segunda-feira, 6 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14840: Notas de leitura (734): A Guiné Portuguesa em 1928: Segundo o anuário da Escola Superior Colonial de 1929 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
A historiografia da Guiné não se pode cingir às chamadas obras de referência e aos documentos dos arquivos, identificados ou por espiolhar.
Ao longo dos dois últimos séculos, como a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa atesta, há monografias, livros institucionais, brochuras, panfletos, publicações espúrias que necessitam de atenta vistoria.
No caso em apreço, desconhecia por inteiro a importância dos anuários da Escola Superior Colonial, são alfobre de informações por vezes de extrema utilidade. Confesso que desconhecia haver apologistas do caminho-de-ferro na Guiné no início do século XX. Estamos sempre a aprender, a aguçar a curiosidade.
A Guiné merece e agradece.

Um abraço do
Mário


A Guiné Portuguesa em 1928
Segundo o anuário da Escola Superior Colonial de 1929

Beja Santos

A Escola Superior Colonial sucedeu à Escola Colonial, em 1926, a instituição funcionou com este título até 1961, o leitor interessado encontrará todos estes dados no Google. O interessante é que a Escola caprichava pelos seus anuários dirigidos, como é óbvio à sua clientela: alunos destinados à administração colonial e respetivos docentes. Publicava números temáticos e o de 1929 centrou-se nas comunicações, transportes e infraestruturas afins. Vê-se que os seus autores conheciam com alguma profundidade a situação da Guiné como se descreverá. Fazia parte do espírito da época apoiar a construção de caminhos-de-ferro como o meio mais eficaz e menos caro para uma nação colonizadora estabelecer solidamente o seu domínio, cita-se mesmo Cecil Rhodes que terá observado que o carril era mais barato e tinha maior alcance do que o canhão. E escreve-se textualmente:
“No espírito dos indígenas, os caminhos-de-ferro produzem forte impressão, convencendo-os do caráter definito do domínio, e como ao mesmo tempo lhes acarretam benefícios são o mais poderoso de todos os elementos de pacificação”.
Estamos pois no tempo em que a civilização para África anda de mãos dadas com a locomotiva.

Os autores do anuário começam por dizer que a Guiné é colónia de grandes recursos naturais e largo futuro, mas o problema das comunicações condiciona o desenvolvimento económico e está a agudizar-se de ano para ano. As matérias-primas exportáveis, então, eram a mancarra, o coconote e a borracha. A drenagem destes produtos era facilitada pela rede fluvial. Mas logo adiante estes autores condicionam o desenvolvimento da colónia aos propósitos da África Ocidental Francesa e refere empreendimentos com grande importância: a linha Conacri-Kankan, a aproximar-se dos centros produtores do Futa-Djalon que drena para o porto de Conacri as riquezas da região; prosseguiam na época os estudos da linha férrea de Casamansa que, previa-se, iria drenar os produtos da bacia hidrográfica do rio do mesmo nome. Referindo ainda que a África Ocidental Francesa possuía em 1923 cerca de 15.000 quilómetros de pistas para automóveis, na estação seca, os autores estão conscientes que o Estado português não pode abalançar-se num plano de viação para transportes pesados e põe a hipótese de adotar projetos com capitais estrangeiros, uma concessão do género da Companhia de Ferro de Benguela. E concluído o texto introdutório, lançam-se nas informações.

No que toca a comunicações marítimas, havia mensalmente um vapor de cada uma das companhias Nacional de Navegação e Colonial de Navegação. Além destas, havia uma companhia holandesa e uma companhia alemã com uma carreira bimensal.

Havia o cabo submarino da Western Telegraph Company. A Guiné possuía 668 km de linhas telegráficas ligando as principais localidades da colónia e permitindo a comunicação com Dakar por Farim-Koldá. E referem a navegabilidade dos rios: O Cacheu é navegável até à ilha de Bafatá; o rio Mansoa, num total de cerca de 200 km, tinha 120 navegáveis; o rio Geba em território português tinha aproveitáveis para transporte 170 quilómetros; o rio Corubal era apenas navegável cerca de 50 km; o rio Grande de Guinala ou de Bolola era navegável até próximo de Buba; o rio Tombali (designação imprópria dada a uma braço de mar) era navegável cerca de 60 km; o rio Cumbidjan, com um percurso de 90 km, era em grande parte navegável; e o rio Cacine, com um percurso de cerca de 50 km tinha cerca de 40 km navegáveis.

Canhambaque – Monumento à pacificação desta região dos Bijagós

A ideia dos caminhos-de-ferro era enorme ao tempo, falava-se na construção de duas linhas férreas pondo Bissau em ligação com a fronteira leste, por Bafatá e Cadé, e com a fronteira norte por Farim e Koldá. Mas o realismo justificava que se dissesse que havia grandes limites para os sonhos, em terrenos como os da Guiné, iriam exigir-se obras de arte muito honrosas, pelo que não se aconselhava, nas condições atuais, que o Estado se lançasse na construção de linhas férreas, tinha pouca lógica, e tudo se agravando pelo fato da colónia estar recortada por todos os lados, por estradas, rios, canais e braços de mar navegáveis. Mas o assunto linha férrea na Guiné tinha história, como os autores do anuário relevam:

“A primeira ideia de um caminho-de-ferro na Guiné pertence ao falecido colonial Loureiro da Fonseca que a apresentou numa memória, em 1907, à Escola Colonial, da qual era aluno.
Anos depois, o senador Nunes da Mata apresentava na sua Câmara uma proposta de lei autorizando o Governo a mandar proceder aos estudos de uma linha férrea desde o Xime até à fronteira leste da Guiné”.
Os críticos a estas propostas eram muitos: dizia-se que um tal caminho-de-ferro só favoreceria os interesses da colónia francesa e replicava-se que a querer-se provocar a drenagem dos produtos do território interior, francês, seria preferível aproveitar-se o Geba; e também se criticava tal iniciativa porque o comércio da Guiné estava essencialmente nas mãos de alemães e franceses. Contrapunha-se com a construção de estradas e portos mas igualmente se punha em dúvida as vantagens do empreendimento:
“Chegará um tráfego exclusivamente agrícola, embora rico, mas certamente limitado, num futuro próximo, para cobrir os encargos honrosos de uma tal empresa, em concorrência com os outros meios de transporte?"

Edifício do Banco Nacional Ultramarino em Bolama

Encerrado este capítulo, os autores passaram para as estradas: uma vasta rede de 2800 km: de Bambadinca a Bafatá, de Farim a Jumbemben, de Buba a Cacine, de Buba a Bambadinca por Xitole. Mas não deixavam de observar:

“Convém acentuar que muitas das estradas, construídas através das regiões lodacentas representam um trabalho formidável, pois que o sistema é verdadeiramente primitivo”.

Quanto aos portos, os principais eram Bissau, Bolama e Bubaque. E são úteis as informações subsequentes:
“Cacheu, que outrora teve contato com a navegação de longo curso, desapareceu da lista dos portos de escala, passando a uma categoria secundária em que não conserva um lugar proporcional à sua importância no passado, mercê das novas vias de comunicação terrestre e fluviais que, evitando a passagem da barra do mesmo nome, drenam diretamente para Bissau uma grande parte dos produtos que antes ali afluíam.
Os outros portos secundários pelos quais se efetuam o tráfego de grande e pequena capotagem são os de: Farim, Bafatá, Buba e Cacine, no primeiro plano; S. Domingos, Biombo, Geba e Xitole no segundo”.
Curioso é também notar que em termos de tonelagem, até à I Guerra Mundial, os alemães vinham à frente; em termos de carga embarcada e desembarcada, em 1913, os portos mais importantes eram Bissau, Bolama e Bafatá. A seguir à guerra, tudo mudou.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14830: Notas de leitura (733): “Sagal, um herói em África”, de António Brito, Porto Editora, 2012 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14839: Efemérides (193): Lourinhã, 28 de junho de 2015: comemoração dos 10 anos do monumento aos combatentes do ultramar - Parte II: alocução do ten gen inf ref, lourinhanense, Jorge Silvério





Lourinhã > Largo António Granjo > Monumento aos mortos do Ultramar >  Comemoração dos 10 anos, organizada pela AVECO - Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste e pela CM Lourinhã > 28 de junho de 2015 > Alocução, de improviso,  do  ten gen ref, lourinhanense, Jorge Silvério...

