Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCS/BCAÇ > Um enfermeiro "rigoroso e... despachado"...
1. Continuação do texto publicado anteontem, da autoria do Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861,
Bula e
Bissorã, 1969/70) (*) [, foto atual à direita,]:
Já era noite fechada em Bula quando o Teixeira, meu soldado maqueiro, veio ao bar dizer-me:
– Furriel, está uma mulher à porta de armas a pedir para tratarmos o filho.
– Já lá vou.
– Mas, ó furriel, olhe que o miúdo se não está morto, parece.
– Leva-a para a enfermaria que eu é só acabar o café.
Fui de seguida. Em Bula, a enfermaria ficava muito próximo da porta de armas. O bar de sargentos era lá mais para os fundos do aquartelamento. Quando cheguei lá acima, os olhos muito brancos e muito abertos da mulher mandinga, agitavam-se numa correria, ora na minha direcção, ora na do filho que apertava contra o peito. Estendi-lhe os braços pedindo-lhe que me o entregasse. Aquele corpo quase inerte ardia em febre.
– Teixeirinha, vai lá abaixo chamar o doutor e tu, João, arranja-me aí alguém que me ponha a falar com a mulher.
Não lhe conseguimos arrancar uma palavra. Só olhava para o filho, em desesperado silêncio. Chegou o doutor, o alferes miliciano Chaves Ferreira.
– Ó doutor, ela não disse nada mas aqui o Braima, que a conhece, diz que o rapaz tem aí uns cinco ou seis anos e que já deve estar com uma carrada de paludismo há vários dias. Devem ter-lhe feito as mezinhas todas, mas como não resultou trouxe-o aqui.
O doutor Chaves Ferreira era um homem alto que falava em voz baixa.
– O puto está bera, pá – disse-me ele depois de o ter examinado.
– E o que lhe fazemos ? – perguntei-lhe.
– Para já temos que lhe baixar a febre e metê-lo a soro. Depois deitamo-nos a inventar porque para tratar pneumonias é que nós não temos aqui nada. E para um puto desta idade, ainda menos.
Uma pneumonia. Bonito sarilho. Aquele peito franzino nem parecia respirar. Antipirético LM (laboratório militar) partido aos quartos e diluído em água, com uma seringa metido na boca aos poucos e devagar, e a agulha mais fina do tacho de esterilização, capaz de pegar a veia onde entrasse o soro.
E agora?
– Ó doutor – disse-lhe eu – devíamos levar o miúdo para Bissau.
– Pois devíamos – concordou ele – mas a esta hora como é que o levas, a nado?
Entre Bula e Bissau interpunha-se, como sabemos, o rio Mansoa.
– Se o doutor der uma palavrinha ao nosso Comandante, talvez ele concorde em pedir uma evacuação.
Vou lá a baixo falar com ele e tu põe-te de olho no rapaz e vê se lhe baixas a febre.
– Se não baixar com o LM, o que faço?
– Lava-o com água fria.
O Chaves Ferreira saiu e eu pedi ao João, outro dos meus maqueiros, que fosse ao bar buscar um balde com gelo. Enchi de água a tina esmaltada que na enfermaria servia para lavar as mãos e lá dentro meti o gelo que o João trouxera. Na água fria ensopámos um lençol e com ele lavámos o corpo do miúdo.
Quando o doutor regressou foi para me dizer que estavam a tentar a evacuação. Ficámos ali, com o doutor a conjecturar no que mais podia fazer, quando o Machado, o meu cabo-enfermeiro, quase gritou:
– Ó doutor, o miúdo apagou-se.
Saltámos que nem molas. Aquele peito frágil desapareceu no interior das mãos do doutor, que o pressionou, e uma, e duas, e três, “já o tenho”, disse ele, ao mesmo tempo que o miúdo parecia bolsar, “é especturação, vê lá se a tiras que o está a impedir de respirar”, pediu-me enquanto lhe comprimia o peito, como se de dentro dele quisesse expulsar o mal. Tentei um estilete de punção com compressa na ponta, mas o resultado foi fraco. Lembrei-me, então, de ir buscar um tubo de plástico, daqueles para administrar soro, abri-lhe uma ponta a sugerir maior espaço de sucção, na outra ponta do tubo introduzi aquelas borrachas que serviam para lavar os ouvidos, e fui aspirando, aspirando, enquanto o doutor, com o rapaz deitado de lado, ajudava com secas palmadas nas costas.
