam a capital da província, vindos do interior, onde os militares e não só, que se julgavam cantores, tinham oportunidade de o mostrar, pois havia um palco com microfone ligado e tudo.

No regresso, dizia o Cifra para o Setúbal:
- Parece que não andamos na guerra.

O Setubal, ri-se, levanta os olhos e diz:
- Fuma o cigarro e cala-te, pois daqui a umas horas estás de novo no aquartelamento, circundado de arame farpado.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10549: Do Ninho D'Águia até África (19): Furriel Roger, o Herói (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10558: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (4): 5.º episódio: Partida para o CTIG em Agosto de 1965

Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > Partida para a Guiné, em 18 de Agosto de 1965
Foto: © Veríssimo Ferreira (2012). Todos os direitos reservados


1. Em mensagem do dia 18 de Outubro de 2012, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), mandou-nos o 5.º episódio da sua odisseia militar, correspondente aos melhores 40 meses da sua vida; diz ele e nós acreditamos.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

5.º episódio - Partida para o CTIG, em 18 de agosto de 1965

Em Abrantes, estava mais perto de casa, o que me agradou. Lá se foi passando o tempo e coube-me ajudar o Oficial instrutor, ensinando novos militares. Porque alguns de nós, os recentes cabos milicianos, estávamos já a ser mobilizados, fui-me preparando. Contudo, tal mobilização só veio a acontecer, quando já houvera prestado 20 meses de tropa.

Entretanto em Abril de 1965 e "por equivalência a seis meses consecutivos em Unidade Operacional, condição a que satisfaz para promoção ao posto imediato" (sic) , fui promovido a Furriel Miliciano. Estava então em Tomar a preparar outros jovens, que afinal acabaram por ser os que,  fazendo parte da Companhia de Caçadores 1422, embarcaram comigo para a Guiné, em 18 de Agosto.

Quando digo "embarcaram comigo", em vez de "embarquei com eles", deixem que explique: Quer o Comandante, quer os restantes Oficiais e Sargentos, haviam partido uma semana antes, de avião, ficando apenas connosco, um senhor Sargento-ajudante, pessoa com alguma idade e peso e que era chefe de secretaria. A ele pertenceria comandar-nos antes do embarque, no desfile perante as autoridades... perante os nossos familiares presentes.

No último momento, nomeia-me para o fazer. Tamanha responsabilidade, fez-me tremelicar... mas ordens não se discutem.

COMANDEI!... Correu lindamente, marchámos com garbo e eu nunca mais esqueci essa, que considero a mais subida honra que o exército me proporcionou.

Lá chegámos a Bissau e novas emoções apreendemos... novos cheiros... aquela paisagem... o bulício, mas certos dos perigos a enfrentar. Na Amura ficámos e sem local ainda definido para o futuro, foram-nos treinando, "permitindo-nos" acompanhar algumas operações em curso no mato e em situações de combate.

Assim, passei por Bissorã, Mansabá, Cutia e Mansoa, mais ou menos uma semana em cada. Até que e em data que não consigo precisar, mas que julgo ter sido em meados de Outubro, mandam-me e apenas com a minha secção (nove homens) para o Pelundo. Zona calma e a cerca de doze quilómetros de Teixeira Pinto e vinte e tantos de Bula. Tinha um jeep e nele me deslocava, ora para tomar café aqui, ora além. Tais actos, poderiam ter sido "a morte do artista".

Não tive problemas, sabe-se lá porquê, mas a partir de Janeiro de 1966, a coisa tornou-se deveras perigosa. Porque será que não me comeram vivo? Seria porque estávamos protegidos pelo "homem grande" em casa de quem aquartelávamos, na tabanca? Seria que a nossa missão de lhe guardar o cofre e o recheio deste movimentou influências? Ou seria que tinham mesmo medo de nós? Intrigante e de tal forma, que ainda hoje passados 47 anos, não encontro respostas.

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Um dia antes de abandonar aquele local, chegou um pelotão que me substituiria, e fui informado para onde iria, juntar-me à CCAÇ a que pertencia, mas fui convidado para que nessa noite desse um salto a Jolmete, em visita de cortesia.

Chegados que fomos e estando a jantar opiparamente... eis senão quando... lá vem disto:
- Pela primeira vez o quartel é atacado e estragaram-me o repasto.

BOLAS... BOLAS... BOLAS.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10543: Os melhores 40 meses da minha vida Veríssimo Ferreira) (3): 4.º episódio: Passagens por Amadora, Lamego, Tancos e Lisboa

Guiné 63/74 - P10557: Agenda cultural (224): Lançamento do livro póstumo “Golden Gate - Um quase diário de guerra”, de José Niza (1938-2011), ex-alf mil médico em Angola (BCAÇ 2877, 1969/71) (Carlos Pinheiro)




1. Mensagem, de 18 do corrente, do nosso camarada ribatejano Carlos Pinheiro, sempre atento, mandando-nos mais um "recorte de jornal":

Assunto: "Golden Gate - Um quase diário de guerra" é "um livro de memórias da guerra colonial, da autoria do médico e compositor José Niza

O Mirante, semanário regional > 18 de outubro de 2012 > "Golden-Gate", de José Niza, apresentado em Santarém 

[,Reprodução aqui, com a devida vénia]

O livro de José Niza  [, lisboa, 1938- Santarém, 2011,] (*)  é apresentado no dia 25 de Outubro, em Santarém, na livraria Leya-Caminho. A iniciativa está marcada para as 18h30 e o cantor Manuel Freire foi convidado para falar sobre esta obra póstuma do compositor, poeta, músico, médico e político, falecido no dia 23 de Setembro de 2011.

