quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16809: Os nossos seres, saberes e lazeres (189): De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 5 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
Cada turista tem as suas pechas, os seus amores desmedidos alguns deles até se justificam porque o lugar visitado guarda memórias inolvidáveis. Por razão do meu trabalho, entre 1977 e 2007, visitei com muita assiduidade Bruxelas. Fiz amizades, tenho lugares de culto, sento-me num banco de jardim e volto décadas atrás, recordo exposições espantosas, designadamente aquelas que gravitam à volta da Europália, a começar pela Europália de Portugal, 1991, lembro-me de ter ido a Charleroi visitar a exposição dos nossos instrumentos científicos antigos, guardados religiosamente pela Universidade de Coimbra, vieram excursões da Polónia, Países Bálticos e Escandinávia ver o que já tinha desaparecido.
Está bom tempo, amanhã partimos para as Ardenas, está-me reservada uma experiência única, dormir numa casa que ainda está na Bélgica mas que faz fronteira com a França.
Depois conto.

Um abraço do
Mário


De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (2)

Beja Santos

Trata-se de uma visita familiar, é deliberado fazer uma peregrinação a lugares bem conhecidos, no centro da cidade, hoje disfarço-me de cicerone, acompanha-me um amigo que está longe de conhecer ou perceber como estes lugares são da minha eleição. Estamos agora numa igreja chamada Nossa Senhora do Bom Socorro, rue Marché du Charbon. Aqui houve uma modesta capela no século XII, no século XVII a capela transformou-se em igreja. Está aqui um pouco da história da Bélgica. Na porta temos o escudo de armas de Carlos de Lorena, governador dos Países Baixos no século XVIII. Aliás a igreja foi reconstruída no fim do século XVII, depois dos bombardeamentos por ordem de Luís XIV. Altar em mármore e madeira pintada, a formosa estátua da virgem do bom socorro, data do século XIV. Tivemos sorte com a visita, já que o edifício serve de cenário para concertos de música barroca, devido à boa acústica, andávamos por ali a deambular e começou o ensaio, passámos meia hora nas alturas.



A seguir a uma igreja vamos a outra, a de S. Nicolau, perto do edifício da Bolsa, nunca acerto com os horários, talvez pela hora matinal volta a não ser possível visitar as esculturas de Rodin, não acredito que sejam grande coisa, os guias concedem-lhes magras referências. Em vez de seguirmos para a Grand Place entramos numa igreja que também privilegia o barroco, destruída pelos canhões do marechal de Villeroy, mas os danos não ficaram por aqui, os franceses chegaram a Bruxelas em 1794 e derrubaram a igreja, só em 1956 ela foi completamente restaurada e repostas as suas riquezas. Temos uma nave central, que é primorosa, respeita a arquitetura dos séculos XIV e XV, tem belíssimas abóbadas de cruzeiro, a nave central e as naves laterais assentam em robustos pilares quadrados. A grande atração de S. Nicolau é um relicário com as relíquias dos mártires de Gorkum, é um trabalho admirável de ourivesaria. Muito bela é também a imagem de Nossa Senhora da Paz do século XVI. Contrastando com toda a beleza do barroco está lá um ícone de Vladimir, a Virgem da Ternura, digamos que não há nada de espetacular na pintura, mas a expressão do menino é cativante, se a Mãe é a ternura, o que dizer deste abraço?



Os viandantes fazem agora uma inversão completa e dirigem-se ao bairro mais popular de Bruxelas, Marolles, seria impensável com este bom tempo não dar uma saltada à Feira da Ladra local. Como não é a primeira vez que se sujeita ao leitor a imagens semelhantes, o melhor é dar conta do que adquiriu: um álbum fotográfico de uma família que já deve estar nas nuvens e que aí por 1963 fizeram o Chamonix e desceram toda a França até Carcassone, bem perto da fronteira espanhola; uma bela edição de Orfeu, de Monteverdi, duas estampas congolesas, vários tecidos em seda chinesa, dois livros em edições Arte Nova, belíssimos, mais tarde vem o arrependimento quando o encadernador pede um balúrdio, não havia reparações para as lombadas. A fúria só acaba quando os livros aparecem impecavelmente remoçados, dão gosto, ali junto à mesa de trabalho, ainda mais com o Orfeu a chorar pela sua Eurídice.



A brincar, a brincar, começamos a expedição turística já lá vão perto de 4 horas a dar aos pés. Mas o que se vê nesta extensa rua chamada Blaes possui magneto, há por aqui traquitana de toda a ordem, como interessa ser comedido para não enfastiar, mostra-se uma montra do tempo antigo, não me importaria nada de ter aquela poltrona, e mesmo com o estômago a bater horas quando há pintura entra-se nas lojas e fazem-se perguntas. Foi o caso deste tríptico, como a câmara é modesta assentou-se a atenção no painel central, gostos não se discutem, um dos viandantes teve a insânia de perguntar o preço, modesto por sinal e falou em portes. Outro viandante alertou para as horas, nestas coisas das compras há mais marés que marinheiros.



Vamos então dar por findo o dia de trabalho, a tarde será reservada para outro tipo de ferro-velho: livros usados e frontarias de edifícios. Bruxelas é conhecida pelas suas pichagens artísticas. Os viandantes entusiasmaram-se, já estavam de barriga aviada, houve uma bela sopa de legumes, endívias com presunto, gelado e café, era com ardor que passarinhavam pela cidade. E despedem-se com duas pichagens, dão prova do quilate do que o turista pode encontrar nesta cidade a quem tanto chamam sombria, monótona, uma sensaboria.



(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16779: Os nossos seres, saberes e lazeres (188): De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16808: Álbum fotográfico de Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil, CCAÇ 4740 (Cufar, dez 72 / jul 73) e Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, jul 73 /ago 74) (5): o destacamento de Mato Cão - Parte I



Foto nº 1 > O nosso quartel



Foto nº 2 > O nosso refeitório


Foto nº 3 > A nossa messe



Foto nº 4 > A hora do banho


Foto nº 5 > O Rio Geba (1)


Foto nº 5A >  O Rio Geba (2)


Foto nº 5B >  O Rio Geba (3)


 Foto nº 6 >  O Rio Geba (4)


Foto nº 7 >  A jangada que fazia a travessia (nomeadamente de viaturas) para a outra banda... Era rebocada pelo sintex (motorizado)



Guiné >Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 (1973/74) >  O nosso destacamento


Fotos (e legendas): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Luis Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro, que foi alf mil da CCAÇ 4740 (Cufar, 1972/73) e do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, 1973/74). (*)


 O Luís Mourato  Oliveira era de rendição individual... Veio de Cufar,   no sul, região de Tombali, para o CIM de Bolama, por volta de julho de 1973, antes de ir comandanr o Pel Caç Nat 52, no setor L1, zona leste (Bambadinca), região de Bafatá. É aí que ele irá terminar a sua comissão e extinguir o pelotão.

Eis algumas fotos do tempo que passou no destacamento de Mato Cão, cuja principal missão era proteger as embarcações que circulavam no Rioo Geba Estreito, entre o Xime e Bambadinmca.


Sobre o Mato Cão, que é um lugar mítico,  temos cerca de 70 referências... Por lá passaram diversos camaradas nossos, membros da Tabanca Grande... O Oliveira deve ter sido o último...
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terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16807: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (39): pedido de ajuda para tese de doutoramento em Antropologia, pelo ISCTE-IUL, sob o tema do uso de álcool e drogas na guerra colonial (Vasco Gil Calado)





Vasco Gil Calado, « As drogas em combate: usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa », Etnográfica [Online], vol. 20 (3) | 2016, Online desde 27 Novembro 2016, consultado em 06 Dezembro 2016. URL : http://etnografica.revues.org/4628 ; DOI : 10.4000/etnografica.4628


Resumo (em português):

"Apresentam-se as principais questões suscitadas pelo trabalho em curso acerca do uso de substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa (1961-1974). São identificados alguns aspetos-chave que emergem das narrativas dos ex-combatentes acerca da sua experiência de guerra e que contextualizam um conjunto de práticas, entre elas o uso de drogas. Confirma-se o abuso de álcool e o uso de canábis entre os militares das forças armadas portuguesas envolvidas no conflito, numa altura em que em Portugal surgiam as primeiras iniciativas de combate às drogas. Tanto o consumo de bebidas alcoólicas como de outras drogas pode ser entendido como uma forma de lidar com a ansiedade e a violência do quotidiano."