 [ Nasceu em Ribamar,  Lourinhã, em 1945...  Estudou no Colégio Luís Ataíde, colégio privado fundado e dirigido pelo dr. Virgílio Pissarra, antes de ir para a Academia Militar (soube agora, pelo Virgínio Briote, foram condiscípulos, na Academia Militar, entre 1962 e 1964)... Fez comissões em Moçambique e Angola. Disse-me que gosta de visitar o nosso blogue, mesmo não tendo passado pela Guiné.  Só o conhecia de vista, disse-lhe que temos algumas afinidades, e entre elas o facto de minha bisavó do lado paterno, do clã Maçarico, ter nascido em 1864, em Ribamar, terra onde tenho muitos parentes, diversos camaradas de armas, antigos combatentes,  e alguns bons amigos; no colégio do dr. Pissarra, também estudaram alguns dos meus amigos como o dr. Luís Venâncio Ferreira Rei, médico, natural do Seixal, de saudosa memória;   a este colégio sucedeu, em 1959 o Externato D. Lourenço,  propriedade da igreja católica, enter 1958 e 1972]








Lourinhã > Largo António Granjo > Monumento aos mortos do ultramar > 28 de junho de 201Comemoração dos 10 anos, organizada pela AVECO - Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste e pela CM Lourinhã. Evocação dos 20 lourinhanenses. mortos na guerra colonial  nos TO de Angola (nove), Guiné (seis)  e Moçambique (cinco),  feita pelo ex-ur mil J. Picão Oliveira (Guiné, zona leste, 1973/74), e membro da comissão organizadora que há 10 anos inaugurou este monumento.

Destaque para a Associação de Paraquedistas Tejo Norte, com sede em Oeiras, que mais uma vez dignificou e abrilhantou esta festa, com a sua presença ativa,

A lista, alfabética e detalhada.  dos 20 bravos da Lourinhã que morreram na guerra do ultramar/guerra colonial, está publicada no portal Ultramar Terraweb, num excecional serviço prestado a todos nós e ao país pelo nosso camarada António Pires e a sua equipa.



Lourinhã > Largo António Granjo > Monumento aos mortos do ultramar > 28 de junho de 2015 > Comemoração dos 10 anos, organizada pela AVECO - Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste e   pela CM Lourinhã > Da esquerda para a direita, o vice-presidente da município locaol, Fernando Oliveira (ele próprio um ex-combatente, "ranger", que fez comissão de serviço em Moçambique, em 1973/74); Pedro Maragarida, presidente da união das freguesias de Lourinhã e Atalaia, e  Jaime Bonifácio Marques da Silba, nosso grºã-tabanqueiro, membro da comissão organizadora que, há 10 atrás, materializou este projeto.



Lourinhã > Largo António Granjo > Monumento aos mortos do ultramar > 28 de junho de 2015 > Comemoração dos 10 anos, organizada pela AVECO - Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste  e pela CM Lourinhã > Representantes da Associação de Paraquedistas Tejo Norte, com sede em Oeiras


Lourinhã > Largo António Granjo > Monumento aos mortos do ultramar > 28 de junho de 2015 > Comemoração dos 10 anos, organizada pela AVECO -Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste  e pela CM Lourinhã > Da direita para a esquerda, o ten gen Jorge Silvério, os irmãos Tourita e o presidente da CM Lourinhã, engº João Duarte.


Lourinhã > Largo António Granjo > Monumento aos mortos do ultramar > 28 de junho de 2015 > Comemoração dos 10 anos, organizada pela AVECO - Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste   e pela CM Lourinhã > Antigos fuzileiros e outro pessal da Marinha pousam junto ao monumento, na presença do presidente da CML.

Ao fundo. Escultura em bronze do combatente da Guerra do Ultramar. O monumento é da autoria do arquitecto A. Silva e da escultora A. Couto

Fotos (e legendas) : © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Foi há 10 anos, em 26 de junho de 2005, que foi inaugurado, na Lourinhã, o monumento aos combatentes do Ultramar.  Na altura, a cerimónia contou com a presença do presidente da Liga Portuguesa de Combatentes, ´ten gen ref Chito Rodrigues  e o ten gen., lourinhanense,  responsável pelo pessoal do exército, Jorge Silvério, além do presidente da edililidade local, José Manuel Custódio. Estiveram ainda presentes os presidentes da ADFA - Associação Portuguesa dos Deficientes das Forças Armadas (, na altura,  o bombarrralense e meu amigo Manuel Patuleia Mendes), da APVG - Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra (que era o António Basto, hoje fundador e vice-presidente da AVECO, que ansceu de um cisão da APVG)  e o comandante da EPI - Escola Prática de Infantaria. (*).

Para celebrar esta  efeméride, os 10 anos do monumento,  a AVECO - Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste, que tem sede na vila da Lourinhã, a Câmara Muncipal da Lourinhã e a União das freguesias de Lourinhã e Atalaia,  quiseram homenagear os cinco lourinhanenses, felizmente ainda vivos, antigos combatentes, que formaram a comissão organizadora original. (**)

Recorde-se, mais uma vez, os seus nomes,  por ordem alfabética:

 (i) Adílio Braz F. Fonseca (natural de Ribamar - Lourinhã);

 (ii) Jaime Bonifácio Marques da Silva (natural de Seixal - Lourinhã);

(iii) João M. Rodrigues Delgado (natural da vila da Lourinhã);

 (iv) José F. Picão Oliveira (natural da vila de Lourinhã); e

 (v) José M. Bonifácio da Silva (natural de Seixal - Lourinhã). (*)

O encontro, no passado dia 28 de junho,  contou com a presença de largas dezenas  de antigos combatentes, dos três ramos das forças armadas, e de diversas associações, oriundos de diferentes partes do país. Esteve também representada a ADFA - Associação Portuguesa dos Deficientes das Forças Armadas, através de um  dos seus dirigentes.

 Desse encontro apresentamos dois  vídeos e mais algumas fotos.

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domingo, 5 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14838: Filhos do vento (40): abaixo-assinado dos "Fidju di Tuga" à Assembleia da República Portuguesa: "Somos atualmente cerca de meia centena de membros, apenas em Bissau, estimamos que existam pelo menos meio milhar de 'filhos de tuga' espalhados pelo país... Vimos pedir o reconhecimento do legítimo direito à nacionalidade portuguesa"... Entretanto, o 1º ministro Passos Coelho faz amanhã, 2ª feira, a sua primeira visita oficial à Guiné-Bissau.

1. Mensagem de Catarina Gomes, jornalista do Público,  autora (texto) da reportagem sobre os "Filhos do Vento" e "O Meu Filho Ficou lá";  filha de ex-combatente da guerra colonial (em Angola), escreveu o livro "Pai, tiveste medo ?" (Lisboa, Matéria Prima Edições, 2014):

[foto à esquerda: membros fundadores da Associação Fidju di Tuga, com sede em Bissau; cortesia da sua página na Net]
Data: 3 de julho de 2015 às 14:35
Assunto: abaixo-assinado

 Professor,

Aqui lhe envio o texto do abaixo-assinado da associação de que lhe tinha falado :

A Associação Fidju di Tuga/Filho de Tuga-Associação da Solidariedade dos Filhos e Amigos dos Ex-Combatentes na Guiné-Bissau foi criada em 2013 para representar os chamados Fidju di Tuga, expressão que traduzida do crioulo significa Filho de Tuga, e que durante todas as nossas vidas foi usada para nos designar/ insultar na Guiné-Bissau.

Somos filhos de ex-combatentes portugueses que estiveram na Guiné-Bissau durante a guerra colonial/guerra da libertação e que tiveram filhos com mulheres guineenses e os deixaram para trás. Muitos de nós até hoje apenas sabem os apelidos e patentes dos nossos pais, dados incompletos que não nos permitiram saber quem é nosso pai português e tentar entrar em contacto com ele.

