sexta-feira, 26 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20012: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (12): Comemorando os 20 mil postes, com um excerto das memórias (boas e más) do Paulo Santiago, no Saltinho, como comandante do Pel Caç Nat 53 (1970/72)... Em que se fala dos banhos à fula no Corubal, de uma perna esfacelada por um coice de morteiro e cosida a sangue frio, e ainda dos foguetões 122mm...


O famoso "Jacto do Povo" (, na gíria do PAIGC), o foguetão ou foguete  de 122 mm, que terá sido utilizado pela primeira vez 24 de outubro de 1969 contra Bedanda e só depois em novembro de 1969, numa flagelação contra Bolama, segundo o nosso especialista em artilharia , o nosso camarada e amigo Nuno Rubim. Felizmente para nós, era um arma pouco precisa e fiável e a Guiné, tirando Bissau, a BA 12 em Bissalanca e Bafatá não tinha grandes alvos, civis ou miitares, apropriados...Afinal, a História com H grande, também se faz com a pequena história...



Guiné > Região de Bafatá  > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > c. jan / fev 1971 > O comandante do Pel Caç Nat 53 (1970/72), Paulo Santiago, tomando o seu banho à fula no Rio Corubal.

Foto (e legenda): © Paulo Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Paulo Santiago, Pombal, 2007. Foto: LG
1. Comemorando os vinte mil postes publicados em 15 anos, justamente em 21/7/2019 (*),  facto que passou despercebido à generalidade dos nossos leitores, voltamos a reproduzir um texto de memórias do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho e Contabane, 1970/72) (**):

Em 6 de Janeiro de 1971, fiz vinte e três anos de idade e um ano de tropa. Tinha entrado para o "calhau" em Mafra [, a EPI,], precisamente no dia em que fiz vinte e dois anos, foi o pior aniversário da minha vida, completamente perdido naquele labirinto de escadas e corredores.

Este 6 de Janeiro no Saltinho foi bem bebido, muito whisky a acompanhar umas rodelas de tomate com sal.

Em 21 de Janeiro, aí pelas 21,00 horas, entra um militar da CCAÇ 2701 pelo bar de Sargentos e Oficiais e informa, meio esbaforido, que um dos sentinelas está a avistar uma pequena luz numa curva do rio Corubal, situada aí a uns 500 metros na margem oposta à do quartel.

Saímos todos a correr em direcção ao posto de sentinela, verificando haver de facto uma pequena luz a mover-se no local indicado. Acrescento que a zona em causa daria uma boa base de fogos para uma flagelação ao Saltinho, com uma posterior retirada pelo rio. O abrigo do [Pel Caç Nat] 53 ficava ali ao lado, e foi onde me dirigi, agarrando no morteiro 60 e duas granadas.

Procuro um local, com visibilidade para a curva do rio, instalo o morteiro, joelho direito em terra, mão direita no tubo, calculo a inclinação e aí vai granada. Tudo foi feito com rapidez, esquecendo-me que a zona do Saltinho, contrariamente à maior parte da Guiné, era rochosa, o que resultou em azar. Não vi, estava escuro, o prato da arma ficou assente num afloramento de rocha. À saída da granada o prato desliza na pedra, atingindo-me a perna direita acima do joelho. A pancada foi tão forte que caí para o lado, cheio de dores, pensei logo ter ossos partidos.

O Cap Clemente e o Alf Julião, da CCAÇ 2701, que estavam ao meu lado, agarram-me ao colo e trazem-me para o Posto médico, onde me deitam na marquesa. Felizmente o osso ficou à vista, mas não estava partido. Havia que coser a perna, trabalho para o Fur Mil Enf Freire.

Como não havia anestesia, estavam quatro matulões a imobilizar-me e eu a sentir a agulha a coser-me, a repuxar músculos e peles. Hoje suporto a dor com alguma rusticidade, deverão ser
ainda resquícios do que passei naquela noite. Levei exteriormente quinze pontos e fiquei
inoperacional um mês e poucos dias.

No dia seguinte, deveria ficar de cama, não consegui e rebentei de imediato com um dos pontos. Agarrado a uma pseudo-bengala lá vim beber uns copos para o bar. Foi um mês de grandes exageros (ainda mais) com as bebidas. O maior problema passou a ser o banho, não podia mergulhar no rio, então protegia o penso com um plástico, sentava-me à beira da rio e, com uma bacia, ia virando água por cima da cabeça, um banho à fula.

Chegamos ao Carnaval e resolvem fazer um baile na escola que ficava junto do quartel, ficando eu a beber uns copos no bar . Por volta das vinte horas, ouço várias saídas de arma que não sei determinar. Venho agarrado à bengala dar uma espreitadela à parada, vejo o rasto de vários foguetões (?) dirigindo-se na direcção de Aldeia Formosa, ouço o estrondo dos rebentamentos, repetindo-se de imediato a mesma cena, várias saídas, o rasto dos foguetes e respectivos rebentamentos.

Chega entretanto o pessoal que andava no baile, ficando também a assistir aquela chuva de foguetes e a ouvir os rebentamentos. Aparece o Fur Rui, das Transmissões, informando que o quartel de Aldeia Formosa acaba de perguntar se estávamos a ser atacados, e quais as armas utilizadas no ataque.

Chegou-se à conclusão que as granadas estavam a cair em zona entre Saltinho e Quebo
e a arma era desconhecida. Passados alguns dias veio informação do Com-Chefe: naquele ataque falhado a Aldeia Formosa, o IN tinha utilizado pela primeira vez Foguetes Katyusha, também
conhecidos por Órgãos de Estaline

O foguete 122 mm, o Grad
 (na terminologia do PAIGC
ou "jato do povo").
Foto: Nuno Rubim (2007)
2. Nota do editor LG:

O pretexto é termos chegado aos 20 mil postes e aos 15 anos a blogar (***),  sem esquecer os cerca de 11,2 milhões de "visitantes" e os quase 800 membros (registados) da Tabanca Grande... Mas, como o tempo é curto, e o relógio não pára, e não há patacão para festas, vamos lá ao que interessa, para  refrescar a nossa memória e corrigir a memória futura...

Na realidade, os tais foguetões ou foguetes 122 mm,  já se teriam estreado antes, no TO da Guiné, em Bolama, em 3/11/1969, ou em Bissorã, em 1/5/1970, segundo a tese do nosso camarada Armando Pires (****), o que o Paulo Santiago contesta, em comentário ao poste P9337:

(...) "Não quero contrariar o camarada Armando Pires, mas não estamos a falar da mesma arma, isto é certo. A Katiusha, Orgãos de Estaline, BM 21 Grad,chamemos-lhe um destes nomes, à escolha, é uma arma, conjunto de tubos de lançamento de foguetes, colocada numa viatura pesada. Tem de haver uma picada para a viatura se deslocar, não pode ser levada às  costas. Assim, não estou a ver nenhuma possibilidade de uma viatura pesada, do PAIGC, se deslocar no interior da Guiné para atacar Mansoa, Bissorã, Bolama. Um quartel, perto da fronteira, com alguma dimensão de espaço, caso de Aldeia Formosa, o ataque foi possível, mas com resultados nulos (para o IN). Também não estou a ver um ataque de Katiusha (4 foguetes) lançar apenas três (Bolama) num alvo de grande dimensão.

