domingo, 29 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15423: Agenda cultural (439): Exposição comemorativa dos 40 anos do retorno de centenas de milhares de portugueses à antiga metrópole, na sequência da descolonização: "Retornar - Traços da Memória", Lisboa, de 4/11/2015 a 14/2/2016


Página da EGEAC que promove esta  ini­ci­a­tiva, assinalando os 40 anos do movi­mento que ficou conhe­cido por retorno das ex-colónias por­tu­gue­sas e teve o seu auge na ponte aérea de 1975. Espantosa foto, carregada de grande simbolismo,  do grande fotojornalista Alfredo Cunha a quem se deve, entre outros grandes trabalhos, as melhores fotos do 25 de abril.




RETORNAR – TRAÇOS DE MEMÓRIA





Retornar – Traços de Memória pro­põe, ao longo de qua­tro meses e em vários espa­ços, 

uma refle­xão sobre os 40 anos da vinda das ex-colónias por­tu­gue­sas de África, 
atra­vés de deba­tes, tea­tro, per­for­man­ces, visi­tas comen­ta­das 
e inter­ven­ção urbana na zona ribeirinha.



Retornar - Traços de Memória é uma ini­ci­a­tiva da EGEAC, 
desen­vol­vida pelas Galerias Municipais de Lisboa, 
que assi­nala os 40 anos do movi­mento 
que ficou conhe­cido por retorno das ex-colónias por­tu­gue­sas 
e teve o seu auge na ponte aérea de 1975.


Com uma pro­gra­ma­ção trans­dis­ci­pli­nar que decorre ao longo de qua­tro meses, a ini­ci­a­tiva apre­senta olha­res da arte, lite­ra­tura, antro­po­lo­gia, his­tó­ria e polí­tica, para pro­mo­ver o diá­logo e o conhe­ci­mento sobre o fim do impé­rio colo­nial por­tu­guês. Num pro­jeto que pro­move o cru­za­mento entre as artes e as ciên­cias huma­nas, a expo­si­ção inau­gura um novo espaço expo­si­tivo: a Galeria Avenida da Índia, em Belém.

Comissariada pela antro­pó­loga Elsa Peralta, a ini­ci­a­tiva baseia-se em inves­ti­ga­ção aca­dé­mica no diá­logo com o tra­ba­lho de artis­tas como Manuel Santos Maia. Com um enfo­que na expe­ri­ên­cia humana, a expo­si­ção inclui tes­te­mu­nhos pes­so­ais iné­di­tos, docu­men­tos his­tó­ri­cos, foto­gra­fias de época e de autor e memo­ra­bí­lia pessoal.

Na zona ribei­ri­nha, junto ao Padrão dos Descobrimentos, haverá uma inter­ven­ção urbana com con­ten­to­res que intro­duz o tema da expo­si­ção atra­vés da exi­bi­ção de uma foto­gra­fia de Alfredo Cunha, tirada naquele pre­ciso local, em 1975.

Ao longo dos qua­tro meses em que a expo­si­ção estará patente ao público, o Padrão dos Descobrimentos, local sim­bó­lico da cons­tru­ção da memó­ria impe­rial por­tu­guesa, aco­lherá deba­tes que refle­tem dife­ren­tes olha­res sobre este momento his­tó­rico, atra­vés de per­so­na­li­da­des como Eduardo Lourenço, Adriano Moreira, Dulce Maria Cardoso, entre outros.

Na Galeria Avenida da Índia, um pro­grama de visi­tas comen­ta­das, que pro­move a refle­xão sobre a expe­ri­ên­cia do retor­nar, conta com a par­ti­ci­pa­ção de aca­dé­mi­cos e ensaís­tas como Maria Filomena Molder e António Pinto Ribeiro.

Joana Craveiro, atriz e ence­na­dora com um vasto tra­ba­lho artís­tico sobre ques­tões pós-coloniais, apre­sen­tará duas per­for­man­ces no Padrão dos Descobrimentos, inti­tu­la­das Páginas de um Império Perdido #1 — Alguns que retor­na­ram e outros que não qui­se­ram e Páginas de um Império Perdido #2 — Alguns filhos disto tudo ou Bairro das Ex-Colónias.

Em Janeiro, o Teatro São Luiz aco­lherá o espe­tá­culo Portugal Não é Um País Pequeno, de André Amálio, que relata a expe­ri­ên­cia de anti­gos colo­nos por­tu­gue­ses a par­tir de tes­te­mu­nhos reais.

(Fonte: EGEAC, com a devida vénia...)



Foto do AHU - Arquivo Histórico Ultramarino / Agenda Cultural de Lisboa

RETORNAR - TRAÇOS DE MEMÓRIA



ARTES › EXPOSIÇÕES › OUTRAS

De 5 nov 2001 a 14 fev 2016

Terça a sexta, das 10h às 13h e das 14h às 18h | sábado e domingo, das 14h às 18h

Local > Galeria Avenida da Índia | Av. da Índia, 170 | Lisboa



Elsa Peralta, coordenação científica; Bruno Góis, Cláudia Castelo, Joana Gonçalo Oliveira e Maria José Lobo Antunes, equipa cientifica; Alfredo Cunha, André Amálio, Bruno Simões Castanheira, Joana Craveiro e Manuel Santos Maia, artistas.

A memória do retorno e, consequentemente, a memória do império na sociedade portuguesa contemporânea constitui o tema desta exposição que inaugura o novo espaço municipal da Galeria da Avenida da Índia.

A mostra pretende assinalar os 40 anos do retorno de nacionais à antiga metrópole, na sequência dos processos de descolonização levados a cabo nas colónias portuguesas. Linhas cruzadas de pensamento permitem olhar e refletir sobre este fenómeno, através de diferentes perspetivas disciplinares e olhares críticos.

Retornar - Traços de Memória é constituída por cinco secções:

(i)  Colonizar / Descolonizar;
(ii) Linhas do Tempo;
(iii) No Interior da Memória;
(iv) Depósito; e
(v) Atmosferas,

que, juntas, compõem uma memória fundamentada em fontes históricas, testemunhos pessoais, registos imagéticos e conceitos artísticos. 

Colonizar / Descolonizar

Aqui se contextualiza o fenómeno do retorno, situando-o no seu tempo histórico e acompanhando-o até ao presente. Identifica-se quem volta a partir de quem foi, através de uma caracterização dos fluxos migratórios para as colónias. Faz-se, também, um retrato da população portuguesa retornada.

Linhas do Tempo

Através de fotografias de álbuns pessoais e de fotografias de arquivo, esta secção expõe o tempo das vivências em África durante o período da colonização e da descolonização, cruzando-as com a receção dessas vivências em Portugal.

No Interior da Memória

Através da apresentação de relatos, diretos ou ficcionados, este núcleo pretende ser um movimento imersivo na memória pessoal.

Depósito

Elaborada a partir da obra do artista plástico Manuel Santos Maia, Depósitos ublinha as dimensões materiais da memória e da recordação.

Atmosferas

A quinta e última secção expõe, a partir de algumas correntes que atravessam a sua atmosfera discursiva, o pensamento sobre o evento do retorno e sobre o fim do império colonial português.

[texto de Ana Rita Vaz]

Fonte: Agenda Cultural de Lisboa (com a devida vénia...)

INFORMAÇÕES ÚTEIS

Entrada livre.

Programação paralela:

Visitas comentadas à exposição – Galeria Av. da Índia
Instalação/intervenção urbana – zona ribeirinha contígua ao Padrão dos Descobrimentos
Debates/conversas – Padrão dos Descobrimentos
Performance de Joana Craveiro – Padrão dos Descobrimentos
Espetáculo de André Amálio – São Luiz Teatro Municipal

+ info: T.218 820 090

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Guiné 63/74 - P15422: Libertando-me (Tony Borié) (45): Antes éramos cowboys

Quadragésimo quinto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




Antes, éramos Cowboys, agora somos Índios!