Criámos esta associação para representar todos estes filhos que ficaram. Somos actualmente cerca de meia centena de membros, apenas em Bissau. Estimamos que existam pelo menos meio milhar de "filhos de tuga" espalhados pelo país, todos nascidos durante os anos da guerra ou no ano imediatamente a seguir ao regresso definitivo das tropas portuguesas.

Os nossos pais estiveram na Guiné-Bissau ao serviço do Estado Português. Os abaixo-assinados vêm por este meio pedir o reconhecimento do seu legítimo direito à nacionalidade portuguesa como filhos de pais portugueses, solicitando que a sua causa seja debatida no Parlamento português.

Entretanto, soube que o 1º ministro Passos Coelho vai à Guiné dia 6 de Julho.

Abraço e boas férias, se for caso disso.

Catarina
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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14792: Filhos do vento (39): Será que tudo o que por aí se vai dizendo, da nossa vida sexual em zona de guerra, não será também, em alguns casos, uma grande mentira? (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P14837: Libertando-me (Tony Borié) (24): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (5)

Vigésimo quarto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.



Glória, Lola, a Ruça (5)

Hoje fomos à praia só para caminhar na areia, dizem que faz massagens nos pés, o que na nossa idade é muito bom para a saúde, não vimos a Glória, mas vamos continuar com a sua história.
Cá vai.

A Glória e o Jorge, já com algum dinheiro economizado, decidiram comprar uma oficina de gradeamentos em ferro, que estava à venda, portanto, acertaram o preço e compraram.

Passado um tempo, a Glória encarregava-se do trabalho de fora, o Jorge, da contabilidade, contacto com os clientes e da oficina, às vezes ajudava e orientava a Glória, que entretanto frequentou uma escola de vocação, onde aprendeu a usar o maçarico a gás de cortar ferro, a soldar com diferentes máquinas e diversos materiais, com alguma segurança, carregava com os portões e gradeamentos, com a ajuda de alguém que entretanto contratara, instalava esses portões e gradeamentos. Os clientes gostavam, era uma coisa nova, portões e gradeamentos em ferro forjado, com feitios lindos. O negócio, num abrir e fechar de olhos, estava a progredir, era uma região de muitas casas grandes, tipo mansões.


Entretanto a Glória fica grávida e nasce um rapaz. Só tirou tempo fora do trabalho, praticamente para ir ao hospital por altura do parto, continuava com a mesma vontade no trabalho, o bebé cresceu, começou a andar e a falar na oficina, primeiro num berço, num compartimento ao lado, a que chamavam escritório, depois por tudo o que era espaço, acompanhando o pai e a mãe. Fica grávida de novo, segue o mesmo regime do primeiro, nasce uma menina, que tal como o menino é criada praticamente no trabalho.

Todo o trabalho que executavam na oficina era apreciado, pois era uma novidade, as pessoas para quem executavam esse trabalho, foram falando, algumas eram importantes e com alguma influência, cada vez tinham mais encomendas. Foram crescendoe o espaço tornou-se pequeno, nos arrabaldes de outra cidade, mais para norte, nuns terrenos que lhe foram cedidos com um contrato de 99 anos, onde se comprometeram a não modificar o ambiente, respeitando os cursos de água e algumas árvores, fizeram uma grande oficina, com parque para estaleiro de materiais, onde os camiões podiam carregar e descarregar.

Os filhos foram estudar. O rapaz, engenheiro, com a experiência que adquiriu ao longo dos anos, principalmente com a mãe, começou a trabalhar lá fora, dirigindo pessoal, fazendo projectos, na instalação dos portões e gradeamentos. A filha, contabilista, trabalha com o pai na oficina. Todas as novas urbanizações, que se faziam nas cidades próximas, já obedeciam à nova configuração dos seus portões e gradeamentos, que entretanto tinham formas representando figuras de palmeiras, animais ou outros motivos, alguns importados do México. Estavam na moda. O negócio continuava a crescer, já tinham encomendas de fora do estado, tinham algumas dezenas de colaboradores, os dois brasileiros, companheiros de viagem, eram encarregados na nova oficina. E ela dizia:
- Isto também é vosso, bendita a hora em que nos encontrámos!

O Jorge faleceu antes dos cinquenta anos de vida, teve uma doença que na época não tinha cura. A Glória ficou viúva, dedicou-se aos filhos que entretanto tomaram conta do negócio. Casaram, o filho deu-lhe dois netos e a filha deu-lhe um.

Como em criança, não teve oportunidade de brincar, agora cuida e brinca com os netos, na sua casa na praia, próximo de onde vivemos. Os filhos, sabendo a mãe que têm, confiam-lhe as crianças por bastante tempo e a Glória, a “Lola”, a que alguns chamavam “Ruça”, anda feliz pela praia com o mais novo ao colo, os outros pela mão um do outro e, sempre que passa um cão, ou algo de estranho, vêm a fugir, esconder-se e encostarem-se às pernas da avó, tal como faziam os seus irmãos quando vivia na aldeia em Portugal.

Que viva por longos anos.

Tony Borie, Julho de 2015. 
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Nota do editor

Postes anteriores de:

7 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14710: Libertando-me (Tony Borié) (20): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (1)

14 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14744: Libertando-me (Tony Borié) (21): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (2)

21 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)
e
28 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14804: Libertando-me (Tony Borié) (23): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (4)

Guiné 63/74 - P14836: Manuscrito(s) (Luís Graça) (60): Se todos os pescadores do mundo...

Se todos os pescadores do mundo...

por Luís Graça


Se todos os pescadores do mundo,
Ao longo de todas as costas,
De todas as linhas do horizonte,
De todas as praias,
De todos os mares,
De todos os bancos de pesca,
De todos os icebergs,
De todas as fossas submarinas
E plataformas continentais,
De todas as ilhas,
De todas as pontes,
De todas as dunas,
De todas as falésias,
De todos os recifes de corais,
De todos os cabos e promontórios,
De todos os lagos e albufeiras,
De todos os rios 
De todas as rias,
De todos os cais…

Se todos os pescadores do mundo
Se dessem as mãos,
As canas de pesca,
Os fios, 
Os anzóis,
As redes, 
Os covos,
O mapa das marés,
Os arpões,
Os barcos, 
As barcas,
As canoas,
As pirogas,
As traineiras,
Os arrastões,
A bússola,
O radar,
O isco,
O GPS, 
O sextante, 
O sonar,
Os remos e as velas,
mais as artes antigas e modernas,
do cerco,  da xávega e da sombreira,
do arrasto e da ganchorra,
das redes de emalhar e de tresmalho,
da linha, dos alcatruzes e das gaiolas...

Se todos nós, no fundo, 
Partilhássemos o peixe pescado,
O peixe por haver,
Fresco, cru, seco,
Frito, cozido, guisado,
Assado, grelhado, fumado,
Salgado, congelado,
Sem esquecer as batatas e o pão...

Talvez pudéssemos reencontrar
Elos perdidos da cadeia da vida…
Talvez o mar fosse mais chão,
Talvez o mar fosse mais mulher,
Talvez o mundo fosse mais
Pequeno, 
Aconchegado,
Caloroso, 
Maneirinho,
Habitável…
Talvez o mundo fosse mais…
Amigável.

Luís Graça
Lourinhã, Praia de Porto Dinheiro | 11/8/2007 (versão original: "A friendly world")

Lourinhã, Porto das Barcas, revisto | v4, 27/6/2015
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14787: Manuscrito(s) (Luís Graça) (59): Lisboa, Mouraria, Rua do Benformoso

sábado, 4 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14835: Jornal "O Soquete - BAC 1" (José Diniz de Sousa e Faro, ex-Fur Mil Art.ª do 7.º Pel Art)

1. Mensagem do nosso camarada José Diniz de Souza e Faro, ex-Fur Mil Art do 7.º Pel Art (CamecondePichePelundo e Binar, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2015:

Bom dia caros Luís/Carlos,
Para os devidos efeitos, anexo alguns excertos do nosso jornal em assunto editado em Junho de 1970.
O artigo principal é a extinção da Bataria de Artilharia de Campanha n.º 1 e o nascer do Grupo de Artilharia de Campanha n.º 7.
Depois temos a chegada dos nossos substitutos, a praxe da ordem e a nossa partida (oficias e furriéis), para a Metrópole.
Uma homenagem aos que tombaram em combate.
E por último os aniversariantes e a reportagem do Fogo real.
Espero que seja do vosso agrado a minha modesta contribuição e que a mesma seja publicada.
Em breve mandarei um estudo em torno da mobilização das unidades de Artilharia na guerra de África em particular na Guiné.