A info do COMCHEFE  foi que aquele ataque direccionado para Aldeia Formosa, tinha sido o primeiro com a utilização dos Órgãos de Estaline. É só." (****)

Oiçamos também aqui o nosso especialista de armamento, o Luís Dias: havia dois tipos de "foguetão 122 mm", o foguete (míssil) no calibre 122mm, desenvolvido em 1963,  o 122mm BM-21 GRAD, de lançamento múltiplo, e uma variante, o foguete 9P132/BM-21-P,  também de calibre 122mm (mais curto que o modelo standard) a ser lançado por um único tubo – o lançador 9M28/DKZ-B.  (*****)

(...) "A arma Katyusha era originalmente a denominação para os foguetões utilizados pelos multi-lançadores, que eram transportados em diversos tipos de camiões. Depois da guerra, os soviéticos aperfeiçoaram estes multi-lançadores, com o surgimento do míssil 122mm BM-21 GRAD, colocados em viaturas diversas e com diverso número de tubos.

 Aperfeiçoaram também um míssil portátil, na origem do anterior, mas ligeiramente mais curto, com o mesmo calibre, com a denominação 9P132/BM-21-P, que era lançado pelo uni-tubo 9M28/DKZ-B e era este o míssil mais utilizado nos ataques por foguetões na Guiné, pelo menos dentro do território, tendo sido, inclusive, capturadas diversas rampas de lançamento do tipo referido, conforme diversas fotos existente" (...)

O Nuno Rubim (, um abraço para ele, e as suas melhoras!) também prefere chamar-lhe foguete, embora ficasse conhecido, entre nós, no TO da Guiné, como "foguetão 122mm".  Terá sido utilizado pela primeira vez, em Bedanda, antes de Bolama, Cacine e Cufar (******).

__________



(*****) Vd. poste de 1 de janeiro de  2012 > Guiné 63/74 – P9344: Armamento (7): O foguetão de 122 mm (Luís Dias)

(...) O lançador de foguetes Katyusha é uma arma de artilharia (lançador de foguetes múltiplos) desenvolvida e utilizada pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Foi apelidado na época de "Órgão de Estaline" pelas tropas alemãs (em alemão: Stalinorgel) em referência ao dirigente soviético com o mesmo nome. Já o nome Katyusha foi dado pelo Exército Vermelho,  retirado de uma música famosa durante o período da guerra, que contava a história de uma jovem russa (Katyuhsa, diminutivo russo para Catarina) cujo namorado estava longe em virtude da guerra. 

(...) O desenvolvimento dos foguetes lançados por artilharia na URSS iniciou-se em finais dos anos 40, a fim de se substituírem ou complementarem os Katyusha de 82mm, 132mm e 300mm, da II Guerra Mundial. A fábrica estatal, situada em Tula, sob a liderança de A. Ganichev, apresentou um foguete (míssil) no calibre 122mm, em 1963, denominado 122mm BM-21 GRAD. Ao longo de 1964 foram produzidos diversos tipos desta série e a serem transportados em camiões e outros veículos de vários tipos e dimensões, com diversos conjuntos e combinações de lançamento múltiplo. 

Também foi fabricado o Foguete 9P132/BM-21-P, no calibre 122mm (mais curto que o modelo standard, embora também pudesse ser usado por um multi-tubo), a ser lançado por um único tubo – o lançador 9M28/DKZ-B." (...)

(******) Vd. poste de 10 de junho de  2007 > Guiné 63/74 - P1828: Armamento do PAIGC (3): O Foguetão 122 mm ou a arma especial Grad (Nuno Rubim)

Guiné 61/74 - P20011: Notas de leitura (1201): O nosso camarada A. Marques Lopes já chegou ao Brasil, ou melhor, o seu livro "Cabra-cega" (São Paulo: Paperblur, 2019, R$69,90, mais portes do correio)



Capa do livro "Cabra-cega", de A. Marques Lopes, lançado agora no Brasil (Paperblur, São Paulo, 2019). Não está à venda nas livrarias, é impresso sob encomenda, 
um novo conceito de edição.


1. O nosso camarada, cor DFA, reformado, A. Marques Lopes enviou-nos a seguinte
lacónica mensagem:


[A. Marques Lopes:

 (i)  um dos "históricos" da Tabanca Grande: coronel inf, DFA, na situação de reforma:

(ii) foi alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968):

(iii) foi  membro, em 2005, da direção da delegação do norte da Associação 25 de Abril (A25A), 

(iv) e é em termos históricos, o nosso quarto grã-tabanqueiro mais antigo, depois do fundador, Luís Graça, do Sousa de Castro e do Humberto Reis; 


(vi) é autor de "Cabra-Cega: do seminário para a guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015), autobiografia escrita sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que conta a história de António Aiveca; 

(vii) tem 243 referências no nosso blogue]

Data: 25/07/2019, 15:06
Assunto: Cabra.cega


Só para informação:

O meu livro já está publicado no Brasil. A editora Paperblur está ligada à Amazon do Brasil e, táctica segura, só vende por encomenda. Dizem: «Livro impresso sob demanda. Prazo de até 7 dias para produção + prazo dos Correios». O preço é pouco mais de 14€ mas há mais os “fretes”. Ver o link.


2.  Livro “Cabra-Cega” (Lopes, António M.)

R$69,90

Sinopse

O autor assume a personagem Aiveca para contar a sua própria história. Ele sou eu, ou o que passaste é tal e qual o que eu passei. E, assim, vai contando a sua ida para o seminário e as várias etapas do que lá passou: seminário menor, noviciado, filosofia e professor em colégio de meninos pobres. Aspectos do conflito com o director do seminário, reflexões sobre anseios amarfanhados. 

Fora do seminário, antes dele e depois, é a constatação da pobreza do povo português, da repressão política e mental. Já como militar, diz como foi a sua preparação para a guerra, a mentalização feita para tal, o relato de uma deserção e fuga para o estrangeiro. 

Durante a guerra colonial na Guiné: operações difíceis e sofredoras, dúvidas sobre a guerra, conflitos com as patentes superiores, história das circunstâncias do seu ferimento, como foi considerado desaparecido em combate. E os amores depois de vir ferido, e os que teve lá na Guiné durante a guerra.

Prazos
Livro impresso sob demanda. Prazo de até 7 dias para produção + prazo dos Correios:
Frete econômico via Registro Módico;
SP/RJ  [São Paulo / Rio de Janeiro] – em até 15 dias após data da postagem;
Demais regiões do Brasil – em até 30 dias após a data da postagem.


3. Nota do editor LG;

Parabéns, António, chegaste ao Brasil, 519 anos depois do Pedro Álvares Cabral. 

Abres uma nova frente, no mercado livreiro, à nossa literatura da guerra colonial. Essa tal editora Paperblur deve ter existência física (, sede em São Paulo, presumo), mas pelo sítio que nos mandaste parece que só existe na "nuvem"... Os gajos são muito parcos em publicidade... Não sei como chegaste lá...

É um novo conceito de edição, inaugurado, ao que sei, pela gigantesca Amazon.com... (Hoje a empresa "mais valiosa do mundo", ultrapassando a Apple e a Microsoft)...

Já te estou a dar uma ajuda em termos de marketing...Boa sorte para o teu "Cabra-cega", que finalmente passa a ter pai, ou melhor, a sair de uma certa clandestinidade...De facto, tiveste que ir para longe para assumir a paternidade da obra... E ainda bem, porque tens talento literário para dar e vender...

Por outro lado, sem o subtítulo ("Do seminário para a guerra colonial"), o livro fica mais intemporal e, quiçá, universal. Para os brasileiros, "guerra colonial" deve ser um conceito obstruso: afinal, eles não tiveram que lutar muito, de armas na mão, pela sua independência, receberam-na de bandeja, foi um parto sem dor... Ficou tudo em família, a revolta do filho (Dom Pedro) contra o pai (Dom João)...