Era ainda manhã, a estrada rápida número 75, no sentido norte, nas proximidades da cidade de Atlanta, no estado da Geórgia, era uma azáfama, todos procuravam o seu rumo, a estrada dividia-se, havia seis ou sete pistas para cada lado, mas passavam uns pelos outros, fazendo sinal para esquerda ou para a direita, procurando a saída para o seu destino. O nosso rumo era o norte, lá íamos seguindo, até que o trânsito ficou mais livre, já tínhamos passado a cidade, estávamos quase na fronteira, passando-a, para o estado de Tennessee, continuámos no sentido norte, passando ao lado da cidade de Chattanooga, até nos surgir a placa de sinalização da estrada estadual número 60, depois a 58, tomando em seguida uma estrada rural, que dá pelo nome de Blythe Ferry Lane, que segue entre pequenas povoações, quintas, pequenos lagos e pântanos, acabando em frente ao rio Tennessee, onde está localizado o “Cherokee Removal Memorial Park”, onde parámos.

Companheiros, temos que interromper para vos dizer que hoje, nas nossas viagens por aqui, vamos falar de um local que nos merece muito respeito, onde a história nos diz que uma nação se constrói por períodos bons e outros menos bons, como esta grande Nação que nos recebeu de “mãos abertas”, a nós europeus e nos deu aquilo que o nosso País de nascimento, por quem todos demos a vida numa frente de combate, e agora falando de nós, pessoas simples do povo que éramos, sem educação superior e, essa mãe Pátria, esse nosso querido Portugal, sempre nos colocou numa posição de pessoa inferior, talvez por entre outras coisas, os nossos progenitores sempre dizerem não a certas situações que privilegiavam outros, que nada faziam para contribuir para uma sociedade mais justa.

Perdoem lá, já me estou a desviar com palavras que nada têm a ver com a nossa conversa de hoje, vamos continuar. Este local, cujo nome já mencionámos, que quer dizer mais ou menos, “Parque Memorial da Remoção do Povo Cherokee”, é visitado por quem tem, ou quer ter, algum conhecimento do que foi o destino dos verdadeiros americanos, aqueles a quem ainda chamam “Índios”.


Aqui, neste local, existe alguma informação daquilo que foi um dos capítulos mais sombrios da história americana, que foi o acto desprezível da remoção de alguns povos, entre eles os “Cherokees”, os “Chickasaw”, os “Choctaw”, os “Creeks” e “Seminoles”, na altura chamadas de “As Cinco Tribos Civilizadas”, que por aqui viviam com alguma autonomia política e que deveriam ser considerados americanos do sul. Aqui começou o “Trail of Tears”, que tem muitas traduções, mas para nós quer dizer mais ou menos o Caminho das Lágrimas, mas na linguagem Cherokee é chamado de “Nunna daul Isunyi”, “O caminho onde eles choraram”, que fez correr muitas lágrimas e é uma marca negra na história americana, que nunca poderá ser justificada ou explicada, mas como em tudo na vida, nenhum de nós tem qualquer culpa de actos menos felizes, praticados pelos nossos antepassados, temos é que aprender e fazer com que nunca mais se repitam.

Em 1835, alguns representantes auto-nomeados da nação Cherokee, ao fim de alguns anos de negociações, assinaram o Tratado de “New Echota”, onde diziam que trocavam as suas terras a leste de Mississippi por cinco milhões de dólares, que envolvia assistência para a deslocalização assim como a compensação pela propriedade perdida, deste modo, as tribos indígenas localizadas a leste do rio Mississippi foram forçadas a viajar no “Caminho Cherokee das Lágrimas”.


A história diz que, pelo resultado deste tratado, documento com base numa lei de 1830 (Indian Removal Act), assinado pelo Partido Ridge nunca foi aceite pelos líderes ou pela maioria da tribo Cherokee, representada no Partido Ross, mas esse pormenor pouca influência iria ter, pois as tensões entre os representantes do estado da Georgia e do povo Cherokee ficaram tensas com a descoberta de ouro nas proximidades de Dahlonega, no estado da Georgia, em 1829, onde alguns historiadores dizem que esta foi a primeira “corrida ao ouro” na história dos EUA.

Quando o povo Cherokee assinou o tratado, foi-lhe prometida a tal quantia em dinheiro, que devia ser paga em ouro, todavia não sabemos se foi paga em ouro ou em papel impresso, cedendo as suas terras ao governo federal, começando assim a sua migração forçada por mais de 1200 milhas para o chamado Território Indígena, que é hoje o actual estado de Oklahoma. Os nativos sofreram muito com esta migração, e vários morreram durante as viagens e nos acampamentos forçados, que se formavam durante esta migração, estimando-se que, da tribo Cherokee, de uma população de 15.000, vieram a falecer cerca de 4000.

Centenas de escravos e afro-americanos libertos, que viviam com os índios, acompanharam-nos nesta migração, por este Caminho das Lágrimas, muitos foram transportados em grandes carroças, mas a neve e o frio de inverno dificultavam este procedimento e, com a diminuição da comida, havia racionamento, alguns moradores das aldeias por onde passavam iam ajudando, viajando em barcos ou jangadas, quando era possível pelos rios ou pântanos, mas quando a temperatura baixava, os rios congelavam, forçando a pararem e formarem acampamentos onde iam morrendo, principalmente por serem mal alimentados, onde a maioria das mortes ocorria por coqueluche, tifo, disenteria, cólera, infecções ou gripes, assim como a fome, foram essas as epidemias que ao longo do caminho assolavam esses acampamentos.


O Presidente Martin Van Buren enviou o General Winfield Scott 7000 soldados para organizar o processo de remoção. Scott e as suas tropas forçaram o povo Cherokee para fora das suas casas, na ponta das suas baionetas, enquanto outros saqueavam casas e pertences. Um dos soldados da operação, sob as ordens do general Winfield Scott, escreveu: “Eu lutei nas guerras entre países e disparei contra muitos homens, mas a remoção Cherokee foi o trabalho mais cruel que eu conheci”.

Um filósofo francês, no ano de 1831, testemunhou esta migração forçada, escrevendo na altura: “Pairava no ar um sentimento de ruína e destruição, era o fim destes atraiçoados, era o seu adeus, ninguém poderia aqui assistir sem sentir um aperto no coração. Os Índios estavam quietos, sombrios e tactiturnos, perguntei a um deles por que deixavam as suas terras, responderam-me, “para serem livres”. Assistimos à expulsão de um dos mais famosos e antigos povos americanos”.

Aqueles que resistiram, querendo ficar nas suas terras, foram objecto de intimidação legal e perseguição, tendo as suas casas sido derrubadas e queimadas, assim como o seu gado.

O governo federal prometeu ao povo Cherokee, que a sua nova terra, ou seja o tal “Indian Territory”, que é hoje o estado de Oklahoma, iria permanecer sua para sempre, sem serem molestados, mas a força da colonização branca empurrou-o para o oeste e foi encolhendo, encolhendo, o espaço do “Indian Territory” e, claro, quando em 1907, Oklahoma se tornou num estado, o “Indian Territory”, tinha ido embora para sempre. Muitos anos passaram, hoje a população Cherokee, que mantém o seu próprio alfabeto, portanto fala a sua língua, teve alguma recuperação e são esses índios o maior grupo nativo americano.

Depois de algum tempo de meditação, deixámos este parque, localizado no meio de alguns pântanos, em silêncio, também sombrios e taciturnos, passados quase dois séculos, em respeito por este povo.

Tony Borie, Novembro de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15394: Libertando-me (Tony Borié) (44): Simplesmente Fernando

Guiné 63/74 - P15421: Blogpoesia (425): Eminente e inesgotável (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf)

1. Em mensagem de hoje, dia 22 de Novembro, o nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), enviou-nos este poema com o título Eminente e inesgotável:


Eminente e inesgotável...

Como uma garça elegante e leve,
avança para o piano,
de cauda longa e aberta,
sob uma chuva de palmas quentes
da assembleia sôfrega de a ouvir.

