1. Conclusão do quinto episódio da série "A Minha Guerra a Petróleo" de António José Pereira da Costa* (Coronel de Art.ª na reserva, na efectividade de serviço, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), enviado em mensagem do dia 2 de Julho de 2011.
A Minha Guerra a Petróleo (6)
Ai que me dói tanto!...
(Parte II)
Entretanto, o Coronel Durão “descobriu” as nossas mulheres e, tendo falhado a proposta de que Mansabá passasse a ser considerada suficientemente segura para poder ser habitada por mulheres brancas, a Isabel regressou a Lisboa. Estávamos em meados de Março e eu terminaria a comissão em princípios de Junho.
Julgava eu…
Uma coluna auto de saída à Porta D´Armas do Quartel de Mansabá
Num dia que não fixei, voltámos às minas. Começámos na primeira e fomos sucessivamente apanhando todas. Recolocámos algumas que os macacos-cães tinham desenterrado, na sua ânsia de procura de coisas que tivessem sido dos homens que tinham vivido em Mamboncó. Por isso lhe chamávamos a Aldeia dos Macacos. Quando chegámos e as vi desenterradas, pensei que a afinal o In passava ali e mudara – talvez à pressa – a posição de algumas minas o que nos poderia baralhar as contas. Contudo, verificámos que os macacos tinham desenterrado algumas, divertiram-se com elas e abandonaram-nas. Curiosamente, faltariam umas duas ou três, mas não encontrámos sinais de que tivessem feito explodir alguma. Nunca entendi por que “sexto sentido” tinham abandonado um objecto tão atraente e que tanto cheiraria a humano. Provavelmente, concluíram de imediato que não serviriam para comer e abandonaram-nas.
Enfim, começámos a nossa tarefa. Fomos detectando cada mina, que voltávamos a enterrar. O croqui que eu fizera funcionou e as distâncias e ângulos estavam bem marcados. E chegámos à mina (ou par) n.º 101…
Os três de pé junto de cada vértice de um triângulo explosivo. O Paiva pede que paremos para ir beber água. Já fazia calor, embora estivéssemos num sítio onde havia altos mangueiros, outrora dispersos entre as moranças da tabanca. Fiquei parado e vi um soldado da CArt – um bazookeiro – que estava instalado atrás de uma dobra de terreno, a cerca de dois metros. De súbito, um estrondo. No meu espírito foi uma confusão. Primeiro esperei pelos tiros de arma ligeira que se seguiriam, se fosse uma emboscada. Não vieram. Depois pensei: “Distraiu-se e apertou o gatilho. Aquele gajo é cá uma “Amélia”…
Com os olhos fechados ainda conclui que fora uma mina. Mas qual? Abri os olhos. Tive a sensação de que os abri lentamente, mas não foi assim, decerto. De cima, caíam folhas secas e poeira. Depois…
Zona e tabanca de Mamboncó, felizmente de novo repovoada. É perfeitamente visível, à esquerda da estrada Mansoa / Mansabá, o célebre carreiro do Morés.
Imagem Google, legenda de CVDepois foi o pior. O Paiva sentado no chão apoiando as mãos atrás das costas, uma das pernas inteira, mas a outra… apoiada pela tíbia meia-cortada e a pingar um fio de sangue. Ao lado a bota de cabedal com o pé dentro e a frase:
- Ai que me dói tanto!
Uma frase dita a meia voz. Nada de gritos. Nada de revolta. Seria espanto?
O Ramos perguntou, como quem chora:
- Oh Paiva para que foste beber água?
A partir daqui não tenho pormenores. Perdi-os. Lembro-me que pedi a vinda das viaturas. O Ramos e eu armámo-nos e equipámo-nos e depois recordo-me de ter substituído o condutor da primeira viatura. Foi uma corrida com o pessoal ferozmente agarrado à viatura, até Mansoa. A Berliet respondeu bem e chegámos sem novidades. Não me recordo onde deixámos o Paiva. Só me lembro de ter sido interpelado pelo Comandante do Batalhão que perguntou o que sucedera. Contei rapidamente e o seu comentário: “O gajo é burro!” fez-me desvairar. Entre outras coisas perguntei-lhe se ele sabia o que era uma mina e se já tinha visto explodir alguma. Nunca mais lhe perdoei e quando o voltei a encontrar depois da guerra, no Quartel-General em Coimbra, não lhe falei nem mesmo naquilo a que o regulamento me obrigava.
Sei hoje que a sua atitude era filha do “não saber”. Uma vez, fez uma coluna com o pessoal de Cutia até Mansabá armado de caçadeira que disparava alegremente contra tudo o que mexia. A seu lado, no Jeep, a inefável Maria do Socorro – a Mary Help – para quem a conhecia bem.
Coitada, também teve um fim trágico, mas isso são contas de outro rosário.
De outra vez, chegou ao local onde a “coluna das quartas-feiras” fora emboscada, tinha eu acabado de desmontar uma granada RG – 42 e pedi-lhe que estivesse quieto, pois as valetas podiam estar armadilhadas e ele respondeu-me que não havia problemas, porque as detectava olhando.