Oxalá todas as novas nações tivessem nascido assim, de um quase operático (e mitificado)  "Grito do Ipiranga"  (, em 7 de setembro de 1822, tendo Portugal reconhecido a independência do Brasil em 1825).

Recorde-se que, na edição portuguesa (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 382 pp,  19 €), o "Cabra.cega" é uma  autobiografia escrita sob o pseudónimo João Gaspar Carrasqueira, que conta a história de António Aiveca. 

Eis o que diz a Chiado Books (. agora mudou de nome,) sobre o autor, João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de A. Marques Lopes (, só nós, na Tabanca Grande,  é que sabíamos...)

"António Aiveca, a personagem principal e real deste livro, nasceu em Lisboa, na maternidade Magalhães Coutinho. Com apenas um ano foi para a terra dos pais no Alentejo, Penedo Gordo, perto de Beja

Aos sete anos regressou a Lisboa, onde fez a instrução primária num colégio de padres de onde saiu para o seminário, donde foi convidado a sair aos vinte anos, resultado de vários percalços.

Esteve cerca de um ano como ajudante de fiel de armazém na AGPL, Administração Geral do Porto de lisboa, em Santos, como ajudante de fiel de armazém. Foi incorporado em Mafra, depois, para frequentar o COM, Curso de Oficiais Milicianos, aí estando sete meses e onde tirou a especialidade de Atirador.

Nove meses depois foi mobilizado para a Guiné, integrado numa companhia metropolitana. Foi ferido em combate e evacuado para o Hospital Militar, na Estrela. Esteve aí em tratamento durante nove meses.

Após isso foi novamente enviado para a Guiné e colocado numa companhia de recrutamento local, isto é, de naturais da Guiné, onde esteve dez meses.

Regressado à metrópole e já consciente dos males da guerra e dos seus responsáveis, foi militante de algumas organizações que lutavam contra o regime e a guerra colonial."

_________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P20002: Notas de leitura (1200): “Crónicas de um Tenente, Guiné-Bissau, 1968-2018”, o autor é Fernando Penim Redondo, o prefácio é de Mário de Carvalho; Edições Colibri, 2019 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Guiné 61/74 - 20010: (D)o outro lado do combate (52): O T-6G FAP 1694 e o cap pilav João Rebelo Valente, desaparecido em 14/10/1963, na região do Óio- Morés (Jorge Araújo)


Foto nº 1 - Número de matrícula do “T-6G” pilotado pelo Capitão Pilav João Rebelo Valente




Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,  CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974);  coeditor do blogue desde março de 2018


 (D)O OUTRO LADO DO COMBATE:

A MORTE DO CAPITÃO PILAV JOÃO CARDOSO DE CARVALHO REBELO VALENTE E A MISSÃO DA FORÇA ÁREA COM O "T-6G - 1694", EM 14 DE OUTUBRO DE 1963, NA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS: O QUE REFEREM AS FONTES DE HISTÓRIA



1. INTRODUÇÃO

No decurso da pesquisa realizada a propósito da actualização da lista dos camaradas capitães, que tombaram no CTIGuiné durante a «Guerra do Ultramar» ou «Guerra Colonial» (1963-1974) – P19315, estruturada segundo a tríade em que foram classificadas as causas das suas mortes: 'acidente', 'combate' e 'doença', descobri a existência de casos onde se observavam algumas discrepâncias entre as fontes consultadas.

Com efeito, o exemplo que hoje partilho no Fórum, e que se refere ao do Capitão Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, natural do Entroncamento, falecido no CTIG em 14 de Outubro de 1963, 2.ª feira, captou uma particular atenção, dela emergindo o interesse no seu aprofundamento na busca de poder ficar mais próximo das causas e dos factos reais.

Assim sendo, em primeiro lugar, recupero o que está expresso no nosso blogue – P6638 e P9758 – onde o camarada Carlos Cordeiro (1946-2018), autor da primeira lista, dava conta, nesses dois postes, de que o Capitão Pilav João Rebelo Valente havia falecido por "doença", na data acima indicada.

Por outro lado, na consulta à importante base de dados sobre as «baixas» contabilizadas pelas NT na Guerra, como é o caso  «Dos Veteranos da Guerra do Ultramar - Portal UTW», aí é referido que a sua morte aconteceu por "acidente", estando, porém, omisso o local onde foi sepultado. Esta última informação foi a que considerámos na elaboração do nosso anterior levantamento.


2. NOVAS FONTES CONSULTADAS E RESULTADOS OBTIDOS

Em função da problemática acima identificada, e sabendo-se, tão só, que na data do seu óbito o Capitão Pilav João Rebelo Valente dirigia uma aeronave "T-6G Harvard, matrícula 1694" [Foto nº 1, imagem acima], logo procurámos ultrapassar esse obstáculo através da consulta a novas fontes bibliográficas relacionadas com o tema.

Encontrámos um trabalho sobre "Acidentes Mortais em Aeronaves – 1917-2016", da autoria do General Pilav Jorge Manuel Brochado de Miranda (1926-), no qual se faz referência a esta ocorrência [capa ao lado].

A propósito do autor desta obra, é de salientar o facto de ter exercido o cargo de Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, entre o dia 10 de Abril de 1984 e 28 de Agosto de 1988, tendo passado à reserva no dia seguinte e à situação de reforma cinco anos depois (1993). Em 31 de Janeiro de 2018, foi homenageado numa cerimónia que teve lugar no Auditório General José Lemos Ferreira, no Estado-Maior da Força Aérea, em Alfragide, que culminou com o descerrar de uma placa de homenagem. Após a cerimónia, o General Brochado de Miranda seguiu para a Presidência da República, em Belém, onde foi agraciado, pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada.

Quanto ao valor científico deste trabalho, que está disponível no Arquivo Histórico da Força Aérea, com data de Setembro de 2016, o autor refere que "as fontes de história que registaram acidentes de aeronaves são essencialmente os Processos de Segurança de Voo (SV), mas por má elaboração ou falta de dados nem sempre aparecem elementos essenciais para a caracterização do acidente e das suas causas, ou, na falta destes, a imaginação entrou à solta e deu curso à fantasia. Vão, todavia, aparecendo, aqui e além, fora das fontes citadas, referências a acidentes que vem completar, por vezes, as informações incompletas ou mal descritas dos documentos oficiais" (op.cit.,  p5).


[Fonte: http://ahfa.emfa.pt/conteudos/acidentes_mortais_Aeronaves_1917_2016.pdf  [p57]


Por outro lado, uma segunda fonte consultada, respeitante a "acidentes da aviação militar", referia que a mesma aeronave, pilotada pelo Capitão Pilav João Rebelo Valente, ao colidir com o solo, "após manobra acrobática", em Olossato, provocou a morte do piloto.

Esse facto é comprovado com a informação abaixo e respectiva fonte.


[Fonte: https://acidentesaviacaomilitar.blogspot.com/search/label/T-6G, com a devida vénia.]

Influenciado pelas descrições supra, procurámos encontrar "D(o) Outro Lado do Combate" algo que nos pudesse ajudar a decifrar este "mistério" ou "conflito histórico". E tanto insistimos nessa busca, que no espólio documental de Amílcar Cabral (1924-1973), existente na CasaComum, da Fundação Mário Soares, encontrámos duas fotos alusivas ao "acidente".


Foto nº  2 - Citação: (1973), "Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43815 (2019-6) - matrícula 1694, com a devida vénia.

