1. Segunda parte do Depoimento de um antigo combatente na diáspora, da autoria do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviado ao Blogue em 14 de Janeiro de 2016:
Depoimento de um antigo combatente na diáspora*
2 - A reintegração na vida civil e a saída para a diáspora
Na chegada ao Faial (17 de Janeiro de 1973) não havia ninguém à minha
espera. A minha família partira para os Estados Unidos da América ainda
antes de eu ter ido cumprir o serviço militar. A madrinha de guerra que
me acompanhara tão abnegadamente durante os dois anos de comissão,
também ela emigrante, era uma doce recordação, um amor que já não era
segredo. O tempo se encarregaria de nos juntar.
Sem
casa, sem família ou namorada por perto e com os amigos da minha idade
ainda a cumprirem o seu serviço militar ou a estudarem na universidade,
sentia-me mais só que nunca. Apenas me animava a esperança que, em
breve, também emigraria, indo ao encontro daqueles que me deram o ser e
esperavam por mim.
Não sentia a falta do serviço militar, mas sonhava com as situações
passadas e lembrava com uma saudade tremenda aqueles jovens com quem
vivera e que jamais esqueceria. Irmãos que o foram e jamais deixarão de o
ser.
Apresentei-me na Circunscrição Florestal da Horta. Pretendia voltar ao
trabalho. Fora dali que partira para o serviço militar. E seria ali que
iria sofrer a primeira grande desilusão como cidadão de Portugal, mas
também a certeza de que o mundo era servido por gente boa. A minha
posição naquela Circunscrição não tinha sido salvaguardada. O Governo
que me tirara ao seio da família, agora tirava-me o trabalho, depois de
eu ter cumprido com todos os meus deveres como cidadão.
Não
podia ser, não acreditava. Insisti que não era correto o que me estava a
acontecer. O Engenheiro Olavo Simas, Chefe da Circunscrição, e o Chefe
de Secretaria, o Sr. Fernando dos A.A. Campos, dois homens de
inigualável humanismo, compreenderam a situação e o meu protesto. Seria
reintegrado no trabalho uns dias depois das férias regimentais.
Entretanto,
recebera a 27 de Janeiro de 1973 o termo de responsabilidade, o
contrato de trabalho e a carta de chamada, documentos que iriam mudar
por completo o rumo da minha vida. Como tantos outros iria emigrar para
os Estados Unidos da América.
Com aqueles preciosos
documentos na mão dirigi-me ao escritório do agente de viagens e
emigração que me aconselhou sobre o processo burocrático para obter
passaporte português e o visto pelas autoridades americanas. Para tanto
deveria começar pela obtenção da licença militar para me ausentar para o
estrangeiro e do certificado de registo criminal, além de outra
documentação e exames médicos. Tudo parecia fácil, para logo descobrir
que não seria assim quando me dirigi à secretaria do Comando Militar da
Horta e ali fui informado que sem a caderneta militar não poderiam
passar a licença. Também teria que aguardar pela passagem definitiva à
disponibilidade o que só aconteceria a 7 de Fevereiro de 1973. Houve que
movimentar boas-vontades na Repartição de Mobilização e uma cópia da
minha Nota de Assentos foi enviada para o Comando Militar da Horta, ao
mesmo tempo que autorizava aquele a passar-me a necessária Licença
Militar.
No dia 13 de Abril de 1973, precisamente 3
meses após ter desembarcado em Lisboa vindo da Guiné, era assinada a
licença militar para me ausentar definitivamente para os Estados Unidos
da América. A licença custou em selos fiscais 1.063$00 (mil e sessenta e
três escudos), o que constituía para a época uma quantia assinalável.
Mais que o dispêndio magoou-me ter que pagar por uma licença militar
depois de ter cumprido com honra e dignidade os meus deveres para com a
Pátria. Para além disso, atrasou todo o meu processo de emigração em
cerca de dois meses.