Faz-lhe uma vénia reverente.
Ajeita a si o banco.
Se concentra.

E seus dedos poisam suaves
sobre as teclas ainda dormentes.
Faz-se silêncio.

Surgem sons trinados.
Se evolam pelo ar em labareda.
Dum piano e uma orquestra.

E nossas almas, de tão sedentas,
de paz e harmonia,
se inebriam
e voam com eles,
num bailado de cores e luzes,
como quando se apaga a dor,
dum eterno sofrimento.

Tudo ali é o nosso mundo.
Não há mais nada,
senão nós e elas.
Em graciosa cavalgada.
Encosta acima.
Cabelos ao vento.
Sem descanso, até ao cimo.

Ó magnífico deslumbramento
da vitória
que é só nosso
e do firmamento azul,
em fulgurosa majestade!...

Abençoadas horas.
Estas em que não há tempo.
Arde o nosso peito.
Já não somos nós.
Só temos alma
e não o corpo.

Bendito Brahms que concebeu para a gente
este concerto belo!...
E aquelas mãos de artistas sábios
que o interpretam assim bem
como mais ninguém...


Ouvindo concerto n.º1 de Brahms para piano e orquestra

Berlim, 29 de Novembro de 2015 
5h47m 
ainda reina a madrugada fria 
Jlmg 
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15399: Blogpoesia (425): Primeira neve... (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf)

Guiné 63/74 - P15420: Manuscrito(s) (Luís Graça) (71): o país onde os nossos pais nasceram, cresceram, amaram, casaram, viveram, trabalharam e morreram... e que nós herdámos

Notas de leitura:

FERRÃO, João (Geógrafo, ICS/UL) – População. In: Dicionário de História de Portugal, suplemento, vol IX (Suplemento P/Z). (Coord. António Barreto e Filomena Mónica). Lisboa: Figueirinhas, 2000, pp. 127-133.


Portugal (1926-1974) – Dinâmicas sociais e populacionais 



O Portugal onde nasceram, cresceram, amaram, casaram, viveram  trabalharam e morreram os meus pais (Luís Henriques, 1920-2012, e Maria da Graça, 1922-2014) conheceu profundas mudanças, nomeadamente de natureza demográfica, epidemiológica, social,  económica, política e cultural...  

Foi a pensar neles, e  na sua geração, que eu, nascido em 1947, publico agora estas notas de leitura do artigo de João Ferrão sobre Portugal, 1926-1974... O país que eu herdei... O país que herdámos...


Crescimento natural (fecundidade, natalidade, mortalidade…);

Movimentos migratórios (internos e externos);

Factores endógenos e exógenos;

Mudanças conjunturais e estruturais;

Três fases, um período longo: 1926/74: consolidação dos padrões demográficos modernos: processo de transição demográfica > de longo ciclo de taxas de natalidade e mortalidade elevadas (> 30 por mil e 20 por mil, respetivamente) para um outro (c. 10 por mil);

Passagem de uma sociedade rural, pré-moderna, de economia fechada, fracamente monetarizada, para uma sociedade industrializada, de economia aberta (adesão à EFTA, 1959) e desenvolvimento urbano;

A transição demográfica coincide também com o fim do ciclo da emigração transcontinental (“Novo Mundo”: Brasil, EUA) e substituição por um outro, o da emigração europeia (França, Alemanha)


1ª fase – 1926-40:

Início da quebra das taxas de natalidade e mortalidade, fim de ciclo emigratório (“Novo Mundo”), contexto adverso à emigração (crise internacional de 1929, guerra civil de Espanha, início da II Guerra Mundial, em 1939)

2ª fase – 1941-50:

Recuperação das taxas de natalidade, crescente papel polarizador de Lisboa em relação ao êxodo rural, suburbanização, economia nacional fechada e corporativa;

3ª fase – 1951-74:

Consolidação das tendências demográficas modernas, irreversível processo de transição demográfico, no contexto de novo ciclo emigratório (continental), abertura da economia ao exterior, industrialização (plano de eletrificação do país, barragem de Castelo de Bode, 1950; EFTA, 1951); guerra colonial; crise do petróleo de 1973; 25 de abril de 1974; duplo retorno (emigrantes europeus e população das colónias africanas).


1926-1940



Alvarina de Sousa, mãe de Luís Henriques, morreu em 1922,
de tuberculose, quando ele tinha dois anos, provavelmente grávida.
Teve dois filhos. O pai de Luís Henriques, Domingos Henriques,
casou três vezes.  Do primeiro não teve filhos. Do terceiro casamento teve 

mais 11 filhos. A mãe de Alvarina de Sousa, Maria Augusta Maçarico
(Ribamar, 1864-Lourinhã, 1932)  teve 7 filhos nados-vivos.
Foto de LG.

Situação anterior (início do sec. XX): das mais elevadas taxas de natalidade, mortalidade e emigração na Europa; Rio de Janeiro,  a "segunda cidade portuguesa"; centralidade do setor primário e da ruralidade;

Portugal, 1930: 6,8 milhões de habitantes; 1940: 7,7 milhões (a taxa acréscimo anual de 12,8 por mil, na década de 1930) > quebra acentuada da taxa de mortalidade, entraves à emigração (Brasil, EUA), êxodo rural para os centros urbanos – Lisboa e Porto); 

a partir de 1927, inflexão das taxas brutas de natalidade ( < 30 por mil), embora regionalmente desigual; reflexos na fecundidade: o nº de filhos por mulher fértil passa de 3,8 em 1930/31, para 3,1 em 1940/41;

o declínio da taxa de mortalidade inicia-se em meados da década de 1920 (dos 20 por mil para os 12-13 por mil ao longo dos anos 40); aumento da esperança de vida (que em Portugal rondava os 50 anos); melhorias sanitárias e ambientais no combate à 1ª causa de morte (doenças infecciosas e parasitárias):

mantem-se a mortalidade infantil acima dos 100 por mil;

transição epidemiológica, historicamente associada à transição demográfica (vd. 3ª fase);

redução da emigração, devida à crise internacional e às restrições dos EUA (anos 20) e Brasil (anos 30); durante 20 anos (décadas de 1930 e 1940) emigram apenas 200 mil pessoas, 4 vezes menos do que no período anterior… 80% para o Brasil: reunificação familiar, origem norte e centro; fim do ciclo emigratório transcontinental;

acentua-se o processo de êxodo rural/atração interna; deslocamentos temporários ou sazonais (‘ranchos’, 100 mil trabalhadores sazonais em 1957), e deslocamentos definitivos (, mecanização da agriculturaarroteamento de charnecas no sul, “colonização interna”: foi criada, em 1936,  a Junta de Colonização Interna: (...) "era um organismo com personalidade jurídica, de funcionamento e administração autónomos; (...) incumbia-lhe a execução dos planos de colonização interna; (...) pelo Decreto-Lei nº 27:207, de 16 de novembro de 1936, (...)  tinha, nomeadamente, as seguintes competências: (i) tomar conta dos terrenos que lhe foram entregues pela Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola, instalando nesses casais agrícolas; (ii) promover a constituição de associações e regantes e a instalação de Postos Agrários; (iii) efectuar o reconhecimento e estabelecer a reserva dos terrenos baldios do Estado; (iv) proceder à aquisição de terrenos para colonização; (v) estudar o regime jurídico a que devia obedecer a concessão de glebas.")