Algumas conclusões do autor:

(...) "A análise das respostas permite chegar a duas conclusões: a ausência de consumo de canábis por parte das tropas portuguesas na Guiné e um consumo relevante em Angola e Moçambique. De entre os 210 respondentes, todos aqueles que estiveram na Guiné afirmam não ter consumido a planta e desconhecer por completo o seu uso no território durante a guerra. 

O mesmo não se passa com os respondentes que estiveram em Angola e Moçambique: 15% dos militares que fizeram a guerra naqueles territórios afirmam ter consumido canábis, enquanto outros 25% afirmam ter assistido ao consumo ou tido conhecimento direto disso. Feitas as contas, dos respondentes que estiveram em Angola e Moçambique durante a Guerra Colonial Portuguesa, perto de metade (40%) declaram ter tido um contacto direto com a planta." (,..)


1. Mensagem de nosso leitor e doutorando em antropologia Vasco Gil Calado: 

Data: 30 de novembro de 2016 às 11:03
Assunto: Doutoramento Antropologia

 Bom dia, Prof. Luís Graça


No seguimento do meu trabalho em curso, publiquei um artigo na revista Etnográfica. Vinha propor-lhe que divulgasse o artigo no blogue, se achar oportuno (eu divulguei o artigo numa comunidade do facebook sobre a guerra colonial onde recrutei um informante e algumas das pessoas que preencheram o inquérito on-line mas a verdade é que fui muito mal recebido. Portanto, se achar que a divulgação irá levantar uma polémica desnecessária, esqueça o meu pedido).

A minha ideia em divulgar o artigo agora é que, como me encontro na fase da escrita da tese de doutoramento, quaisquer críticas, sugestões e reparos (a imprecisões, termos mal usados, erros conceptuais, etc.), ou até mesmo encontrar alguém que queira colaborar com informação será muito bem-vindo.

O link é: http://etnografica.revues.org/4628

Cumprimentos,

Vasco Gil Calado
ISCTE-IUL; SICAD, Portugal
vascogil@gmail.com


2. Mensagens anterior de Vasco Gil Calado com data de 5/3/2015

Chamo-me Vasco Gil Calado, antropólogo e técnico superior do SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências]. 

Estou a fazer o doutoramento em Antropologia, no ISCTE, sobre o tema do uso de álcool e drogas na guerra colonial. Foi o Renato Monteiro quem sugeriu que o contactasse, na condição de grande especialista e dinamizador de um blog essencial sobre a guerra colonial. No âmbito académico da tese, gostava de o entrevistar, de forma anónima e confidencial, naturalmente.

O meu orientador é o Prof. Francisco Oneto, do departamento de Antropologia do ISCTE.
Nós cruzamo-nos no ISC-Sul, numa pós-graduação de Sociologia da Saúde, em que deu um módulo sobre Educação para a Saúde, se bem me lembro, para aí em 1999 ou algo do género. (...)

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Guiné 63/74 - P16806: Lembrete (19): Lançamento do livro "História(s) da Guiné-Bissau - Da luta de libertação aos nossos dias", da autoria do nosso camarada Mário Beja Santos, hoje, pelas 18 horas, no Auditório da Associação Nacional das Farmácias, em Lisboa


LEMBRETE PARA O LANÇAMENTO DO LIVRO "HISTÓRIA(S) DA GUINÉ-BISSAU - DA LUTA DE LIBERTAÇÃO AOS NOSSOS DIAS", DA AUTORIA DO NOSSO CAMARADA MÁRIO BEJA SANTOS, HOJE, PELAS 18 HORAS NO MUSEU DA FARMÁCIA



Extrato do livro “História(s) da Guiné-Bissau”, a lançar hoje 6 de Dezembro 

Os últimos dias de Portugal na Guiné Portuguesa

por Beja Santos

A 27 de Abril, começaram em Bissau manifestações populares exigindo a libertação dos presos políticos, extinção da PIDE/DGS e a abertura de negociações com o PAIGC. A agitação crescia cada vez que chegavam jornais de Lisboa.

É um tropel de acontecimentos, parece que os próprios atores não têm comando no conjunto da peça. A 7 de Maio, Carlos Fabião, graduado em brigadeiro, escolhido por confiança de Spínola, seguramente tendo em consideração os doze anos que levara em comissões na Guiné, é nomeado como Encarregado do Governo e Comandante-Chefe da Guiné. Quando chega a Bissau, logo se apercebe que a missão de Spínola o encarregara perdera a razão de ser. Regista-se indisciplina nas Unidades, o MFA local vai tomando conta do poder, a Comissão Coordenadora estende-se à Armada e Força Aérea, qualquer esforço defensivo e dar continuidade ao processo político de autodeterminação são meros exercícios de retórica. Em Lisboa, o poder político procura negociar com o PAIGC, Mário Soares, já Ministro dos Negócios Estrangeiros, viaja para Dakar, conversa amistosa com os líderes senegaleses e com Aristides Pereira, o encontro é inconclusivo, não havia ainda qualquer compromisso formal sobre o cessar-fogo. Seguir-se-ão conversações em Londres e em Argel, todo este processo da descolonização conhece clarificação com a Lei 7/74, onde se inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos. Em 10 de Setembro, em Lisboa, ocorre o reconhecimento de jure. Em 24 de Setembro, em Madina do Boé foram solenemente comemorados o cinquentenário de Amílcar Cabral, os 17 anos do PAIGC (alegadamente fundado em 19 de Setembro de 1956) e o primeiro aniversário da independência, as autoridades portuguesas estão presentes.

A descompressão da guerra passara a ser uma realidade, a seguir ao 25 de Abril começaram encontros mais ou menos formais, de um modo geral, independentemente de casos de indisciplina, de alguma agressividade bacoca de alguns líderes militares do PAIGC, a paz em respeito mútuo alargou-se pelo território. Na sequência deste processo foram-se estabelecendo protocolos para uma retirada das tropas portuguesas e a entrada das forças do PAIGC. Para dar cumprimento ao anexo dos acordos de Argel tomaram-se medidas que vieram a ter consequências dramáticas. Vejamos como.

Dentro dos 28 pontos deste anexo, há que relevar as seguintes matérias: as Forças Armadas Portuguesas entrariam em retração e facilitariam a transmissão gradativa dos serviços da administração; a República da Guiné-Bissau obrigava-se a neutralizar os seus meios antiaéreos suscetíveis de afetar a circulação de aeronaves e de voos de reconhecimento no espaço aéreo à responsabilidade das Forças Armadas Portuguesas; as Forças Armadas Portuguesas obrigavam-se a desarmar as tropas africanas sob o seu controlo; uma comissão mista coordenaria a ação das duas partes; o governo português comprometia-se a pagar todos os vencimentos até 31 de Dezembro de 1974 aos cidadãos da República da Guiné-Bissau desmobilizados das suas forças militares ou militarizadas, bem como aos civis cujos serviços às Forças Armadas portuguesas ficavam dispensados; o governo português comprometia-se a pagar as pensões de sangue, de invalidez e de reforma a que tinham direito quaisquer cidadãos da República da Guiné-Bissau por motivo de serviços prestados às Forças Armadas Portuguesas; o governo português participaria num plano de reintegração na vida civil dos cidadãos da República da Guiné-Bissau que tivessem prestado serviço militar nas Forças Armadas Portuguesas e, em especial, dos graduados das Companhias de Comandos Africanos.