O Coronel Durão aproximou-se e perguntou-me o que tinha eu na cara. Nem me apercebi de que era terra projectada pela explosão. Contei-lhe a história. Disse-me que ignorasse o comentário do Comandante. Fiquei por ali…
Regressámos a Mansabá. Não sabia o que fazer. Resolvi pôr o assunto por escrito, embora não soubesse quais as consequências. A minha comissão estava a chegar ao fim e o número de especialistas que conheciam o campo era, agora, mínimo e poderia vir a ser apenas um, com a minha saída. Recebi ordem do Batalhão (BCaç 4612) para parar com a verificação do campo e começar a levantar as minas a partir da que explodira. E assim começámos, até que o CAOP 2 “descobriu”. Efectivamente, eu lançara no SITREP os sucessivos lançamentos de minas e agora lançava as remoções que íamos fazendo. É interpretando este desacerto que hoje me surge a ideia de que algo estava a correr descoordenadamente. Imaginemos que eu não sabia de minas e armadilhas. O campo estaria entregue a dois furriéis e agora apenas a um. Era claro que o número de especialistas era insuficiente para a tarefa. Além disso uma entidade mandou lançar e a outra de grau inferior, em face dos baixos resultados, mandou começar a recolher as minas. Esta era a solução correcta, a menos que…
E foi o que sucedeu. Um dia mandaram-me um substituto. Um tenente miliciano – Tenreiro de seu apelido – que não tinha condições (estatutárias, suponho) para a promoção ao posto imediato. Pouco tempo depois recebo ordem “a seco e sem possibilidade de contestação” para continuar a verificação do campo. Tínhamos agora uma situação insolitamente perigosa: uma brecha mal sinalizada entre a mina que ferira o Paiva e a última que tínhamos levantado. Qual seria a situação que o CAOP pretendia criar? Até hoje não sei e, quando após o 25 de Abril, encontrei o Coronel Durão como Comandante da Região Militar do Centro, também não lho perguntei.
Preferi afastar-me discretamente dele. Era um homem valente, mas eu tenho para mim que “disparava às cegas, para onde estava virado” e não me pareceu que fosse dado a observar as situações com calma e profundidade. Estava, ele próprio a terminar a sua comissão e, por isso demasiado cansado e saturado daquilo tudo.
Estava escrito que aquele campo ainda faria mais vítimas. Recebi dois sapadores – um cabo, cujo nome não fixei, e o furriel Pauleta – do Pel Rec do Batalhão que deveriam passar a trabalhar no campo de minas. Com a chegada do Tenreiro comecei a passar-lhe o comando e a parte administrativa da Companhia. Porém, com resultados desanimadores. O primeiro-sargento Canelas, meu amigo e conhecido do Regimento de Queluz, queixava-se de que ele não entendia as explicações que lhe eram dadas. Tudo terminou com um conjunto de cenas caricatas a mais grave das quais teve lugar no campo de minas, no dia em que o furriel Pauleta ficou cego do olho esquerdo.
Mas isso será motivo para outra história.
Nunca me esquecerei das duas pernas do Antero Paiva, a saírem dos calções e depois do modo e do momento como uma delas ficou reduzida, a metade “por lesões que mostravam terem sido produzidas por um objecto contundente ou actuando como tal” como se escrevia no relatório dos exames directos.
Encontrei-o há pouco tempo. Ficámos a olhar-nos. Depois foi o abraço e a falta de saber o que dizer. Passados 39 anos só nos olhámos bem fundo, com as mãos nos ombros um do outro.
Pedi-lhe autorização para escrever este texto e ele deu-ma. Fiz o melhor que sei, mas, esteticamente, tenho a certeza que será o pior que escrevi. À medida que ia escrevendo iam-me surgindo assuntos laterais, que não pude explorar por se espraiarem por outras áreas e factos. Não serve, por isso, de homenagem e ele merece-a.
Não me esqueço do seu primeiro desabafo e do lamento do Ramos. Sem ser os que passaram por momentos idênticos ninguém poderá compreender o que sentimos. É lugar-comum dizer-se que a guerra é um absurdo e o mais frequente é que quem assim fala nunca tenha assistido a uma. Às vezes estudou uma ou até várias e baseia-se nas melhores intenções para que a “paz reine entre os povos”. Mas esta guerra será sempre, porventura, o maior absurdo político e social em que o meu país se envolveu nos últimos cem anos, qualquer que seja a perspectiva donde seja observada.
O campo de minas de Mamboncó terminou de forma inglória. Depois do ferimento do Pauleta, recebi ordem para o levantar. Não me recordo de qual a entidade que a deu, mas cumpri-a com alívio. Paralelamente sucediam-se as cenas caricatas com o meu substituto e na impossibilidade de receber mais especialistas na matéria, era a decisão que se impunha. Assim, eu e o Ramos começámos pelo buraco da mina que vitimara o Pauleta e numa manhã fomos até ao fim do campo. Dois ou três dias depois, voltámos e começamos a partir da mina número um. Nesse dia, o Ramos, quando nos dirigíamos para o campo, confidenciou-me que previa que ia apanhar “cá uma bêbeda”. Compreendi, mas não aconselhei. De qualquer modo não havia muitas outras formas de celebrar um feliz evento.
Começámos a levantar as minas a partir da n.º 1 e fomos andando. Foi breve o trabalho, naquele dia. Quando removemos a mina n.º 100, cumprimentámo-nos e, silenciosamente, colocámos os equipamentos, transportámos as embalagens de minas para as viaturas e regressámos a Mansabá. O Ramos não apanhou “bêbeda” nenhuma e estou certo que dormiu descansadamente, toda a noite, coisa que já não sucedia há algum tempo, pois, segundo já me tinha dito, após o sucedido ao Paiva, sempre que eu lhe dizia que tínhamos de ir ao “campo” ele passava a noite em claro. Ainda lhe propus não o avisar de véspera, mas ele preferiu saber antecipadamente.
Assim terminou, sem honra nem glória, “uma acção ofensiva” sobre um inimigo que não existia, provocando duas baixas absolutamente escusadas entre o nosso pessoal.
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 4 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8505: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (5): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - I Parte