Lisboa polariza 60% dos movimentos internos (Porto, 17%): orientação para a cidade e para atividades não agrícolas (indústria, serviços); início do processo de suburbanização (sobretudo Grande Lisboa, margem norte do Rio Tejo):

1941/1950

Luís Henriques, expedicionário em Cabo Verde (1941/43). 
Foto de LG

Aprofundamento das tendências anteriores;

Aproximação tendencial aos padrões demográficos dos países europeus mais desenvolvidos;

Portugal, 1950: 8,7 milhões (desaceleração do crescimento demográfico);

Disparidades regionais, norte/sul, litoral (Lisboa/Porto) / interior;

Lisboa e Porto: taxas de natalidade ainda relativamente elevadas e taxas de fecundidade mais baixos do que no resto: comportamentos demográficos mais modernos, urbanização, abertura ao exterior, feminização da mão de obra… Lisboa: 1,79 filhos por mulher em idade fértil (valor que só ocorrerá em 1982 para o conjunto do país…);

Desaceleração da taxa bruta de mortalidade, a partir de 1943; 12-13 por mil ao longo da década;

Declínio da mortalidade infantil (< 100 por mil, na maioria dos distritos), por razões endógenas e exógenas; transição epidemiológica ainda tímida nesta década;

Esperança média de vida aproxima-se agora dos 60 anos;

Aumento da clivagem norte/sul (por ex., aumento da população no norte; diminuição no sul; taxas de fecundidade, mortalidade infantil e mortalidade elevadas no norte, baixas no sul…); recessão demográfica no Alentejo depois dos arroteamentos das charnecas e da campanha do trigo (anos 30); norte e centro litoral beneficiam de fatores conjunturais: (i) retorno do Brasil e dos EUA; (ii) “boom” do volfrâmio e do têxtil e calçado com a II Guerra Mundial; 

Contenção da quebra da taxa de natalidade (c. 25 por mil) entre 1940 e 1960, nos distritos do norte e ilhas, deve-se à contenção da emigração;

 Lisboa polariza 75% dos movimentos internos (12%, o Porto); movimentos internos particularmente significativos no sul;… mas Lisboa capta apenas c. 48% do êxodo rural;

Crescente litoralização do país;


1951-1974


Lourinhã, 1947 > Luís Henriques e
Maria da Graça,   com o seu primeiro filho,
de quatro filhos. O primogénito tem, 2 filhos.
Foto: LG

Confirma-se definitivamente o declínio das taxas de natalidade e mortalidade;

Em 1950 e 1974 Portugal tem a mesma população: c. 8,5 milhões. 9 milhões em 1960; perde pela primeira vez população desde que existem contagens de âmbito nacional (ou seja, de há 3 séculos): crescimento médio anual de 12,8% na década de 1930, 9,3% na década de 1940, vai desacelerar: 4,4% na década de 1950, e – 3,3% entre 1960 e 1970… 

Novo ciclo de emigração (para a Europa, mas também colónias de África…) leva à queda da natalidade (menos de 20 por mil no final desta fase) e da fecundidade… menos 250 mil residentes entre 1960 (8,9 milhões) e 1970 (8,6 milhões);

Tendências para o “envelhimento” (ainda não é a “revolução grisalha”, que começa a preocupar, nos anos 70, alguns países europeus): (i) envelhecimento na base (peso decrescente dos com 14 anos ou menos no conjunto da população); (ii) redução da população ativa (15-64); e (iii) mesmo envelhecimento no topo da pirâmide (aumento dos idosos com 65 ou mais, a partir do início da década de 1970);

Transição da família alargada tradicional para a família nuclear moderna;

Esperança média de vida: 65 anos;

Consolidação definitiva do processo de transição epidemiológico: as doenças cérebro-vasculares ocupam agora o 1º lugar nas causas de morte; a mortalidade infantil detém agora um peso menor no conjunto da mortalidade;

Transição facilitada pelo êxodo rural (migrações externas e internas), melhoria da alimentação, da assistência médica e hospitalar, das condições de vida e de trabalho;


Luís M. Graça Henriques (n. 1947). Psssou pelo TO da Guiné
(1969/71). Casado, tem 2 filhos. Foto de LG

População portuguesa em África, em 1940, muito baixa: 44 mil (Angola); 27500 (Moçambique); no final dos anos 40, fluxo anual médio, para o Ultramar, é já de 12 mil; atinge os 25 mil no período de 1965/63… Em 1960: c. 173 mil pessoas de origem europeia em Angola; 97 mil em Moçambique… Política de povoamento a partir de 1961 (início da guerra colonial em Angola)…

A França, a partir de 1957, é o principal destino da emigração… Em 15 anos (1960/74) parte 1 milhão, legal ou ilegalmente, para a França, Alemanha e outros países da Europa. Paris é "a segunda cidade portuguesa";

A clivagem norte/sul é agora substituída pela oposição litoral/interior; a Grande Lisboa polariza agora 85% dos movimentos internos… Mas só c. 16% do êxodo rural se encaminha para a área de Lisboa.. Um em cada cinco portugueses habita na Grande Lisboa, no início dos anos 70… 

Litoralização (70%), urbanização (27%), metropolitanização (Lisboa: 22,8%; Porto: 11,5%)… Causa e consequência dos processos de transição demográfica, familiar e epidemiológica, a par dos movimentos migratórios (internos e externos)…

Evolução das taxas de população ativa empregue na agricultura: 50%/45% (entre 1930 e 1960); 41,2% (em 1960), 29,8% (em 1970)… 

(LG)

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Vd. também Graça, L. (1999) - Evolução Histórica da Legislação Portuguesa sobre a Saúde e o Trabalho, no Contexto do Processo de Modernização do País: 3. O período de 1926-1974: A modernização bloqueada. [Em Linha]. Página pessoal, Saúde e Trabalho. [Consult em 17 de junho de 2015]. Disponível em  http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/historia1_legis1926_1974.html

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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15408: Manuscrito(s) (Luís Graça) (70): O Alzheimer da história

sábado, 28 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15419: (Ex)citações (302): Apaixonei-me por uma canção que o Conjunto João Paulo interpretava e incluí-a no meu reportório para a cantar numa festa no Entroncamento (José Vargues)

1. Mensagem do nosso camarada José Vargues (ex-1.º Cabo Escriturário da CCS do BART 733, Bissau e Farim, 1964/66), com data de 26 de Novembro de 2015:

Camarada Carlos Vinhal
Eu não podia passar sem falar sobre o brioso conjunto musical, e como tal adquirir o álbum de 45 rotações, gravado nos Estúdios Valentim de Carvalho, que na altura foi representante exclusivo, em Portugal, da etiqueta Colúmbia.
Eu sempre me interessei pela música e apaixonei-me por uma canção que eles também interpretaram, que a incluí no meu reportório para cantar numa festa no Entroncamento.
Foi uma experiência curta, porque estava a tirar o Curso Geral do Comércio, que achei mais importante.

Um abraço a todos
José Vargues
ex-1.º Cabo Escriturário n.º 609/64


Para ouvirem o tema "Ma Vie", incluído neste EP, cliquem aqui
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15397: (Ex)citações (301): O álcool na génese de não poucas baixas mortais no CTIG: relato de um quase acidente que se passou comigo, e que podia ter resultado em tragédia (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, 1973/74)

Guiné 63/74 - P15418: Os manuais escolares que nos forma(ta)ram (2): Geografia, Portugal e Colónias, 3ª e 4ª classes, de A. de Vasconcelos, c. 1940 - Parte II: Angola, com uma superfície 14,5 vezes maior que a de Portugal Continental, teria uma população que "regula(va) por uns 6 milhões de habitantes, a maior parte pretos (sic)"... Esta estimativa parece-nos grosseira... Oz densos aponmtavam para 3,7 (em 1940), 4,1 (em 1950), 4,8 (em 1960) e 5,7 milhões (e em 1970)...


VASCONCELOS. A[ugusto Pinto Duarte] de - Geografia Portugal e Colónias, 3ª e 4ª classes, nova edição. Porto: Editorial Domingos Barreira, [1940], 118 + 1 pp., ilustrado, 18 cm.





Geografia... op. cit. p. 103: vejam-se as fronteiras de Angola, de antes da II Guerra Mundial: Congo Francês, Congo Belga, Rodésia Inglesa e África do Sudoeste (Inglaterra) ou Botelândia (antiga África Ocidental alemã, perdida para os ingleses na sequência da I Grande Guerra, e hoje Namíbia)...




Geografia..., op cit., pp. 103-106


2. Comentário do editor:


Não sabemos onde o autor foi buscar um valor de 6 milhões de habitantes para a época [, 1940,] em Angola...