O que se irá passar, e de acordo com a escassa documentação existente, é que as Forças Armadas portuguesas abandonaram o território dentro dos prazos estipulados, e não se cuidou de garantir a normalidade do sistema económico e financeiro da própria vida administrativa e da natureza dos serviços de primeira grandeza, a começar pela saúde e pela educação, garantia do abastecimento a todos os níveis, e uma adaptação equilibrada na transferência da ordem colonial para a República independente. Em “Crónica da Libertação”, Luís Cabral virá dizer que encontrou os cofres vazios quando chegou a Bissau, que os colonialistas tinham partido com tudo, e com esta frase parecia deixar no ar que houvera um abandono puro e simples e que as novas autoridades foram confrontadas com o vazio do poder. Obviamente que a questão é mais complexa. O PAIGC, em toda a sua ingenuidade, estimara que o modelo administrativo adotado na luta de libertação se podia aplicar automaticamente à nova situação, com correções e ajustes. Presidia a mentalidade da coletivização, nunca se dimensionou que os Armazéns do Povo transacionavam muitos bens oferecidos por países amigos e que havia uma troca com as populações fora de controlo das autoridades portuguesas que entregavam os seus produtos agrícolas.

Não há uma referência nos Acordos de Argel à manutenção da presença portuguesa num regime de transição faseado, para evitar sobressaltos no funcionamento dos hospitais, dos estabelecimentos escolares, dos portos e na própria recolha de impostos. Com sobranceria, os quadros dirigentes do PAIGC julgavam-se capacitados para pôr pessoas habilitadas em todos os postos. E havia um fator ideológico preponderante, muito mais tarde invocado como fator determinante: era preciso mostrar aos movimentos de libertação irmãos (MPLA e FRELIMO) que o sistema colonial estava a soçobrar, era irreversível, as conversações para a independência de Angola e Moçambique não podiam ser arrepiadas por manobras dilatórias.

O PAIGC parecia embalado pela Constituição do Boé, acreditava piamente numa vigorosa participação popular que faria enfunar as velas dos ventos revolucionários, e que rapidamente se poria em ação uma política económica enfocada no investimento industrial e no setor público. Acresce que a Constituição do Boé dava como certo e seguro o funcionamento das instituições: a Assembleia Nacional Popular, o Conselho de Estado, o Conselho dos Comissários de Estado, os Conselhos Regionais e o Poder Judicial. Atente-se que no artigo primeiro da Lei n.º 3/73, de 24 de Setembro, foi nomeado o primeiro Conselho de Comissários de Estado, tendo como Comissário Principal Chico Té e 15 comissários e subcomissários. Como é óbvio na generalidade dos casos, estes dirigentes políticos estavam impreparados para enfrentar a realidade de um território descolonizado à pressa e inadaptado aos sonhos de Amílcar Cabral. Aliás, o líder fundador previra dificuldades de monta para reverter a economia colonial ao modelo que ele preconizava que seria uma adaptação de economia planificada onde a experiência vivida nos anos da luta tivesse a sua quota-parte de inserção.

E vamos assistir ao esbarrondar desses sonhos, ao agravamento de tensões internas, a escolhas económicas erradas e a uma total incapacidade de proceder a uma reconciliação nacional, isto quando uma boa parte da antiga colónia tinha participado no processo de “africanização” da guerra e tomado declaradamente partido pelas propostas de Spínola.
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Notas do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16616: Lembrete (18): É já amanhã, dia 20, 5ª feira, a sessão de lançamento do livro do nosso camarada Paulo Salgado, "Guiné: Crónicas de Guerra e de Amor", na Associação 25 de Abril, Rua da Misericórdia, 95, Lisboa, às 18h00... Com a presença do autor (que vive em Vila Nova de Gaia) e apresentação a cargo do escritor Rogério Rodrigues.

Guiné 63/74 - P16805: Inquérito 'on line' (95): Texto e contexto: batota, balda, ronha, cobardia, indisciplina, traição?... Ou às vezes, também bom senso, experiência, velhice, sensatez ? (Hélder Sousa, ex-fur mil trms TSF, Piche e Bissau, 1970/72)



Guiné > s/l > c. 1970/72 > Algures, o nosso Hélder Sousa, fur mil trms TSF, em funções de radiolocalização... Um trabalho onde, teoricamente,  era fácil (?)  fazer batota (*)...

Foto: © Hélder Sousa (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário.ao poste P16800 (**), nosso colaborador permanente Hélder Valério de Sousa (ex-fur mil trms TSF, Piche e Bissau, 1970/72): 

Texto e contexto: batota, balda, ronha, cobardia, traição ?... Ou às vezes,  também bom senso, experiência, velhice, sensatez ?... [Título do editor]

Desta vez não participei no inquérito.

Não por qualquer reserva mental ou discordância. Apenas porque a minha situação no CTIG (rendição individual), o meu enquadramento 'operacional' (enquanto no 'mato' dependente da Direcção de Bissau e depois em actividade tipo repartição funcionando em turnos) e o próprio tipo de acção (centro de escuta e guerra electrónica) não configuravam nenhuma das opções para escolha.

Também não iria entrar aqui pela porta do 'ouvi dizer' ou do 'houve uma vez um camarada que me disse que...'
Portanto, aguardei as conclusões do inquérito e o meu comentário não foge muito ao que os antecessores disseram.

O que o Carlos Vinhal diz é muito justo, "marcar operações pelo mapa é uma coisa, progredir no terreno é outra", pelo que admito que algumas vezes fosse bastante ajuizado não cumprir à risca as determinações abstractas. 

Seria isso 'balda'? Depende da forma se abordar. Se se tratou de uma acção deliberada do género "quero que as ordens se lixem, eu quero é defender a integridade da pele", sem qualquer outro tipo de situação que em certa medida justificasse esse 'contorno' das ordens, pois certamente que seria 'balda'. Caso contrário pode ser enquadrado numa atitude de sensatez de comando no local, em função das circunstâncias.

Claro que não faltarão os 'vigilantes', almas boas zelosas do cumprimento cego dos regulamentos, que apontarão o dedo acusador a tais camaradas e sentenciarão "cobardes, traidores" e outros mimos.
Como de costume, há de tudo!

Lembro-me de ter relatado aqui o que me aconteceu ainda não teriam decorrido duas semanas (nem tenho já a certeza de não ter sido mesmo ao fim de uma semana) em que fui incumbido de acompanhar um dos dois elementos da Racal [Eletronics] que estavam em Bissau a promover a venda de um dos seus equipamentos. 

Como disse na altura, um era um Oficial do exército da África do Sul e o outro engenheiro da Rodésia (ou vice versa, para o caso isso agora é irrelevante) e eu, com meia dúzia de dias, acompanhei no interior fechado duma viatura das transmissões o Oficial e o rádio lá instalado e ia-se fazendo comunicações em vários locais à volta de Bissau para o 'posto director' onde estava o Engenheiro com o outro aparelho de rádio instalado numa tenda no pátio do STM. 

Durante o dia correu tudo normalmente. Foi necessário fazer também as experiência à noite para verificar quanto as interferências nocturnas seriam, ou não significativas. 

Hélder Sousa, hoje
Como disse, estava há duas semanas, no máximo, na Guiné, apenas em Bissau, de onde ainda não tinha saído, pouco ou nada conhecia para além dela e para além das notícias e deturpações que se costumavam contar (havia também os ecos dos embrulhanços do outro lado do Geba) e estava dentro do espaço fechado da viatura. Na cabina de condução, para além do condutor ia também um outro Furriel, periquito como eu, totalmente desconhecedor dos procedimentos, dos perigos e dos mitos.