Licença militar. Aqui para nós, consegui-a sem ter a caderneta militar. Mas foram precisas muitas ajudas. A começar em Bolama. Uma história muito comprida.
Foi em Ponta Delgada que encontrei
alguns membros da CCaç 3327 e da CCaç 3328 também eles a prepararem o
processo de emigração. Para além daqueles que faziam parte da minha
vivência na Ilha do Faial, este encontro tinha um sabor especial pois um
deles, o José Serpa, um florentino, tinha sido soldado da minha secção.
Dos outros recordo-me do António Maria Vasconcelos, do José Carvalho,
também eles florentinos, e o micaelense João Carlos Reboredo. Era o meu
primeiro grande encontro com um passado ainda recente. Por eles soube
que já estavam na posse da respetiva caderneta militar. Infelizmente,
com imensa pena minha, nunca recebi a minha.
No Sábado,
dia 21 de Julho de 1973, embarcava para ilha de Santa Maria e dali para
o Estado de Massachusetts, EUA, onde chegaria nesse mesmo dia a casa
dos meus pais sem ter avisado ninguém da minha chegada. Quarenta e
quatro meses depois, agora em terras da América, voltava a abraçar a
minha família.
Cerca de três meses após a minha chegada
a terras americanas, já na posse do meu cartão da Segurança Social e do
cartão Residente Permanente, o chamado cartão verde (talvez devido à
sua cor), vi-me obrigado pela força das leis deste país a inscrever-me
no Selective Service, o Departamento de Recrutamento dos Estados Unidos
da América. Saíra de uma guerra e já me sentia perto de outra, a do
Vietname. Não fui chamado e com a profissionalização das Forças Armadas
Americanas, passei definitivamente à disponibilidade em 1976. Na altura,
ainda solteiro e sem obrigações, se chamado a cumprir, eu julgo que em
última análise teria regressado aos Açores.
A minha inscrição no "Departamento de Recrutamento" das FA dos EUA, o chamado Selective Service.
Com o
passar do tempo, neste Novo Mundo para mim, fui-me apercebendo das
grandes diferenças com a minha vivência recente, a portuguesa e, em
particular, a açoriana. O vigor da sociedade americana e da sua economia
assentava primariamente no respeito pelas instituições.
As diferentes comunidades portuguesas, com reconhecida capacidade de
trabalho e honestidade, manifestavam-se sobretudo através das suas
preferências religiosas, promovendo as procissões ao Senhor Santo Cristo
dos Milagres, ao Divino Espírito Santo e a Nossa Senhora de Fátima.
Como
bom açoriano, sentia profundamente as manifestações da nossa
comunidade. Por outro lado, como combatente na chamada Guerra do
Ultramar, via nos grandes desfiles americanos – o Memorial Day, o
Independence Day, o Veterans Day – manifestações cívicas e patrióticas,
que demonstravam um sentimento de cidadania e de patriotismo a que não
estava habituado. Não me era indiferente ver os veteranos americanos
marcharem com os seus uniformes, medalhas no peito, saudados com as
palmas dos milhares de pessoas alinhadas ao longo das ruas por onde
passavam os cortejos. Eu também batia palmas enquanto o coração chorava.
Um pormenor do desfile do Memorial Day, em Stoughton. Infelizmente não tenho melhor foto.
A partir de 1981, fazendo parte da Banda Filarmónica de São João,
Stoughton, MA, tomei parte em todas aquelas manifestações. Fazia em
terras da América aquilo que me tinha estado vedado em Portugal. Também
assim prestava a minha homenagem aos que tinham combatido no Ultramar e
nas demais guerras que Portugal sustentara.
Foto do Jornal Portuguese Times. Na foto eu vou com a Bandeira Portuguesa à frente da Banda Filarmónica de São João, da qual sou um sócio fundador.