Grato pela atenção dispensada,
Abraço,
J.D.S. C. FARO
Ex-Fur. Milº Artª
Guiné 68/70



OBS: - Clicar nas imagens para ampliar para tamanho que permite leitura sem esforço
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Guiné 63/74 - P14834: Tabanca Grande (468): José Jorge de Melo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1498/BCAÇ 1876 (Có, Jolmete, Ponate, Bula e Minar, 1966/67)

1. Mensagem do nosso camarada e novo amigo José Jorge de Melo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1498/BCAÇ 1876, Có, Jolmete, Ponate, Bula e Binar, 1966/67, com data de 22 de Junho de 2015:

Caro camarada de armas,
Há cerca de um ano, o Armando Teixeira falou-me no seu “blog” e tentou entusiasmar-me para que eu viesse a participar no mesmo. Porém, os meus afazeres diários fizeram-me esquecer o assunto. Ontem ele enviou-me três textos que foram publicados no seu “blog” que tiveram o condão de me entusiasmar a fazer esta minha apresentação.


Respeitando as regras:

1 – Envio de uma foto antiga



2 . Envio de uma foto actual



3 - Texto de apresentação

Posto: alferes miliciano
Especialidade: atirador de infantaria
Unidades e locais:
Recruta em Tavira (aproximadamente 3 meses);
Especialidade em Mafra (aproximadamente 3 meses);
RI 18 nos Arrifes, Ponta Delgada, São Miguel, Açores (10 meses);
mobilizado para a Guiné pelo Regimento de Abrantes; Santa Margarida (1 mês);
Guiné-Bissau (21 meses), locais de permanência: Ponate, Có, Bula, Binar e ... “já consigo dizer que” fui condecorado com uma Cruz de Guerra de 3.ª classe. A seu tempo esclarecerei a razão porque escrevo “já consigo dizer que”

Onde vivo: Parede, concelho e distrito de Cascais;

Outros assuntos:

Esclarecimento do “já consigo dizer que...”

Quando terminei as ações de desmobilização em Novembro de 1967, decidi regressar a São Miguel, minha terra natal, para descansar, esquecer a guerra, e levei comigo um Manual de Geometria Descritiva, para ir lendo quando me apetecesse, porque tencionava regressar a Lisboa para me licenciar em Engenharia, no Instituto Superior Técnico (IST).

Regressei a Lisboa a 4 de Janeiro de 1968 e comecei os estudos imediatamente. Não tinha família em Portugal continental e convivia com um grupo de estudantes, seis anos mais novos do que eu, que frequentavam diversas universidades em Lisboa.

A minha educação era altamente religiosa e o meu pensamento estava imbuído de conceitos de disciplina, obediência, contenção e paz. Porém fui-me apercebendo, tanto no IST como nas outras faculdades, da existência de um forte movimento de contestação contra o governo de Salazar a que não pude ficar alheio. As reuniões de estudantes na Associação Académica que eu não deixava escapar e as discussões pela noite dentro sobre política, foram modificando a minha maneira de pensar. Mas... foram as discussões religiosas que mais me abalaram. Discutiram-se todas as provas da existência de Deus e foi-me mil vezes demonstrado a não existência de um Deus, sobretudo devido às enormes insistências de meu irmão Carlos, que frequentava Filosofia e me impingia os tratados de fenomenologia.

Posso dizer que quase fui obrigado a ler o Capital de Karl Max, A Vida e Morte de Che Guevara; e os mais marcantes, não sei precisar as datas em que os li, foram “Crimes de Guerra no Vietnam”, “Porque não sou Cristão”, “A minha concepção do Mundo” de Bertrand Russell, bem como “ O Macaco Nu” e ” O Zoo Humano” de Desmond Morris.

Depressa chegaram a Lisboa as notícias sobre a Revolta estudantil do Quartier Latin iniciada a 10 de Maio de 1968. Estavam refugiados em Paris muitos jovens açorianos e portugueses, que tinham fugido para França, para escapar a serem incorporados no exército português e arrastados para a Guerra colonial. E mandavam jornais livros, propaganda em favor do comunismo e do existencialismo. Recomendavam a leitura de Simone de Beauvoir e de Jean Paul Sartre e de facto senti uma certa revolta ao ler “A Idade da Razão” que foi um livro muito discutido.

A 27 de Setembro de 1968, a tomada de posse de Chefe do Governo de Portugal por Marcelo Caetano foi uma lufada de esperança que desapareceu rapidamente, por se tornar evidente desde muito cedo, que ele seguia os passos do seu antecessor. A guerra colonial era para continuar e os mandantes e influentes na condução do país continuavam a ser os mesmos.

Encurtando razões tornei-me ateu e contestatário político e em Janeiro de 1969 assinei o documento “Liberdade e Coerência Cívica” uma Candidatura Independente às eleições para Deputados em 1969.
"Declaração de Ponta Delgada" que está inserido nos arquivos do “Pensamento de Melo Antunes”.

Embora a minha mudança de pensamento politico me tenha agitado, o tornar-me ateu deixou-me vazio, por perder o ideal da perfeição mística. Senti uma premente necessidade de substituir esse ideal perdido por um outro, um outro de minha escolha, que me animasse, me guiasse na continuação da minha existência. Não escolhi a política, não escolhi a humanidade. A minha escolha recaiu sobre a beleza, a arte, a música, a liberdade, isto é, tudo aquilo que me proporciona prazer.

No primeiro trimestre de 1968 recebi o primeiro convite para receber a condecoração que me havia sido atribuída e declinei o convite. Estava abalada a minha estrutura mental nos campos religioso e politico. Deixei de falar sobre a minha vida militar, melhor dizer que procurei ocultar esse meu tempo de vida. Heróis eram os que tinham fugido para França e não pactuaram com um regime opressivo, os que estavam proibidos de regressar a Portugal por serem refractários e iam mandando notícias sobre as novas ideias e o progresso da humanidade.

No ano seguinte recebi novamente o convite para ir a Tomar receber a minha condecoração e, desta vez, pagavam as passagens de avião para os meus pais se deslocarem de Ponta Delgada a Tomar, a fim de assistirem à cerimónia. Meus pais nunca tinham saído de São Miguel, eu tinha casado, era estudante universitário e o dinheiro não abundava. Não podia perder a oportunidade de oferecer aos meus pais uma viagem a Lisboa que os deslumbrou. Sem dizer nada aos meus amigos universitários, aceitei o convite, e fui a Tomar, sentindo que estava a cometer uma ação incongruente para com o meu novo pensamento, pactuando com o regime.

Recusei os vários convites que recebi para me associar à Liga dos Combatentes e durante quarenta anos tentei ignorar e esquecer a minha vida militar. Nos dias de hoje já consigo dizer que fui combatente na Guiné Bissau.

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Memórias do serviço militar obrigatório

O Armando Teixeira teve e tem o mérito de há dez anos dedicar uma parte da sua vida a descobrir o paradeiro de cada um dos militares do nosso pelotão, com o intuito de promover um almoço anual e que este ano vai ter a décima repetição.
Nesses convívios, tendo eles conhecimento das minha aptidão para a escrita, recebi vários pedidos para que escrevesse as aventuras vividas na Guiné Bissau. Eu porém fui adiando o início desse trabalho e agora venho propor-me a ir escrevendo no seu blog algumas das peripécias por que passámos, se tanto me for permitido.