Em certa altura do processo apercebi-me que se andava para a frente e para trás, no mesmo percurso, e depois que se andava em círculos. O Oficial também percebeu, procurámos saber o que se passava e o condutor disse que assim era melhor, mais seguro, pois para onde nos estavam a mandar ir não era seguro à noite. 

Relatei isto e logo os 'vigilantes' caíram em cima com observações de exacerbado patrioteirismo... não tiveram em conta o enquadramento, só tinham como alvo a crítica.

Portanto, formas de 'tornear ordens' houve muitas. O que eu relatei, que se passou comigo, será, ou não, uma delas. (***)

Hélder Sousa
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Notas do editor:

(*)  Vd.postes de radiolicalização:


12 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta

26 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1702: A guerra também se ganhava (ou perdia) nas ondas hertzianas (Helder Sousa, Centro de Escuta e de Radiolocalização, Bissau)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16804: (De)caras (55): Os picas e guias das NT, Malan Djai Quité e Mancaman Biai, que eu conheci, no Xime, em 1972 (António J. Pereira da Costa, cor art ref)



Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Em primeiro plano, o Lúcio [Damiano Monteiro da] Silva, natural de Vizela,  ex-1º cabo,  CART 3494  (Xime e Mansambo, dez 1971 / abr 1974)... (Aliás, era conhecido por "Vizela".)

Quem seria, entretanto,  este velho habitante do Xime, por detrás do Lúcio Silva, envergando aquilo que se afigura ser uma velha farda ou do FARP / PAIGC  ou do antigo exército português ?... Ao fim de mais de 4 décadas de independência, está praticamente extinta a geração de guineenses que combateu na guerra. ao lado de (ou contra) o PAIGC...


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Da margem esquerda (Xime) à margem direita (Enxalé): a canoa ainda continua a ser um meio fundamental de "cambança"



Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Pirogas em seco, e os "eternos meninos do Xime"...


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > "Manga de ronco": a chegada da caravana dos "tugas, que veio de longe, do Porto.,..


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 >  O Rio Geba...Do outro lado, a margem direita, onde ficava a bolanha e a tabanca do Enxalé.


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Restos do cais acostável por onde, até ao fim da guerra, em 1974, passaram milhares e ,milhares de homens em armas... Já na altura, em novembro de 2000, o cais do Xime era uma desoladora ruína... Com o rio cada mais assoreado, deixou de ser praticável a navegação no Geba Estreito, e nomeadamente a partir de Bambadinca... O transporte dos produtos do leste faz-se agora por estrada...


Fotogramas do vídeo A Outra Guiné (The Other Guinea), de Hugo Costa, legendado em inglês. Vídeo (9' 27''). Ficha técnica: produção: Universidade do Porto, 2012; realização: Hugo Costa e Tiago Costa: diretor de fotografia: Hugo Costa; som: Hugo Costa... Duração: 9' 27''.

Cortesia de Albano Costa e Hugo Costa (2013). Edição e legendagem das imagens: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
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1. Nesta expedição, por terra, à Guiné-Bissau,  integrou-se um grupo do Norte, incluindo o Albano Costa, ex-combatente em Guidage [ou Guidaje]  e seus amigos, todos antigos combatentes na Guiné,  além do seu filho, Hugo Costa, realizador deste vídeo.

Recorde-se que o Albano Costa já era fotógrafo (profissional) quando fez a sua comissão de serviço, como 1º cabo at inf, na CCAÇ 4150 (Guidaje, Bigene, Binta, 1973/74). A sua paixão pela fotografia fez com que ele seja um dos nossos camaradas com mais e melhor documentação sobre a Guiné, de ontem e de hoje.

Em novembro de 2000, quebradas as últimas "resistências psicológicas", ele voltou à Guiné, agora como simples turista, revisitando sítios por onde estivera vinte e seis anos antes e conhecendo muitos outros de que só ouvira falar (por exemplo, o Xime e parte da  zona leste)...

Nessa altura, juntamente com o filho Hugo Costa (, nmascido em 1978, e então finalista de um curso de comunicação social), e mais um grupo de camaradas, ex-combatentes (, o Lúcio, Casimiro, Armindo, o Carlos, o Manuel Costa, o Xico Allen, etc.), o Albano fez um verdadeiro safari turístico-sentimental, durante 15 dias, de 11 a 26 de Novembro de 2000, percorrendo a Guiné-Bissau, de lés a lés, em dois jipes. Pelo meio apanharam um golpe de estado.

Dessa aventura ficou um extenso registo, em vídeo,  de que nos  chegou, em 2005, uma cópia, em 4 DVD, por mão do Sousa de Castro, o nosso grã-tabanqueiro nº 2. É um excelente trabalho de seis horas, sendo a realização, a insonorização e a montagem do Hugo Costa. Sabemos que o Hugo ficou, entretanto,  com o negócio do pai, dando assim  continuidade a uma empresa que tem a idade de 3 gerações, a Foto Guifões [vd, aqui a página do Hugo no Facebook] (*)



2. Dois preciosos comentários do António J. Pereira da Costa, um  ao poste P16793 (**). e outro ao poste P16772 (***), que nos obrigam (ou convidam...) a reler o notável retrato psicoprofissional que ele fez, em tempos, dos dois picadores e guias do Xime, o  Malan Djai Quité e o Macaman Biai, no poste P5803, da sua série "A minha guerra a petróleo" (****).


2.1. O único sítio onde tive conhecimento que havia guias/picadores, credenciados como tal, foi no Xime. Creio, pois, que se tratava de uma situação pontual. (*)


Tinha dois - o Malan Djai Quité e o Macaman Biai - que era civis assalariados. Não me recordo por quanto e, como já disse, estive próximo de "cortar a colecta" ao Macaman. A detecção de uma mina "reforçava" o pecúlio auferido e aqui recomeçam as suspeitas. Como era possível detectar minas numa zona onde, embora houvesse uns restos de picada, se andava, muitas vezes, a corta-mato, em terrenos de lala? É que bastava passar uns metros mais ao lado e não se detectava a mina... E o o que fazia com que o PAIGC fosse pôr minas num local onde as NT tinham percursos repetidos mas muito aleatórios? Enfim, dúvidas que devia ter tido antes...

O levantamento ficava a cargo do especialista das NT, como verifiquei.

Teoricamente alternavam na realização dos patrulhamentos. Como o Macaman começou a "alternar" pouco, desconfiei e, pelos vistos, com razão. Todavia, "a História o absolverá", como já disse noutros posts em que procurei analisar a complexidade da situação vivida por aqueles que ficavam e ali viviam depois da saída de cada unidade e sem qualquer alteração da situação que se vivia.

Sobre o Malan Djai Quité, ferido na primeira emboscada na Ponta Cóli, mas que, constava de relatório da acção, tinha feito fogo com duas (!) G-3 e de pé, já me pronunciei. Terá apostado no cavalo errado e pagou, caro(?),  a sua fidelidade. Sei que tinha a mulher em Demba Taco o quer seria estranho, se não fosse na Guiné. Poderá ter desaparecido a partir daí...
Vivia num abrigo construído por si mesmo e às vezes parecia ter problemas mentais, como naquela noite em que vestido apenas com uma "ridia" (rede) foi a casa da viúva Maria. O burburinho inerente e ficou-se por aí. 

Era um antigo lutador de luta mandinga e levou ao tapete o Costa - lisboeta e empregado do Sol-Mar - com bastante facilidade. Um dia perguntei-lhe por um chefe guerrilheiro que tínhamos informações que andava por ali, Tóda Na Fenba.
Respondeu:
- O gajo cá presta. Tem cu pequenino de Malan. Um dia jogámos porrada e Malan ganhou.


