por Jorge Cabral
Bacalhau ensaboado e os Três Reis Magos. Poucos são os Natais de que me lembro. E no entanto, já passei mais de setenta. Mas este, Missirá 1970, nunca esqueci. Tínhamos bacalhau. Tínhamos batatas, Fomos tarde para a mesa, a mesma de todos os dias, engordurada, sem toalha. Chegou o panelão fumegante e começámos.
– Caraças!, o bacalhau sabe a sabão! – disse o Branquinho.
E eu para o cozinheiro Teixeirinha:
– Quanto tempo esteve de molho?
– Esqueci-me, meu Alferes, mas o Pechincha, disse que na terra dele, costumavam lavá-lo com sabão e que ficava bom.
– Porra, Teixeirinha! Se não fosse Natal, estavas lixado! Assim, vais à cantina buscar cervejas para a malta toda e pagas a meias com o Pechincha…
Batatas, umas latas de conserva e cerveja morna, pois a arca frigorífica tinha explodido na semana anterior, foi a nossa ceia de Natal.
Meia hora depois apareceu o soldado Alfa Baldé aos gritos:
– Alfero! Alfero! Já nasceu! É macho! É macho!
– Eu não te tinha dito?!
A alegria do Alfa era legítima. Já tinha três filhas e duas mulheres, mas há uns meses fora à sua Tabanca buscar outra mulher, herdada do irmão que havia morrido. Mas não trouxera só a viúva, mas também uma velha, muito velha, a bisavó, que se chamava Maimuna, mas que o Alfero alcunhou logo de a Antepassada. Meia cega passava os dias à porta da morança, dormitando de boca aberta…Nunca falou comigo, mas quando eu passava, sorria mostrando o único dente que conservava:
– Vou ver o teu filho, Alfa! Não lhe vais chamar Alfero Cabral. Vai ser Jesus!
– Desculpa, Alfero! Tem que ser Braima!
E fui com o Branquinho e com o Amaral. Só lá estavam mulheres e o Bebé, todo enfaixado. Logo que entrámos, o Amaral, que estava um pouco tocado, exclamou:
– Nós somos os Três Reis Magos e viemos adorar o Menino Braima!
Vai fazer 46 anos! Dos Três Reis Magos, um morreu e os outros dois estão velhos…Como a Maimuna, já parecem Antepassados…
Jorge Cabral
Lisboa, 7/12/2016
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 63 > c. 1970/71 > O "alfero Cabral" mais o seu pequeno amigo Malan. "Regressado de uma operação, tinha sempre à minha espera o meu amigo Malan".
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 63 > c. 1970/71 > O "alfero Cabral" mais o seu pequeno amigo Malan. "Regressado de uma operação, tinha sempre à minha espera o meu amigo Malan".
Foto (e legenda): © Jorge Cabral (2005). Todos os direitos reservados.[Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) / CCAÇ 12 (1969/71) > O fur mil at inf Arlando Roda, fotografado no presépio montado em Bambadinca, possivelmente no Natal de 1969, no primeiro ano da CCAÇ 12 (que, de julho de 1969 a agosto de 1974, esteve ao serviço de 4 batalhões, sediados no setor L1: BCAÇ 2852 (1968/70), BART 2917 (1970/72), BART 3873 (1972/74) e BCAÇ 4616/73 (1974). O "alfero Cabral" é contemporâneo da "primeira geração" de graduados da CCAÇ 12.
Foto: © Arlindo Roda (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Nota do editor:
Ùltimos cinco postes da série >
9 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15598: Estórias cabralianas (91): Alfero Obstetra, mas também Dentista de Balantas... (Jorge Cabral)
(...) Numa noite, aí pelas três horas, fui acordado pelas Mulheres Grandes, que me pediram para levar uma parturiente a Bambadinca.
Embora a bolanha de Finete estivesse transitável, seria impossível atravessar o rio, acordando o barqueiro. Claro que os partos eram assunto de mulheres e foi com muita relutância que me deixaram observar a situação. Não só observei, como colaborei activamente no nascimento de uma menina. (...)
22 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15526: Estórias cabralianas (90): A Pátria é um Natal, e o Natal é uma Pátria (Jorge Cabral)
(...) Foi no dia 25 de Dezembro de 1970.
Talvez porque o Spinola nos havia visitado há pouco, o Sitafá, o puto que vivia connosco, interrogou-me:
– Alfero, o que é a Pátria? (...)
3 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15070: Estórias cabralianas (89): Os filhos do sonho (Jorge Cabral)
(...) Grande escândalo em Missirá. A bela bajuda Mariama, apareceu grávida. Sobrinha do Régulo e há muito prometida a um importante Daaba de Bambadinca, era preciso averiguar..,
Reuni com o Régulo e chamámos a rapariga, Após um interrogatório cerrado, ela, muito a medo, esclareceu:
– O pai era o Alfero…
– Mas quando e onde?
– É que uma noite sonhei com ele. (...)