E disse então o médico:
– Calma, pá, deixa lá agora o gajo descansar.
Foram momentos de grande aflição. Apareceu o [João] Vinagre, alferes miliciano de informações, da CCS [, BCAÇ 2861], para nos dizer que havia a possibilidade de evacuar o miúdo na DO que de manhã iria distribuir o correio pelo sector.
– Ó alferes, mas isso só lá para o meio dia é que o puto vai para Bissau.
– É o mais certo – retorquiu-me ele.
– E, entretanto, apaga-se-lhe o maçarico.
– O que é que queres que eu faça?
– Se o meu alferes pedisse uma secção à [CCAÇ] 2466 e ao capitão Monge [, do EREC 2454
que disponibiliza-se uma Panhard, a gente logo às seis horas levava o miúdo para Bissau.
– Ó doutor – disse o Vinagre para o Chaves Ferreira – aqui para o seu enfermeiro é tudo facilidades.
– É, pá – foi a vez do doutor falar ao Vinagre – mas olha que a ideia do gajo não está mal vista.
– Pois, talvez, mas falta convencer o homem da jangada a vir buscá-los a João Landim.
– Aí, falo eu outra vez com o Comandante.
Saíram os dois e eu também. Fui à procura da malta da 66 [, CCAÇ 2466,] e o primeiro a encontrar foi o Furriel Gomes.
– Ó Gomes, preciso de ti, pá.
Expliquei-lhe o que se estava a preparar e ele respondeu-me que, desde que o capitão autorizasse, com a equipa dele podia contar. Fui ao comando, lancei ao Vinagre o polegar virado para cima, “secção já temos”, correspondendo-me ele com a informação de que Panhard também. Estava o Comandante a tratar de resolver o problema da jangada.
Reunimo-nos, de novo, na enfermaria. A febre do rapaz baixara, enfim. A barriga parecia menos apressada na sua tarefa de ajudar os pulmões a trabalhar. Sentada na mesma cadeira onde eu a mandei sentar quando chegou, estava a mulher mandinga, a mãe do rapaz. Aquele rosto era só angústia. Chamei o Braima, que cuidava das limpezas e arrumações da enfermaria, pedi-lhe para dar água à mulher e me traduzir. Disse-lhe o que o filho tinha, o que fizemos e o que íamos fazer. Só ela não disse nada. Ela só queria o filho, de novo, encostado ao peito e a respirar com ela.
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Veio o alferes Vinagre para nos dizer que a jangada estava garantida. Era só chegar a João Landim [, foto à esquerda], enviar o sinal e ela vinha logo buscar-nos. Até lá, foi continuar a lavar o rapaz com a água fresca, mais um quarto de LM, o doutor Chaves Ferreira a dar-lhe umas palmadas nas costas e eu, com o meu improvisado instrumento, a tirar-lhe a especturação possível da garganta.
Às seis da manhã, eu, o soldado maqueiro Teixeira, e a mãe do rapaz, entrámos com ele para a ambulância. Com a Panhard à nossa frente e a secção do Gomes atrás, fizemo-nos ao caminho, em direcção a João Landim. Mal lá chegados ouvimos o roncar do motor da jangada a iniciar a travessia do Mansoa. Logo que acostou, subiu apenas a ambulância porque do lado de lá era só andar depressa.
Entreguei o jovem mandinga no Hospital Civil de Bissau, talvez não fossem ainda oito horas da manhã.
Muitos dias passados, o Machado, com um sorriso de orelha a orelha, veio ter comigo e disse-me:
– Furriel, sabe quem é que está ali à porta para falar consigo? A mãe do miúdo que a gente levou para Bissau.
Lá estava ela, à porta da enfermaria, com o filho pela mão. Tirou o
safeu que o rapaz trazia cruzado no peito e entregou-mo.
– Para furriel ter sorte.
Foi a primeira vez que a ouvi falar e, julgo, foi a primeira vez que lhe vi uma lágrima nos olhos.
Dou comigo a pensar como foi possível, com todos estes acontecimentos, nem o nome da mãe, nem o nome do filho, terem ficado registados na memória. Presente na memória dos meus dias, ficou apenas o
safeu. Quando abro a minha caixa dos segredos e o vejo lá dentro, gosto de lhe sorrir.
De ontem e para sempre, o meu safeu