Quando cheguei a Santa Margarida espantei-me pela falta de disciplina e desorganização que reinava na Unidade, no Batalhão e na Companhia a que estava adstrito. Na minha Companhia, a 1498, o capitão ainda não se apresentara na Unidade, sendo o sargento ajudante, administrativo, que a governava a seu belo prazer. Este sargento ajudante nomeou-me “oficial de dia”, em tom de pessoa de patente superior à minha, aspirante miliciano. Acatei a ordem e resolvi não iniciar um litígio logo no primeiro dia, mas confesso que a sua atitude não me agradou. Perguntei-lhe, no entanto, o que esperava de mim, na qualidade de “oficial de dia”? Estava a ser nomeado “oficial de dia” da Unidade ou do Batalhão?
O homem esboçou um sorriso de troça e esclareceu que se tratava somente de obrigações para com a companhia 1498; e que se resumiam unicamente em acompanhar os soldados que já se tinham apresentado até ao refeitório e coordenar a refeição.

Tinha levado comigo uma série de livros para através da leitura poder matar os tempos mortos. Chegada a hora do almoço dirigi-me para a camarata da 1498 e verifiquei que os soldados, de moto próprio, seguiam para o refeitório sem me dar cavaco.
- Hei! Militares! Vamos formar!
- Formar?! Os outros oficiais não mandam formar!
- Eu mando! Quem não formar não entra no refeitório! E tu aí, como te chamas?
- Eu sou o Cascais.
- Vai ao refeitório avisar os que já lá estão que têm de vir para a forma.

O primeiro que terminou a refeição, levantou-se e preparava-se para abandonar o recinto:
- Hei! Espera que todos acabem!

Quando todos terminaram, mandei porem-se de pé e destroçarem.
Foi o primeiro choque entre mim e os soldados da 1498.

Vinham para a formatura, uns fardados, outros em pijama, de chinelas. Eu não quis ser muito duro. A única exigência era que formassem e esperassem a minha ordem para destroçarem.
O capitão, na altura ainda tenente, acabado de sair da academia militar, era progressista e resolveu aplicar técnicas democráticas para a divisão dos soldados em pelotões. Reuniu todos os soldados num grupo e colocou os aspirantes em fila bastante separados uns dos outros, e perguntou:
- Quem quiser ir para o aspirante Branco desloque-se para o pé dele.
E moveu-se uma leva de soldados. Quando terminou o movimento, veio a segunda pergunta:
- Quem quer ir para o aspirante Pinto?
Nova leva de soldados.
- Quem quer ir para o aspirante Melo?
Nem sequer um mostrou o desejo de integrar o meu pelotão.
- Quem quer ir para o aspirante Travassos?
Moveu-se uma grande leva de soldados.

Um grupo, de uma a duas dezenas de soldados, ficaram sem se ter candidatado a nenhum dos pelotões. Conversaram entre si e depois um deles levantou o dedo:
- Meu tenente! Ainda podemos escolher?
- Claro que podem!
- Queremos ficar com o aspirante Melo.

Eram naturais de terras do norte, Braga, Barcelos e arredores; e foram os melhores soldados do meu pelotão. Os restantes foram arrebanhados dos pelotões que tinham gente a mais.

Todos aqueles soldados pareciam estarem condenados à morte. Desejavam portar-se mal, por revolta, por contestação. Excediam-se no álcool, jogavam até tarde. Eu, embora sabendo que na Guiné iria correr riscos de perda da minha vida, não me sentia um condenado à morte, e pensava que a minha vida dependia da atitude dos meus soldados e da disciplina que eu conseguisse impor por forma a conseguir deles rápidas e prontas respostas contra os imprevistos da guerra. Assim, imediatamente após saber quem eram os meus soldados, furriéis e sargentos, passei a ocupar-lhes as manhãs com sessões de esclarecimento e motivação, exercícios físicos e revisão do estudo do armamento, prometendo-lhes que, se fossem disciplinados e cumprissem as regras, haveríamos de voltar todos com vida.

Na dúvida, acataram as minhas sugestões e, embora em toda a Unidade o meu pelotão fosse o único a preencher as manhãs daquela maneira, não tive da parte deles qualquer contestação, porém não me livrei da fama de ser militarista.
Na Guiné continuei a ser extremamente duro no respeitante à disciplina e na primeira semana castiguei um motorista por não ter verificado o nível do óleo da sua viatura.

Nasci na ilha de São Miguel onde permaneci até aos 21 anos. Não tinha grande experiência e vivência social. Sentia-me diminuído pelo facto do meu falar ser bastante diferente do falar continental, o que em muitas situações era motivo para troça. A minha puberdade fora extremamente tardia. Aos 15 anos tinha o tamanho de uma criança de doze anos e, como dizia o meu pai, somente aos 17 anos comecei a espigar. Embora fosse um ano mais velho do que todos os meus soldados, porque tive um ano de adiamento por estar matriculado na Universidade, a minha aparência era acriançada enquanto eles, alguns já casados, tinham aspecto de serem mais maduros. Esta diferença de aparência obrigou-me a manter uma maior distância para com eles e um maior rigor na imposição da minha autoridade.
Tive de me manter inflexível para compensar o que o peso, a carranca e o tamanho do corpo me diminuíam.
Fui duro muitas vezes injustamente e, quando eu passava, ouvia-os murmurar entre dentes: “Deus não dorme!”
Porém, por sorte, consegui cumprir a minha promessa porque, embora o meu pelotão tivesse sido castigado com bastantes feridos graves, nenhum dos meus homens faleceu e disso sento orgulho; e ainda hoje não me arrependo da dureza e distância que mantive naquela altura da minha vida, que psicologicamente me doeu, principalmente nos primeiros tempos, no quartel de Ponate, porque não tinha com quem desabafar. Enquanto eles conversavam entre si sobre as suas vidas e sobre as notícias que recebiam por carta dos familiares, eu sentia uma certa solidão e tinha de remoer sozinho, entre as quatro paredes do meu dormitório, os meus receios, os medos e as responsabilidades.

A disciplina que implementei, permitiu que me pudesse dar ao luxo de poder dormir até quinze minutos antes da hora marcada para uma saída; e ter o prazer de ver o meu pelotão devidamente formado, municiado e pronto para avançar enquanto outros sofriam para conseguirem estarem preparados mesmo contando com atrasos.

Dez anos depois, em 1978, desloquei-me em serviço a Macau, na sequência de negociações de um contrato de fornecimento de material de telecomunicações para aquele território. A última reunião, a decisiva, teve lugar no palácio do Governador, com a presença do mesmo. Estavam as negociações em marcha quando o Governador, numa atitude completamente fora do contexto me pergunta:
- Você não se lembra de mim?
- Sinceramente não tenho ideia de alguma vez me ter cruzado com V. Exa.
- Mas eu lembro-me perfeitamente de si! Não se lembra de uma operação que saiu de Binar em que veio uma companhia de intervenção de Bissau para se integrar com as vossas forças.
- Lembro-me perfeitamente.
- Eu era o comandante dessa companhia e fixei a sua fisionomia porque você foi o único que tinha o pelotão pronto para sair à hora que tinha sido determinada. Invejei o comportamento do seu pelotão.

Tratava-se de José Eduardo Martinho Garcia Leandro, promovido a coronel quando, em 1974, foi nomeado Governador de Macau.

José Jorge de Melo

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2. Comentário do editor:

Caro camarada de armas José de Melo
Bem-vindo ao Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
Não vais estranhar o tratamento por tu, que torna mais próxima a comunicação entre camaradas que em comum têm o ter pisado o chão da Guiné naquela situação de guerra. Tentamos que a idade, o actual (ou antigo) posto militar, as habilitações académicas e profissão sejam o impedimento de proximidade entre quem partilha este espaço de memórias.

Muito obrigado por te decidires juntar à nossa tertúlia, onde poderás deixar escritas (e em imagem) as recordações dum tempo que jamais esqueceremos. Terás também de nos dizer porque foste agraciado com a Cruz de Guerra de 3.ª Classe. Independentemente das nossas convicções políticas de então, não temos que nos envergonhar, hoje, por termos participado na guerra de África, a esmagadora maioria de nós foi para lá por imposição, cumprindo a lei vigente.