2.2. Apanhei uma situação [, na 2º metade do ano do 1972] em que já não havia duplo-controlo. Havia ligações familiares e de amizade entre ambas as partes. (**)

Recordo-me que a LDG afundou um vez uma canoa, na curva para o Geba Estreito. Foram salvos e vinham num estado miserável quando me foram entregues no Xime, Esfomeados e rotos,  e um deles era amigo do chefe da tabanca. Tive para com eles as atitudes regulamentares, mas não creio que ficassem por muito tempo. 

Quem estava para Sul do Xime ou tinha feito ou fora obrigado a fazer as suas opções. Todavia, a luta da "guerra a petróleo" era sempre pela população. Sei, por outras vias que não é possível à população "em geral" fazer opções nesta guerra ou numa ocupação de território, por exemplo. 

No caso do Mancaman aceitarei que numa primeira fase ele tivesse querido ficar com os portugueses. No fundo, na óptica dele, eram a facção com a qual tinha a ganhar. Porém, com o evoluir da guerra, ter-se-á começado a aperceber que as coisas não terminariam bem e até terá sido "avisado" de que as coisas, quando a guerra acabasse, correriam mal para "as cores dele".

Que fazer nesse caso? Filosofar e tentar jogar com um pau de dois bicos. Pelos vistos saiu-se bem. Que seja feliz!


3. Comentário do editor:

O primeiro comentário do António J. Pereira da Costa, surge na sequência de um outro comentário do editor em que se dizia:

 "Temos uma dívida de gratidão aos nossos guias e picadores, guineenses... Sem eles, as nossas operações teriam sido bem mais penosas e mortíferas... E alguns pagaram bem caro a sua dedicação às NT... Eram simples civis, assalariados.pagos à peça (mina detetada e levantada, picagem, serviço de guia...). Precisamos de conhecer melhor o seu trabalho no TO da Guiné. Temos falado pouco deles...Na realidade, pouco ou nada sabíamos deles"...

Retomamos aqui um texto, já antigo, mas de antologia, e que como tal merece ser relido, do Pereira da Costa (que foi um dos comdts da CART 3494, no Xime, na 2ª metade do ano de 1972), sobre os seus dois guias picadores (****).
_________________


(***) Vd. poste de 29 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16772: (De)Caras (63): Em homenagem ao António Vaz (1936-2015), que nos deixou há um ano na véspera de natal: "os guias e picadores do Xime: Seco Camará 'versus' Mancaman Biai"

(****) Vd. poste de 12 de fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5803: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (2): Os guias e picadores, mandingas, do Xime, Malan e Mancaman: duas maneiras diferentes de ser e de estar na guerra...


(..:) Passei ali, [no Xime,]  aqueles que, ainda hoje, considero os cinco piores meses da minha vida. Por razões que não descortinei, nessa altura, a CArt 3494 utilizava dois guias-picadores para as suas operações e que eram pagos como tal: o Malan Djai Quité e o Mancaman  [Biai](...). Teoricamente guiariam alternadamente as forças que saíssem, procurando também detectar minas, o que lhes asseguraria um pequeno pecúlio, creio que de cerca de mil escudos, por cada mina anti-pessoal e dois contos, por cada mina anti-carro.

Estas, porém, o inimigo não tinha muito motivo para utilizar, uma vez que a tropa saía sempre em direcção ao Sul e apeada, considerando que nessa direcção não tínhamos qualquer aquartelamento até à curva do Corubal. Nunca entendi bem como é que numa área onde andávamos a corta-mato ou por trilhos pouco batidos, se poderiam colocar minas com boa possibilidade de serem accionadas. O inimigo poderia colocá-las, mas nada lhe garantia que iríamos passar naquele trilho e não a todo-o-terreno ou não abriríamos outro, alguns metros mais ao lado, que a Natureza pressurosamente iria fechar nos dias seguintes.

Detectar minas parecia-me uma coisa problemática, a menos que se soubesse onde íamos passar e, forçosamente com pouca antecedência, ali as colocassem. Efectivamente, da antiga estrada para a Ponta Varela e Ponta do Inglês restava pouco mais de um quilómetro. Depois, o terreno era "todo ou quase todo igual" e a progressão era feita a todo-o-terreno, com uma ou outra referência. Claro que poderíamos descer pela margem do rio, tendo-o sempre à vista e ao nosso lado direito, o que facilitava o movimento e dava a possibilidade de nos opormos às travessias, que, às vezes o inimigo tentava mesmo à luz do dia. De qualquer modo, uma coisa era certa: o caminho que seguiríamos entrava no âmbito do cálculo das probabilidades, um a dois quilómetros depois de sairmos do arame farpado.

Eram bem diferentes os dois guias, embora fossem ambos mandingas.


O Malan [Djai Quité], mais velho, 
rondaria os cinquenta e cinco anos... 


Era, portanto velho, no contexto da população, mas exibia os restos de uma constituição física notável que lhe permitia realizar sozinho trabalhos agrícolas, recorrendo a alfaias tradicionais. Usava uma espécie de remo, com cerca de dois metros de comprido e, espetando a pá no solo com uma inclinação inferior a 45º, ia removendo pasadas de terra que punha para o lado, abrindo uma leira onde plantava arroz.

Outras vezes, pescava com uma espécie de rede (uma ridia, como ele dizia) e apanhava uma espécie de lagostins cuja cabeça tinha o comprimento quase igual ao do corpo. Eram saborosos e, infelizmente, poucas vezes apanhava mais de dez. Estou em crer que seria uma espécie de lagostins adaptados à água salobra, muito semelhantes aos que, por cá se desenvolvem nos arrozais.

O Malan fumava um daqueles cachimbos de madeira que enchia com toda a calma, dobrando cientificamente a folha do tabaco. Era um trabalhador infatigável e um guia de confiança. Era casado com uma mulher, mas vivia sozinho num abrigo minúsculo, construído por ele. Aproveitava o reabastecimento às auto-desfesas para visitar a mulher, em Demba-Taco. Levava-lhe dinheiro e alguns produtos da terra e eu nunca entendi de que é que uma mulher bastante mais nova que ele, vivia numa tabanca tão pequena e com tão poucos recursos.

Ao que me foi dito, durante os ataques com armas pesadas, sentava-se tranquilamente em cima do abrigo a fumar o cachimbo e explicava que "O homem 'mure', quando 'mure'!" e, por isso, não tinha grande necessidade de se abrigar. Ao que parece teria problemas sexuais de impotência, mas também de desejo.

O alferes Pinho, da Artilharia,  contou-me que um dia, durante uma operação, resolveu pôr-se a gritar no meio da bolanha de Lântar: "A tabanca matou o meu caralho!", enquanto mostrava a "prova do crime". Durante o meu tempo, só recebi queixa da Maria, viúva de um furriel dos comandos, e que vivia com um filho de quatro ou cinco anos.

Uma noite, o Malan resolveu visitá-la. Creio que não terá sido bem recebido ou nem sequer tolerado nas proximidades. Depois... uma intervenção da vizinhança em apoio da Maria resolveu o problema. No dia seguinte, ela veio apresentar queixa e eu lá tive que "lavar o cérebro" ao Malan. (...)

Um dia recebemos informações de que Tóda Nafemba e o Biota Tanhala andavam pelas redondezas e preparado-se para fazer das suas. A notícia (A-1, como é de calcular) dizia que um deles era natural do Xime. Convoquei o Malan e perguntei-lhe se sabia quem era. Respondeu-me que sim e acrescentou:
- Esse gajo cá presta e tem cu pequenino de Malan.

Intrigado quis saber porquê. Fiquei então a saber que o Malan tinha sido campeão de uma espécie de sumo, mas praticado com algo parecido com umas cuecas-fio-dental, em cabedal grosso. Ambos os contendores se agarravam pela cintura e procuravam, aplicando rasteiras, derrubar o adversário. Nos bons velhos tempos do Malan tinham competido e o agora guerrilheiro sempre fora levado de vencida. Mesmo sem o equipamento adequado, o impedido da messe, o atirador Costa, desafiou-o para um combate ali e naquele momento. O Costa, empregado de mesa do Solmar, em Lisboa, era um malandreco da cidade e julgou que podia "dar baile" ao velhote, mas como "quem sabe não esquece" desistiu à segunda queda.

