Portalegre, 3 de maio de 2014 > Convívio anual dos "Tigres de Cumbijã", CCAV 8351, Cumbijã (1972/74)
Fotos: © Vasco da Gama (2014). Todos os direitos reservados
por Vasco da Gama [, ex-cap mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74]
O frenesim que de mim se apodera com a chegada do dia da reunião anual da minha Companhia parece que cresce todos os anos, apesar de saber que por cada comemoração que passa, menos uma nos resta para o fim do percurso.
Desta feita foi em Portalegre que se seguiu à reunião de Sever do Vouga e que antecede a de Torres Novas.
Portalegre, “cidade do Alto Alentejo, cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,”que José Régio imortalizou na sua Toada, viu-nos partir, há quarenta e dois redondos anos, com destino à Guiné.
Aqui permanecemos por três ou quatro semanas, vindos de Estremoz, aguardando embarque para a guerra! A pátria, que por vezes não sabemos bem o que é, chamara por nós e nós ali estávamos prontos a cumprir com a obrigação (que não dever?) já que outra saída não descortinávamos para o nosso futuro! Até de França, Camarada nosso então se apresentou para que sobre ele não caísse o anátema de refractário ou de desertor, anátema que alguns, nos dias que correm, ( como é fácil hoje em dia fazê-lo) transformaram em elogio, vá-se lá saber porquê! Falo nele, no “Francês”, pois desta feita e pela primeira vez veio abraçar os seus Camaradas, que não via há quarenta anos!
O B. C. 1 de onde saímos em 1972 é hoje um Centro de Formação da G.N.R.
Em finais de Março solicitámos autorização ao Comando para que pudéssemos visitar as instalações e colocar uma lápide em honra dos Camaradas mortos na Guiné.
O tempo ia passando e a resposta não vinha! O meu Camarada Parola, o organizador do convívio, alertou-me e eu, sem demora, liguei para o Centro no dia 20 de Abril. Depois de vários “não se encontra” tive de dizer ao meu interlocutor que não desligava enquanto não fosse atendido por quem quer que fosse, pois a minha pergunta não ficaria sem reposta.
Lá veio um senhor sargento, muito simpático e solícito que, admirado, me disse:
- O senhor Comandante já fez o despacho no dia 2 de Abril, a autorizar a vossa visita.
Prometeu falar com o senhor Capitão para que cópia do despacho nos fosse enviada, ao meu Camarada Parola e a mim mesmo. Tal veio a verificar-se a 23 de Abril.
Porventura esta demora terá a ver com a programação de alguma operação, quiçá a da perseguição ao senhor Manuel Baltazar, um tuga conhecido por Manuel Palito, lá para as bandas de São João da Pesqueira, que ,ao que sei, ainda não teve resultados práticos.
Demorássemos nós, CCav 8351, enquanto na Guiné, todo este tempo a encontrarmos a base de onde o IN nos atacava e, por certo, ainda a esta hora por lá andávamos à procura de Nhacobá, de Lenguel do rio Habi ou de Samenau. Outros tempos....outra gentes..
O nosso encontro estava marcado para 3 de Maio, e no dia primeiro, portador que fui da lápide, lá me apresentei para a colocar no local indicado. O oficial de dia, um jovem alferes, recebeu-nos com simpatia e a meu pedido prometeu-me que a lápide, no dia da visita, estaria coberta pela bandeira nacional para que o seu descerramento tivesse o mínimo de dignidade. Perante a minha insistência mandou-me ir descansado, pois a bandeira de Portugal estaria em seu devido sítio!
A malta começou a chegar logo pela manhãzinha do dia três de Maio. O encontro foi no largo fronteiriço ao do antigo B.C.1. Abraços, gargalhadas, uma ou outra lágrima furtiva, o relembrar da emboscada do dia xis ou os ataques ao arame no Cumbijã, mais o assalto a Nhacobá, fazem sempre parte do primeiro contacto.
Subimos então a rampa de acesso à entrada do Centro e, antes que fosse transporta a porta de armas, avistava-se lá ao fundo a lápide, tal qual eu a deixara dois dias antes. Não avancei mais! O meu Camarada Parola lá foi falar com o oficial de dia, um capitão, que de pronto lhe disse não haver bandeira disponível para a cerimónia e que a fôssemos comprar a uma loja dos “chineses”.
O meu Camarada lá foi comprar a bandeira com que se cobriu a nudez da Pedra.
Este lavar de mãos do cavalheiro e oficial senti-o como se de ofensa se tratasse à memória dos meus Camaradas mortos em combate e, logo ali, no discurso que fiz, tive de expressar, para que dúvidas não restassem, o meu repúdio perante tamanha indiferença.
Porventura se tivesse ido ao beija-mão talvez me tivessem dado fanfarra e me prestassem tributo, mas eu não vou por aí e cito outra vez Régio :
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
["Cântigo Negro", de José Régio, "Poemas de Deus e do Diabo", 1925]
Cerimónia finda, ala que se faz tarde e lá foram os cinquenta e um Combatentes acompanhados pelos familiares para a missa da praxe, celebrada na sé de Portalegre por um padre simpatiquíssimo. Foram lidos os nomes dos vinte e dois mortos que são do nosso conhecimento e à medida que cada nome era referido ecoava na vastidão dos claustros um arrepiante PRESENTE a provocar um estremeção de emoção.
Os arredores de Castelo de Vide acolheram-nos num local perfeito para o almoço e lanche!
Esquecidos os contratempos, em vivência íntima e familiar, de novo o recordar dos momentos mais difíceis nos vinte e dois meses que passámos juntos.
Vinte e dois meses que nos marcaram de tal forma, que ninguém, mas mesmo ninguém, será capaz de destruir.
Esta imensa solidariedade dos Combatentes da minha Companhia parece vir a cimentar-se com o passar dos anos e eu apenas peço que para o próximo ano estejamos os mesmos deste ano e mais uns quantos a quem a saúde e a crise impediram de ir a Portalegre, “cidade do Alto Alentejo, cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros” [, "Toada de Portalegre", de José Régio, do livro de poesia "Fado", publicado em 1941].
Vasco Augusto Rodrigues da Gama
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Nota do editor:
Último poste da série > 25 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12897: (De) Caras (16): Quem tramou o alf mil capelão Mário de Oliveira, do BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/69) ?... Não foi o BCAÇ 1912 que expulsou o Mário de Oliveira, a PIDE tinha escritório aberto em Mansoa (Aires Ferreira, ex-alf mil inf, minas e armadilhas, CCAÇ 1698, Mansoa, 1967/69)