Se reparares, há parte da tua mensagem que foi omitida. Aquela que dedicas à tua faceta de artista enquanto escritor e pintor. Foi de propósito, já que na nossa série "Os nossos seres saberes e lazeres" irás ter, em breve, o destaque que mereces.

Não consegui fazer da tua foto antiga uma tipo passe para encimar os teus futuros postes. Se tiveres por aí uma onde estejas fardado, por exemplo a do BI militar, manda para os nossos arquivos. Se quiseres que faça outra actual onde apareças mais de frente, manda também.

Depois desta tua tão bem elaborada apresentação, resta-me deixar aqui um abraço de boas vindas em nome da tertúlia e dos editores.
Estaremos sempre ao teu dispor

Pela tertúlia
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14727: Tabanca Grande (467): José João Braga Domingos, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (Colibuia, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), 691.º Grã-Tabanqueiro

Guiné 63/74 - P14833: Inquérito online: os quatro rios mais votados (por mais de 2/3 dos 118 votantes): Geba, Cacheu, Corubal e Cacine... Seguram-se os rios Grande de Buba, Mansoa e Cumbijã...


Guiné > Zona leste > Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá) > Subsetor de Geba > CART 1690 (1967/69)  > Destacamento de Banjara >  Foto do malogrado sold Jaime Maria Nunes Estêvão, natural de Ourém,   lançando-se para a "piscina" à pai Adão... Morreu num ataque IN ao destacamento, em 24/7/1968, O rio, cujo nome não foi identificado pelos nosso cartógrafos, era um pequeno afluente do Rio Gambiel (vd. aqui carta de Banjara)  (*).

Foto (e legenda): © Alfredo Reis / A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados. [Edição : LG]


I. Camaradas aqui vão os resultados da sondagem sobre os rios da Guiné, que fechou no dia 3, às 7h. Houve 118 votos. 

Recorde-se que a pergunta era: "O meu rio da Guiné ( o que eu mais amei  / odiei"...)


Os quatro rios mais votados (> 10 %), com um um total de 82 votos (69,5%)

Geba > 32 (27,2%)
Cacheu > 23 (19,5%)
Corubal > 14 (11,9%)
Cacine > 13 (11,0%)

Com menos de 10% dos votos cada, reunindo 26 votos (22%), ficaram os restantes grandes rios (ou rias)

Grande de Buba > 10 (8,5%)
Mansoa > 8 (6,8%)
Cumbijã > 7 (5,9%)
Tombali > 1 (0,8%)

II. Resultados residuais:

Outro rio (o que corria junto do sítio onde estive) > 5 (4,2%)

Outro rio (não referido acima) > 1 (0,8%)

Nenhum > 4 (3,4%)


III. Votos apurados: 118 (100,0%)

Sondagem "on line", fechada no dia 3/7/2015, às 7h00.

Obrigados a todos os participantes.  Bom veraneio. E não se esqueçam de nos mandar um "bate-estradas"... Também pode ser um "corta-capim"... O mais simples: um email... Os editores.

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Nota do editor;

(*)  Vd. poste de  28 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7879: In Memoriam (72): Jaime Maria Nunes Estêvão, sold da CART 1690 / BART 1914, natural de Ourém, morto em 24/7/1968, num ataque ao destacamento de Banjara (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P14832: (De)caras (23): O mistério dos autocarros no Xime... Para mim, este "slide" é de março/abril de 1974... (António Manuel Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74)

1. Mensagem, de 3 do corrente,  enviada pelo António Manuel Sucena Rodrigues, em complemento da informação prestada no poste P14810 (*)

Assunto: Os autocarros no Xime

Olá,  Luís,

Voltando à carga com a data da foto que mostra os autocarros, pareceu-me que fazes depender a presença destes na Zona Leste, da passagem do 25 de abril. Ora,  embora eu não possa garantir absolutamente nada, quero, no entanto, dar a seguinte explicação:

(i) estivemos (a CCaç 12) no Xime bem mais de um ano [, desde março de 1973]; não me lembro de ter alguma vez assistido ou sequer ouvido comentar algo acerca da descarga, no cais do Xime, de quaisquer autocarros civis (muito menos militares) destinados à Zona Leste e aí largados de uma LDG; suponho que seria um acontecimento que não passaria despercebido;

(ii) o cais do Xime, conforme já referi antes, era a única ligação terrestre com o resto do mundo; concluo daí que já lá existiam estes autocarros há bem mais de um ano; tenho ideia de ter visto algum em Bafatá; logo, não dependeu  (???) do 25 de abril a sua existência na Zona Leste, se algum camarada me poder esclarecer ou comentar, eu ficaria muito agradecido;

(iii) a estrada entre Xime e Bafatá e mesmo Nova Lamego (Gabu) era toda alcatroada em 1972/74 (e recentemente, a julgar pelo bom estado do piso), daí que os camaradas que estiveram lá pouco antes, estranhem a facilidade com que se viajava nessa estrada;

(iv) em termos de segurança, o único ponto vulnerável era a Ponta Coli (entre Xime e a tabanca de Amedalai); mas, para ultrapassar esse problema, estava lá todos os dias do ano, quer houvesse barco ou não, um pelotão da CCaç 12 (ou da milícia de Amedalai, no caso de impedimento desta) desde manhã (8 ou 9 horas ???) até ao fim da tarde;

(v) além disso, para mim, e certamente para todos os camaradas que estiveram comigo nessa época, não me lembro que a presença destes autocarros tenha alguma vez sido uma surpresa, isto leva-me a concluir que se tratava de um cenário algo habitual, embora admita que fosse relativamente recente.

Por tudo isto continuo a manter a data provável da foto para março ou abril de 74, embora sem poder dar uma garantia absoluta.

Estas fotos foram digitaizadas a partir de slides.Os slides da Agfa vinham encaixilhados com caixilhos de plástico e esses não têm data da revelação marcada, Os slides da Kodak vinham encaixilhados com caixilhos de papelão e esses trazem as datas da revelação, que ainda são visíveis. Logo por azar este, de onde foi retirada a foto, era da Agfa.

Fico a aguardar esclarecimentos de algum camarada que possa trazer luz nesta matéria.

Um abraço
Sucena Rodrigues

[ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74]


2. Comentário de L.G.:

Como comentei (ª), "estas fotos são preciosas e deliciosas", daí eu ter-te pedido  um "esforço de memória"... Obrigado pelo teu esforço... A verdade é que não tens "elementos objetivos" para conmfirmar a data... Continuo a pensar que podem não ser de março de 1974... "E mesmo abril de 1974 parece-me cedo"... 

Como sabes, em Bissau, os primeiros vivas ao 25 de Abril, ao MFA, ao Spínola, os primeiros abaixo a PIDE/DGS, as primeiras manifestações de regozijo "popular" (e já de contestação....) são de 27 de abril de 1974, depois da prisão de Bettencourt Rodrigues em 26... O Carlos Matos Gomes, que era do MFA da Guiné, e com quem falei ao telefone, diz-me que os autocarros podem ter vindo do Senegal... Se sim, eu apontaria mais para maio/junho de 1974 o seu aparecimento no TO da Guiné... Mas tu ainda não me disseste quando saiste do Xime... Pergunto-te se tu aguentaste até ao fim, até à extinção da CCAÇ 12, em agosto de 1974 ?  Ou se acabaste mais cedo a comissão, já que eras de rendição individual  ? Essa data pode ser a chave para esclarecer este pequeno mistério dos autocarros... 

__________________

Nota do editor:

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14831: Memória dos lugares (302): os meus dois rios, o Cagopère (Cachil, no sul) e o Geba (Bafatá, no leste) (José Colaço, ex-sold trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > A lancha no cais do Cachil, responsável pelo transporte dos géneros de Catió para o Cachil... A ligação de Cachil (na margem esquerda do Rio Cobade) a Catió fazia-se de barco, pelo Rio Cobade e depois pelo seu afluente, o Rio Cagopère (em cuja margem direita se situava o porto exterior de Catió)]

Foto (e legenda): © José Colaço (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

1. Mensagem de José Colaço, com data de 2 do corrente:

José Colaço, ex-Soldado Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)]

Assunto: Sondagem sobre ss nossos rios da Guiné > 20 horas para votar...