Nas conversas que tive com ele, o Malan pareceu-me verdadeiramente infantil. Não estava sequer capaz de entender o mundo para além do que via e sentia. Para ele, a vida não ia além da sua tabanca e da natureza que a rodeava, do trabalho na terra ou no rio e, agora, porque era preciso, nem ele sabia bem porquê, fazia a guerra.

Não creio que odiasse o  Inimigo ou que tivesse qualquer assomo de patriotismo, na sua acepção mais corrente, naquele tempo. Julgo que lhe tinham dito que os turras eram maus e que ele tinha que guiar a tropa contra eles. Além disso, sempre ganhava dinheiro o que terá sido uma promoção social a que se foi habituando. A sua vida repartia-se quase exclusivamente pela sua actividade como guia-picador e os trabalhos que lhe asseguravam a subsistência.

"Este gajo é puro!", dizia o alferes Gomes depois de mais uma conversa metafísica entre ambos. Falavam de Deus (ou dos Irãs), da Natureza e dos hábitos dos Mandingas. A argumentação do Malan era pobre, mas não havia quem o demovesse das suas convicções acerca da sua fé ou da estrutura social e valores éticos dos Mandingas, que ele aceitava, sem hesitar. Enfim, seria aquilo a que poderíamos chamar a encarnação do "Bom Selvagem". Já perguntei por ele à malta que lá foi matar saudades. Ninguém sabe qual foi o seu destino, após a independência, o que não é nada bom sinal... Velho, renitente e tendo colaborado muito com os colonialistas, não lhe auguro um bom destino...


O outro guia 
era o Mancaman [Biai]...

Claramente mais novo que o Malan, era alto, bastante magro e vestia sempre à moda muçulmana tradicional. Falava baixo, parecia medir as palavras ou digerir as perguntas que lhe fizessem ou as deixas do interlocutor. Só depois de ter estudado bem o que lhe fora dito, respondia. Dir-se-ia que não queria ser apanhado em falso ou em contradições. Esfingicamente fechado,  era-me difícil saber o que pensava.

Pouco depois de eu ter chegado, começou a pretextar motivos para não guiar a companhia. Nunca entendi aquele volte face que coincidiu com a minha chegada. Presumo que terá pensado que eu imprimiria outra orientação à actividade operacional. Parecia estar farto de guerra e, por isso, procurava sair dela ou, no mínimo, reduzir a sua participação, a pouco e pouco. 

Creio que descria já de uma "esmagadora vitória das NT" e, sentenciado a viver naquela terra, não vislumbrava uma saída para o impasse em que se encontrava. Claro que o dinheiro que ganhava era-lhe fundamental para a sua sobrevivência, mas comprometia-o com algo de que queria afastar-se. Qualquer que fosse a sua opção teria custos. Posto perante a evidência de que tinha de continuar a participar nas acções da companhia, cedeu, com relutância e reatou a sua colaboração.

Confesso que desconfiei dele. Todavia, pensando melhor, comecei a compreender a sua indecisão e até angústia. Ele deveria estar a ver para o futuro. É que, depois de junho de 1972, as populações e os militares do recrutamento local, ou mesmo simples apoiantes da acção do Exército viviam, diariamente e há vários anos, o desgaste da guerra e, numa observação simples, podiam aperceber-se de que os campos estavam cada vez mais extremados e que a guerrilha, se não estava a ganhar a guerra, também não dava sinais de regredir, havendo até sítios onde já há alguns anos não era possível ir sem que isso implicasse uma operação militar de custos mais ou menos elevados e mais-valias duvidosas. É que, ir a um dado local só por ir não faria sentido. Permancer lá, teria custos consideráveis. Restava a última hipótese que era normalmente a mais corrente: ir, destruir o que houvesse e matar quem se revelasse, uma vez que a "população sob duplo controlo" era cada vez mais um mito.

Que é que um cidadão guineense poderia fazer, nesta situação? Não tenho dúvidas de que os mais atentos começavam a interrogar-se acerca do modo como tudo aquilo iria terminar. Creio que alguns começavam a prever que o fim seria certamente dramático. É dificílimo ter de optar em tempo de guerra ou grave convulsão. Porém, a vida real obriga a que essa opção seja uma escolha imediata e com reflexo na acção diária. A História cobra sempre dividendos aos vencidos de um fenómeno social e o cansaço da guerra, aliado à falta de êxitos claros da parte que apoiavam, dava-lhes a indicação de que maus tempos aí vinham. Só não sabiam quando.

A tabanca do Xime estava situada numa posição excêntrica que permitia que fosse abordada sem que o pessoal vigilante da companhia fosse alertado. Em noites de Lua-nova era mesmo difícil detectar movimentos para além do arame farpado. Daí até ao Poindom não havia ninguém. Depois, não sei. Estimo que as populações sob controlo do inimigo se dispersariam até à curva do Corubal. Não tenho elementos para dizer se e onde o inimigo residia naquela área.

Parecia que ali havia uma Terra de Ninguém. O PAIGC controlava as populações e o terreno para Sul do Poindom. Para Norte e até à linha definida pelas três tabancas (Amedalai, Taibatá e Demba-Taco), o domínio parecia ser nosso. Quase de certeza que o Mancaman não trabalhava para o PAIGC, mas tudo indica que sentiria uma certa pressão para reduzir a sua colaboração connosco e, se bem observado por alguém infiltrado na tabanca, poderia dar indícios utilíssimos, mesmo involuntariamente.

É o retrato que tenho esboçado destes dois homens que, em última análise, reagiam como podiam a uma situação social e política que martirizava a sua terra. Um nem sequer questionava a escolha que tinha feito e, como é habitual, terá sido trucidado pelos acontecimentos. O outro via-se entre dois fogos, sem possibilidade de optar, mas imaginando que se aproximavam tempos aos quais, no mínimo, teremos de chamar difíceis. Hoje podemos culpá-los de terem feito escolhas más. Será a opinião dos teóricos detentores da solução depois da poeira do cataclismo ter assentado. Hoje explicam como se deveria ter feito, mas é como se resolvessem um problema cuja solução lhes foi fornecida pelo desenrolar da História. (...)


Guiné 63/74 - P16803: O nosso querido mês de Natal de 2016 e Ano Novo de 2017 (1): "Natal Económico para a bolsa, esbanjador em afetos" (Mário Beja Santos)


Lisboa > Praça do Comércio / Terreiro do Paço > 4 de dezembro de 2016 > Árvore de Natal (pormenor)...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados.


1. Amigos e camaradas: está dado o  mote para abrir a nossa série relativa à quadra festiva deste Natal de 2016 e Ano Novo de 2017: este magnífico texto do Mário Beja Santos, nosso colaborador permanente, nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, nosso crítico literário encartado, escritor, especialista em assuntos de defesa do consumidor, amigo até mais não da Guiné-Bissau  e do seu povo... e ex-comandante do Pel Caça Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70), também conhecido carinhosamente como o "Tigre de Missirá"... 

E, a propósito, ele vai amanhã, dia 6, 3.ª feira, às 18h00, na sede da Associação Nacional de Farmácias,  em Lisboa,  lançar o seu mais recente livro: "História(s) da Guiné-Bissau: da luta de litertação aos nossos dias" (Lisboa, Húmus Editora, 2016) (*)


Natal económico para a bolsa, esbanjador em afetos

por Mário Beja Santos

Cada um de nós olha o Natal à sua maneira, o prisma do calor familiar, o nascimento para a vida com base religiosa ou não, a partilha de encontros e troca de calor humano, tem aqui um momento alto, sob um olhar personalizado. A sociedade de consumo imiscuiu-se na natureza destas festas, alargou, por força da comunicação social, a sedução e o contágio para o aumento exponencial de compras, para o agregado familiar ou para presentes a trocar com amigos.