Fundação Mário Soares. Pasta: 05222.000.534. Título: Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC [T-6 Harvard]. Assunto: Lay Sek junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC, presumivelmente utilizando um míssil antiaéreo Strela, de origem soviética. Data: c.1973. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


Foto nº  3 - Citação: (1973), "População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43566 (2019-6) - matrícula 1694, com a devida vénia.

Fundação Mário Soares. Pasta: 05359.000.006. Título: População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC. Assunto: População junto de um pedaço de um avião português abatido pelo PAIGC [T-6 Harvard], presumivelmente utilizando um míssil antiaéreo Strela, de origem soviética. Data: c.1973. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.

Analisados os conteúdos narrados nas legendas sobre as duas fotos acima, constata-se que as datas citadas não estão correctas. Deve-se ler 1963. Quanto a Lay Sek [foto nº  2], guerrilheiro do PAGC e membro do Comité de Milícia Popular da Frente Norte, este estava, naquela altura, acantonado na base de Maqué (ou em trânsito) pelo que os destroços do "T-6G - FAP 1694" que nos aparecem nas imagens deveriam estar localizados na região de Morés (entre Maqué e Morés), conforme consta no livro da CECA, 6.º Volume, "Aspectos da Actividade Operacional" realizada pelas NT durante o período em análise (Outubro de 1963; pp121-122).

Assim sendo, o autor das legendas sobre as fotos {, um dos técnicos da Fundação Mário Soares], ao presumir que a data destas era de 1973, considerou que a queda da aeronave se ficara a dever à utilização de um míssil Strela, o que não corresponde à verdade, uma vez que este episódio ocorreu poucos dias antes do conflito armado completar o nono mês.


Foto nº 4 - Parelha de T-6 nos "Céus da Guiné". Foto do camarada Gil Moutinho, ex-Fur Pilav, BA12 (Guiné, 1972/1973) – P7088, com a devida vénia.


2.1.  COINCIDÊNCIAS… OU, TALVEZ, NEXO DE CAUSALIDADE

- A CARTA DE AMÍLCAR CABRAL ENVIADA A OSWALDO VIEIRA (NO MORÉS)

No desenvolvimento desta investigação foi identificada uma carta enviada por Amílcar Cabral (1924-1973) a Oswaldo Vieira (1938-1974), onde aborda este tema, entre outros.

Porém, o conteúdo dessa carta, conforme se apresenta abaixo, tem dois exemplares: um manuscrito, sem data; o segundo, dactilografado, com a data de 31 de Dezembro de 1963.

Nele(s) pode-se ler:

"Meu caro camarada Oswaldo,

São portadores desta os camaradas emissários que tinham vindo de Bissau. Só voltam agora, porque eu tinha estado ausente, em missão, e havia aqui muito que fazer.

Escrevi-te há dias pelo Bebiano. Espero que já tenhas recebido a carta, e que tudo corra bem. Espero também que tenhas mandado algumas notícias ao Lourenço [Gomes] para nos enviar, pois estamos sem notícias há quase dois meses.

Lamento muito os mortos no bombardeamento de 14 de Outubro [de 1963], em particular a da nossa grande camarada Joncon Seidi, cujo nome e coragem nunca devemos esquecer. Dá saudações minhas a toda a população do Morés e aos camaradas todos. Podem estar certos de que, depois da nossa libertação, na independência da nossa Pátria, Morés há-de ser uma das mais belas cidades da nossa terra.

Queria dar-te algumas palavras de ordem, mas não posso fazer isso, porque não tenho notícias, não sei como vão as coisas nas diferentes áreas sob a tua direcção. Para eu poder dirigir a luta, tenho de saber, em pormenor, o que se passa com os nossos e com o inimigo. Mas não recebo notícias nem relatórios dos meus camaradas de luta, responsáveis de região e de zonas. Espero ir para dentro do país, antes que tenha de ficar calado e desligado da luta, no exterior. Porque isso é coisa que não pode ser, que não tem justificação". (…)




Na parte final da carta, enviada a Osvaldo Vieira, Amílcar Cabral acrescenta:

"Mas preciso de relatórios detalhados do responsável.

Em relação à mensagem trazida pelos emissários de Bissau, eles te dirão o que penso e resolvemos. Acho que, como te mandei dizer pelo camarada Chico, é preciso uma boa coordenação entre vocês e Bissau, para fazer as coisas marchar.

Vão algumas bonecas para Bissau, que tu enviarás conforme for melhor. Vale a pena desenvolver as coisas [Zonas] em 0 [Ilha de Bissau], 1 [Varela e Barro], 2 [Bigene, Farim e Cuntima], 3 [Pirada, Canquelifá, Buruntuma, Piche e Nova Lamego], 6 [Geba, Bafatá, Contuboel, Sare Bacar e Sonaco] e 10 [Teixeira Pinto e Bula], com urgência.

Acho que não é indispensável esperar que chegue tudo o que desejamos mandar.

Sucesso no teu trabalho e para todos".



Fontes:

● Carta manuscrita: Citação: (s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34265 (2019-6).

Fundação Mário Soares. Pasta: 07058.020.026. Assunto: Entre outros assuntos lamenta os mortos no bombardeamento de 14 de Outubro [1963], em particular a de Joncon Seidi, e a falta de notícias e de relatórios. Refere também a necessidade de regressar ao interior do país. Remetente: Amílcar Cabral. Destinatário: Osvaldo [Vieira], Morés. Data: s.d. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.

● Carta dactilografada: Citação: (1963), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36712 (2019-6).

Fundação Mário Soares. Pasta: 04606.045.063. Assunto: Bombardeamento do dia 14 de Outubro [1963]. Remetente: Amílcar Cabral. Destinatário: Osvaldo [Vieira]. Data: Terça, 31 de Dezembro de 1963. Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Cartas e textos dactilografadas enviados por Amílcar Cabral; 1960-1967. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.


Triângulo Maqué-Olossato-Morés, onde se supõe ter caído o "T-6G-1694" e onde morreu o Cap Pilav João Rebelo Valente, desconhecendo-se o que aconteceu ao seu corpo.


2.2. RESULTADOS… OU AS CONCLUSÕES POSSÍVEIS

Para encerrar este ponto, e esta narrativa, o que podemos concluir:

(i) – Com data de 14 de Outubro de 1963, 2.ª feira, foram encontrados diferentes registos historiográficos relacionadas com:

a) - A morte do Capitão Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, quando pilotava uma aeronave "T-6G, com matrícula 1694", de acordo com o referido pelo General Brochado de Miranda, no seu trabalho de investigação, titulado: "Acidentes Mortais em Aeronaves – 1917-2016, p57.

b) - Um outro apontamento, retirado do blogue sobre acidentes da aviação militar, acrescenta que a aeronave "FAP-1694" caiu no Olossato.

c) - O bombardeamento de uma base na região de Morés, de que resultaram alguns mortos, como referido por Amílcar Cabral em carta remetida a Osvaldo Vieira, então na base de Morés.

(ii) – Pelas imagens observadas, os destroços da aeronave "T-6G - FAP 1694" foram localizados:

a) - Não na "área do aeródromo", em Bissalanca, como é referido na obra do General Brochado de Miranda, acima citada.

b) - Mas, sim, numa das matas da região do Óio-Morés, no triângulo Maqué-Olossato-Morés [mapa acima], como se depreende/infere das fotos onde aparece o Lay Sek e alguns elementos da população.