Caríssimo Luís

Sem querer ser vidente parece-me que esta sondagem tem à partida um vencedor absoluto, pela sua grandiosidade, beleza inconfundível,  o macaréu, as suas águas cristalinas a partir do macaréu, mas essas águas genuínas,  puras, tépidas,  também têm os seu reveses, foram elas que em Bafatá abraçaram para sempre a vida do soldado da CCAÇ 557, Domingos Gomes Nabais [, em 13 de abril de 1965]

Além disso quase todos os militares navegaram nas suas águas, saída quase obrigatória para as companhias seguirem para os aquartelamentos no mato ou mesmo as companhias especiais de combate para qualquer operação militar [, no leste].

O meu voto não é secreto e foi para o rio que corria no local onde estive em quadricula, a maior parte do tempo de comissão o rio Cagopere.  uma beleza medieval ver os jacarés no seu vai e vem atravessar de margem para margem e toda a fauna e flora no seu estado primitivo,  aqui a intervenção humana ainda não tinha acontecido.

Mas sem querer votei clandestinamente no rio que,  como disse,  me parece ser o vencedor absoluto, primeiro corria para o local onde estive,  Bissau,  40 dias no início da comissão e mais 180 dias quando fomos rendidos no Cachil, a seguir o rio corria em Bafatá local onde terminei a comissão cerca de 180 dias.
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Guiné 63/74 - P14830: Notas de leitura (733): “Sagal, um herói em África”, de António Brito, Porto Editora, 2012 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
“Sagal, um herói feito em África”, de António Brito, não aguenta a comparação com um livro que é uma gema literária, “Olhos de Caçador”, a viagem de um Fernão Mendes Pinto não aos mares da China mas ao Planalto dos Macondes.
Sagal tem um arranque muito feliz, talvez haja naquele jovem paraquedista traços autobiográficos, já que António Brito se alistou aos 18 anos nas tropas paraquedistas e combateu em Moçambique. Mas a certa altura há um nítido destrambelho, sente-se que toda aquela vibração é produto de muitas leituras, do cruzamento de outros heróis, é uma ação que já vimos e lemos noutros sítios.
Seja como for, Sagal é um livro que prende a atenção e merece ser conhecido.

Um abraço do
Mário


Sagal, um herói feito em África

Beja Santos

A memória dos combatentes, com o passar dos anos, desloca-se desses primitivos teatros de guerra e espraia-se pela vida contemporânea. Os primeiros relatos de combatentes, nos anos 60, eram evocações de gesta heróica, apresentavam-se como testemunhos que a guerra não devia ser esquecida. Com o 25 de Abril e a independência das colónias, a agulha da escrita mudou de rumo, tornou-se denunciante, hipercrítica, assumiu até formas chocarreiras de derrisão; nos anos 80, já com a temperança, começaram a surgir obras literárias de cariz memorial, os combatentes começavam a perder inibição e a contar a sua verdade dos acontecimentos, a testemunhar; e esta paixão pelo relato tem conhecido franco desenvolvimento, nunca as memórias foram tão repletas e agora o relator não precisa de esquivas nem de ajustes de contas, o que há a pôr em memória ganhou em sinceridade. Isto para enfatizar que a literatura memorial se tem revelado o subgénero mais auspicioso da literatura da guerra que travámos em África. No entanto, a ficção não está adormecida e muito menos menorizada. É neste contexto que vale a pena considerar o significado do romance “Sagal, um herói em África”, de António Brito, Porto Editora, 2012.

No seu arranque, e num registo que absorve completamente o leitor, vamos saber que o futuro herói de África foi acolhido, recém-nascido, num bordel ali para os lados da Mouraria, descreve-se o bordel, as suas profissionais e a clientela, isto a par de uma maratona de recordações que o narrador vai percorrer no tempo em que dura o romance, vertente que trata a um ritmo excelente e na cadência certa: “Tempo de inocência, as raparigas ocupavam-no a abrir as pernas e a cuidar de mim. Entre a ociosidade das mulheres e a subida aos quartos com os clientes, parecia haver tempo para tudo, até para escutar os conselhos do doutor Rosado, o médico que vinha ao bordel verificar a saúde das raparigas. - A criança não pode andar por aí sem cuidados - avisava o bom doutor, examinando-me os ouvidos depois de perscrutar a genitália das rameiras”.

Sagal fora abandonado pela mãe numa caixa de margarina Vaqueiro na paragem do autocarro, na Praça do Martim Moniz. A criança foi batizada e puseram-lhe o nome de Emiliano Salgado. Emiliano, lembrança do rapaz que desflorou a Lola e Salgado em homenagem ao homem que lhe montou o bordel. Um batizado de arromba na igreja da Senhora da Saúde. Emiliano vai crescendo até que apareceu um polícia da esquadra da Mouraria e o levou para a reclusão num orfanato público, a Casa Pia. Seguem-se descrições cruentas, admiráveis, sobre o funcionamento da instituição: as alcunhas, as cenas de brutalidade, as retaliações, os vícios, os mecanismos da mente dos predadores de crianças. Desanca um pedófilo, segue-se uma fuga para a marginalidade mas antes há uma destruição vingativa de um carro de estimação do seu algoz.

“Larguei o ninho da Casa Pia. Ninho de ovos podres, ninho de ovos bons. De uns e outros nasceram gansos. Muitos saíram a voar; alguns, feridos nas asas, arrastaram-se pelo chão sem um olhar para as estrelas”. Começa a trabalhar com o After-Shave, um intermediário de roubos. Emiliano bate à porta dos paraquedistas, passa em todas as provas e descobre uma nova excitação no risco: “Então o paraquedismo é isto? Andar com o coração num alvoroço? Gemer com o estômago colado às costas? Atirar o corpo para o vazio como se aquilo não fosse nosso?”

Modelaram-lhe a cabeça, espremeram-lhe o corpo, aprendeu a matar e levaram-no para África, mais concretamente Moçambique. Em Nacala vai conhecer o Educador, um obcecado pela superioridade da raça branca. O autor apresenta por alcunhas alguns dos camaradas paras: o Povoador, o Casto, o Trovador, o Mandarim, o Proletário, o Justiceiro, o Magnânimo, o Barbeiro de Sevilha, entre outros. A máquina de guerra está em ação. E nasce a lenda do Leão do Sagal, a operação tem todos os ingredientes da brutalidade e do arrojo. E assim chegamos ao 25 de Abril. Continuamos numa tessitura literária de originalidade, é uma bruteza exequível toda esta prosódia que acompanha a descolonização.

A partir de agora, se bem que a cadência não tenha perdido o empolgamento, sentem-se influências alheias neste Sagal mercenário dos sul-africanos, toda a operação à volta do rio Cunene mete Indiana Jones, Bruce Willis, OSS 117 criado por Jean Bruce, mas há muitas mais reminiscências que se podem exibir. O que deixa o leitor embaraçado, a originalidade com que toda a trama arrancou esvaiu-se em lembranças de obras alheias. Sagal regressa do Cunene muito mal tratado. Em 1977 chega a Lisboa onde se sente uma atmosfera pós revolucionária, surge uma crise de identidade, vai reencontrando camaradas paras, há gente a viver muito mal, desce à valeta, torna-se mendigo ou sem abrigo: “Para comer, passei a usar um truque que aprendi com os desabrigados mais antigos. Uns minutos antes de um comboio partir da gare, vou até à cafetaria e ao snack-bar e vigio os passageiros que estão a comer. Quando o altifalante anuncia a partida, os passageiros atrasados pagam rapidamente e abalam a correr, a mastigar, deixando no prato o resto da sanduiche, às vezes o resto da cerveja ou o sumo no copo. Nesse momento eu avanço e despejo o prato para o saco de plástico, antecipando-me à recolha do empregado”.