29 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15054: Estórias cabralianas (88): A bebé de Missirá (Jorge Cabral)
(...) Só no início de julho de 1969, quando o Pelotão se preparava para ir para Fá é que descobri que além dos vinte e quatro soldados africanos, contava com as respectivas mulheres, filhos, cabras e galinhas… Instalados, o quartel virou tabanca, animada com as brincadeiras das crianças e os risos das mulheres. Todos os soldados fulas eram casados e alguns com mais de uma mulher, pelo que existiam sempre grávidas e partos. (...)
18 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14761: Estórias cabralianas (87): O Espanhol, o alferes Sá de Miranda e a Borboleta que sonhava que era rapariga (Jorge Cabral)
(...) Em Missirá, jantávamos cedo. Éramos apenas onze brancos e rápidamente despachávamos o pé de porco com arroz ou a cavala com batatas. Depois ficávamos à mesa conversando. Alguns mais resistentes permaneciam noite dentro. Um deles era o novo cozinheiro, o Espanhol, soldado básico, que mancava. (...)
Outras estórias cabralianas de temática natalícia:
16 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14037: Estórias cabralianas (85): uma floresta de árvores de Natal... (Jorge Cabral)
Embora a bolanha de Finete estivesse transitável, seria impossível atravessar o rio, acordando o barqueiro. Claro que os partos eram assunto de mulheres e foi com muita relutância que me deixaram observar a situação. Não só observei, como colaborei activamente no nascimento de uma menina. (...)
22 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15526: Estórias cabralianas (90): A Pátria é um Natal, e o Natal é uma Pátria (Jorge Cabral)
Talvez porque o Spinola nos havia visitado há pouco, o Sitafá, o puto que vivia connosco, interrogou-me:
– Alfero, o que é a Pátria? (...)
3 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15070: Estórias cabralianas (89): Os filhos do sonho (Jorge Cabral)
(...) Grande escândalo em Missirá. A bela bajuda Mariama, apareceu grávida. Sobrinha do Régulo e há muito prometida a um importante Daaba de Bambadinca, era preciso averiguar..,
Reuni com o Régulo e chamámos a rapariga, Após um interrogatório cerrado, ela, muito a medo, esclareceu:
– O pai era o Alfero…
– Mas quando e onde?
– É que uma noite sonhei com ele. (...)
(...) Só no início de julho de 1969, quando o Pelotão se preparava para ir para Fá é que descobri que além dos vinte e quatro soldados africanos, contava com as respectivas mulheres, filhos, cabras e galinhas… Instalados, o quartel virou tabanca, animada com as brincadeiras das crianças e os risos das mulheres. Todos os soldados fulas eram casados e alguns com mais de uma mulher, pelo que existiam sempre grávidas e partos. (...)
18 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14761: Estórias cabralianas (87): O Espanhol, o alferes Sá de Miranda e a Borboleta que sonhava que era rapariga (Jorge Cabral)
(...) Em Missirá, jantávamos cedo. Éramos apenas onze brancos e rápidamente despachávamos o pé de porco com arroz ou a cavala com batatas. Depois ficávamos à mesa conversando. Alguns mais resistentes permaneciam noite dentro. Um deles era o novo cozinheiro, o Espanhol, soldado básico, que mancava. (...)
Outras estórias cabralianas de temática natalícia:
16 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14037: Estórias cabralianas (85): uma floresta de árvores de Natal... (Jorge Cabral)
À noite consoámos. Nem tristes, nem alegres. (...)
18 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9223: Estórias cabralianas (69): Onde mora o Natal, alfero ? (Jorge Cabral)
(...) Também houve Natal em Missirá naquele ano de 1970. Na consoada, os onze brancos e o puto Sitafá, que vivia connosco. Todos iam lembrando outros Natais. Dizia um:
– Na minha terra…
E acrescentava outro:
– A minha Mãe fazia… (...)
(...) Porque estamos no Natal, recordas o teu de 1969 e um ataque a Bissaque. Eu passei o meu em Fá, e dias antes, noite dentro, quando já o comemorava por antecipação, acorri a defender a Tabanca de Bissaque, guiado pelo Marinho.Este era um velho, seco e pequenino, guardião das instalações de Fá, desde os anos 50(...).
21 de Dezembro de 2007 >. Guiné 63/74 - P2369: Estórias cabralianas (30): Um Natal em Novembro (Jorge Cabral)
(..) Amanheceu igual, só mais um dia em Missirá. Para o Mato Cão, vai o Alferes, uma secção, e o maqueiro Alpiarça. É lá chegar, esperar, ver o barco e voltar. Não há tempo para o sonho – do outro lado nem Gaia, nem Almada…Já estamos de regresso, ouvimos restolhar. Vem aí gente. Neste lugar só podem ser os turras. Claro que, como sempre, o Alferes empunha apenas o seu pingalim e, em vez do camuflado, enverga camisa branca e calções de banho (...).
13 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P605: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá
(...) Poucos dias faltavam para o Natal, e a tarde estava quente. Todo nu no meu abrigo, fazia a sesta, quando sou despertado por enorme algazarra misturada com os ruídos do helicóptero.
– Alfero, Alfero, é Spínola! – gritam os meus soldados (...).