"A notícia da primeira tentativa para a contagem da população angolana data do último quartel do séc. XVIII, mais precisamente do tempo em que foi governador de Angola D. António de Lencastre (1777-1778), com a execução da ordem de 21 de maio de 1770, da autoria do então,ministro Martinho de Melo Castro. Foram contados, nessa altura, 1.581 brancos, 1.013 mestiços e168.493 pretos avassalados."

Por Carta de Lei de 17 de agosto de 1899, foi mandado proceder-se  ao recenseamento da da população no Ultramar de dez em dez anos

O primeiro censo, na realidade, só foi realizado em 1940.  A população total de Angola era então de 3.738.010 indivíduos.  

O censo de 1950 apontava para um total de  4.145.266  indivíduos e o de 1960 apurava um crescimento de 700 mil (Total; 4.840.719 pessoas).

Em 1970,  a população estimada de Angola era  de 5.673.064 habitantes.  [E já aaora acrescente-se que a população de origem europeia continuava a ser diminuta: cerca de 44 mil em 1940; 172.529 em 1960...].


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15417: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXIII Parte): Lifna Cumba, o "Joaquim"; Um longo Dezembro e Os Últimos Dias

1. Parte XXIII de "Guiné, Ir e Voltar", série do nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXIII

1 - Lifna Cumba, o “Joaquim” 

Parou no Taufik Saad, manequim na montra, mexeu-se no meio daquelas novidades, umas calças finas, antracite, uma camisa branca made in Macau, meias pretas nos sapatos pretos, parecia outro quando saiu, pela rua fora.

Em Brá, a 3.ª Companhia de Comandos estava a caminho dos quatro meses de comissão. Já tinham medido forças várias vezes com a guerrilha. Um dos alferes na primeira saída foi atingido por um estilhaço. Apesar do ferimento não parecer muito grave teve que ser evacuado para o Hospital Militar de Bissau. Recuperado, duas ou três semanas depois, voltou a sair e voltou a ser atingido. Evacuado, foi novamente internado no Hospital. Dias depois teve alta e após uns dias em repouso em Brá foi a vez do grupo que chefiava voltar a alinhar.

Não há duas sem três, deve ter sentenciado um filósofo há centenas de anos e passou a ser corrente na voz do povo. Pois o nosso alferes voltou a ser atingido, desta vez com mais gravidade. Três saídas para o mato, três ferimentos em combate, não era nada animador, de facto. Só havia uma saída, abandonar o palco.

Ainda estavam os Diabólicos nos últimos dias de actividade operacional, foi uma tarde contactado em Mansoa pelo Capitão Alves Cardoso, o comandante da 3.ª Companhia de Comandos.
Dê-me os nomes de dois guineenses do seu grupo, que possam vir a fazer parte da minha companhia.

E deu, não dois mas três. Foi assim que o Joaquim passou a integrar a 3.ª CCmds. Teve conhecimento, mais tarde, pelo próprio capitão, de que teria entrado em duas ou três operações e tinha inspirado confiança aos jovens candidatos a Comandos.

Em Outubro, talvez no final da primeira semana ou início da segunda, soube que o grupo de que o Joaquim fazia parte andava algures para os lados de Mansoa. Num daqueles dias encontrou o Furriel Valente de Sousa na esplanada do Bento. Então que tal têm corrido as coisas aos novos, perguntou a certa altura ao Valente de Sousa, que mantinha uma relação de maior proximidade com alguns camaradas da 3.ª CCmds.

Têm corrido bem, o Joaquim, ontem, é que teve azar. Um azar que, aliás, podia acontecer a qualquer um de nós. Que azar?

“Joaquim”, o Lifna Cumba, de pé, em segundo plano, de frente para a máquina. Regresso da Operação "Atraca". Julho de 1966. 

E o furriel, continuando como se estivesse a falar só, que o comandante do grupo tinha mandado o Joaquim internar-se na mata, que alguém do grupo terá visto um vulto a movimentar-se entre as palmeiras, e precipitou-se, disparou e depois foi uma fuzilaria para a mata. Olhe meu alferes, ficou como um crivo.

Levantou-se, enfiou-se no Fiat, directo ao Hospital Militar.

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2 - Um longo Dezembro

Uma eternidade, aquele mês de Dezembro nunca mais acabava.

Olhou para as tralhas acumuladas nestes dois anos. Não é que fosse muita, livros, papelada e fotos sim. Andava a aproveitar as noites de subalterno de dia no QG para lhes pôr alguma ordem, cópias de relatórios das operações e centenas de fotos. Estas são para rasgar, isto onde foi, como é que se chamava este tipo, apontamentos ao lado, nomes dos camaradas atrás, e depois disto, para onde fui? Anotava o que se lembrava, folhas e folhas, dois anos quase, ali à sua frente.

Correspondência! O aroma dela nas cartas, falta pouco, um mês só, não vou a Lisboa esperar-te, mas quando puseres os pés em terra, lembra-te, estou contigo. Está tudo dito, já não há mais para dizer. À frente dele, uma folha toda em branco, enorme, com tanto espaço para responder, sem ideias, nem sabia como começar. Quero estar contigo, sem mais ninguém por perto. Uma frase só numa carta. Não tenho mais para dizer, não sei o que escrever.

Vinte e quatro meses de cartas para lá e para cá. Palavras para encher papel, que de guerra não havia que dizer. Tinha cumprido, sem um desvio, que se lembrasse, o que tinha prometido a si próprio, falar de tudo menos de guerra, que era assunto que não lhes interessava. Que havia de dizer aos Pais e à namorada? De bazucas, de morteiros, de PPSHs1, de feridos, de estropiados, de evacuações? De uma guerra que se discutia? Não, não à namorada nem aos Pais.

Quando lhes falava da Guiné, era das paisagens, dos rios, dos enormes poilões, da gente boa que conhecia, e do tempo que fazia. Um calor e uma humidade que nunca sentira, vê lá tu, às vezes acabo de tomar banho e só de me limpar com a toalha fico outra vez a suar. Por vezes volto ao chuveiro e deito-me sem me secar. Escrevia-lhe do tempo que faltava para ir de férias, ainda nem quatro meses tinha de Guiné! Umas férias que nunca vieram, por culpa dele. Quem havia de se meter em sarilhos na Associação Comercial de Bissau? Quem havia de fazer frente a um tenente-coronel, na ordem de batalha, dizer-lhe nas trombas, com oficiais presentes, que ele, senhor tenente-coronel, estava pouco informado? Um garoto com 21 anos, quem é que ele se julgava? Não posso ir de férias, fui castigado, na tropa diz-se punido, por falta de respeito a um oficial superior. Já passou um ano, só falta o outro. Estou bem, em descanso, tenho muito pouco para fazer, espero o dia em que te vou ver. Não é preciso testemunhas, só quero estar contigo, os dois sós.

O sono leve, intermitente, e as malas, o que vou levar? Tem que caber tudo numa mala, não levo mais. Já pensaste no que vais levar, o que é que vai contigo? Os livros, todos, uma muda de roupa civil, as coisas do quarto de banho. Os sapatos civis, as botas, o camuflado, tudo no saco da tropa. Levaria vestida a farda amarela, a que envergara aquele tempo todo, as botas de cabedal e a boina. O resto ficava, podia servir a alguém.

O despertar súbito, outra vez muito acordado, uma sensação estranha a aparecer, a tomar conta dele, uma vontade irreprimível de fugir, os pés fora da cama, o que vou fazer, para onde, a tremer como se estivesse com febre. No quarto de banho, frente ao espelho, este sou eu com as mãos na cara, isto vai passar, nem um mês falta.

Talhão militar do cemitério de Bissau. 
Foto do autor. 