"Golden Gate - Um quase diário de guerra"  [Lisboa, D. Quizote, 2012] é "um livro de memórias" de uma guerra colonial que "aconteceu durante 13 anos", escreveu o autor no prefácio. Os textos ali reunidos resultam da correspondência diária que manteve com a mulher durante o período em que esteve "naquele mato de Angola, húmido e quente", no aquartelamento de Zau Évua, entre 1969 e 1971. 

Das cartas enviadas à mulher, foram retirados extractos que são apresentados nesta obra como páginas de um suposto diário. José Niza fora destacado para o contexto da guerra no Norte de Angola como médico. "Uma guerra onde o médico e o capelão eram os terapeutas do espírito mais ou menos primário e sempre psicologicamente descompensado, daqueles mancebos que, por exclusivas razões de idade, foram incumbidos de defender a Pátria contra o fluir da História". Segundo afirma, "na consulta havia sempre mais gente que na missa", a única excepção era a missa de Natal.

Apesar da dureza das condições que enfrentou, José Niza nunca perdeu o sentido de humor. Numa carta com data de 10 de Dezembro de 1970, dá conta dos presentes de Natal que os militares receberam, enviados pelo Movimento Nacional Feminino (MNF): "Um pacote de amêndoas, o que dará uma por cada soldado; meia dúzia de lâminas de barbear; o que dará uma lâmina por cada caserna; e ainda meia dúzia de pastas de dentes, o que só dará para os desdentados". "Apeteceu-me escrever à Cilinha [Cecília Supico Pinto, líder do MNF] a agradecer a amêndoa que me coube. E, como deixei crescer a barba, vou oferecer a minha parte da lâmina a quem necessitar".

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Notas do editor:

Último poste da série > 15 de outubro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10533: Agenda cultural (223): Lançamento do livro "Palavras de um Defunto... Antes de o Ser", de Mário Tito, dia 27 de Outubro de 2012, pelas 16h00, na Livraria - Bar Les Enfants Terribles, em Lisboa



José Niza
(*) José Niza (1938-2011) - Breve nota biográfica


(i) Nasceu em Lisboa e morreu em Santarém;

(ii) Foi médico, poeta, letrista, músico, compositor e deputado (**);

(iii) Estudou em Coimbra, onde se matriculou em medficina em 1956; em 1961 fundou a Orquestra Ligeira do Orfeon Académico de Coimbra, conjuntamente com José Cid, Proença de Carvalho, Joaquim Caixeiro e Rui Ressureição; em Coimbra conheceu também músicos como José Afonso e Adriano Correia de Oliveira (de quem será mais tarde produtor);


(iv) Licenciado em Medicina em 1966 pela Universidade de Coimbra, especializou-se em  psiquiatria, especialidade que exerceu em Coimbra;

(iv) Foi alferes miliciano médico no norte de Angola (1969/71), integrando o BCAÇ 2877;
(vi) Em 1971 passa a ser responsável pela produção da editora Arnaldo Trindade, Lda. (Discos Orfeu); nessa qualidade produziu diversos trabalhos de cantores portugueses, como Fausto, Carlos Mendes, Paulo de Carvalho, Vitorino, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira;

(vii) Foi co-vencedor de quatro Festivais RTP da Canção (1972, 1974, 1976 e 1987); é o autor da letra da canção E Depois do Adeus (que Paulo de Carvalho levou ao Festival da Canção e foi a "senha" na rádio para o 25 de Abril de 1974);

(viii) Foi militante e deputado do Partido Socialista, no pós-25 de abril;


(ix) Os direitos de autor do  livro de memórias "Golden Gate", publicado a título póstumo  (Lisboa, D. Quixote, 2012), foram oferecidas pela família à ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas.

Crédito fotográfico: página Arnaldo Trindade

(**) Escreveu ele em texto autobiográfico :(...) "À excepção da minha mulher e da opção pela Medicina, tudo o resto veio ter comigo, paulatinamente enriqueceu e comandando a minha vida. Nunca me passou pela cabeça ser deputado, ou director de programas da RTP, ou escrever cerca de 300 canções, ou estar dois anos numa guerra. Por tudo isto agradeço à vida o que me deu. Não tenho livro de reclamações a não ser para lutar pelos direitos dos pobres, dos humildes e para que haja mais justiça e solidariedade em Portugal.
Ler mais: http://visao.sapo.pt/jose-niza-1938-2011-sete-vidas=f623989#ixzz2A75AZORW