Sagal torna-se um D. Quixote da noite, velando por desgraçados sem garra, por humilhados sem defesa, perdedores de condição. Mário Chow-Lin e o irmão vão buscá-lo à valeta, começa a ressurreição, é levado para um mosteiro para os lados da serra do Caldeirão, entra em retiro (tratamento do corpo e da mente, descoberta dos limites, aprendizagem da meditação). E vai entrar em conflito aberto com os gangues que assaltam o Pão de Açúcar, primeiro trabalha como repositor, depois vai para o supermercado da Venda Nova, é aqui que vai ter lugar o confronto contra as tramoias de um grupelho intitulado Frente Nacionalista Popular por acaso altissimamente influente no mundo sindical. Sagal muda de pele, tem sempre uma frase apropriada para responder a todos os gestores, impõe-se e passa a chefe.

Sagal, o antigo para destemido, é agora um condutor dentro do supermercado, motiva a sua equipa, chama antigos paras, vê-se que é um homem de cultura, para além de ter uma inteligência fulminante. Os seus discursos são inflamados, a canalha revanchista vai perdendo espaço, e descontrola-se. E como no Alien, chega-se ao confronto final. É escusado dizer que aquele Educador que era racista, agora, qual camaleão, anda a incitar o grupelho revanchista. Surge entretanto uma mulher digna dos sentimentos de Sagal, de nome Angelina. É mesmo questão para perguntar: o que seria um romance de ação envolvendo um ex-paraquedista educado num bordel e na Casa Pia em que não aparecesse uma mulher digna desse justiceiro? A maratona vibrante, qual bom filme de aventuras da série B está praticamente no fim, o grupelho foi desfeiteado mas o Educador está sedento de vingança, já foi desmontado um golpe escabroso que envolvia dirigentes do Pão de Açúcar que tinham interesses imobiliários na Venda Nova. O Educador tenta matar o herói dos supermercados, temos aqui uma cena tirada dos livros de Mickey Spillane, um excelente escritor norte-americano que se impôs nos anos 50 do século passado, pelos seus romances negros:
“O vulto emergiu por entre os carros estacionados no parque. Avançou agachado para as minhas costas. Enquanto eu rodava, levei a mão ao 38 entalado no sinto das calças. Quando o vulto disparou, eu disparei. A bala do cabrão entrou pela antiga cicatriz da coxa, furando a perna e a chapa do Honda Civic. A minha bala acertou-lhe no pescoço. Um tiro de sorte. Levou as mãos ao rasgão nas goelas por onde fervilhava sangue a espirrar para os lados. Deixou-se tombar entre os carros, escorregando até ao chão, sem pressa”.

O que pressagiava ser uma obra de primeiríssima água vai resvalando para um produto acabado de entretenimento puro. É pena, António Brito prova ter um estilo pessoal, não precisava desta tragicomédia de ação e rebentamentos cinematográficos. Apesar da frustração, António Brito é um nome a reter, escreveu um livro assombroso, “Olhos de Caçador”. Esperava-se mais, paciência, oportunidades não vão faltar para quem já tem créditos firmados.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14807: Notas de leitura (732): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14829: Memória dos lugares (301): Rio Corubal: Já o atravessei a nado, duas vezes, com óculos e barbatanas, vasculhando o fundo, junto à jangada do Ché Ché, de tão má memória... (Patrício Ribeiro, Bissau)



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Rápidos do Saltinho > 3 de Março de 2008 > Lavadeiras do Saltinho... Doces e trágicas memórias, a deste rio... O único e verdadeiro rio da Guiné, já lá dizia o Amílcar Cabral, porque todos os demais são de água salgada, são rias, são braços de mar... É provavelmente o mais belo rio da Guiné, digo eu, que só conheço este, o  Geba, o Mansoa e mais alguns rios mais pequenos, afluentes...

Um dia destes,  os novos senhores de África decidem construir aqui uma monstruosa barragem, hidroelétrica, à revelia dos verdadeiros interesses do povo guineense... É sonho antigo que vem da independência... E com isso destruir o recurso mais precioso que tem a Guiné-Bissau, para além do seu povo, que é a sua biodiversidade... Não sei se este projeto tem viabilidade (do ponto de vista técnico, financeiro, económico, ambiental e político)... Mas já vimos tanto coisa, em todo o lado (a começar pelo nosso país)...

Enfim, o que eu quero sublinhar é que  sem biodiversidade não há futuro, não há desenvolvimento sustentado e partilhado, não há esperança... Oxalá que este  projeto nunca se chegue a concretizar... Para bem da Guiné-Bissau e de todos nós, incluindo o povo chinês cujo dinheiro está a ser fortemente investido em África, e não só... Porque a terra não nos pertence, é a nossa casa comum, e temos a obrigação de a deixar, melhor, mais habitável e sustentável, aos que hão-de vir depois de nós, os nossos filhos, netos e bisnetos, europeus, africanos, asiáticos, americanos, australianos...

Também me parece que há hoje  um sério risco de "pesca selvagem" no Rio Corubal, a avaliar pelas fotos de alguns "sites" de caça e pesca, internacionais, que promovem, descaradamente, quase pornograficamente, o saque dos recursos piscícolas do Rio Corubal... Vejam aqui.

O mar da minha terra também era rico de vida marinha, lançavam-se cem covos, apanhavam-se cem lagostas. E pescador que não apanhasse à linha uma garoupa do seu tamanho era uma merda de pescador... Estou a falar de há 60/70 anos atrás... Hoje até a sardinha foge de nós... En Peniche o número de traineiras deve ter sido reduzido na ordem das 80 para 10... O atum desapareceu do mediterrâneo. E, claro, do Algarve.

No passado, nunca aprendemos com os erros uns dos outros... Tem sido a ganância de uns poucos que nos empobrece e mata  a todos... Aqui, e em toda a parte... Infelizmente a Guiné-Bissau é um dos países mais ameaçados do mundo, em consequência das alterações climáticas... Não sei se os nossos bisnetos poderão chegar a  conhecer o Rio Corubal, os rápidos do Saltinho e de Cusselinta (e não "Cussilinta", como já tenho visto grafado...) ou o arquipélago dos Bijagós...  Todavia, a consciência ecológica está a chegar também à Guiné-Bissau: o povo bijagó, por exemplo, está-se a mobilizar para defender e proteger os seus recursos marinhos e florestais, sem os quais corre o risco de perder o seu modo de vida e a sua forte identidade cultural... E são as mulheres que lideram essa luta... Vejam aqui o sítio da ONGD, de base comunitária, Tiniguena. (LG)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas. Todos os direitos reservados


1. Mensagem do Patrício Ribeiro:

 [Foto à esquerda: Patrício Riubeiro, português, natural de Águeda, criado e casado em Angola, com família no Huambo, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bssau desde 1984, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda; também conhecido carinhosamente como "pai dos tugas"]


Data: 2 de julho de 2015 às 11:38

Assunto: Sondagem sobre ss nossos rios da Guiné

Boas,

Ainda recentemente, estive a fazer  caça submarina,  com uns amigos no Corubal,  em Cusselinta.

Todos os anos, vou dar lá uns mergulhos e matar uns peixes, assim como no Saltinho, águas com mais de 5 metros de   profundidade, doce, com 3 metros ou mais, de visibilidade.

Normalmente apanhamos percas do Nilo (garoupas do rio) que chegam a pesar,  algumas,  mais de 5 kg.

São bons fins de semana e passeios, mergulhos, javalis, com campismo á mistura.

Já atravessei  o rio Corubal  duas vezes a nado, com óculos e barbatanas, vasculhando o fundo, junto à jangada do Ché Ché, de tão má memória...

Nesta jangada no Ché Ché a funcionar, lá vão passando com frequência, as professoras portuguesas da ONG FEC,  que estão a morar em Gabú, levar a língua portuguesa até Beli, no Boé.

Para informação do António Rosinha, a estrada entre Gabú e o Ché-Ché, onde estive a semana passada, está a reparada por uma empresa portuguesa,  penso que depois da reparação há 30 anos pelo Rosinha,  ele volta a ter manutenção.

Abraço
Patricio Ribeiro

IMPAR Lda
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Tel / Fax 00 351 218966014 Lisboa