Tinha que ser, tinha que lá ir. Numa daquelas tardes entrou no cemitério, directo às campas dos camaradas. Parou em frente ao túmulo do Silva, a olhar para a relva. As diligências que fizeram, até o dinheiro que receberam pelas armas que apanharam, reverteu todo para as urnas de chumbo, para as trasladações dos corpos dos camaradas mortos. E o que resta do Silva ainda aqui está, aqui mesmo à frente. Soldado António Maria Alves da Silva. Nasceu em 17 de Janeiro de 1942. Faleceu em 6 de Março de 1966.
Sem uma flor, sem nada.

A guerra via-a de muito longe, como se fosse um assunto que já não lhe dizia respeito. Mas mesmo assim, às vezes não podia esquivar-se aos relatos dos recém-chegados do mato. A 3.ª CCmds andava por Tite. Raramente saía com efectivos inferiores a dois grupos.


Entretanto chegara outra Companhia de Comandos, a 5.ª, comandada por um jovem capitão, um tipo simpático. Então como é isto aqui, fresco, não? As zonas da guerrilha são todas iguais ou há diferenças? Antes que me esqueça, cumprimentos do Capitão Saraiva. Quando chegar a Lisboa contacte-o.

Visto como inexpugnável, no sul as NT estavam praticamente confinadas aos aquartelamentos. Madina do Boé, um inferno, o Diem-Biem-Phu dos portugueses, o capitão de lá a dizer que a única coisa que podiam fazer era viver de dia e de noite dentro dos abrigos cavados no solo, suportados por troncos e enchidos com cimento em barda. Passavam os dias e as noites a verem a vida em frente por entre os buracos. Abastecidos do ar, dizia para quem o queria ouvir, que os aviões faziam malabarismos para não serem atingidos. Madina vai ser o primeiro aquartelamento a ser tomado pelo PAIGC, ouvia-se em muitas bocas que era um assunto arrumado.


Os Fiats G-91 já estavam operacionais, a esperança da manutenção da superioridade via-se em algumas caras, confirmavam-se notícias de acções sobre antiaéreas do PAIGC. E os lobos maus, os Alouettes III armados com canhão e metralhadora, passadas as experiências, também já apoiavam as forças terrestres.

Alouette III armado. 
Foto da net. 

E os ataques dos guerrilheiros com foguetes a vários aquartelamentos também começavam a ser frequentes. O norte em brasa, Barro, Bigene, Guidage, o Oio nem se fala, o sul quase fora do controlo, o leste ainda assim-assim.
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Nota:
1 - Pistola metralhadora utilizada pelas tropas da URSS durante a 2.ª Grande Guerra. Nos anos a seguir a PPSH foi utilizada por numerosos movimentos guerrilheiros apoiados pela URSS. Encravava com alguma facilidade, especialmente com o carregador em forma de tambor, e a alta cadência de tiro (cerca de 900 por minuto) aliada à facilidade de disparo faziam com que rapidamente se gastassem munições disponíveis, o que acarretava alguns problemas logísticos à guerrilha. A elevada cadência de tiro levou a que as NT lhe pusessem o nome de costureirinha.

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3- Os últimos dias 

Natal à porta, as montras de Bissau mudaram a cara, muitos militares nas ruas a entrarem e a saírem das lojas. Há um ano andava por Barro e Bigene, foi um fim de ano diferente.
No QG organizaram uma Ceia de Natal como devia ser, bacalhau e os doces todos. Estava lá toda a oficialada superior, Comandante Militar incluído, e familiares, mulheres e filhos, alguns vindos de Lisboa para passar o Natal com os papás.

Bebeu-se muito bem, alguns demasiado, como acontece sempre. Depois, ao ar livre, viram um filme italiano, com o Gianni Morandi, um cantor italiano que estava na moda, a fazer o papel principal dentro da farda de um soldado, estavam à espera de quê, que fosse de um capitão? Um apaixonado, aquele Morandi, tirava canções atrás de canções. Tantas que a maralha lá de trás, entusiasmada, começou a acompanhar a música, primeiro um, muito baixo, depois já se sabe como é, outros entusiastas também, até o Morandi se virou para eles, a cantar de lágrimas nos olhos. Falta de respeito! Uns alferes de merda, uns comunistóides, que é para isso que agora servem as universidades, sussurrava um major voltado lá para trás!

Entrou Janeiro, a primeira semana nunca mais acabava, minuto a minuto, até de noite! A confirmação da data de chegada do Uíge também chegou naqueles dias. A 17 deste mês, disse-lhe o Manaças, a par de tudo o que fosse transportes. Estou a dizer-te, pá, já saíram de Lisboa, estão neste momento a caminho daqui!

E o navio chegou mesmo. As tropas, verdinhas de novas, demoraram uma eternidade a desembarcarem, uma vontade enorme de não mexerem as pernas.

Navio “Uíge” em Bissau. Foto de Torcato Mendonça. Com a devida vénia. 

Estava a vê-los ao longe, na marginal, encostado a uma palmeira. É aquele o navio que te vai levar, amanhã por estas horas estás com a mala na mão, prontinho a entrar. Ficou-se a olhar para eles a saírem devagar, um a um até às lanchas, depois já no cais, perdidos, para um lado e para outro, pareciam formigas. Alguns daqueles não voltam a ver Lisboa.
Bom, vamos lá embora, até ao Bento, mais uma cerveja para veres melhor, o Manaças sempre ao lado, não o largava nem um segundo. Veio-lhe à memória a despedida do Godinho dos “Camaleões” naquele mesmo cais. E o gesto dele, de um jovem virado ao contrário. Tira do bolso uma pequena caixa de plástico e da boca sai-lhe uma frase: aqui a ganhei, aqui fica! E manda a caixa pelo ar até ao Geba.

Sabias que na noite de consoada, um soldado em Tite descarregou a G-3 no capitão?
Não quero saber de mais nada, Manaças, quero é ir-me embora. Da Guiné, agora só quero ostras no Fonseca.

Nem no Fonseca se podia estar, tanta gente nas mesas. O Augusto, um guineense que a sua companhia de Cuntima recolhera no mato e que depois aprendera com eles a ler, recebeu-o com um abraço, até se esqueceu que estava de serviço às mesas. Arranja mesa, pois claro, alferes, tem que arranjar! A sala cheia de fumo, aromas de álcoois, de muita gente também.

As cores da pele desta gente, das roupas, são quase todas iguais. As cores daqui são diferentes das que estamos habituados a ver na metrópole, um periquito da mesa do lado.

A Guiné não tem cor, tem cores, as que eu vejo andam todas à volta de tons de verde do claro ao escuro, o Manaças sonhador. A cor de fundo, a que vai comigo, é a cor do uísque e da cerveja, Manaças.

Tanta pressa que chegasse a manhã e ela nunca mais vinha. Deitou-se e levantou-se a noite toda. Mal a luz entrou pela janela atacou a mala. Afinal estava cheia, um peso para burro, o saco ao lado. Os camuflados, as botas de lona que trilharam quilómetros sem conta, as meias esverdeadas, lenços, os restos todos arrumados ao canto do quarto. Antes de sair volto a despedir-me destes camuflados que me chuparam o suor e a água das chuvas, desta tralha que me acompanhou estes tempos todos.

Depois o andar das horas acelerou, nem deu tempo para se despedir de ninguém, tudo para trás. Ficara sem olhos, não via nada. Mal deu pelo Major Pereira da Silva, só reparou quando ele o interpelou, sorridente. Isso é que é pressa, alferes! Não se esqueça, a sua vida vai agora recomeçar, as guerras vão ser outras! E pense naquela escola de que falámos, a de Lausanne.

Leva a Guiné aqui dentro, não? Mala nas mãos do motorista do Manaças, saco nas costas dele, o quarto numa desarrumação, deixa estar, a malta arruma tudo. Parou, olhou para trás, para os restos que deixava, dois anos ali no chão. Ainda pegou no lenço negro, do pescoço, que sempre o acompanhou por aquelas terras. Siga a marinha, para o cais antes que a piroga se pisgue. Ainda falta muito, pá, só embarcas depois das 5 da tarde. Ainda tens duas ou três horas à tua frente, vamos até ao Bento, sentamo-nos lá um bocado.