(iii) – O que não é possível provar é que a queda da aeronave tenha sido provocada por fogo IN, ainda que nessa data/período as forças terrestres (NT) estivessem em manobras na região do Óio-Morés [Sector C, criado pela remodelação do dispositivo de 02Ago63], sob a supervisão do BCav 490 e do BCaç 512.

(iv) – Uma vez que não encontrámos qualquer referência ao local onde foi sepultado o corpo do Capitão Pilav João Rebelo Valente, considera-se, do ponto de vista académico, que ele não foi recuperado.

Eis, em síntese, o que foi possível apurar neste trabalho.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.
16jul2019
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Último poste da série >  3de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19944: (D)o outro lado combate (51): a morte de 'Guerra Mendes' (Jaime Silva) em Bulel Samba, Buba, em 14 de fevereiro de 1965, na Op Gira - II (e última) Parte (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P20009: Agenda cultural (696): Apresentação do livro do nosso camarada Joaquim da Silva Jorge, "Ferrel através dos tempos", 9 de agosto de 2019, 6ª feira, às 17h00, no salão de festas do Jardim Infantil de Ferrel, "a capital da luta contra o nuclear"









Capa do livro do Joaquim da Silva Jorge, "Ferrel através dos tempos", edição de autor, 2019, 391 pp. Índice da obra e ficha técnica


1. Mensagem de Joaquim [da Silva] Jorge, régulo da Tabanca de Ferrel / Peniche, ex-alf mil, CCAÇ 616, Empada, 1964/66, BCAÇ 619, Catió, 1964/66), bancário reformado, ex-autarca e ativista comunitário:

Enviado: 8 de julho de 2019 19:43

Assunto: convite

Agradeço a tua presença na apresentação do meu livro "Ferrel através dos Tempos" que se realizará no dia 9 de Agosto (6ª feira) às 17h00, no salão de festas do Jardim Infantil de Ferrel.

Obrigado!
Joaquim Jorge.

2. Há 43 atrás, em 15 de março de 1976, a população de Ferrel levantou-se em peso contra a planeada construação de um central nuclear no concelho de Peniche. 

Ficou desde então conhecida como a Capital da Lutra contra o Nuclear. Joaquim Jorge, membro da comissão de moradores de Ferrel, e posteriormente da CALCAN – Comissão de Apoio à Luta Contra a Ameaça Nuclear, teve na altura um papel destacado nesta luta, aqui evocada no seu livro (pp. 61-80), tal como a participação dos jovens de Ferrel quer na I Grande Guerra quer na guerra colonial (pp. 45-60).

A efeméride, o 43º Aniversário da Luta Contra o Nuclear, em Ferrel, foi devidamente assinalado,  com diversas atividades, no passado dia 15 de março de 2019. Foi descerrada uma placa com o marco da "Capital da Luta Contra o Nuclear". Destaque para a intervenção do nosso camarada e amigo Joaquim Jorge.
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19996: Agenda cultural (695): o fabuloso grupo musical Galandum Galundaina, 4 vozes, 20 instrumentos, os sons únicos, ancestrais, das Terras de Miranda, Nordeste Transmontano, hoje, às 24h00, na "Batalha do Vimeiro, 1808", Vimeiro, Lourinhã

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20008: Historiografia da presença portuguesa em África (169): “Monjur, o Gabú e a sua História”, por Jorge Vellez Caroço; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1948 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Jorge Vellez Caroço, filho do Governador Vellez Caroço, deu provas de competência e rigor enquanto foi Diretor dos Assuntos Indígenas, e numa das suas atividades procedeu a um inquérito no Gabú. Reúne elementos à luz dos conhecimentos da época, do que se sabia ou discutia quanto às origens das populações africanas, grandes invasões, impérios do Gana e Mali, reinos Fulas.
A investigação avançou muito e a todos os que se interessam por estas matérias não se pode deixar de recomendar a tese de doutoramento de Carlos Lopes com o título "Kaabunké - Espaço, Território e Poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance Pré-Coloniais", editado pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1999. Iremos apreciar a restante obra até ao período do régulo Monjur e posteriormente far-se-á referência ao trabalho de Eduardo Costa Dias sobre o regulado do Gabú entre 1900 e 1930.

Um abraço do
Mário


Monjur, o Gabú e a sua História, por Jorge Vellez Caroço (1)

Beja Santos

Em 1948, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa publicava o trabalho “Monjur, o Gabú e a sua História” por Jorge Vellez Caroço. Jorge Vellez Caroço, filho de Jorge Frederico de Vellez Caroço, governador da Guiné entre 1921 e 1926, fora diretor de um departamento ligado aos assuntos indígenas, o seu nome aparece num conjunto de relatórios que tiveram a ver com um incidente de uma aeronave francesa que se teria despenhado em chão Felupe, nos anos 1930, esta vasta documentação, bem curiosa por sinal, está a ser estudada pela investigadora Lúcia Bayan, razão pela qual aqui não se faz referência ao seu conteúdo. Diga-se em abono da verdade que o título da obra não corresponde completamente ao conteúdo. Em 1933, no exercício das suas funções, Jorge Vellez Caroço conduziu um inquérito sobre o estado da política indígena na circunscrição civil do Gabú, mexeu em muitos papéis, fez muitas consultas, ouviu populações e consultou mesmo autoridades da África Ocidental Francesa.

Arranca a sua investigação sobre os autóctones da raça negra, fala dos negrilhos, seres de estatura abaixo da mediana, tudo mudou com as invasões dos Bantos ao Sul e os Indo-arianos ao Norte, ficaram poucos vestígios destes autóctones. Refere a seguir os negros invasores, negros da Índia, Filipinas e Oceânia, afirma claramente que os negros de África vieram de Oceânia. Constituíram uma civilização primitiva, tinham um fundo acentuadamente religioso, são-lhes atribuídos monumentos em pedra de origem bastante misteriosa que se têm descoberto em várias regiões da África Negra, caso dos edifícios do Zimbabué e das rochas gravadas da Gâmbia. Segue-se outra invasão e os negros eram já miscigenados com negrilhos e Bantos, formou-se um terceiro grupo, o dos negros sudaneses. Seria esta a origem da África Negra. Tece depois referências aos Hicsos e aos Árabes, seguem-se os Berberes. E assim se chega ao Império do Gana, que teve o seu período florescente entre os séculos IX e X, entrando em declínio no século XI sob a pressão conquistadora dos Almorávidas, que conquistaram a capital do Império em 1203. Na continuação da miscigenação apareceram os Songais, os Sereres, os Gangara e os Mandingas propriamente ditos ou Malinqués. Em novos cruzamentos aparecem dois grupos populares importantes: os Saracolés ou Soninqués e os Fulas. Estes povoaram a região do Futa-Toro e Futa-Djalon, chegando até à região do Chade. Assim se vão definindo os dois principais povos que habitaram o Gabú. O autor tem a hombridade de esclarecer que o trabalho fora elaborado 14 anos antes, formular hipóteses sobre a origem dos Fulas, faltavam-lhe estudos mais recentes.

Segue-se a influência do Islamismo na constituição de vários Estados. São essencialmente os Almorávidas, a um tempo guerreiros e missionários que se lançaram na Guerra Santa, um grupo foi para o Norte, fundou um poderoso império em Marrocos, que se estendia até à Argélia e ao Ebro e o outro desenvolveu a sua ação nas regiões sudanesas, atacou todos os agrupamentos étnicos das margens do Senegal e do Níger, lançando-se sobre o Império do Gana, que dominou. Após esta conquista, o Islão foi aceite pacificamente pelos reis Mandingas, senhores do Alto Senegal e Alto Níger, estendendo a sua ação até aos Djolas e muito mais. Quem não quis abraçar o Islamismo sujeitou-se a penosas migrações, dando origem a novos Estados. Foi o que aconteceu com os Sereres, os ancestrais dos Fulas, os Soninqués que se estabeleceram além-Senegal, no Futa-Toro.