Há quem comece o Natal logo no dia 1 de Janeiro, eu pertenço a esse grupo, planeio a agenda dos meses para encontros, telefonemas para quem vive longe e perto, na minha idade de septuagenário é impensável confiar só na memória. Percorro mercados à procura de pechinchas e objetos que interessem às pessoas que eu amo, guardo-os ou restauro-os para fazer os outros felizes. Tenho um ano inteiro para saber quem se vai interessar por estes livros, aguarelas, desenhos, molduras, tecidos, e tantas outras coisas que podem funcionar como comprovantes de amor. Tenho igualmente o ano inteiro para mandar correio eletrónico, distribuindo informação que lhes pode ser útil, não há ser humano que não goste que lhe envie notícias e informações presuntivamente úteis. Natal é encontro.

E de Janeiro passo para Fevereiro, como sou perseverante e andarilho, vou à descoberta de coisas, combino almoços, idas ao cinema ou ao teatro ou à música e reparto o Natal por cada mês do calendário, sempre com imprevistos, e de sorriso radiante. É uma forma de amar duas vezes, escutar o outro e surpreendê-lo. Evito conflitos, amarguras com cláusulas contratuais, não ando a desconfiar de como os outros me interpretam, tenho tempo para fazer o Natal com o máximo de disponibilidade.

Eu sei que é um problema de convicções, tenho comigo uma certa ideia de que o Natal significa que nasço e renasço com todos aqueles com quem me vinculo, de quem preciso e a quem posso ser útil. Posso ouvir canções de Natal em Abril ou Junho, posso descontraidamente percorrer as avenidas com iluminações de Natal somente para me sentir em casa, ando num certo presépio em que em vez do bafo da vaca ou do boi sinto a respiração dos outros. Chama-se companhia e solicitude

Enfim, na chamada época natalícia ando desafogado a escrever, a telefonar, a encontrar-me sem tensões, não é possível endividar-me assim, com esta autodisciplina dos afetos perduráveis. Há muitas e muitas décadas atrás a minha mãe dizia-me insistentemente que nunca se vai a casa de ninguém sem levar uma flor, uma planta ou um sorriso. Tenho impressão que há pessoas que se esfalfam para reverter a culpa de pesados silêncios, de sentidas indiferenças, paga-se com prendas o que não se dá com atenções. 

Não moralizo, adoto o preceito de não me lançar na correria das compras, a partir do dia 1 de Janeiro já ando a festejar as alegrias do Natal, o que me permite isentar-me das pressões publicitárias, das promoções-choque, das tão propagandeadas alegrias de Natal e que não passam de puras relações comerciais. E dou-me bem com o sistema, na bolsa e na alma. Esbanjo-me com os outros e não tenho nada contra com este modelo de desenvolvimento pessoal.

Mas reconheço que as campanhas natalícias para sensibilização dos consumidores têm grande importância: na alimentação, cuidar da saúde e obstar ao desperdício; ponderar as compras de bens semi-duradouros, na ótica da sua utilidade, saber escolher brinquedos e fugir daqueles que podem ter alguma perigosidade… 

O essencial é recordar aos consumidores, sem ser diretivo, que devemos assumir os limites, noção básica da sustentabilidade, exceder os limites é arriscar a economia familiar, abrir caminho a tensões dispensáveis, valorizar a prudência e as opções de escolha com critério faz-nos mais maduros. É assim que também abrimos caminho para um mundo melhor, na cidadania no consumo.
__________________

Nota do editor:



Guiné 63/74 - P16802: Inquérito 'on line' (94): Inofensivas batotas (António Tavares, ex-Fur Mil SAM do BCAÇ 2912)

Quartel de Galomaro


1. Mensagem do nosso camarada António Tavares (ex-Fur Mil SAM da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), datada de 4 de Dezembro de 2016:

Inofensivas batotas

Camarigos,

Estávamos em finais de Fevereiro de 1972, quase no final da comissão. Atrás deste tronco, sito a uns metros depois da pista dos hélis, do quartel de Galomaro, estacionei, embosquei e comandei um grupo de camaradas. BATOTA...

Tinha de me embrenhar uns bons metros além deste local que militarmente não era muito aconselhável. O tronco estava bem posicionado porquanto de lá via o quartel, ouvia o barulho do gerador e até as vozes dos meus camaradas mais noctívagos. Barulhos inofensivos para quem por vezes ouvia gritos de dor e ruídos do fogo IN.

Não foi o caso daquela noite. O quartel tão perto e ninguém via do quartel. Havia um inconveniente: ficava perto do local onde os guinéus enterravam os mortos. Eu sabia.

O cheiro da Metrópole estava mais próximo de cada um de nós e a vontade de aventuras era menor. Alguns dos meus camaradas, que conheciam bem o local, protestaram mas por ali ficámos durante seis horas, das 20H00 às 02H00.


Galomaro

Foto: © Carlos Filipe



A “VALENTIA” e a “CORAGEM” do início da comissão, em Maio/70, estavam muito gastas.
Foi o meu último serviço, fora do quartel, em postos avançados.
(…)

Essas patrulhas eram a pé,
Feitas com poucos homens e muita pressa,
Abordávamos o chefe da tabanca
E dávamos dois dedos de conversa.

Enquanto éramos “periquitos”,
Cumprir a rigor procurávamos,
À medida que íamos ficando cansados
O percurso traçado encurtávamos.

O encurtar foi tanto,
Esquema usado por toda a gente,
Até havia quem saísse do quartel
E entrasse na tabanca quase em frente.

Era preciso fazer passar o tempo,
Como se tudo fosse cumprido,
E aproximar do quartel
Pelo lado contrário ao que tínhamos saído.

(do livro – Guineíadas, de 2003)


Na secretaria dos Reabastecimentos do BCaç 2912:

- Alterávamos os mapas de SITMUNIÇÕES; SITARMAS; SITVIATURAS…

- Eram acrescentados alguns quilómetros às distâncias percorridas pelas viaturas civis utilizadas nas colunas de reabastecimentos, isto é, um percurso real de 40 Kms era pago por 50 Kms.
O COMCHEFEGUINÉ, em Bissau, aprovava ou não as distâncias utilizando os mapas Cartográficos do Exército.

Inofensivas BATOTAS,  realizadas em 1970/72, em que procuravam não prejudicaros civis ou os militares do batalhão.

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16800: Inquérito 'on line' (93): "Batota no mato" .. ou no blogue ?... Esperávamos 100 respostas, obtivemos apenas 45... Resultados: as três formas mais frequentes de batota: (i) emboscar-se perto do quartel (37%); (ii) começar a “cortar-se", com o fim da comissão à vista (37%); e (iii) “acampar” na orla da mata, ainda longe do objetivo (24%)... Só não fazíamos batota era com o Natal no mato...

Guiné 63/74 - P16801: Notas de leitura (908): “Ten General Alípio Tomé Pinto, O Capitão do Quadrado”, pela jornalista Sarah Adamopoulos e pelo biografado, Editora: Ler Devagar, 2016 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,

Alípio Tomé Pinto está bastamente referenciado no blogue. A sua biografia é vastíssima, vai desde a esplêndida e comovente narrativa sobre a sua aldeia, Maçores, os locais de estudo, o cadete da Escola do Exército, a sua ida em 61 para Angola, onde chega a receber a Extrema-Unção, segue-se os tempos do capitão de Binta, depois o curso do Estado-Maior, o Funchal, de novo Angola, o seu envolvimento nos acontecimentos do 25 de Novembro, o Comando-Geral da GNR, depois de ter comandado a Primeira Brigada Mista Independente, e muito mais.