Uma emoção no cais. Rostos magros, amarelos, sorriso tristes, ausentes, ar de cansaço, sentados em cima das malas alinhadas, etiquetas coladas. Outros, mais exuberantes a dançar o malhão, o vira e o corridinho. Tudo pronto à espera da ordem de embarque para as lanchas. A primeira a partir, a segunda meia hora depois. Qual meia hora, cinco minutos para aí, ainda ali vai, pá! Outra, outra, nunca mais chegava a vez dele. Mas chegou, foi das últimas, mas foi. Manaças amigo!

Pá, vai direitinho, olha o chão, cuidado com as escadas. 
As luzes de Bissau ali e só tinha olhos para o Uíge, ainda tão longe, mas desta vez deve ser, devo mesmo ir-me embora.

Mal subiu a escada, o camarote onde é? Meteu-se lá para dentro e fechou a porta. Acabou-se a Guiné. Porta fechada? Julguei que não abria, um camarada com a mala. Está a ouvir estes rebentamentos? Deve ser em Jabadá, não?

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(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15385: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXII Parte): Outros horários; Contas com os fornecedores; Um mês e meio para o fim; Um Folgado no QG e VAT 69

Guiné 63/74 - P15416: Notas de leitura (780): “Sopros de vida”, por José Lemos Vale, Fonte da Palavra, 2011 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2015:

Queridos amigos,
É uma leitura que nos permite ficar a conhecer a formação dos enfermeiros militares. Temos aqui um registo de exaltação do enfermeiro a falar desses enfermeiros, alguém que escreveu que os feridos da guerra colonial, na sua agonia e sofrimento aprenderam a só reconhecer um verdadeiro herói na pessoa do enfermeiro de combate que, desarmado e debaixo de fogo, os socorria nas picadas lamacentas. E dei comigo a pensar que ainda não li um elogio semelhante aos maqueiros, falando por mim tive o privilégio da colaboração de maqueiros extremosos que me acompanhavam nas operações, as populações do Cuor confiavam neles, acompanhavam os doentes até à consulta médica, faziam pequenos tratamentos a qualquer hora do dia e da noite.
Por favor, se conhecerem relatos sobre estes maqueiros peço-vos a amabilidade de mos transmitirem.

Um abraço do
Mário


Sopros de vida, por José Lemos Vale

Beja Santos

“Sopros de vida”, por José Lemos Vale, Fonte da Palavra, 2011, é uma homenagem de quem foi enfermeiro na CART 3505 de 1972 a 1974 e atuou em Diaca, Cabo Delgado, Moçambique. O autor esclarece: “O principal objetivo deste livro é o de relembrar a ação humanitária dos ex-enfermeiros militares e sobretudo a abnegação, coragem, sentido de entrega e generosidade de todos os ex-enfermeiros operacionais e das ex-enfermeiras paraquedistas que prestaram serviço na guerra colonial”. E exalta o combatente enfermeiro: “Era ao enfermeiro que cabia dizer ao companheiro caído, trespassado por uma rajada de metralhadora, que tivesse coragem, que não iria morrer, que tivesse fé e era a ele que cabia procurar, na picada ou no capim, o que restava do homem feito em pedaços por uma mina e depois arrumar o que pode encontrar para que as famílias viessem a ter algo dos seus entes queridos para velar. Quando se ouvia o sinistro estrondo de uma mina, ou o ladrar raivoso das metralhadoras a disparar a morte em pedaços de chumbo em brasa, todos os soldados se atiravam ao chão e se protegiam debaixo das viaturas ou num buraco qualquer. Todos, não! Carregando uma singela maleta com alguns medicamentos de primeiros socorros, os enfermeiros de combate corriam desarmados, debaixo de fogo inimigo, sob chuvas diluvianas ou sol abrasador, rastejavam nas tormentosas picadas tentando socorrer um companheiro em dificuldades ou em risco de morte que, em desfalecimento, suplicava: enfermeiro, aqui”.

O autor introduz um punhado de relatos de feridos em combate, onde constam os de Arquimínio Carrasco Marcão, da Companhia de Caçadores Paraquedistas 121, Guiné, 1970-1972, José Pereira Lopes, Guiné, 1972-1974 e Victor Tavares, também da Companhia de Caçadores Paraquedistas 121. Arquimínio Marcão depõe: “Eu regressei ferido. Fui apanhado numa emboscada quando já tinha 19 meses de comissão e ia ser distinguido com o Prémio Governador da Guiné. Depois deram-me um louvor. Uma rajada de metralhadora atingiu-me na barriga, no braço esquerdo, e o mais grave na perna esquerda: a bala entrou junto ao joelho e saiu entre as pernas”. José Pereira Lopes vivenciou o inferno de Gadamael: “Eramos obrigados a ir para as valas de água para fugirmos aos ataques. O pouco que comíamos era debaixo de fogo. Alguns, com a aflição de tentar fugir, atiraram-se ao mar e acabaram por morrer afogados”. Victor Tavares recorda a operação “Pato Azul”, na zona de Tite, o Alferes Afonso Abreu pisou uma mina antipessoal, improvisou-se uma maca alguns metros à frente um dos paraquedistas que pegava na maca acionou o fornilho que matou seis militares, incluindo o sinistrado alferes. E expõe a situação: “O Sousa, enfermeiro, que até aí tinha sido um herói no socorro ao Alferes Abreu e que seguia ao lado da maca segurando o frasco do soro, viria a morrer ficando sem um dos braços. Regressados ao destacamento, os feridos mais graves foram conduzidos para tendas onde lhes foram prestados os primeiros socorros por enfermeiros e socorristas que não tinham mãos a medir para aqueles que mais sofriam: uns choravam em sofrimento, porque os paraquedistas também choram”.

Esclarece a formação dos enfermeiros militares. No Hospital Militar Principal especializavam-se os cabos milicianos que seguiam para África como furriéis enfermeiros. No Regimento do Serviço de Saúde preparavam-se os soldados que eram enviados para a guerra como primeiros cabos enfermeiros. A instrução e especialização consistiam essencialmente em aulas teóricas onde os instruendos aprendiam matérias como: avaliação e tratamento do estado de choque; traumatismo craniano e torácico; improvisação de talas ortopédicas; urgências respiratórias e reanimação cardiorrespiratória; tratamento do choque anafilático; noções de traqueostomia (teoria); prática de pequenas cirurgias; estancamento de hemorragias; imobilização de fraturas internas; analgesia e sedação; tratamento de feridas extensas; injetáveis de vária natureza; tratamento antiofídico e antipalúdico; tratamento de doenças venéreas. No Regimento de Serviço de Saúde era também dada formação às especialidades de maqueiros e analistas de águas. Refletindo sobre as condições terríveis do trabalho do enfermeiro, recorda-nos que por vezes ele cedia às emoções e dá a sua interpretação: “Não é fácil ver um homem com os intestinos a saírem-lhe do abdómen e derramados pelo chão. É algo de pavoroso ver um corpo sem pernas, sem braços, às vezes sem as pernas e os braços. É arrepiante ver a massa encefálica a escorrer do crânio desfigurado por ter ficado sem parte da cara”. E comenta seguidamente o tratamento-tipo destes feridos e como se procurava aplacar as dores em estado de choque ou para impedir o aparecimento de gangrenas, por exemplo. Refere ainda o apoio psicológico do enfermeiro a militares deprimidos e em quadros de tentativa de suicídio. Menciona mesmo que o número de mortes de militares por suicídio foi muito significativo, o que sinceramente me deixou confuso, nunca considerei esta possibilidade. Para os grandes feridos era pedida uma evacuação e aí entravam as enfermeiras paraquedistas. Lemos Vale recolheu testemunhos de dois enfermeiros militares, dois deles antigos combatentes da Guiné: Hugo Rodrigues Coimbra e José Eduardo Reis Oliveira que nós aqui no blogue conhecemos por JERO.

A recordatória das enfermeiras paraquedistas tem sido alvo de vários livros dos últimos anos, a sua formação, a mudança que trouxeram as tradições militares, os primeiros cursos destas boinas verdes, são assunto sobejamente conhecido. Ganham realce alguns depoimentos destas briosas profissionais de saúde como o de Zulmira André que foi buscar a Guileje o Capitão Peralta, no âmbito da operação “Jove”. O autor tece-lhes uma homenagem tocante, lembra como elas excederam todas as expetativas dos responsáveis daquele projeto pioneiro, estas enfermeiras levaram os combatentes o carinho, o profissionalismo, o altruísmo e o elevado sentido de missão, pondo a mulher num plano jamais observado, não como enfermeira num Hospital de Guerra mas indo fisicamente a locais de muito risco, salvar vidas.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15410: Notas de leitura (779): "Combater duas vezes: as mulheres na luta armada em Angola", da antiga combatente do MPLA e hoje antropóloga Margarida Paredes (Vila do Conde: Verso da História, 2015)

Guiné 63/74 - P15415: Os manuais escolares que nos forma(ta)ram (1): Geografia, Portugal e Colónias, 3ª e 4ª classes, de A. de Vasconcelos, c. 1940 - Parte I: "A superfície das colónias portuguesas é 23 vezes maior que a superfície de Portugal Continental" (p. 93)... Éramos então a maior potência colonial, a seguir à Inglaterra e à França...



VASCONCELOS. A[ugusto Pinto Duarte] de - Geografia Portugal e Colónias, 3ª e 4ª classes, nova edição. Porto: Editorial Domingos Barreira, [1940], 118 + 1 pp., ilustrado, 18 cm. 

[Cópia em formato ppt que nos chegou por intermédio do nosso grã-tabanqueiro Mário Beja Santos... Há também uma cópia disponibilizada na Net por Armando Oliveira  Professor, Escola Secundária de S. Pedro da Cova, em 25 de junho de 2015]


Este livro do professor do ensino oficial Augusto de Vasconcelos já ia na 5ª edição, em 1930 (ano em que terá falecido, no Porto, segundo o Arquivo Municipal do Porto). Temos dúvidas sobre a data desta "nova edição", mas só pode ser dos anos 40: Bissau torna-se a capital da Guiné em 1941... não sabemos como o manual foi sendo atualizado e editado, depois da morte do autor).

Também não sabemos se chegou a  tornar-se livro  único, de acordo com a orientação do todo poderoso ministro António Carmeiro Pacheco (1887-1957), nos anos 30, que definiu as grandes linhas da política de educação nacional sob o Estado Novo:  (i) transformação do Ministério da Instrução Pública (designação cara à I República) em Ministério da Educação Nacional; (ii) criação da Mocidade Portuguesa, Mocidade Feminina e Obra das Mães pela Educação Nacional; (iii) criação da  Junta Nacional da Educação, a par do Instituto para a Alta Cultura, a Academia Portuguesa da História e o Instituto Nacional de Educação Física; (iv) introdução do modelo do livro único; (v)  obrigatoriedade de afixação do crucifixo nas salas de aula; (vi)  casamento das professoras sujeito à autorização do Estado. (A Reforma Carneiro Pacheco ficou definida pela  pela Lei n.º 1941, de 11 de Abril de 1936, a Lei de Bases da Educação do Estado Novo).

Segundo Sérgio Claudino ("Os compêndios escolares de geografia no Estado Novo: mitos e realidades", Finisterra, XL, 79, 2005, pp. 195-208), a disciplina de geografia foi suprimida no ensino primário, nos anos 30, mas continuaram a produzir-se manuais... No ensino liceal, só "em meados dos anos 50, se inicia a aprovação de livros únicos de Geografia, de conceituados professores liceais"...

Segundo o citado autor, há uma primeira reforma da instrução primária, em 1927, sob a Ditadura Militar. Na 3ª classe, "os alunos abordam noções gerais de Geografia e aspectos físicos de Portugal". Na 4ª classe, dava-se a "orografia de Portugal e Colónias"... A reforma de 1929 vai acrescentar o estudo do Brasil, até então o principal destino da emigração portuguesa. É nesse ano que se abre "concurso para a aprovação governamental dos livros escolares que os professores poderão seleccionar" (p. 197)... Em 1937, abre-se concurso para o livro único, mas não aparecem textos de qualidade.  O autor onsagrado e reconhecido pelas autoridades eram  o Acácio Guimarães( Noções de Geografia da 3.ª e 4.ª classes. Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, 1931).

O ensino da Geografia vai-se manter, na instrução primária, até aos anos 60, em "ilegalidade formal"... É nessa época que aparece a disciplina de Ciências Geográfico-Naturais nas quatro classes...

Portanto, é bem possível que alguns de nós ainda tenham conhecido este manual de Geografia de A. de Vasconcelos. Tenho ideia que o meu pai estudou por ele... 



Geografia, op. cit., p. 93: "A superfície das colónias portuguesas é de 23 vezes maior que a superfície de Portugal Continental", o que nos coloca(va) entre as três maiores potências coloniais do mundo...

Geografia..., op. cit, p. 82: o território era então dividido em 3 partes, espalhadas por 4 continentes; (i) Continental; (ii) Insular (ou "ilhas adjacentes"); e (iii)  Ultramarina ("colónias ou províncias ultramarinas").


Geografia..., op. cit, p. 83





Geografia... op cit, pp. 97, 99-100 > 

Sobre a província da Guiné ficamos a saber que na época [c.1940] tinha à volta de 600 mil habitantes. (Estamos em crer que este número está sobreestimado:  a população da Guinée era de 519 mil (1960), tendo descrescido para 487,5 mil (em 1970)... É hoje de 1 milhão e meio.

A capital já era, nessa altura,  Bissau. E outras "povoações importantes" eram Bolama, Cacheu, Farim, Geba (!), Buba e Cacine... Repare-se que Bafatá nem sequer consta da lista: a única povoação importante do leste (chão fula) é Geba, completamente decadente no final dos anos 60, ofuscada pela vizinha Bafatá!... O desenvolvimento de Bafatá (a "princesa do Geba") estará ligado à expansão da cultura da mancarra, a partir dos anos 40.

Ah!, e ainda segundo o manual,  "nos sertões há muitos animais ferozes": tigre (!) (sic), leão, pantera, onça, lobo e hiena... (Essa do tigre, um felino asiático, dá vontade de rir!)... De entre as produções agrícolas, destaca-se depois do arroz e do milho, a "jinguba" (mancarra, no nosso tempo)...

Geografia..., op. cit, p.  98

Já desde o liberalismo, em meados do sec. XIX,  e até à rectificação de fronteiras com os franceses (que levou à troca da região de Casamansa com a de Cacine ou de Quitafine, em 1886), a Guiné estava dividida em dois distritos:  (i) Bissau, que compreendia as praças de S. José de Bissau, com as dependências do presídio de Geba (*), da feitoria de Fá, das ilhas de Bolama e das Galinhas; e (ii) Cacheu, que compreendia Ziguinchor (hoje capital de Casamansa, no Senegal), Cacheu, Bolor e Farim.  Este mapa é revelador da fraca penetração portuguesa no interior do território até à I República...

É bom recordar que a Guiné só em 1879 é que se separa administrativamente de Cabo Verde. É nessa altura que Bolama passa a ser a capital. Só seis décadas depois, em 9 de dezembro de 1941, é Bissau se torna a moderna capital da colónia, conhecendo então um surto de desenvolvimento sob a ação enérgica e esclarecida do governador Sarmento Rodrigues.

Na época a Guiné Portuguesa fazia fronteira com a Guiné... Francesa.

(Edição das imagens  e notas: LG)
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Nota do editor:

(*) Sobre "presídio de Geba" nos finais do séc. XIX, vd. poste 21 de junho de 2005 > Guiné 63/74 - P71: Antologia (3): Sócio-antropologia da família e da mulher em Geba, nos finais do Séc. XIX (Marques Lopes)