O Império Mandinga entrara em declínio no século XVI, a hegemonia passou para os Songai ou Songoi. Quando, na segunda metade do século XVII, sucumbiu o poder marroquino, os Mandingas tentaram recuperar o seu predomínio, encontraram as maiores dificuldades, povos como os Bambaras fizeram-lhes frente. É dentro destas migrações que os Fulas avançam para as regiões de Firdu e Kabou, hoje aproximadamente a área do Gabú.

Jorge Vellez Caroço procede ao registo do Império Mandinga Malinqué ou de Mali entre os séculos XI a XVII, dizendo que este império fundado por Malinqués ou Mandingas foi o mais poderoso dos impérios indígenas que se constituíram no Sudão Ocidental. No século XIII, este império esteve submetido por pouco tempo ao poder de um rei Sôsso, depois recuperou autonomia, o império atingiu o seu apogeu e entra em declínio no século XV. É neste período, mais propriamente em 1481 que o Mansa ou Rei, vendo-se ameaçado pelas investidas dos seus inimigos, aproveitou-se da vizinhança das feitorias dos portugueses e pediu auxílio a D. João II. O monarca português procurou estabelecer amistosas relações com o Império Mandinga, estas operações de boa vontade continuarão. Os Bambaras destruíram o Império do Mali em 1670.

Procurando equacionar a presença Mandinga e Fula na região do Gabú, o autor refere-se ao reino Fula, cheio de vicissitudes. E entramos numa matéria nova, o Futa-Djalon, o Firdu e o Gabú, a correlação entre estas regiões e os seus habitantes. Fala-se novamente no Futa-Toro, que se estendia do rio Senegal e de regiões da Gâmbia até às montanhas e que teve um Estado fundado em meados do século XV por um Fula pagão, Coli Tenguela. O Futa-Djalon situa-se numa região montanhosa, ao tempo em que o autor escreveu era habitado por população da África Ocidental Francesa e constituía a maior parcela da Guiné Francesa. Dada a fertilidade do solo, das magníficas pastagens, foram atraídos Saracolés, Mandingas, Fulas e Sôssos. Desse cruzamento resultaram os Fulas do Futa que na Guiné-Bissau são conhecidos por Futa-Fulas. O Estado do Futa-Djalon foi fundado em meados do século XVIII, eram guiados por Marabús, homens de letras e estudiosos, sob a forma de um reino feudal.

Falemos agora de Firdu e Gabú. A vasta região conhecida por Kabu é contornada ao norte pelo rio Gâmbia, estende-se a oeste até às vizinhanças da embocadura do rio Casamansa, compreendendo quase todo o território do mesmo nome – rio Geba e rio Grande. Na então Guiné Portuguesa, abrangia o território que era a terra dos Djolas e Beafadas a que os Fulas chamaram Forreá, a terra dos Nalus e as atuais circunscrições de Farim, Bafatá e Gabú. É um caleidoscópico étnico difícil de assimilar, com Fulas-Cativos, Fulas-Pretos, Fulas-Forros, Soninqués, Mandingas, Djolas ou Beafadas. Importa esclarecer que a designação de Soninqués, atribuída aos Saracolés, parece ter origem no facto de professarem a religião do Deus Soni, constituíam uma força resistente ao Islamismo a que não se converteram.

Dado, na lógica do autor, o mosaico étnico da África Negra, a constituição de sucessivos impérios, o reino do Kabu, faz-se uma referência a Firdu e ao seu grande régulo Alfa Moló, estamos numa época em que o Tenente Francisco Marques Geraldes, da circunscrição de Geba, é obrigado a reprimir uma invasão de Mussá Moló, filho de Alfa, e com grande sucesso, acabara-se o grande território do Firdu. E agora o autor vai falar-nos sobre o povoamento do Gabú, a partir da ocupação Mandinga.

(continua)


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Nota do editor

Último poste da série de 17 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19985: Historiografia da presença portuguesa em África (167): “A Cultura do Poder, a propaganda nos Estados autoritários”, com coordenação de Alberto Pena-Rodríguez e Heloísa Paulo, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20007: In Memoriam (344): António Duarte Parente, 2º srgt inf, Pel Caç Nat 53, falecido no HMP, em Lisboa, em 12/7/1970, vítima de acidente com canhão s/r, russo, 82 B-10, no Saltinho, em 13 de maio de 1970, ao tempo da CCAÇ 2701... Era natural do Fundão, foi inumado na Covilhã (Paulo Santiago / José Martins)



Guiné > Região de Gabu > Piche >  Setembro de 1968 >  Canhão s/r M40 106 mm, de origem americana, montado em jipe... Era uma arma pesada de infantaria.. Foto do álbum do artilheiro João Martins (ex-alf mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69), que só lidava com os obuses 14...

Caraterísticas da armas (**):

Origem: EUA;
Ano: 1954;
Calibre: 105 mm (,embora fosse comhecido pelo 106, para se distinguir da versão anterior, M27, que se revelou um fiasco, também de calibre 105 mm);
Comprimento: 3,040 m;
Peso: 209,5 kg;
Altura: 1, 12 m;
Alcance máximo: 6870 m;
Alcance prático: 1350 m;
Capacidade de fogo: : 1 granada por minuto;
Alinhamento do aparelho de pontaria:: Colocado do lado esquerdo da arma, ao lado da espingarda M8.
Funcionamento: O projéctil está ligado ao cartucho perfurado, como numa munição de arma ligeira, para um melhor alinhamento, carregamento e extracção do cartucho. O cartucho está perfurado para melhor saída dos gases, após o disparo, evitando o recuo da arma.
Munição: Granada explosiva HEAT 106 x 607 mm
Velocidade de saída: 503 m por segundo (podendo penetrar 400 mm de blindagem)

Fotos (e legendas): © João José Alves Martins (2012). Todos oas direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Resposta do Paulo Santiago, ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53 (Saltinho e Contabane, 1970/72), ao Jorge Narciso (ex-1º Cabo Especialista MMA, Bissalanca, BA 12, 1969/70) que conhecia o 2ºsargento A. Duarte Parente, justamente do Saltinho, e que faz parte da guarnição do heli AL III que fez a sua evacuação para o HM 241, em Bissau (" talvez, a evacuação mais penosa das incontáveis que realizei na Guiné: desde logo pelo seu gravíssimo estado físico (completamente crivado); pelo seu estadoemocional, com a sua lúcida compreensão da sua situação clínica;  finalmente porque era alguém com quem mantinha uma relação, diria de quase amizade, o que exponencia largamente o nossas próprias emoções") (*):

Caro Jorge Narciso:

Vou tentar contar o episódio de que falas (**) , que aconteceu já depois da saída, do Saltinho, da CCAÇ 2406, a que pertenceu o António Dias [. O CCAÇ 2406, "Os Tigres do Saltinho", 1978/70, pertencia ao BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca].

A tragédia, confirmei agora a data com um camarada, deu-se no dia 13/05/70, quando já se encontrava naquele quartel a CCAÇ 2701. O 2º Sarg [António Duarte] Parente, o militar de que falas, não pertencia a nenhuma daquelas companhias, era um dos graduados do Pel Caç Nat 53, comandado naquela data pelo alf mil António Mota que eu fui substituir em outubro de 1970.