É uma leitura que delicia, temos ao espelho um homem íntegro, que despreza a pesporrência. Cinjo-me a três momentos que me sensibilizaram profundamente: Maçores, Angola e Binta. O resto fica para vocês todos lerem, seguramente com entusiasmo.

Um abraço do
Mário


Alípio Tomé Pinto, o Capitão do Quadrado

Beja Santos

O livro intitula-se “Ten General Alípio Tomé Pinto, O Capitão do Quadrado”, um mano-a-mano entre a jornalista Sarah Adamopoulos e o biografado, Ler Devagar, 2016.

Trata-se de alguém, hoje octogenário, ferido em Angola e ferido na Guiné. Promovido a general aos 45 anos de idade, por razões de mérito. Uma folha de serviços invejável. Alguns se pronunciarão de que a narrativa no seu todo é aliciante e de exigente leitura. Confesso que me comoveu acima de tudo a elegia transmontana e o palco da guerra. É sobre esses dois tópicos que me vou centrar.

Fins do século XIX, início do século XX, um geógrafo de renome, Vidal de La Blache, defendeu a tese de que ao meio que define o caráter do homem e das populações, é a factura de viver rodeado de montes ou à beira-mar, com verdura, neblina, florestas ou areais. Tomé Pinto, di-lo com orgulho, aquele chão foi a génese do sonho e da aventura, o chão chama-se Maçores, aldeia na Terra Quente do nordeste transmontano. E o meio fica cinzelado nestes termos:  

“As pessoas viviam do que produziam. Eram autónomas, ou quase. O dinheiro não circulava muito. Nem para ir à vila era preciso, por que as pessoas tinham com o médico uma avença que era honrada em cereal. Foi assim até aos anos 1950. O dinheiro quase não era preciso para a vida do dia-a-dia, porque havia a troca, a cedência e a oferta, e, na verdade, só quando iam à feira é que as pessoas precisavam de dinheiro. Para comprar, por exemplo, um fato, ou um lenço, ou tecido para o avental, ou para fazer um vestido. Ou então as coisas que a terra ali não dava: arroz, açúcar, bacalhau, peixe salgado, polvo seco”.

Um maçorano que foi assistindo ao progresso, viu as ruas calcetadas, a linha telefónica para Moncorvo, a chegada da luz elétrica, do transporte diário para Peredo e Torre de Moncorvo, uma escola de ensino primário. Depõe uma memória iluminada pela distribuição de papéis, masculino e femininos, Tomé Pinto é terno a falar das mulheres e da sua solicitude na vida comunitária, a aldeia como uma família, guarda com nitidez a casa, a escola, a educação e depois os estudos em Moncorvo, no Porto e em Bragança. Em 1953 assenta na Escola do Exército, não esqueceu detalhes que mais vida que minudências:  

“Lá vim eu pela primeira vez até Lisboa. Com o dinheiro enfiado no bolso da camisola interior que a minha mãe me tinha arranjado. Na altura, tínhamos de ser nós a comprar as fardas. E também pagávamos o talher com que comíamos, e a roupa de cama com que nos cobríamos. Havia uma despesa grande à cabeça que era preciso fazer. Sim, era uma espécie de enxoval militar”.
Vai cursando e descobre o amor da sua vida.

Em 1961, em Maio, chega a Angola, ainda viu trabalhos forçados. A sua Companhia é a CCAÇ 129. Em Outubro, quase morre na região do Uíge, entre Quizalala e São José do Encoje:

“Fui ferido nos chamados dembos, na Serra de Ambuíla, terra do café, numa emboscada durante um patrulhamento”.

Ferimento grave: Uma bala havia entrada por um dos lados dos maxilares, partindo-o, passando pelo palatino, e alojando-se junto à carótida. Chega a receber a Extrema-Unção. Recupera-se em Lisboa, é reenviado para o Regimento de Nova Lisboa (atual Huambo) onde vem a formar 200 cabos indígenas. Voltará várias vezes a Angola, durante a guerra e depois.

A segunda experiência duríssima é a Guiné, onde amadureceu e ficou marcado para a vida. Vai para Binta, chamar-lhe-ão o capitão de Binta, entre Farim e Bigene. Para entender o que ele foi encontrar temos que recuar àquele pano de fundo que é a desarticulação quase completa daquela região, com fuga de populações para o Senegal e os guerrilheiros a circularem com a maior liberdade, cultivando mesmo as bolanhas. Chega e procura percecionar as formas de atuação. Comanda a CCAÇ 675. Vai de patrulhamento em patrulhamento, impunha-se esclarecer onde estavam os focos da guerrilha, afastá-los e intimidá-los, e estabelecer mesmo ligação entre Binta e Farim, sede do BCAÇ 490. Sucedem-se as operações a um ritmo trepidante: uma batida à região de Lenquetó, a 12 km de Binta. Esta operação teve números consideráveis: entre 20 a 30 mortos, 40 prisioneiros. Progridem em quadrícula, dois grupos de combate reproduzem um clássico dispositivo militar, muito usado nas campanhas africanas do século XIX. Tática bem-sucedida, Tomé Pinto passará a ter cognome: o Capitão do Quadrado.

A obra cita o livro que escrevi com o Embaixador Henriques da Silva “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro”, onde se fala nessa catadupa de patrulhamento ofensivos e golpes de mão e batidas; as estradas que estavam ao abandono ficaram limpas das abatizes, assim se chegou a Guidage; 22 itinerários, numa extensão de cerca de 250 km, foram percorridos ao longo do mês de Julho de 1964. O dia 5 de Agosto será funesto. Pretende-se ir até Santancoto, no limite do setor. Entra-se numa mata fechadíssima, passa-se por uma bolanha, e nisto deu-se uma intensa troca de fogo, retoma-se o quadrado, e um acidente tomou conta de tudo:

“Apesar do recomendado ao soldado do morteiro para ter cuidado com as árvores de grande copa que ladeavam a estrada, o seu excesso de zelo e ardor combativo (…) levou-o a disparar a morteirada, com tal precipitação que a granada foi rebentar num ramo alto de uma árvore (…) crivando de estilhaços o lado onde se encontrava o capitão e alguns soldados”.

Tomé Pinto cai ferido, o furriel enfermeiro estanca-lhe a hemorragia, pede-se a evacuação. E desse relato há uma página memorável:

“Todos queriam pegar na maca para o transportar até ao helicóptero; um despia o casaco camuflado para lhe aconchegar melhor a cabeça na maca (…) outro dava-lhe o seu concentrado de frutos da ração de combate para comer pelo caminho; outro ainda quase que o obrigava a beber a água do seu cantil. Todos lhe queriam tocar, apertar a mão, desejar-lhe as melhoras para que voltasse depressa”.

Recupera, vai de avião até Farim e com o comandante de batalhão mete-se num barquinho a motor no rio Cacheu, pretende chegar até junto dos seus soldados que dentro de horas partem para uma operação. É recebido com emoção. A guerra não pára, chegou a vez de Binta ser flagelada. Além da guerra, reergue-se a povoação, atrai-se população dispersa, cultivam-se alimentos, há imenso entusiasmo entre civis e militares. Quando, em Agosto de 1965, está em Bissau a caminho de férias, é informado ter sido admitido no Curso do Estado-Maior. Tomé Pinto resistiu a deixar a sua Companhia, tentou adiar a entrada no curso para o ano seguinte. Mas teve que partir. Tudo se irá alterar a partir de então, multiplicar-se-ão as missões e os elogios. Não será por acaso que se escolheu para a capa do seu livro a sua fotografia a bordo do Uíge, a caminho da Guiné. É o Capitão do Quadrado, desse momento inevitável em que se transformou numa terra chamada Binta, congraçando os feitos de guerra com as alegrias do repovoamento e do cuidar do próximo.

Uma grande biografia em que Sarah Adamopoulos revela o seu altíssimo nível jornalístico.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16788: Notas de leitura (907): “Histórias Coloniais”, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2016 (Mário Beja Santos)