Muito
recentemente, na área da Nova Inglaterra, apareceram as primeiras
organizações de antigos combatentes do Ultramar, que abracei de
imediato. A mais antiga, circunscrita a Lowell, Massachusetts, por isso
mesmo com uma ação pouco participativa e abrangente, desfila no Boston
Portuguese Festival, o Dia de Portugal, na área consular de Boston. A
organização comemora o 25 de Abril e tem uniforme próprio. Na cidade de
Lowell há um monumento de homenagem aos combatentes do Ultramar,
contributo daquela Associação de Veteranos Portugueses da Guerra do
Ultramar.
A Associação de Veteranos das Força Armadas Portuguesas recebe um Diploma de Reconhecimento da Câmara de Deputados do Estado de Massachusetts
Outra organização, a Liga de Emigrantes da
Nova Inglaterra Combatentes das Ex-Colónias, apareceu sediada em Fall
River. Relativamente bem estruturada, com estatutos próprios, processo
de incorporação adiantado, acabou por se afogar na sua própria
dinâmica. A falta de compreensão relativamente aos seus objetivos
principais e o divisionismo que provocou entre os seus associados, bem
evidentes nas primeiras reuniões, a exorbitante cotização (60 dólares
anuais) e algumas exigências da Liga Portuguesa de Combatentes a que se
havia filiado foram algumas das razões que levaram ao desaparecimento
precoce desta associação, que não viveu tempo suficiente para ter uma
ação participativa digna de registo.
Fui associado e assíduo participante nas reuniões daquela Liga que vi desaparecer precocemente com mágoa.
Ainda
antes do desaparecimento daquela Liga, alguns dos seus associados deram
início a uma outra organização, a Associação de Veteranos Portugueses,
com sede em Taunton. Tem estatutos próprios e muito simples. Com mais de
cem associados, esta organização tem uma ação muito participativa no
meio comunitário português e, o que é de louvar, nas manifestações
patrióticas americanas.
Nas ações em que já tomou
parte, há que realçar a sua participação no hastear da bandeira
portuguesa no Dia de Portugal nas diversas cidades da área consular de
New Bedford, nos cortejos realizados no âmbito
Para além dessas manifestações de índole religiosa e patriótica, a Associação
tem alguma actividade filantrópica participando com os seus fracos
recursos financeiros para organizações de pesquisa e assistência social.
Em Fall River, a Associação de Veteranos das Forças Armadas Portuguesas desfila nas Grandes Festas do Espírito Santo. Reparar na quantidade de pessoas que assistem a este desfile.
A Associação tem a sua reunião anual no mês de Novembro, a cotização é de
quinze dólares anuais, tem uniforme próprio custeado individualmente
pelos próprios associados. A Associação tem o seu banquete anual no
fim-de-semana mais próximo do dia 25 de Abril. Esta data também marca o
começo das atividades que se irão seguir durante o verão.
Sou
associado desta Associação e participo activamente nas suas ações.
Sinto um prazer especial em fazê-lo, até porque é dirigida por cabos e
soldados do exército português, combatentes que foram nas províncias
ultramarinas. Os graduados associados, quatro, são observadores
cúmplices nesta excelente organização de militares que foram no exército
de Portugal.
Para além dos objetivos primários destas
associações de combatentes, elas também servem como ponto de encontro
com o nosso passado de combatentes na Guerra do Ultramar. Ali as
cicatrizes psicológicas provocadas pelas diferentes lutas deixam de ser
um tabu e acrescentam novas páginas à história da guerra. No encontro
com os velhos amigos e camaradas voltamos a ser os jovens voluntariosos e
abnegados de então. Voltámos ao passado que a história não poderá
esquecer. Naturalmente que todas essas associações de emigrantes
sucumbirão perante a voragem da roda da vida. Elas serão, e só isso,
tesouros desaparecidos.
Da minha integração e
participação em algumas dessas associações senti a urgência de ir à
procura dos muitos amigos que criara na CCaç 3327, queria saber daqueles
que tinham feito parte da minha secção. Por estes lados tinha
encontrado alguns, meia dúzia, e o mesmo era verdade nos Açores. Através
da NET encontrei o blogue “Luís Graça e Camaradas da Guiné”,
essencialmente dedicado à Guiné. Apercebi-me da quantidade de camaradas
que escreviam sobre os convívios anuais das suas unidades e o sentimento
gratificante que sentiam com a realização daqueles encontros. E por que
não a minha companhia onde deixara tantos bons amigos?
Os convívios servem para isso mesmo, matar as saudades e abraçar os nossos camaradas.
Daqui,
dos EUA, usando o Roteiro da Saudade da companhia, pesquisando os
nomes através das páginas brancas das redes telefónicas lá fui
encontrando alguns camaradas. Num trabalhão tremendo inicial, mais tarde
suavizado com alguma ajuda, conseguiu-se o nosso primeiro convívio em
Coimbra. Entre camaradas e familiares juntámos cento e dez pessoas, um
sucesso inimaginável. Importante mesmo foi o abraço de reconhecimento,
de camaradagem, de saudade. Valeu mais que a pena.
De
então para cá, o convívio tem-se feito alternadamente nos Açores e no
Continente. E sempre com o mesmo sucesso, se atendermos a que muitos
açorianos se encontram emigrados nos EUA e Canadá.
O regresso a Tavira
Durante
o convívio realizado na Terceira fora sugerido que o próximo a ser
realizado nos Açores fosse em São Miguel. Era convicção dos presentes
que aquela ilha, sendo berço de muitos militares da companhia,
proporcionaria a estes a possibilidade de estarem presentes. Se a
premissa é correta, a realidade é que a emigração roubou muitos dos seus
filhos. Mas isso não nos fez desistir até porque ainda tínhamos uma
missão a cumprir.
Baseado naquele alvitre, sugeri a
compra da campa tumular e a homenagem ao Manuel Veríssimo de Oliveira.
Bem aceite por todos, já durante o convívio de 2012, foram angariados
alguns fundos para aquele fim que foram juntos ao saldo que vinha dos
convívios anteriores. Com o andar dos meses, por telefone, correio
eletrónico e outra correspondência julgada normal fui apelando à
generosidade dos antigos militares da CCaç 3327 até conseguir os fundos
necessários para cobrir as despesas inerentes à compra da campa e
homenagem àquele nosso militar. A verdade é que a generosidade dos
elementos da companhia ultrapassou em muito o orçamento previsto. E
quando assim é só posso estar imensamente agradecido.
No
dia 27 de Julho de 2013, na presença dos familiares, autoridades locais
e outros convidados, o Manuel recebia a homenagem dos camaradas e
amigos da sua companhia que na altura da sua morte não fora possível
fazer-se. A Guiné nos uniu, a morte não nos separou. Não cheguei a tempo
de abraçar a sua mãe, nenhum de nós chegou, mas fiquei com a certeza de
que o cemitério da Lomba de São Pedro foi pequeno demais para albergar a
grandeza do coração das gentes ali presentes e de muitos outros que
gostariam de lá ter estado.
O encontro com o meu passado, quatro elementos da minha secção.
Hoje, revivendo as minhas
memórias, não sinto nostalgia pelo passado. Todavia, não posso negar a
presença constante daqueles que assentaram raízes no meu coração. As
grandes lições que aprendi ao seu lado levam-me a acreditar que a
história na sua constante evolução à procura da perfeição será muito
benevolente para com a mais sacrificada geração de portugueses, aquela
que participou na Guerra no Ultramar.
(FIM)
____________
Nota do editor
(*) Vd. poste de 2 de fevereiro de 2016
Guiné 63/74 - P15699: (In)citações (82): Depoimento de um antigo combatente na diáspora (José Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56) (1): As experiências humanas que a guerra me proporcionou