O canhão s/r 82 B-10, de fabrico soviético, usado em muitas

 guierras civis, uma arma hoje obsoleta  mas que foi o "canhão 
dos pobres"  (caso da luta de guerrilha do PAIGC). 
Exemplar existente no museu Batey ha-Osef,  Tel Aviv, Israel.
 Cortesia de Wikipedia.
O trágico acidente resultou de um disparo ocasional do Canhão S/R 82 B10 [, de fabrico russo,] naquele dia instalado no Saltinho, mais tarde foi comigo para o reordenamento de Contabane. (Por curiosidade: também nos primeiros dias de novembro  de 1970,  foi um heli ao Saltinho buscar, por ordem do Com-Chefe, o canhão s/r 82-B10. Voltaram a entregá-lo em dezembro. Tinha ido na invasão de Conacri, Op Mar Verde,  soubemos à posteriori.)

Ninguém tem uma explicação cabal para o sucedido. Havia ordens expressas para a arma estar sempre com a culatra aberta, e sem granada introduzida, parece que naquele dia havia uma granada introduzida,e a culatra estava fechada.

Como aconteceu? Junto da arma encontravam-se vários militares, o cap [Carlos] Clemente [, cmdt da CCAÇ 2710], o alf mil  [Martins] Julião,  o srgt Demba, da Milícia, 2º srgt  Parente e ainda mais dois ou três militares. A arma,  para disparar, granada na câmara e culatra fechada, accionava-se o armador, premia-se o gatilho, acontecia o disparo. Diziam que alguém tocara com o joelho no armador e dera-se o disparo...

O 2º srgt Parente estava logo atrás do canhão s/r, foi parar a vários metros de distância, e tu, Jorge Narciso, sabes como ele ía. Ficaram também feridos o cap Clemente, queimaduras numa mão e virilha, e o Demba, queimaduras numa perna. Foram também evacuados para o HM 241-

Como dizes,o Parente morreu passado um mês [, em 12 de junho de 1970, no HMP, em Lisboa]. 

Já como comandante do Pel Caç Nat 53, recebi uma carta da viúva, pedindo-me ajuda na resolução de um qualquer problema que agora não recordo.

Foi um dia trágico no Saltinho.Isto é, muito dramático, o Parente tinha recebido naquele dia um telegrama, via rádio, informando-o que fora pai de uma miúda...e andara na tabanca a comprar uns frangos para fazer um jantar comemorativo do nascimento...

Por sua vez, o alf mil Fernando Mota, da CCAÇ 2701, recebeu uma carta com a notícia que o irmão fora morto com um tiro da GF ]. Guarda Fiscal]. O Sarg Demba da Milícia irá morrer, dois anos mais tarde,  no Quirafo,  em abril de 72... 

Será que o Parente ainda viu a filha antes de morrer? Apesar de não o ter conhecido, é-me penoso falar desta tragédia.

Abraço
Paulo Santiago (***)


2. Dados recolhidos em tempos pelo nosso colaborador permanente, José Martins  (*):

(i) António Duarte Parente, 2º Sargento do Infantaria nº 50698311; 

(ii) natural da freguesia de Vale de Prazeres, concelho do Fundão;

(iii) filho de LuÍs Moreira Parente e Conceição Nascimento Duarte;

(iv) casado com Maria da Conceição EmÍlia da Silva Parente, 

(v) mobilizado no Regimento de Infantaria nº 14 em Viseu;

(vi) pertenceu ao Pelotão de Caçadores Nativos nº 53 do CTIG;

(vii) faleceu em 12 de junho de 1970 no Hospital Militar Principal (hmp), em Lisboa, vitima de acidente cm arma de fogo, no Saltinho, tendo sido atingido pelo sopro de canhão sem recuo em 13 de maio de 1970;

(viii) foi inumado no Cemitério Municipal da Covilhã.


3. CANHÃO SEM RECUO (CSR)  82 B-10 

Características desta arma segundo o nosso especialista de armamento, Luís Dias (ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74) (**):

[Em inglês, B-10 recoilless rifle]

Tipo: Canhão Sem Recuo (CSR) B-10;
Origem: União Soviética:
Ano: 1954:
Calibre: 82 mm;
Comprimento: 1,660 m;
Peso: 85,3 Kg (71,7 Kg, sem rodas):
Elevação: -20º / +35°;
Alcance máximo:  4500 m;
Alcance prático: 400 m;
Capacidade de fogo : 5 granadas por minuto;
Guarnição: 4 elementos;
Alinhamento por aparelho de pontaria: Colocado do lado esquerdo da arma e a funcionar por sistema óptico;
Funcionamento: Percussão do cartucho, após carregamento por abertura da culatra;
Munição: Vários tipos de granada explosiva: por exemplo,  BK-881 HEAT FS de 3,87 kg ou BK-881M HEAT-FS 4.11 kg (, velocidade de saíde: 320 metros por segundo);
Velocidade de saída: dependia do tipo de granada (que podia penetrar até 240 mm de blindagem);

Observações:

(...)  Quanto ao CSR 10,6 cm, esse era usado [, pelas NT,] , no tempo em apreciação, em situação defensiva, montado em jipes, assegurando a defesa de alguns aquartelamentos. Era uma excelente arma e montado no jipe poderia ser deslocado para acorrer a zonas do quartel que estivessem a sofrer um ataque. Poderia também ser usado em escoltas, em situações operacionais que o seu uso fosse ponderado (no entanto, nas zonas por onde andei, nunca vi nenhum ser utilizado desse modo). Sei que em aquartelamentos maiores a arma montada no jipe era transportada, às vezes debaixo de fogo, para a zona de onde o IN estava a lançar o ataque, por quem era responsável pela arma.

(...) O PAIGC utilizava essencialmente o CSR para defesa das suas instalações, mas também para flagelações aos nossos aquartelamentos e, por vezes, em emboscadas às nossas tropas, seja a colunas auto, seja a elementos apeados. 

(...) Em 17 de Abril de 1972, os guerrilheiros do PAIGC, comandados por Paulo Malu, emboscaram uma coluna da CCAÇ 3490 (Saltinho), na zona do Quirafo, recorrendo nessa acção à utilização de um CSR e foi o que já muito foi falado, uma das mais duras emboscadas, em termos de perdas de vidas, de toda a guerra na Guiné.

O CSR B-10 era uma excelente arma e relativamente manobrável para aquele tipo de cenário, daí o recurso ao seu uso por parte dos guerrilheiros. As forças portuguesas também utilizaram estes CSR (apreendidos) mas sempre no sentido defensivo.

Não esquecer que o uso deste tipo de armamento requeria os cuidados semelhantes aos que se tinham com os LGF, ou seja, aquando do disparo da arma, ninguém podia estar atrás da mesma, por causa do cone de fogo que lançava à retaguarda. (...)
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Notas do editor:

terça-feira, 23 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20006: Estórias avulsas (97): quando ia ficando soterrado no abrigo do canhão s/r, 82-B10, de fabrico russo... Salvei-me por um triz... Afinal, ainda não tinha chegado a minha hora! (Martins Julião, ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72)


Guiné > Região de Bafatá > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > Destacamento de Contabane  (reordenamento) > Pel Caç Nat 53 (1970/72) > O Paulo Santiago com o canhão sem recuo 82 B-10, russo,  que esteve na origem do acidente que provocaria a morte do 2.º Sargento Parente (, apanhado pelo "cone de fogo" do canhão s/r disparado inadvertidamente por alguém)... A tragédia deu-se no dia 13/05/70, quando já se encontrava naquele quartel a CCAÇ 2701, que rendeu a a CCAÇ 2406, "Os Tigres do Saltinho" (1968/70). O 2.º Sarg Parente não pertencia a nenhuma daquelas companhias, era um dos graduados do Pel Caç Nat 53, comandado naquela data pelo alf mil  António Mota que eu fui substituir em outubro de 1970. O canhão s/r, apreendido ao PAIGC; foi mais tarde transferido do Saltinho para o reordenamento de Contabane (hoje, Sinchã Sambel).

Foto (e legenda): © Paulo Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Estórias avulsas > Quando ia ficando soterrado no abrigo do canhão sem recuo, de fabrico russo... Salvei-me por um triz... Afinal,. ainda não tinha chegado a minha hora!

por Martins Julião 
Brasão da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72)

[ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72), membro da nossa Tabanca Grande desde 23 de julho de 2006 (*), e um dos "históricos" do nosso I Encontro Nacional, na Ameira, Montemor-o-Novo; empreário em Oliveira de Azeméis; espantosamente, ainda não temos nenhuma foto dele, à civil ou à militar, como mandam as NEP do blogue]

O almoço decorreu, como habitualmente, na nossa messe de oficiais e sargentos, onde o ambiente de camaradagem e de bom convívio era exemplar.

Após a refeição normalmente bebia-se um café com uma(s) dose(s) generosa(s) de whisky, mas era ao jantar que as libações eram superiores.

Como sempre estava o calor infernal da Guiné, abafado, húmido, dificultando a respiração e, entre as 12 e as 15 horas ninguém, em seu perfeito juízo, se atrevia a expor-se às suas violentas carícias, excepto quando as operações o exigiam.

Resolvi fazer uma sesta procurando fugir a este período de enorme desgaste.

Dirigi-me a um abrigo pequeno, chamado abrigo do canhão, onde na anterior companhia passava a noite a equipa que tinha por responsabilidade manusear um canhão sem recuo de fabrico russo, que fazia parte das nossas armas mais pesadas de defesa do aquartelamento e, que, provavelmente, participou no ataque a Conacri, pois durante um período de alguns meses foi-nos retirado, exactamente, no mesmo período em que decorreu a preparação e o referido ataque à capital da República da Guiné-Conacri.

Embora nos tenha deixado bastante apreensivos, durante esse período, uma vez que o armamento mais pesado era muito escassos , quando o recebemos ele vinha reparado e em muito melhor estado do que anteriormente. O canhão tinha imensas folgas o que tornava perigoso as operações de fogo, uma vez que provocavam fugas de chamas laterais, obrigando a sua guarnição a rigorosos cuidados de posicionamento.

O abrigo era pequeno: descia-se uma escada de cerca de 2 a 3 metros e no seu interior havia um beliche duplo e uma outra cama, ficando todo o espaço quase totalmente ocupado. O tecto era uma cobertura com troncos de árvores, flexíveis, duras e resistentes (cibes: um tipo de palmeira), terra e cimento a fechar o exterior.

Havia a pretensão de se afirmar que estes abrigos resistiam ao impactos das granadas inimigas, mas dificilmente se poderia acreditar nessa total segurança. Eu nunca acreditei , sobretudo após a terrível experiência por que passei.

Tirei a parte superior do camuflado e, em tronco nu, estiquei-me na cama paralela ao beliche ( 2 camas militares sobrepostas).

Lá dentro a temperatura não era tão fresca e agradável como se possa supor, mas era melhor estar debaixo de terra do que estar noutro local mais exposto. Talvez por esta razão não adormeci ou então não estava marcada a minha morte para esse dia.

Mantive-me acordado mas procurando relaxar e deixando a minha imaginação a vaguear por caminhos longínquos.

Num dado momento, ao passar a mão pelo peito nu, verifico que tinha uma muito pequena camada de areia sobre a pele. Passei a um estado vigilante e compreendi que caia uma fina camada de areia e terra sobre o meu peito, mas uma camada muito fina e intermitente.

Reagi de imediato; saltei da cama, peguei na parte superior do meu camuflado e corri para as escadas. Estava quase a chegar aos últimos degraus quando uma pancada violenta me atirou contra as escadas, ficando de barriga para baixo, quase esmagado, pelo peso da terra e dos troncos em cima das minhas costas. Apenas fiquei com a cabeça de fora e o braço esquerdo meio coberto.

Senti as primeiras dores sobre uma das pernas, que estava a ser submetida a uma pressão muito violenta,  comprimidas entre os degraus, suportando o peso pressionante dos escombros.

Tentei ver no exterior se alguém aparecia, mas seria muito difícil haver deslocações de soldados àquela hora, pois toda a gente disponível teria providenciado uma solução de abrigo do calor.

Não valia a pena gritar por socorro, pois ninguém me iria ouvir, dadas as distâncias entre a posição em que me encontrava e outros abrigos. Optei por esperar e ver se alguém passaria no meu campo de visão ou se dariam pelo colapso do abrigo.

Nesse período em que me encontrava imobilizado, naquela dolorosa posição, dei por mim a pensar se teria havido um milagre que levou à minha reacção ou se teria sido o meu rápido raciocínio a prever a derrocada em curso e me teria permitido escapar, no limite dos limites, para aquela posição, qual purgatório antes de uma libertação final.

Quando já não acreditava numa ajuda e as dores subiam de intensidade, eis que surge uma soldado mecânico, homem bom, de físico possante, mas francamente para o pesado. Quando me viu entrou em pânico e disse que ia procurar ajuda. A custo, consegui acalmá-lo e pedir-lhe para não chamar ninguém e fosse buscar uma pá, pois se aparecesse muita gente, na ânsia de ajudarem e de me tirarem debaixo dos escombros podiam partir-me a perna que se encontrava no limite da resistência e do sofrimento.

Lá o convenci e ele cumpriu escrupulosamente o meu pedido. Pouco tempo passado,  estava de regresso com a pá e, para cumulo da situação, passou sobre mim e posicionou-se sobre a terra e os escombros que me esmagavam.

Dei um berro valente, umas tantas asneiradas e gritei-lhe para sair de cima de mim. Expliquei-lhe que, com muito cuidado, procedesse à remoção da terra que cobria uma parte do meu braço esquerdo.

Concluído esse trabalho e libertado o meu braço, pedi-lhe que me desse a pá. Retirei cautelosamente uma parte da terra que me cobria permitindo assim poder-lhe dar indicações para ele, agora de novo com a posse da pá, me ir destapando e aliviando da terra e dos escombros.

Passado um bom bocado,  fiquei a salvo e pude-me levantar.  Nessa altura deu para ver que a minha perna esquerda estava muito maltratada e com ferimentos diversos, embora, felizmente, não muito profundos.

Agradeci ao meu salvador e dirigi-me ao balneário onde no chuveiro me limpei da terra agarrada à pele e de algum sangue. Depois dirigi-me ao posto médico, meio nu, e onde o nosso médico Drº Faria, bem como o furriel enfermeiro trataram das escoriações.

A perna inchou bastante nos dias seguintes e chegou-se a pensar que teria de ser evacuado para o Hospital Militar de Bissau, uma vez que, naquele clima as infecções , causadas por qualquer tipo de ferimentos, tendem a fazer perigosas patologias mas acabou por não ser necessário e passado alguns dias estava pronto para o meu dia a dia habitual.

Não tinha chegado a minha hora!

NOTA: O nosso capitão, na companhia do aguerrido e ilustre alferes ranger, chegaram um pouco depois, regressados do Xitole.
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Notas do editor: