domingo, 8 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3852: As minhas andanças com a CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68) (José Brás, ex-Fur Mil Trms)

1. Mensagem do José Brás (*): Caríssimos amigos Luís Graça e Carlos Vinhal Na sequência da apresentação do meu texto e da nota que o Carlos Vinhal me enviou, aqui vão os dados em falta para completar a entrada na Tabanca, A minha especialidade foi de Transmissões na Companhia de Caçadores 1622. Chegámos no Niassa numa noite de Novembro de 66 à vista das luzes do que nos disseram ser Bissau. Durante a noite fomos transladados para uma LDG que nos levou até Buba, navegando aquelas águas apertadas no escuro e na sombra da vegetação marginal. De Buba marchámos para Aldeia Formosa pela estrada principal, mais tarde alcatroada com festa e encerrada no mesmo dia. Em Aldeia Formosa mantivemos um Pelotão em destacamento em Cumbijã e outro de uma secção em Chamarra. Lá por Maio (se a memória não me atraiçoa), por troca com a Companhia do Capitão Cadete, rumámos a Mejo, onde ficámos quase até ao fim da Comissão, saindo para inaugurar um centro de recuperação em Bolama, após inspecção por junta médica deslocada a Mejo, concluir que a saúde daquela malta não permitia aguentar mais. Porque fiquei a entregar material, só saí de Mejo quando uma coluna fez o caminho de Guileje, onde vivi os primeiros dias da abertura de Gadembel. A estrada de Gadamael era já minha conhecida porque quase sempre me disponibilizei para deixar os rádios aos cabos e alinhar nas colunas, nas patrulhas, nas emboscadas, acho que num sentimento que, por um lado assumia solidariedade com os meus sacrificados irmãos, e por outro lado, mexia com a vontade de sentir aquilo por dentro, a ansiedade, algum medo e a espantosa alegria de regressar inteiro. De Gadamael rumei em batelão civil para Cacine, depois Catió (onde ia morrendo de intoxicação alimentar), Bolama (onde já não estava a minha Companhia) e, de Bolama a Bissau (à beira de um naufrágio), até Bissau, onde, de novo, já não estava a minha Companhia que, apesar de estar em Bissau para regressar, foi mandada para Teixeira Pinto. Chegado eu a Teixeira Pinto, a minha Companhia tinha ido para o Pelundo e só voltei a encontrá-la duas semanas depois para fazer parte de um coluna a Có. Todos juntos regressámos a Lisboa em Julho de 68. Com gente a menos, infelizmente, perdidos no corredor, em Chim-Chi Dari, na estrada Mejo-Guileje… E pronto! Como este texto é apenas para completar dados e como me parece já muito longo fiquemos por aqui com um abraço forte, longo e amplo. Montemor-o-Novo, 05.02.09 José Brás _________ Nota de L.G.: (*) Vd. postes de: 8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3851: Blogoterapia (89): Ninguém tem razão sozinho, viva o debate e o abraço (José Brás) 5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3842: Tabanca Grande (111): José Brás, ex-Fur Mil

Guiné 63/74 - P3851: Blogoterapia (89): Ninguém tem razão sozinho, viva o debate e o abraço (José Brás)

1. Mensagem do José Brás (*)

Caros amigos e camaradas

Luís, Carlos, Mário, Hélder… Duplamente feliz!

Primeiro… porque me deram entrada num excelente auditório que eu vinha espreitando há muito pela porta aberta.

Eu queria entrar, ou melhor, fui querendo entrar, a vontade a crescer à medida que crescia em mim, também, a descoberta da qualidade do blogue; da ampla democracia do debate e da pluralidade das opiniões em presença; da excelência de muitas entradas em termos de comunicação e mesmo do ponto de vista da construção literária; da necessidade objectiva e subjectiva dos personagens do romance para saltarem da ficção que os enredou então, para a realidade real, em dois tempos, um, o de actores de outras guerras e outros abraços do hoje, outro, hoje também, o de narradores das guerras do ontem.

Isto tudo, transformando-se, transfigurando-se, vestindo e despindo peles de ontem e de hoje, porque “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e porque nenhum homem é apenas o que é hoje, mas, hoje é também o que foi ontem e, quase de certeza, o que for amanhã.

Na cabeça de um homem é cá uma confusão!

Fui querendo entrar…e entrei abraçando toda essa gente. A que concorda comigo e a que discorda.

Segundo…porque vim aqui encontrar alguns amigos que conhecia já… e já não via há muito (Fitas, Branquinho, Hélder), e outros que, sendo-o a partir de hoje, o eram já, de facto, há muito.

Bem sei que a cultura geral que nos entala, muita gente prefere rodear-se apenas dos que, com um sorriso e uma palmadinha nas costas, nos dizem que temos razão, muitas vezes apenas para nos meterem a naifa à primeira oportunidade. Por isso mesmo, qualquer um que semeie ao arrepio do vento, pode parecer meio doido, mas de facto, mantém a verdade da seara.

A polémica é tão necessária como a certeza de que ninguém tem razão sozinho.

Tanto quanto me parece (e lamento) há gente que nunca botou opinião apenas porque tem medo de estar errado e, com isto, nunca teve razão.

Viva o debate e o abraço.

Montemor-o-Novo, 06.02.09

José Brás

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Nota de J. B.:

Hélder: Não tenho razões para dúvidas sobre a grandeza de alma de Mexia Alves, mesmo que não mesmo que não mo tivesses garantido tu.

Aliás, com almas menores não se polemiza, discorda-se no silêncio que elas merecem. Espero conhecer o Mexia Alves numa próxima oportunidade de convívio.

Um abraço para ti e também para ele.

José Brás

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3842: Tabanca Grande (111): José Brás, ex-Fur Mil

Guiné 63/74 - P3850: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (2): Quarto, precisa-se, por favor!


O Marechal Spínola, a partir de retrato oficial na Presidência da República 
 

1. Mensagem de Joana Santos:

Caro Luís Graça,

A pedido da minha mãe, junto um texto seu,  destinado ao Blogue.
Depois seguirão mais dois e um outro para o Carnaval, segundo me disse.

Cumprimentos nossos,

Joana Beja Santos


2. Há uns dias atrás a Cristina Allen tinha-me respondido a um mail meu, em que procurava inteirar-me da sua saúde (ela acabava de ser sujeita a uma intervenção cirúrgica) ao mesmo tempo que lhe dava notícias de uma família com que ela havia privado na sua lua de mel em Bissau.

Caro Luís Graça,

Estou a recuperar bem, em casa, e agradeço o seu cuidado. Reenviou-me uma mensagem preciosa que me traz notícias da família que mais me acarinhou em Bissau.É interessante saber como o seu Blogue tem vindo a ser um ponto de encontro de pessoas que considerava perdidas para sempre. Já cumpri os meus 53 dias, e em breve receberá notícias minhas. Aterrei na Portela com todo o vigor.

Um abraço, Cristina


3. Os meus 53 dias de brasa em Bissau > Desespero controlado (II) (*)


Breve história do alguidar comunitário, com fim feliz

(Ao Cabral, que me desejou força!)


Referi, no último texto que enviei, que deixara o Alferes Beja Santos em “banho de Maria”, no Hospital Militar.

Para quem cozinha, nada de especial nesta comparação. O calor insuportável daquele quarto de três, a atmosfera carregada de fumo, o fervilhar dos ânimos, tinham qualquer coisa de um pudim, cozido em calor lento, que, por vezes, se deslaçava e tinha, lá no fundo, uma camada espessa, inexoravelmente queimada. O que estava certo. Aquela terapia só de leve se exercia, à superfície dos comportamentos. O resto descia ao fundo da memória e se, por vezes, se soltavam bolhas de agressividade libertadora e benfazeja, afadigavam-se logo os enfermeiros em alisá-las, à força de injecções e tranquilizantes comprimidos.

Considerações à parte, vivia-se o quotidiano.


Fachada do HM 241, Bissau


Nessa manhã em que seria hospitalizado, o Mário e eu faríamos as malas e procuraríamos outro quarto, na “Berta”. Estava ali um espaço fresco e sombrio, com uma larga cama. Sem desfazer as malas, desci para o almoço e deparei com uma execrável salada de feijão-frade com atum. Os feijões, minúsculos e mal cozidos, o atum, na prática inexistente, cebola avonde, a gritar pela intervenção rápida da escova e pasta de dentes! Pousei ainda os talheres, mas (“saco limpo cá tá firma!”) enfrentei o questionável cozinhado.

Uma mãozinha leve tocou-me no ombro. Era a Berta, untuosa, que me perguntava se gostara do almoço (“sim.”), se o meu marido vinha almoçar (“não, foi hospitalizado.”), por quanto tempo (“não sei”) e, por fim, o tiro certeiro: num quarto de casal, eu não podia ficar, seria perder dinheiro com uma pessoa que ocupava um quarto de duas… mas ela conhecia uma senhora que alugava quartos, pessoa muito decente, e eu poderia ir comer ali as refeições (“é o vais!”, pensei…).

A senhora trabalhava nos Correios, queria eu ir já? Respondi-lhe que me arranjassem um táxi, quanto antes, me dessem a morada, e ela prontificou-se. O motorista chegou e era ali mesmo, ao cimo de uma avenida, que terminava na Praça do Império. Conheci, assim, o João Carlos, e o seu táxi.

A nova senhoria mostrou-me um quarto em cuja cama eu mal cabia, e, de seguida, a casa de banho, à qual não chegava água corrente, e onde nada funcionava, a não ser um enorme alguidar onde, desculpava-se, eu teria que mergulhar a esponja. O democrático alguidar tinha um suspeito fundo de sarro, mas lá lhe fui dando a semana adiantada, que me exigia. Farejei o armário, que cheirava a desinfectante e a naftalina, espalhei pelo quarto umas gotas de Miss Dior (oh vanitas!) e adormeci exausta. Acordei a tempo de sair, comprar água “Perrier” (não havia “Vichy”) e mais um frasco de álcool.

Pior seria a noite. Comecei por secar a bacia do lavatório com a toalha comunal. Entornei-lhe dentro uma boa porção de álcool e acendi um fósforo. Ali estava a labareda das minhas desinfecções. Porém, daquela vez queimei a franja. E, de novo, a toalha me ajudou. Só então deitei a “Perrier” no lavatório, aguardando que as bolhas se desfizessem. Lavei a cara, limpando-a à fralda da camisa. 

Nessa noite, ainda tive que ouvir o Roberto Carlos, aos berros. E travei uma incansável batalha com uma grande barata de asas. Acendi a luz para ler e lá estava ela, em cima da mesa-de-cabeceira. Parecia olhar-me e saber, de antemão, o que faria. Tinha o chinelo na mão e, mal o erguia, a barata voava. Perseguia-a, brandindo a arma de arremesso, e ela voava, zumbia. Quando voltava a atirar-lha, ela saltava e, atraída pela luz do candeeiro, voltava, inocentemente, ao seu poiso. Recomeçava a batalha, e ficávamos na mesma. Deixei-a, enfim, gozar do espaço conquistado. Experimentando um “Vesparax” do David [Payne], dormi a sono solto.

Pois foi exactamente à esplanada da aleivosa Berta que, repetidos os rituais do álcool, dos fósforos e sumárias abluções, eu fui parar para um frugal pequeno-almoço, na manhã seguinte.

Talvez o Padre Afonso, que tinha sempre um cafezinho e biscoitos das suas “confessadas” para repartir comigo, conhecesse alguém que me albergasse com alguma dignidade. Pus-me a caminho, mas não fui longe. As tiras da sandália do pé direito soltaram-se quase todas da sola e, chinelando, fui até à praça de táxis – uma eternidade a alcançá-la. 

De novo, o João Carlos, o motorista que falava português. “Para o Pintozinho!”, disse, e ele: “Mas é já ali”. Mostrei-lhe a sandália e ele riu-se, dizendo que já tinha reparado. Ríamos os dois. Fiz-lhe um gesto com a sandália desfeita – ou parava de rir ou levava com ela! Ameaça vã, o rapaz não parava de rir. Recusou a gorjeta, e disse-me que, quando precisasse, bastava telefonar para a praça, estacionava sempre lá. Escreveu o nome e o número num papel. A pária da “Berta” encontrara transporte privado.

Tirei a outra sandália e subi descalça as escadas interiores. Da secção dos relógios e ourivesaria saltou uma mulher jovem, aos gritos: “MariCristina! MariCristina!” Reconheci o sotaque alentejano de Aljustrel, a minha terra. Houve um apertado abraço. Inesperada, estava ali a Fernanda Ramires, das mãos e agulha de ouro que, tão jovem, fazia maravilhas de costura. 

Desabei em lágrimas para cima dela, que também limpava as suas, comovida. Sua mãe, sua avó, tinham sido nossas vizinhas, acudido às nossas doenças, às nossas mortes, e havia, entre nós todas, uma cumplicidade amiga. Não tinha a Ilda, sua mãe, ajudado a amortalhar a minha avó? 

Contei-lhe da Berta, do alguidar, da franja queimada. Fizemos planos. O Quito, seu marido, havia de estar de acordo. E eu, já de sandálias novas, tinha na mão o molho de chaves da sua casa. Eram minhas. Tudo estaria por minha conta. Passava a ter uma sala, com aparelhagem para a minha música, cozinha, sala de jantar, um quarto fresco, uma casa de banho de luxo, pátio, lavadeira-engomadeira e a “bajuda” que escolhi, Joana. Bem podia o meu marido mandar-me embora, que eu não ia! Estava ali eu, a minha rocha, o meu respeito, o meu quartel.

Em uma dessas manhãs calmas que ali vivi, vi passar Spínola, quase nosso vizinho, num carro assustador (!), pernas abertas, entre sacos (de quê?) – outra pose para o seu retrato. Fiz-lhe um largo e divertido adeus. Um breve aceno seu – na minha rua, tinha ele público.

Foi o Luís Graça que colocou o seu retrato no Blogue? E, junto a ele, não estará o Bruno? – “Bruno, aponta!” (outro dito de Bissau).


Cristina Allen, Fevereiro de 2009

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Nota do editor L.G.:

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3849: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (8): Bula, vésperas do Natal de 1970

1. Mensagem de Luís Faria, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 3 de Fevereiro de 2009:

Olá, Carlos Vinhal

Sem lapso desta vez, segue outra passagem de "Viagem à volta das minhas memórias".

É bem verdade que com o passar da idade, a nossa memória remota se vai aprimorando (com algumas ajudas) e a próxima, ao invés vai-se esbatendo, criando-nos até por vezes problemas.

Tem sido curioso constatar que, ao ler determinadas passagens/comentários no vosso/nosso blogue, ao ver fotos ou na consulta de alguns apontamentos, disparam-se flashes de pormenores, momentos ou situações que talvez me tenham marcado pela positiva ou negativa (??) Por outro lado há lapsos de tempo, sitios, situações que sei que vivi, mas estão envoltas até ver, numa escuridão desesperante! Por vezes bem puxo pela cabeça... mas ela não sai! !!

Tudo de bom
Luis Faria


Bula - Vésperas de Natal 1970

A 1 de Dezembro de 1970, os Velhinhos do BCav 2868 passam a responsabilidade da zona para o BCaç 2928 e a minha rotina continua até ao dia 19, data em que a Operação Ronco Desejado (???!!!) de novo vai levar a Força às matas de Dungor, península a Norte do Choquemone, mas agora com responsabilidade própria e sob o comando do Cap Mil Mamede de Sousa que, saindo pela primeira vez, se fez acompanhar pelo Fur Enf Urbano e o nosso guia balanta Inchalà Guancane que já tinha acompanhado mais do que uma vez o meu Grupo em acções, sem consequências, nos arrabaldes das zonas de Ponta Matar, menos problemáticas e daí já o conhecer como guia. Desta Operação mantenho algumas lembranças bem vivas, que hoje transcrevo.

A bicha de pirilau pôs-se em marcha como de costume pelas 1/2 horas da manhã, em silêncio absoluto, tentando não alertar a população para a nossa saída. Como sempre em Capunga(?), tabanca à saída da povoação, lá estavam mirones à porta de moranças e não seria por insónia, julgo! Continuamos pela picada de Binar e infletimos para leste em direcção ao objectivo. Ultapassámos a zona desmatada e o capinzal, e entramos na mata verdejante e húmida.

Não sei por que razão, o Cap Mamede e o Urbano iam integrados no meu grupo, que julgo seguia em segundo lugar. A noite luarenta deu lugar à manhã, andava-se cautelosamente com o minimo de ruído, aos esses evitando os trilhos e de quando em vez agachávamo-nos para ligeiro descanso.



- Oh Inchalá, ainda estamos longe…?

- É já li Furié - e andávamos mais uma imensidão de tempo sempre às voltas e contra-voltas, rarissimamente em trilhos, conforme instruções dadas. Sabia que aquela zona não era para brincar. Como da primeira vez, comecei a ouvir umas rajadas curtas intervaladas. Engodo, já sabem que cá estamos e não sabem onde - penso. Redobro a cautela e continuo a andar. A mata é mais densa agora.
Sem aviso rebenta um fogachal tremendo da minha direita. O pessoal agacha ou deita-se, proteje-se, pois o tiroteio é muito intenso, mas parece-me alto. A zona de morte é extensa, dando-me a entender que é um grupo IN numeroso e dividido. As malditas das RPG estoiram por tudo o que é lado, distingo bem o matraquear das armas turras e as balas são profusas. Parecia o inferno!!

A meu lado está o Cap Mamede, que num dos pequeníssimos abrandamentos do tiroteio dirigido à nossa zona, se levanta talvez com intuito de ver alguem ou por julgar que tinha acabado, não sei. Digo-lhe para se deitar e protejer, o que fez sem denotar qualquer receio ou medo. O Urbano, também à minha beira, ajuda à missa! Com a sua sacola de primeiros socorros e a sua G3 parece-me talhado para aquelas andanças!

O tiroteio continua a prolongar-se, com alguns abrandamentos e não parecendo viável e seguro tentar qualquer manobra de envolvimento, já que para além das carateristicas da mata, a zona de emboscada era extensa, há que protejer e aguentar. Da frente do meu 2.º Grupo pedem enfermeiro e lá vai o Urbano prestar apoio. É o Castanhas (HK 21) que tem estilhaços das malditas RPG no corpo. Continua a refrega. Protejo-me atrás de uma árvore tipo cajueiro, folhagem cai, ouço xicotadas, sinto impactos no tronco da árvore e fico à rasca. Estou sob mira! Vejo um vulto encoberto por um arbusto… atiro e deixo de o ver. A meu lado está agora o Augusto(inho) com os seus dilagramas. Lança um, recarrega e diz-me:

- Furriel, acabaram... só balas! Péssimo! Naquela situação o dilagrama podia fazer a diferença.

A refrega continua, já lá irão uns bons 15 minutos até que por fim tudo acaba. Para além do Cabo Castanhas fica ferido o Seno (morteiro) também com estilhaços, julgo. Pelos vestígios encontrados, o adversário teve bastantes feridos e talvez até mortos. No sítio onde vi o vulto e atirei, nada só a cama na folhagem.

As evacuaçoes são feitas pelo heli em clareira próxima com segurança e a 2791 rearranca em pirilau de novo aos esses e a corta mato. O moral do pessoal era bom e continua-se atento. Estou tenso mas calmo. O Inchalá está sereno e diz-me mais ou menos isto que me ficou gravado:

- Furié manga de tura… nos saída mais e sorriu-se!

Fiquei preocupado. A palavra foi passada e uma meia-hora depois, se tanto, aí estão eles de novo, desta vez com menor intensidade. Riposta-se, pede-se apoio aéreo. O recontro continua e passado algum tempo aparecem dois T6 que julgo andassem na zona, fazem a vertical, circundam, picam, largam duas bombas nos locais indicados como prováveis de retirada do IN, ganham altitude circundam a zona e vão embora. Ainda não tinha visto a actuação de aviões em combate e só meses mais tarde voltei a ter essa oportunidade, mas dessa vez foram os Fiat. Foi para mim realmente um espectáculo inesquecível que ainda hoje me parece estar a ver.

Com o aproximar e chegada dos aviões, o tiroteio esmorece e acaba sem que tivessemos baixas. Há informação de que muito pessoal esgotara as munições. São pedidas e chegam-nos de helicóptero (canhão?). É feita a segurança numa pequena clareira e o Fur Castro corre agachado a buscar os cunhetes por duas ou tres vezes.

Remuniciados, há que avançar de novo. O pessoal continuava cauteloso, mas estoirado. Como não há duas sem três, pouca distância percorrida e tivemos novo contacto, creio que com um pequeno grupo que estaria em retirada e também sem cosequências. Já era demais e como tínhamos que passar lá a noite, ia ser o bom e o bonito, pensei.

A tarde caminha para o anoitecer e, para meu contentamento o Cap Mamede deu ordem de regresso à estrada de Binar, saindo da zona. Passada a estrada, emboscamos em linha com os topos reforçados, preparando-nos para passar a noite. No dia seguinte pela manhã, vejo uma mulherzinha chorosa que mando parar e pergunto-lhe o que faz ali? Marido curta perna, respondeu receosa (?!). Deixei-a seguir para a tabanca que era próxima, sem querer aprofundar a questão.

De regresso ao quartel, quando passava pela rua principal de Bula, recordo que habitantes nos olhavam de maneira não habitual e cheguei a ouvir manga de ronco. Chegados, fomos recebidos na parada pelas chefias, coisa não usual, com dezenas de camaradas a obsevar. Após o destroçar, o bar foi o meu objectivo imediato.

Posteriormente soube o porquê daquela recepção: o pessoal julgou que, dada a intensidade dos rebentamentos que ouviram e os pedidos que fizemos, estávamos a ser dizimados. Dizia-se até que o Amilcar Cabral por azar estava ou ia passar na zona onde andámos e por isso nos deparamos com segurança reforçada. É possível, nunca cheguei a saber. Aquele era um corredor de passagem entre o Norte e o Sul. Só sei é que embrulhámos forte e feio, que infelizmente houve dois feridos, mas que recuperaram, que podia ter havido muitos mais, que a rapaziada se portou à maneira e que no espaço de um mês era a segunda vez que embrulhava duro e na mesma zona. Só cerca de um ano mais tarde voltei a pôr as botas no Choquemone, aquando da visita do Ministro para a inauguração(?) da estrada Bula/Binar.

O Natal era daí a quatro dias e tudo estaria bem se no dia seguinte ao final da Operação, 21 de Dezembro de 1970, não tivesse havido o primeiro morto da Companhia, num acidente de viação na estrada Bula/João Landim. O Sold At Celestino do 4.º GComb, que de véspera no Choquemone se tinha safado incólome, morreu estúpidamente ao fazer a escolta a João Landim, integrado no Grupo, quando o perigoso Unimog (burrinho) em que seguia, entrou num buraco da estrada cuspindo todo o pessoal da viatura e provocando mais 6 feridos. Creio que só o Fur Fontinha que seguia no lugar do morto, saiu incólume. Nessa data o Celestino ficou em Paz.

Um abraço a todos
Luis Faria



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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3832: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (7): Bula - Dias de calmaria

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3848: As mulheres que, afinal, também foram à guerra (2): Eu, a NI e o Miguel em Biambe, para um almoço de batatas fritas (Henrique Cerqueira)

1. Mensagem de Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil do 4.º GCOMB/3.ªComp/BCAÇ 4610/72 e CCAÇ 13, Biambe e Bissorã, 1972/74, com data de Fevereiro de 2009:

Cá vai mais uma história da minha NI (mulher) de GUERRA(*).

Como contei na história anterior, a minha NI resolveu acompanhar-me em mais uma pequena (?) aventura em terras da Guiné. É que resolvemos visitar os meus antigos camaradas e amigos do BIAMBE.

Lembro que fui para a Guiné integrado no BCAÇ 4610/72, mobilizado no RI 16 - Évora e, na 3.ª Companhia que viria a ser colocada em Biambe, a qual viria a ser baptizada com o nome TÁ NO PAPO. A sede de Batalhão (CCS) ficou em Bissorã. E foi assim que acabei por bater com os costados na CCAÇ 13 que estava adstrita ao meu Batalhão.

Sendo assim e após este intróito, passemos à história da NI & C.ª.


Um almoço de Batatas fritas em Biambe

Como nós sabíamos que a malta do Biambe há muito não sabia o que era comer batatas, resolvemos que ir levar-lhas, porque o maior desejo do pessoal era mesmo comer umas batatinhas fritas já que, como a tertúlia sabe, na Guiné era só bianda e esparguete (ainda hoje odeio o referido esparguete). Assim, combinámos via rádio o dia da visita e o meio de lá chegarmos em segurança. Esta visita já foi feita após o fim das hostilidades, mas ainda havia muitas minas espalhadas pelas picadas, assim como já havia alguma insurreição entre gente civil relacionada com aquelas euforias pós-revolucionarias do género de nos irem chamando de Colonialistas, etc… Bom é então que se marca um Domingo e a malta do Biambe nos veio buscar a Bissorã a mim, à NI e ao meu filho Miguel.

Após a almoçarada e a respectiva socialização da NI e do Miguel com todos os meus antigos camaradas, a malta teve de nos levar de novo a Bissorã e desta vez todos regressámos bem atestadinhos de álcool fermentado. Embora eu nem por isso, até porque fui sempre muito bem comportadinho. Bem, vezes não são vezes.

Junto algumas fotos desse dia, lamentavelmente tenho muito poucas fotos, porque após a almoçarada (batatas fritas com… batatas fritas) e muita cervejinha e uns Dimples de seguida, retiraram a firmeza das mãos e a minha Chinão (máquina fotográfica) caiu e avariou. Sobraram algumas fotos, das quais anexo estas.

Regressados a Bissorã, tivemos que passar pela porta do Comando… Aí o Nunes (ex-Furriel) resolve insultar o Comando e demais gente. Claro que o rapaz estava mal disposto. Ele hoje até é professor em Coimbra, mas naquele dia deu-lhe para a má disposição. Levo o rapaz ao Bar da CCAÇ 13 para o acalmar e beber umas águas para arrotar.

E pronto, lá fiz merda outra vez. Não é que por causa do Nunes, das batatas, da cerveja e até do filho da pi…pi..pi… do Comandante. Quase que acabava na cadeia... eu sei lá que mais. E isto tudo à frente da NI do Miguel.

E porquê? Perguntam vocês.

Quando levo o Nunes ao Bar, está lá um Furriel natural da Guiné que como estava a ver que, com o fim da guerra, certas mordomias a que estava habituado iriam acabar, deu em deitar para fora o seu racismo, querendo até dar a entender que estava do outro lado. Foi então que ao ver o meu camarada Nunes naquele estado e talvez por alguma boca deste, o dito racista dá um estaladão ao meu amigo.

De certeza que o Nunes nem sentiu (por protecção das batatas e...), mas cá o rapaz sentiu e bem fundo. Disse-lhe:
- Ó camarada, estás a bater num camarada teu e ainda por cima ele está mal disposto!!!! O racista disse que me fazia o mesmo. Que chatice… o Henrique passou um dia memorável com a NI e o Miguel, junto dos seus camaradas do Biambe a comerem batatas fritas e todos felizes, porque a merda da Guerra tinha acabado e ao fim do dia aparece entre mim e meu camarada um dos piores inimigos daqueles dois anos de martírio que é um anormal racista armado em pessoa.

E pronto... ficou o caldo entornado ou seja a cabeça do racista bateu contra uma cadeira, que me apareceu nas mãos, e a partir daí foi uma batalha campal à porta do bar e bem perto do comando. Ainda hoje não sei como a cadeira se agarrou às mãos e até nem sei como a cadeira, que era boa, ficou inteira. Ainda hoje tenho pena dela.

A NI que tinha ficado na conversa com uma senhora libanesa ali perto, olhou e viu o seu Henrique e mais gente, todos entretidos a gastar energias e achando que já era de mais, foi tentar tirar cá o rapaz do meio da confusão. Só que a partir daí a situação piorou, porque entra na história mais um elemento perverso, que é o Comandante do Batalhão, na altura, penso que interino.

Eu sinceramente não podia mesmo com esse senhor, aliás ninguém gostava dele, só que tinham medo de lhe dizer (compreende-se não é?). Era mesmo uma figurinha desprezível. Veio envolver-se na contenda, tomando partido do racista. Levaram-nos para o Comando onde comecei a ser interrogado pelo dito Comandante, mas sempre sem hipótese de grande defesa, estando sempre a ser acusado de ser o mau da fita. Em boa verdade, eu era mal visto pelos donos da guerra, como sabem aquela história do Natal ainda estava muito fresca e por acaso o racista tinha sido beneficiado nesse ano de Natal. Os tais privilégios que faziam dele um senhor, até superior aos seus irmãos da Guiné.
De certeza que muitos de vós conheceram destes meninos.

No entanto a NI na rua vai passando pela angústia de saber o que irá acontecer ao gajo maluco com que se casou e embarcou naquela aventura. Entretanto eu estava metido num ninho de ratos a receber ameaças de prisão, despromoção, etc. Só que havia um anjo lá dentro que era o Sargento Ajudante, de quem lamentavelmente não sei o nome. Só sei que era do Norte e nós lhe chamávamos o pai de nós todos. Era o homem mais humano que algum dia conheci. Este homem disse-me durante um certo intervalo do interrogatório:
– Ó meu caralho, o que é que eu posso fazer por ti? Agora fizeste mesmo merda. Eu sei que até tens razão, mas estás na tropa.

O que é certo é que uma vez mais o tempo passou, não fui castigado, regressei à Metrópole integrado na minha antiga Companhia e enfim, TÁ NO PAPO

Estranho ainda hoje, porque não sei o que foi feito da minha Caderneta Militar. Será que um Anjo a levou para o Lixo Celeste?

Tudo isto foi fazendo parte da minha vivência com a NI e do fortalecimento da nossa vida de casal e pais, mas que arriscámos, ai isso arriscámos. Foi bom, éramos tão fortes… está bem... também um pouco irresponsáveis, mas que diabo, não houve coragem suficiente para ter dado o salto antes de ir para aquela treta da Guerra.

Atenção malta, porque nunca deixei de cumprir com a minha obrigação de militar, mas mesmo só por obrigação. Tivemos uma óptima relação com as populações, daí a possibilidade de algum fornecimento de frescos que os populares nos levavam a casa, permitindo pelo menos que o meu Miguel fosse comendo alguns legumes e fruta da época, e peixinho da Bolanha.
Mas isso será uma outra história da NI

Vou terminar esta história e afirmo que não pretendo atingir ninguém, porque acho que os factos só tiveram valor na época. Que vi muito racista a espezinhar irmãos da mesma raça, isso eu vi e a esses desprezo ainda hoje

Carlos, este texto está a ser escrito numa tarde chuvosa e provoca uma agradável nostalgia por nos sentirmos protegidos e livres dos tormentos que nos roubaram, pelo menos, dois anos da nossa juventude e a muitos outros toda a sua vida. Por isso é muito bom, mesmo muito bom, termos este meio de expressão através da escrita mais ao menos pública.

Um abraço a toda a Tertúlia
Henrique Cerqueira

NI e Nuno Miguel confraternizam com tropas do Biambe

O operacional Nuno Miguel no intervalo da Operação ao Biambe

Forças intervenientes na Operação ao Biambe

A família de Henrique Cerqueira, durante a Operação ao Biambe

Fotos: © Henrique Cerqueira (2009). Direitos reservados
Edição e legendas de CV

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Notas de CV:

(*) Vd. poste da série de 23 de Janeiro de 2009 > 23 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3779: As mulheres que, afinal, também foram à guerra (5): Ni, uma combatente em Bissorã (1973/74) (Henrique Cerqueira)

Guiné 63/74 - P3847: (Ex)citações (15): São momentos destes em que nos tresmalhamos nos carreiros e nas neblinas cobrindo as bolanhas (Mário Fitas)

1. Comentário do Mário Fitas ao poste de 5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3845: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (19): O aniversário do Cabo Tomé

São momentos destes, que fazem esta Tabanca muito Grande.

São estes os momentos em que nos tresmalhamos, nos escorregadios carreiros e nas neblinas cobrindo as bolhanhas.

Regredi!

21H00, a Companhia estava formada, o Meco (da Nazaré) segredou-me:
- O Fur G... acabou de foder a prisioneira maneta.

A Companhia saíu.

Madruga, dia seguinte, 05H00: O Furriel G..., o único a usar capacete, ficou com a cabeça em duas e o capacete com dois furos.

Maldita mata de Cabolol! Estavam à nossa espera!

Escreve!... Escreve Alberto Branquinho mostra aos incrédulos o que foi chafurdar na lama, no àlcool e na morte.

Sempre do tamanho do Cumbijã,
o velho abraço.

Mário Fitas

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3846: PAIGC Actualités (Magalhães Ribeiro) (2): O nº 54, Outubro de 1973, dedicado à proclamação da independência: pp. 3-4

1. Continuação da publicação da revista mensal PAIGC Actualités, nº 54, Outubro de 1973, um número histórico de que nos foi enviado uma cópia, digitalizada pelo nosso amigo e camarada Eduardo Magalhães Ribeiro, mais conhecido na Tabanca Grande como o pira de Mansoa. (*)

As páginas 3 e 4 foram traduzidas do francês paar português pelo Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, os Tigres de Cumbijã (1972/74).


Imagens: © Magalhães Ribeiro / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.




Guiné-Bissau > Região do Boé > 24 de Setembro de 1973 > "O Comandante Paulo Correia, do Comité Executivo da Luta, primeiro vice-presidente do Conselho de Estado, crava no chão, frente à Presidência, a bandeira nacional" . [Paulo Correia, de etnia balanta, será mais tarde julgado e condenado à morte, sendo executado em 1986, juntamente com o jurista Viriato Pã, um e outro acusados serem os autores morais da tentativa de golpe de Estado, que ficou conhecida como o "Caso 17 de Outubro" ou "A rebelião dos balantas". L.G.]




"A ASSEMBLEIA NACIONAL POPULAR, reunida a 23 e 24 de Dezembro, adopta a primeira Constituição da História do nosso povo.

"O PAIGC permanece como força política dirigente da nossa sociedade.

"O LEMA DO ESTADO DA GUINÉ BISSAU É UNIDADE, LUTA, PROGRESSO.

"O Secretário Geral do nosso Partido inaugurou a ANP, perante a qual apresentou um balanço das realizações do nosso Partido que conduziram às eleições e à convocação da ANP de acordo com os planos estabelecidos pelo nosso saudoso dirigente Amílcar Cabral, principal obreiro de todas as vitórias alcançadas pelo nosso povo.

"O camarada Pereira refere-se também às novas perspectivas que se abrem à nossa luta na Guiné e às Ilhas de Cabo Verde, assim como às pesadas e novas responsabilidades que recaem sobre todos os dirigentes responsáveis e militantes do nosso Partido.

"O Estado da Guiné-Bissau é um Estado soberano, republicano, democrático, anti -colonialista e anti - imperialista e tem como objectivos principais a libertação total do povo da Guiné Bissau e Cabo Verde e a construção da união destes dois territórios através da edificação de uma pátria africana forte e rumo ao progresso. A modalidade desta união será estabelecida após a libertação dos dois territórios de acordo com a vontade popular.

"O Estado da Guiné Bissau fixa como dever sagrado agir no sentido de acelerar por todos os meios a expulsão das forças de agressão do colonialismo português da parte do território que ainda ocupam na Guiné Bissau e no sentido de tornar mais forte a luta nas Ilhas de Cabo Verde, parte integrante e inalienável do território nacional do povo da Guiné Bissau e de Cabo Verde. Nas ilhas de Cabo Verde será criada no momento oportuno a Assembleia Nacional de Cabo Verde, tendo em vista a formação de um órgão supremo da soberania total do nosso povo e do seu Estado Unido: A Assembleia Suprema do Povo da Guiné e de Cabo Verde.

"O Estado da Guiné Bissau considera, como um dos princípios base da sua política externa, o reforço dos laços de solidariedade e fraternidade combativa do nosso povo com todos os povos das colónias portuguesas; solidariza-se com os povos em luta pela sua independência na África, Ásia e América Latina e com todos os povos árabes contra o sionismo.

"O Estado da Guiné Bissau é parte integrante de África e luta pela unidade dos povos africanos, respeitando a liberdade, a dignidade e o direito ao progresso político, económico, social e cultural desses povos".

O Conselho de Estado exerce, nas sessões da A.N.P., as funções que lhe são atribuídas pelas leis e resoluções da própria Assembleia. É responsável perante a A.N.P. e compõe-se de quinze elementos, cujo mandato é de três anos, eleitos, entre os deputados à A.N.P. na primeire sessão da sua legislatura.



Foto: "O Camarada Luís Cabral, secretário geral adjunto do nosso Partido, eleito Presidente do Conselho de Estado, seu representante nas relações internacionais, sendo igualmente o comandante supremo das Forças Armadas Revolucionárias do Povo ( FARP)".



Os deputados à ANP prestam juramento nos termos seguintes: “Juro que servirei com todas as minhas forças no sentido de conseguir os objectivos principais da Constituição: liquidação total do regime colonial, unidade da Guiné Bissau e das Ilhas de Cabo Verde, progresso social”.


Os outros membros do Conselho de Estado:

- Comandante Umaru Djalô, Vice-Presidente

- Comandante Lúcio Soares, membro do C.E.L. [Comité Executivo da Luta], Secretário

- Pascoal Alves, membro do C.E.L.

- Otto Schacht, membro do C.E.L.

- Carmen Pereira, membro do C.E.L.

- Paulo Correia, membro do C.E.L.

- Bacar Gassamá, membro do C.E.L.

- E ainda Sr. El-Hadj Fodé Mai Turé, Sra. Chica Vaz , Sra. Mansaba Sambu, Sr. Wangne Tchuda e Sr. Musna Sambu



Foto: "Em primeiro plano e da direita para a esquerda: Os Comandantes Umaru Djalô, membro do C.E.L. , Vice-Presidente de Estado, João Silva, membro do C.S.L. e Constantino Teixeira, membro do C.E.L., eleito no Conselho de Estado".

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Nota de L.G:

2 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3828: PAIGC Actualités (Magalhães Ribeiro) (1): O nº 54, Outubro de 1973, dedicado à proclamação da independência: pp. 1-2

Guiné 63/74 - P3845: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (19): O aniversário do Cabo Tomé

1. Mensagem de Alberto Branquinho, ex-Alf Mil da CArt 1689, Guiné 1967/69, com data de 2 de Fevereiro de 2009:

Caros Editores

Junto o texto do UMBIGO nº. 19, com os agradecimentos de continuarem a aceitar o título da série.

Três abraços
Alberto Branquinho



2. NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (19)

O ANIVERSÁRIO DO CABO TOMÉ


- Eh pá! Deu a “maluca” ao Tomé. Ele vem aí.
- Qual “maluca”… Ele está é com uma “cardina” que nem se endireita.

O cabo Tomé aproximava-se daquele espaço chamado “bar”, feito de tábuas e de chapas de zinco. Vinha em tronco nu, debaixo de uma chuva contínua e miudinha, que há um mês caía sem parar. Trazia um guarda-chuva aberto, quase sem pano, na mão esquerda e uma garrafa de cerveja na mão direita. Tinha as divisas de cabo penduradas das orelhas. E berrava:
- Cá o filho da Marianinha é maior. Não há pai para ele.

Repetia e repetia o discurso. E cantava:
- “Ó rosa, ó linda rosa, ó rosa da Alexandria, tu és a mais linda rosa…

O cabo festejava, assim, os vinte e três anos.

Não entrou no bar e atravessava a parada, em chinelos, calções e tronco nu, pisando água e lama. Sentia-se grande, agigantado pelo álcool, com a água a correr por ele abaixo. Sentia a cabeça do tamanho do rebentamento de uma granada de obus, a ferver, a ferver e a pôr-lhe à frente dos olhos pataniscas de bichas-de-rabear.

Era um entardecer cor de chumbo, com pequenas pinceladas de amarelo-rosa no horizonte, por cima da cobertura de zinco da caserna.

- Ó rosa, ó linda rosa, ó rosa… Anda uma mãe a criar um filho… p’ra… p’ra…

Tropeçou e caiu de joelhos na lama, apoiado no cotovelo direito. Tentou levantar-se, mas o pé direito fugiu-lhe muito lá para trás. Até pareceu que o pé lhe ia fugir do corpo. Agarrou o pé com a mão direita e fugiu a garrafa. Puxou o pé, puxou, puxou, perdeu o equilíbrio, caiu sobre o lado direito e, depois, ficou deitado de costas. Ouviram-se gargalhadas do pessoal que, em volta e debaixo dos telheiros, observava a cena.

O Tomé atirou o guarda-chuva. Tentou abrir a braguilha, não conseguiu e rebolou sobre si mesmo, rindo, rindo. Cheio de lama, voltou a tentar abrir a braguilha, mas não conseguia.

- Quero mijar. Eh pá, abram-me aqui isto, qu’eu quero mijar.

Dois ou três tentaram levantá-lo.

- Eh pá, eu só quero mijar.

Com a ajuda conseguiu levantar-se. Os que o ajudaram correram para debaixo dos telheiros. Conseguiu abrir a braguilha e, com a mão direita, procurava, procurava dentro dos calções, em dificuldades de equilíbrio.

- Perdi a picha. Perdi a picha.

Ajoelhou-se e desatou a chorar:
- Perdi a picha. Perdi a picha. Ai minha mãezinha…

Levantou-se, escorregou na lama e caiu de novo.

- Sou um desgraçado! O filho da Marianinha… Mãe, mãe, cortaram-me a gaita!

Chorava, chorava. As lágrimas corriam pela cara, misturadas com chuva e ranho. Tossia, tossia, engasgou-se e desatou a vomitar. Acudiram-lhe de novo.

Vomitava aos arrancos e estremecia-lhe todo o corpo. Levaram-no, amparado pelos sovacos.

Colocaram-no debaixo da água do “chuveiro” que corria dos bidões, ao lado da caserna. Deitaram-no na cama, ainda molhado. Chorava abraçado aos mais próximos, entre risos de uns e críticas de outros.

- Este gajo é sempre a mesma merda.
- Sou uma merda. É, sou uma merda… Mas não vou mais p’ró mato. Nã é Zé? A gente nã vai mais p’ró mato, nã é Zé?

O Zé abanou a cabeça, concordando. O Tomé agarrou-o pelo pescoço, puxou e deu-lhe um beijo na cara.

- A gente nã vai mais p’ró mato. Que vá o capitão, que leve o comandante e os oficiais todos. Que se fodam. P’ra que é a guerra? P’ra ganhar a taça? Que se foda a taça. Andamos aos tiros p’rás árvores. Os cabrões dos turras pintam-se de verde. Nã é Zé? A gente nem os vê. Deixa vir o alferes: - “Ó Tomé, tu hoje levas a basuca.” – “Leve-a você”.

- Vá pá, tem calma. Vou-te buscar uma Pérrier.
- Água?! Arranja-me uma cerveja.
- Não. Tu já bebeste muito.
- Apetece-me apanhar chuva.
- Não, tens que dormir. Faz-te bem.
- Dormir? Ah Zé, a gente nã vai mais p’ró mato. Que se fodam. Um gajo quase na “peluda” e ir p’rá Metrópole num sobretudo de pau.

Teve um vómito e sujou a almofada.

- Deixa lá. Está na hora do jantar. Queres que te traga alguma coisa?
- Nã. Não.

Ficava mais calmo. Adormecia. O outro foi jantar.

No telheiro grande, coberto de zinco, que servia de refeitório, amontoavam-se para o jantar, apupando o cozinheiro.

- Ide-vos foder! ‘Ó tempo que não há frescos…

No meio do barulho das conversas ouviram-se, lá longe, para norte o som das “saídas” de granadas de morteiro pesado e de canhão.

Num instante era uma barafunda. Corriam aos magotes em varias direcções, para as armas pesadas, para os abrigos, em busca das G-3s e cartucheiras, para os abrigos. As primeiras granadas começaram a assobiar por cima das cabeças, seguidas dos rebentamentos e dos ruídos que parecem loiça a partir-se.

Gritos, ordens, cheiro intenso, excitante a explosivos, pó, fumo, mais rebentamentos, gritos e mais gritos. Duas ou três granadas caíram dentro do quartel, voaram coberturas de zinco em placas retorcidas, pedaços de tijolo e cimento, vidros partidos. Um barracão começou a arder.

Dois grupos saíram a correr, pelas portas norte e leste, para cortarem caminhos de acesso. Parecia que o pandemónio nunca mais parava.

Começou a diminuir o fogo. Só pequenas rajadas de arma ligeira e vozes que interpelavam ou berravam ordens. Vultos apagavam o fogo com baldes de água. A serenidade voltou aos poucos. Havia movimentações para o posto de socorros. Alguns comeram como puderam o que, frio, ficara a aguardar nos pratos. Outros não saíram tão depressa dos postos ou dos abrigos.

Quando os primeiros voltaram à caserna, viram o cabo Tomé mesmo à entrada, nu, deitado de costas, de olhos espantados, como que olhando o tecto de zinco, retorcido, enquanto um fio de sangue lhe escorria do lado esquerdo da boca, passava pelo pescoço e fazia uma poça de sangue debaixo da cabeça.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3805: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (18): O doutor não tem um remédio para a guerra?

Guiné 63/74 - P3844: FAP (5): Reflexões sobre o Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (João Carlos Silva)

1. Mensagem João Carlos Sousa Silva, Cabo Especialista MMA na BA6, com data de 1 de Fevereiro de 2009: Caros Luís Graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote, Sei que estarão assoberbados de mensagens, mas, após vários meses de leitura diária do vosso blog, decidi hoje passar para o papel (digo computador) algumas ideias que me têm ocorrido e que gostaria de partilhar. Para quando tiverem alguma disponibilidade. Partilho esta mensagem com o meu companheiro Victor Barata pois foi através do seu blog Especialistas da BA12 que aprendi mais coisas sobre este tema (e é portanto também para ele esta mensagem), com quem já partilhei algumas ideias e que cheguei ao vosso blog. Junto envio fotografia (para a fotografia) na linha da frente da esquadra 301, na BA6 Montijo.

De Nada a Forte Gente se Temia – Lema da esquadra 301 Jaguares Saudações Especiais, João Carlos Silva, MMA, Jaguares (FIAT G-91), 2ª/79 2. Em primeiro lugar apresento-me, sou o João Carlos Silva “alfacinha” de gema pois nasci na “velha” rua da Palma (sabem aquele Fado “…ai Mouraria da velha rua da Palma…”, pois é essa mesmo) e vivi 24 anos na Freguesia dos Anjos. Actualmente (há quase outros tantos) resido no concelho de Almada (sempre com Lisboa à vista…, ou quase). Militarmente falando, servi na Força Aérea Portuguesa de 1979 a 1982, como cabo Especialista MMA na BA6, na esquadra 301 onde operavam os FIAT G-91 (esquadra criada em 1978, antes disso e desde Agosto de 1974 era a esquadra 62 com as aeronaves vindas do Ultramar e da BA5, in Historial da Esquadra 301). Resumidamente, comecei na Manutenção (como era da praxe) tendo posteriormente trabalhado sempre na Linha da Frente. Faço parte da tertúlia da linha da frente do blog Especialistas da BA 12 do companheiro Victor Barata, pelas razões que expresso nesta mensagem e porque ele (e restantes companheiros) me acolheu nesse espaço de forma generosa. Porquê esta minha “atabalhoada” mensagem ? Bom, por várias razões. A principal, como se vocês precisassem com quase 1 milhão de visitantes desde Abril de 2005, será porque quero partilhar convosco o que pode sentir (por isso a objectividade não será o forte deste texto) alguém que não esteve na Guerra Colonial por via da idade. Como é que chegamos aqui ? Bem, eu lembro-me bem de quando “miúdo” pensar, com bastante receio, que em breve seria a minha vez de avançar para África no cumprimento de um dever que afectava toda uma geração de jovens portugueses (e também de jovens guineenses, só agora tenho essa percepção, o vosso blog também tem essa virtude). Para este sentimento muito contribuiu a comissão do meu primo Victor Condeço (membro da vossa Tabanca Grande) por terras da Guiné, mais concretamente em Catió, e especialmente quando o fomos esperar ao cais da Rocha Conde de Óbidos em Alcântara. Além disso, tenho vagas memórias das preocupações porque passava a família. Adicionalmente, tenho um outro parente, por parte da minha mulher, que serviu na Marinha e teve 2 comissões na Guiné, operando nas lanchas naqueles perigosos rios. Mais recentemente, constatei que dois antigos colegas meus de trabalho fazem parte da Tabanca Grande, o Raul Albino e o António Matos (Garcia de Matos). Provavelmente não se lembrarão de mim, mas, eu como mais “moderno”, lembro-me deles. Depois, porque tenho vindo a absorver toda a informação e especialmente nos últimos dias me chamaram especial atenção algumas mensagens. Por exemplo, o complexo tema de Guiledje, como podem existir visões tão distintas sobre os mesmos acontecimentos, as mensagens do António Martins de Matos e a resposta de Nuno Rubim na mensagem 3811, a mensagem 3816 do Miguel Pessoa, que muito bem dizes em comentário “Na América já estavas no cinema…em Portugal, nem sequer te (re)conhecem…”, a mensagem 3820 do Joaquim Mexia Alves, com a qual eu concordo bastante, e a mensagem 3824 do Virgínio Briote (comentário à mensagem 3820 do Mexia Alves). Bom, eu leio tudo isto e fico preso a estes relatos que muitos dos mais jovens simplesmente ignoram ou não fazem ideia porque parece que foi considerado tabú (ver mensagem 3824 do Virgínio Briote). É notável o número de visitantes que a vossa Tabanca Grande tem tido, reflexo significativo da importância que tem este assunto da Guerra Colonial e da possibilidade de os protagonistas expressarem a sua visão e os seus sentimentos. É de louvar os contributos na primeira pessoa e a dedicação dos Editores do blog que permitem que todas estas mensagens cheguem a todos nós e que possam ficar registadas para que os vindouros venham a conhecer, assimilar e respeitar o passado. Não é possível criar uma identidade sem considerar o passado. De certeza que já receberam, refiro-me a malta mais “moderna”, inúmeras manifestações de respeito e admiração pela missão cumprida no meio de todos estes sacrifícios físicos e psicológicos, no entanto, nesta sociedade actual em que muitos fazem gala em “rotular”, rebaixar ou tentar anular, os parceiros do lado sem sequer se darem ao trabalho de os conhecer (profissionalmente ou pessoalmente) apenas por um alegado espírito de competitividade aplicado superficialmente e sem nexo e que não sei aonde nos vai levar (parece que não está a dar resultado), faço questão de transmitir de forma muito clara o meu respeito e admiração por todos os ex-combatentes e às respectivas famílias que tanto sofreram. De Nada a Forte Gente se Temia – Lema da esquadra 301 Jaguares Saudações Especiais, João Carlos Silva, MMA, Jaguares (FIAT G-91), 2ª/79 3. Comentário de CV Caro João Carlos Silva, obrigado pelos teus comentários ao nosso Blogue, que representam para nós a certeza de que estamos a chegar a gente mais nova, que viveu um tempo em que já não era necessário ir combater na Guerra Colonial.

O facto de nos leres e te interessares por acontecimentos que, aparentemente, não te dizem respeito, faz com que te convidemos a fazeres parte da Tabanca Grande, como camarada não combatente, mas não menos importante. Esperamos que nos vás transmitindo as tuas impressões desinteressadas e desapaixonadas, qualidades próprias de quem como tu não participou na guerra. Esperamos notícias tuas, quanto à adesão à Tabanca. Envia-nos uma foto actual e outra do teu tempo de Cabo Especialista da FA, já que a que eu editei não tem grande qualidade. Para ti, um abraço da Tertúlia __________ Nota de CV: Vd. último poste da série de 4 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3839: FAP (4): Drama, humor e... propaganda sob os céus de Tombali (Miguel Pessoa, Cor Pilav Ref)

Guiné 63/74 - P3843: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (III): Mafra, Maio/Junho de 1964

Diário de Guerra

de Cristóvão de Aguiar

Enviado por José Martins (ex-Fur Mil Trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70). Revisão e fixação do texto: vb.

1964

Maio, 1 – Fala-se numa possível revolução no dia de hoje.

Até agora, nada. Mas, apesar de ser boato, as forças da ordem estão em vigilân­cia abso­luta nos quartéis, de onde ninguém pode sair. Nem nós, instruendos do C.O.M., te­mos dis­pensa.

Maio, 2 – Estes instrutores militares são de uma crueldade mazi­nha.

Aos sábados e às segundas-feiras, a instrução é sempre mais dura do que nos ou­tros dias, para que o fim-de-semana fique estragado, sobretudo para quem o vai passar para fora de Mafra, e não dorme na noite de domingo para segunda.
Hoje, sábado, por exemplo, o meu pelotão foi para o C.E.M.E.F.E.D., mesmo ao pé do Convento, para fazermos o pórtico. Este consiste em uma estrutura de cimento armado, com mais de três metros de altura, no cimo da qual existe um rectângulo formado por vigas com não mais do que trinta centímetros de largura.

O exercício consistia em subir lá para cima por umas escadinhas, com a espingarda, e de­pois andarmos com a arma poisada em ambas as mãos para nos equilibrarmos. Por vezes em passo acelerado.
Recusei-me a fazer tal exercício. Eu e alguns mais. Sinto vertigens e não estava para me estatelar de tal altura no chão duro e ficar maltratado para o resto da vida. O alferes não reagiu mal à recusa. Apenas disse que teríamos, no final do curso, nota mais baixa. Que se lixe a nota e o brio militar. Mas, a maior parte do pelotão, lá subiu e fez tudo quanto lhe foi ordenado. Só de os ver cá de baixo arrepiava. Ainda para mais com chuva e lama...

Às segundas-feiras, iniciamos a instrução com um cross de muitos quilómetros, espingarda em bandoleira, para anular o descanso (?) do fim-de-semana. Puta de vida esta! E a procissão ainda vai no adro...

Maio, 6 – Mudei de caserna há duas semanas.

Meti uma pre­tensão es­crita ao comandante de companhia, que, entretanto, foi promovido a capi­tão. O meu pedido foi deferido. O Vítor Branco é agora meu companheiro. As nos­sas ta­rimbas fi­cam rente uma à outra, perto da entrada dos lavatórios e retretes.

Hoje à noite, vão apare­cer, lá dentro, panfletos revolucionários das JAPs (Juntas de Acção Patriótica). Há bo­cado, ao entrar na porta-de-armas, não sei como não deu o oficial de dia pela minha bar­rigona de grá­vida de mui­tos me­ses. Quando me apa­nhei cá dentro, até suspi­rei de alívio. O No­gueira e Silva é muito mais calmo do que eu. O Vítor nem se fala. E o Camargo, ape­sar de nervoso, também disfarça muito bem.

Maio, 7 – Ainda não tinha tocado a alvorada e já o oficial de dia estava na caserna a passar revista aos cacifos.

Fingi que estava a dormir, mas ele aba­nou-me e lá lhe fui abrir o meu. E lá foi rosnando, entre dentes:
- Há por aí uns sa­ca­nas de uns gajos que querem pôr o quartel em polvorosa; apareceram uns panfle­tos comunistas em várias instalações sanitárias, mas ainda se vão foder todos que é um re­galo.
Fiz-me desentendido e, depois da revista, voltei para o beli­che. Não apa­nhou rastro de panfletos em ne­nhum dos cacifos da caserna. O Vítor Branco sorriu para mim, à socapa. Guardo o caderninho destes apontamentos de­baixo do colchão e nunca me esqueço de o levar para Coimbra. Qualquer dia ainda me lixo.

Coimbra, Maio, 10 – Resolvi deixar o caderninho deste diário bem guar­dado na minha República, aqui em Coimbra.

Daqui em diante, vou passar a es­crever em folhas soltas. Depois, trago-as comigo todos os fins-de-se­mana, para as juntar ao caderno. O seguro morreu de velho.

Mafra, Maio, 13 – Hoje, numa aula conjunta de filosofia militar, cha­me­mos-lhe assim, com todas as companhias do C.O.M., o major encarre­gado da pre­lec­ção semanal passou parte do tempo a falar sobre subversão nos quartéis.

Arengou so­bre os inimigos da Pátria e, como exemplo de subversão, leu um pan­fleto que tinha aparecido há dias nas instalações sanitárias das três casernas dos ca­detes. Pediu-nos a todos vigilância sobre o inimigo que já se en­contrava entre nós e in­centi­vou-nos à sua denúncia, que a Pátria em armas as­sim o exigia de seus filhos legítimos.

Maio, 20 – Mais panfletos, desta vez comentando os comen­tá­rios do nosso major na última aula de quarta-feira e inci­tando os cadetes à subver­são.

Es­tava mesmo bem escrito. Na aula da semana que vem, com o major e com to­das as compa­nhias do C.O.M. juntas, não posso ficar ao pé dos meus ami­gos. É uma questão de precau­ção.

Junho, 10 – Apesar do feriado, não fui a Coim­bra.

Passei o dia por aí. De manhã fui ao café Frederico e, sem querer, vi a parada militar na tele­vi­são. Até me arrepiei. Sobretudo com as conde­corações póstumas.
A tarde, passei-a no quartel com o Nogueira e Silva, que se encontra castigado. O co­mandante da uni­dade, um coronel ti­rocinado, deu-lhe uma punição de três fins-de-se­mana sem sair.

Há dias, numa livraria da Vila, estava o Nogueira e Silva a ver livros ao lado de um sujeito à paisana. Às tantas, esse senhor, vira-se para o ca­dete pitosga e dis­para:
– O nosso cadete não me conhece? – Resposta pronta do Nogueira e Silva, esten­dendo-lhe a mão:
– Não, não tenho esse prazer, mas apre­sento-me, sou fu­lano. – O ho­mem não gostou e disse-lhe: – Com­pa­reça no meu gabinete ama­nhã de manhã, sem falta; não sabe que, pelo Regu­lamento Militar, é obrigado a co­nhe­cer o seu co­man­dante?

Junho, 19 – Iniciámos a semana de campo.

Viemos de Ma­fra até à Praia de Santa Cruz, a pé, com a mochila às costas e a espingarda em ban­do­leira. Es­tamos acampados nuns pinhais não muito longe do areal. Cheguei com os pés es­fo­la­dos. Felizmente que hoje à noite não estou de guarda. Posso ir dormir para a tenda, que compartilho com o Júlio Freches. Dormir ves­tido, claro. Só se descalçam as botas.

Junho, 24 – Ontem à noite estivemos brincando à guerra.

Es­tive de sentinela ao acampamento. Havia-as de vinte em vinte metros, formando um cor­dão à volta do aquartelamento de campanha. Escuro que nem breu. Não se re­conhe­cia um vulto.
A dado mo­mento, sinto aproximar-se uma patrulha. Dou voz de alto e de ime­diato debitei a senha para que o comandante da pa­trulha me respon­desse com a con­tra-senha. Só assim lhe poderia dar autorização para prosse­guir.

Tinha-se es­quecido dela e eu não quis deixá-lo passar. Mas o capitão vinha também integrado na patrulha, ape­nas para ver como se portavam os homens da sua com­pa­nhia. Soube-o, não porque o ti­vesse visto, reconheci-o tão-só pela voz. Disse-me ele então:
– Deixe lá passar, nosso ca­dete e apre­sente-se amanhã de manhã junto da tenda do co­mando. –

Logo que termi­nou o exer­cício e clareou o dia, fui-me apresentar ao capitão. Só me queria co­nhecer. Fi­quei fulo comigo mesmo por ter sido tão milita­rista e tive algum nojo de mim... Afi­nal, a la­va­gem a que eu e os meus cama­radas havía­mos sido sujeitos durante cinco meses estava dando os seus frutos.

Junho, 26 – Terminou a semana de campo.

Regressámos em duas colunas, uma de cada lado das bermas da estra­da, mochila às cos­tas e es­pin­garda em bandoleira, caminhamos em direcção ao convento. Vem toda a gente der­reada, os pés em ferida, o corpo empastado de suor velho.

À entrada da Vila de Mafra vejo o casa­rão pesado e ba­lofo e até se me exulta o coração como se regres­sasse a casa após uma longa au­sência. Antes de chegarmos à porta-de-armas, ouve-se a Banda do Regi­mento. To­ca para nós marchas militares.

E não é que os nossos pés ganham le­veza, as feri­das se ca­la­m, o peito se ergue, os bra­ços pegam de fen­der o ar com altivez e dos olhos re­bentam lá­grimas de um prazer sensual?
Ao pas­sarmos em continência ao lado da Banda Regi­men­tal já não somos os mesmos maltrapi­lhos que regressam alquebra­dos de um teatro simulado de guerra.

Creio que fo­ram os Espartanos que ganharam uma batalha, com um general coxo e gago, que os Atenienses lhes haviam mandado por escárnio. En­quanto lutavam, o gene­ral can­tava-lhes, com a afinação dos gagos, cantos bélicos que enchiam os guerrei­ros de ânimo. Foi o meu velho pro­fessor de História do terceiro ano, o Doutor Ruy Galvão de Carvalho, quem nos con­tou este episódio.

Junho, 28 – Juramento de Bandeira em frente do Convento de Mafra.

Não só não junto a minha voz ao coro, como também faço figas... Juro o raio que os parta! Fim do primeiro ciclo de instrução. A especialida­de são mais dois me­ses. Ao todo sete. É demais. É este o primeiro curso que tem tamanha duração.

O Estado Maior justificou o prolonga­mento por se tratar de oficiais que vão ter a res­pon­sabili­dade de co­mandar homens em teatro de guerra. E cinco meses de ins­tru­ção, in­cluindo recruta e especialidade, como vinha sendo praticado até agora, era pouco tempo. Vou continuar em Mafra, que a minha es­pecialidade é a de atirador de infan­taria. Nem os testes psico-técnicos, aos quais respondi com sinceridade, me valeram.

Muitos cama­radas vão para outras uni­dades receber a instrução, con­soante a espe­cialidade que lhes ca­lhou. Os que entraram para a Força Aé­rea foram os mais sortu­dos. No sorteio que há dias se fez, tirei o número quarenta e sete. Como eram sessenta os cadetes pedi­dos ao Exército pela Força Aérea, deviam ser para lá trans­feridos os que haviam ti­rado os primeiros sessenta algarismos, isto segundo o crité­rio de sorteios ante­ri­ores.

Ainda ali­mentei grandes esperanças e esfreguei as mãos de contenta­mento durante algum tempo. Mas, dias depois, viu-se perfeitamente o crité­rio seguido. Primeiro, as cunhas. E, para não dar muito nas vistas, os dois ou três números mais próximos delas.

Por exemplo, entraram para a aviação o 70, 71, 72, depois o 19, 20, 21, depois o 120, 121, 122, e assim por diante, sem qualquer ordem ou aparente critério. Ninguém deu pio, mas toda a gente perce­beu. O Ca­margo e o Vítor Branco tiveram sorte e lá vão para a Ota dentro de dias. O nosso grupinho desmanchou-se, cada um para seu lado, ligações corta­das. Com a queda há semanas de Nikita Krutchev baral­ha­ram-se muitos espíri­tos.

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Notas de vb:

Último artigo do Diário de Guerra, do Cristóvão de Aguiar em

3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (II): Mafra, Fevereiro/Março de 1964

Guiné 63/74 - P3842: Tabanca Grande (111): José Brás, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1622, Guiné 1966/68

1. Mensagem de José Brás, ex-Fur Mil TRMSda CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, com data de 2 de Fevereiro de 2009: 

Caros Luís Graça e Carlos Vinhal

Enviei a 19 do mês passado, como digo abaixo numa 2.ª via enviada a 27.01.09, um texto em jeito de “carta (entre)aberta a Joaquim Mexia Alves.

Nesse meu texto mostrava a minha visão sobre a questão da “guerra” através da oportunidade “Guilege”.

Não é um texto, segundo creio, nem ofensivo nem muito (e polemicamente) contrário ao do JMA, já que, deplorando profundamente aquela parte da história do meu (nosso) País na tendência de uma perspectiva universalista (perdoem a pretensão) do homem, do passado e do futuro do homem, que tenho tentado manter, não recuso falar dos actos militares, a bravura, o heroísmo, mesmo, de alguns, direi, da maior parte que sofreu a dureza do isolamento, do cerco psicológico e de facto, algumas vezes a fome, o choro pelos mortos e a incompreensão sobre aquilo tudo.

Nem recuso o debate sobre vitórias e derrotas, pese embora a certeza que tinha já, no terreno, da impossibilidade da vitória definitiva.

Penso que alguma polémica não faz mal a ninguém, sobretudo se soubermos guardar o respeito pelos “adversários” de circunstância, de facto amigos e irmãos.

Daí ter estranhado que, nem a 19, nem a 27, tenha visto sinais do texto ou da sua recepção.

Entretanto, na ressaca, outros textos me saíram, enviados ao Mário, camarada da Guiné e colega antigo da TAP.

Hoje mesmo recebi dele sinais de que o meu texto não havia chegado nunca ao destino certo.

Enviava também duas fotos como forma de abrir a porta e entrar na Tabanca.

Dos textos que enviei ao Mário, o Mário mesmo pode reenviá-los e vocês far-lhe-ão o que acharem mais indicado, na certeza de que não quero entrar de rompante e ocupar terrenos que só vocês sabem como gerir em equilíbrio.

Portantos (como se diz por aí à bruta), aqui vai de novo o primeiro texto que enviei, provavelmente já anacrónico na diferença das datas e das águas que já correram. 

Um grande abraço e votos de bom trabalho.
Até breve
José Brás


2. Mensagem de José Brás com data de 27 de Janeiro de 2009, a qual não encontrámos entre a correspondência recebida:

Caro Luís Graça
Enviei a 19.01.09 (ou penso que enviei) o texto abaixo junto com carta aberta a J. Mexia Alves sobre intervenção sua e editada no blogue acerca da chamada “batalha de Guilege”.

Acompanhavam tal texto duas fotos, uma antiga e outra actual, forma que julgo suficiente para ser considerado um novo “camarada” da Tabanca Grande.

Entretanto novos textos foram aparecendo sobre o mesmo tema, uns, como o de JMA, deambulando por caminhos de análise puramente militar e hipermetrópica, própria do contrário da história, outras que, como eu, não negando a análise militar (tudo é analisável), não arredam a parte mais interessante da visão universal do direito dos seres humanos a disporem da sua vida e da sua liberdade num mundo que sempre se sonha melhor no futuro.

Estive com alguns problemas no meu computador e, no exemplo do que aconteceu com outras mensagens para outros destinatários, temo que não tenha chegado ao teu correio o texto que refiro acima como enviado.

Indicia tal situação o facto de não lhe ter visto mais qualquer referência no blogue, nem ter recebido eu a acusação da recepção.

Desse modo o reenvio agora com um abraço de cumplicidade a todos os que mantém o interesse na discussão plural e aberta sobre uma página da nossa história que, como todas as histórias, individuais ou colectivas, não se fazem apenas de glórias e heroísmos mas também de muitas misérias e cobardias.

José Brás

Carta (entreaberta) para Joaquim Mexia Alves e … não só
Via Tabanca Grande


Caro amigo
Talvez não seja correcto dizer-se que não nos conhecemos, que nunca nos encontrámos por aí, nas andanças de paisanos metidos a “tropas” em circunstâncias que não desejámos, seguramente, nem eu nem o meu amigo.
Daí que talvez não fosse apropriado o tratamento de “caro amigo” e que o estranhe por o ter usado eu, aqui.
Contudo, a mim me parece não ser verdade verdadeira a afirmação de que nunca nos encontrámos, tendo estado nos mesmos lugares, caminhado nos mesmos caminhos, respirado fundo sob as mesmas árvores, suado do mesmo calor e da mesma humidade, bebido da mesma água (quem disse que o rio não corre duas vezes no mesmo lugar?), sentido as mesma angústias, sofrido as mesmas dúvidas (ao contrário do outro, nós tínhamos dúvidas e enganávamo-nos algumas vezes, não era?), visto os mesmos esgares de dor de quem partia…apenas porque nada disso foi contemporâneo.
O amigo esteve no Xitole em 71 e, provavelmente mergulhou uma vez ou outra no Saltinho, patrulhou por Contabane e Aldeia Formosa. Eu estive uns meses em Aldeia Formosa em 67 (e em Mejo depois) e mergulhei também nos rápidos, almocei e bebi uns copos com a malta do Xitole sempre que me deu na gana fazer o “passeio”, às vezes apenas dois ou três “malucos” num jipe velho.
Lembro-me de uma vez em que jogávamos à bola no “estádio” local quando as morteiradas começaram a sair da mata e a cair bem perto.
Lembro-me de uma noite passada do outro lado do Rio Corubal, ouvindo os motores do Xitole, dormindo antes do ataque a “Portugal Pequenino”, onde tivemos um morto e vários feridos.
Estou seguro que a palavra amigo não está aqui a mais.
Ainda que não estejamos de acordo sobre a questão da “Retirada de Guileje”!
Quer dizer. O desacordo não tem tanto a ver com a análise da “acção militar” que lhe deu forma, com a classificação de certa ou errada, de vitória ou derrota militar que aqui esteve presente. O desacordo tem mais a ver com “os olhos” com que se vê o acto.
O amigo quer fazer análise puramente militar, decalcar dos compêndios militares os conceitos, as definições, os princípios, os objectivos, instrumentos e ferramentas que fabricavam os futuros generais. Amílcar Cabral não frequentou os bancos de tais universidades, como os não frequentaram Ho Chi Min, nem Giap.
Eu recuso-me a um exercício desses. Se bem que não tenha recusado a guerra nem na guerra o risco do pêlo algumas vezes; se bem que nunca me tenha sido indiferente olhar para dentro da “inteligência militar” deste País e de outros em casos parelhas; se bem que sempre tenha prestado a homenagem devida à coragem individual e colectiva, tantas vezes exibida naquela terra por portugueses militares feitos à pressa ou profissionais saídos das tais escolas; se bem que isto e aquilo, eu gosto mais de pesar tudo isso à luz dos caminhos da história; à luz da legitimidade da luta de quem quer libertar-se, e nisso, aceita mesmo dar a vida; à luz do valor das vidas dos que de aqui partiam, olhando-se uns aos outros na tentativa de neles encontrar razões e alento.
E ninguém, a meu ver, ninguém, repito, tinha o direito de dispor de tais vidas e de lhes dar fim. Às vidas, veja bem, coisa única e só que a maioria deles possuía, e que, perdendo-a, tudo perdiam, irremediavelmente.
Dai que não entenda que diga, como diz “Em primeiro lugar parece-me que não podemos analisar uma situação destas de guerra, com o pensamento nas vidas humanas que se poupam ou se perdem”.
Então, analisamo-la a que luz?

- À luz dos “princípios da portugalidade multirracial e pluricontinental?
- À luz da posse legitimada quinhentos anos antes?
- À luz do sonho territorial de Afonso de Albuquerque?

Não estou seguro que o amigo tenha querido dizer mesmo o que disse, escrevendo-o.
O amigo, tanto quanto me parece era um civil, militar apenas episódico, com formação humanista que chegue para entender a universal ânsia de felicidade dos povos (se é que isto existe para além do conceito) e dos indivíduos que os compõem.
Às vezes dizemos coisas que nem queríamos dizer com o sentido que as palavras que largamos, lhe dão. Já me tem acontecido a mim.
Diz William Boyles Jr., em “Brothers in Arms”, “A melhor arma de um soldado não é a sua espingarda, mas a capacidade de ver o inimigo como uma abstracção e não como um ser humano”
Bem, vejamos. Dizíamos nós, na Guiné, naquele tempo e provavelmente com algum exagero, que em Bissau, aos chefes não importavam muito os soldados que morriam, que perdiam pernas, que perdiam braços, que perdiam a fé no mundo.
Conclusão trágica, seria essa no significado que alargava a abstracção aos próprios amigos.
No fundo, parece que é isso que o amigo mesmo diz, referindo-se ao Coronel Coutinho e Lima, quando se dispõe a, pensando alto, a analisar a sua decisão…”temos de nos “afastar” desse “rosto” e analisarmos os factos”.
Não sei se já leu o livro recente do Coronel onde ele tem a oportunidade de colocar afirmações sobre factos e situações, apoiando-se em documentos oficiais.
Pelo que li, e a mim me parece material mais seguro do que os “postes” que cita, não creio que lhe restassem a ele, na altura, grandes alternativas, mesmo numa visão militar, quando Bissau lhe recusava reforços em homens e armas imprescindíveis para aguentar mais alguns dias.
A não ser que decidisse cumprir com atraso, o acto que uns anos antes Salasar havia ordenado a Vassalo e Silva, na Índia. “Morram todos!”
Note. Digo “aguentar mais alguns dias” porque acho também incorrecto dizer-se “em Guidage e Gadamael ganhámos e em Guilege perdemos”.
Em Guidage e Gadamael ganhámos o quê, meu amigo?
Veja. Não desdigo, nem a bravura de muitos soldados portugueses, se quiser considerar apenas a decisão individual de combater com risco e sofrimento, nem desdigo o objectivo que vivia nas convicções de muitos militares que combatiam e arriscavam, apenas para dar tempo e condições aos políticos para negociarem.
Mas não perdoaria nunca a um comandante que voluntariamente e por decisão pessoal levasse à morte e à prisão de Conakri dezenas de portugueses.
Diz ainda “em certa medida uma guerra inútil e em muitas facetas injusta”.
A única guerra útil e justa, acho eu, a única guerra em que eu aceito que militares e paisanos abdiquem das suas vidas, é aquela, inevitável, que decidimos travar quando querem entrar (ou se instalam) na nossa casa sem convite.
O amigo sabe que durante os séculos de presença portuguesa em África, nunca se passaram cinco anos seguidos, sem revoltas, sem actos de sublevação dos povos locais, contra tal presença. Aceitavam uma guerra útil e justa e nela morrerem. Mesmo assim, tal oferta suprema, hoje, num quadro de globalização selvagem em que os países são apenas “défices”, “crédito inter-bancário”, capitais virtuais que “circulam” por decisões tomadas num ponto qualquer do Globo que nem eu nem o amigo conhecemos, mas que condicionam verdadeiramente a sua e a minha liberdade, e a liberdade de povos inteiros, tal oferta suprema, há que confessar, parece-se muito, hoje, com a luta de Quixote contra os moinhos de vento.
E pronto!
Chegados aqui, concluímos o quê?
Que, como o amigo diz e eu repito, provavelmente não tem, não temos, nem o amigo nem eu, razões fortes para desacordo.
O problema é que “em casa onde não há pão…”

De qualquer modo, tendo passado também, alguns meses nas matas de Mejo, no “corredor”, na estrada Gadamael-Guileje-Mejo, tendo estado presente em Guileje na abertura de Gadembel, obrigados a grandes cuidados até para despejar o lixo a poucas centenas de metros do aquartelamento de Mejo, vivendo, praticamente, nas barbas de Salancaur, crendo profundamente nas razões, nos meios postos à disposição do PAIGC e na inteligência do seu líder, sempre soube da sua vitória final, e que contra essa vitória, não bastavam, conceitos de academia militar, nem interceptar corredores, nem sacrifícios extremados, nem heroísmos espectaculares.
Tal vitória podia ter sido negociada e repartida entre os dois povos, porque vitória é sempre a de dois povos ou duas pessoas (e da humanidade) que em vez da guerra preferem conversar.
Não foi!
Não foi… e, agora, parece-me tarde e pouco saudável continuarmos a fazer análises que eram já velhas, então.
E menos ainda inquéritos a macaquear a interactividades televisivas.

Um abraço
Montemor-o-Novo, 19.01.09
José Brás

Nota:

Enviei já ao Coronel Coutinho e Lima e-mail sobre o seu livro, portanto, mais ainda, sobre a “Retirada”. Não junto aqui o texto porque, se lho enviei a ele, pessoa individual apesar de pública, o texto é dele e só ele (Coronel) pode sobre ele (texto) decidir.

Outra nota: Cumprindo o “Regulamento”, envio duas fotos, uma tirada em Aldeia Formosa e outra actual, bem como um texto escrito em Mejo, em 68

GUINÉ
CÉU


Mar longo inatingível
poço negro-rubro-azul
fornalha de mil fogos queimando encéfalos
estrada-libertação de impossíveis
cenário de um sol-tudo-quase-nada
que acende labaredas nas retinas

HOMEM

Esforço quase-sangue
tatear quase-saliva
corpo tosco e baqueante
latejar de veias-não-azuis
protesto que fica apodrecendo
no cardume de revoltas não-gritadas

MATA 

deglutinação voraz do espaço
quilolitros de esperma-verde
ovários milhões de vezes fecundados
binário vida-morte luxuriantemente entrelaçados
arena sem bancadas nem varandas
onde insuspeitos irmãos se ferem cruamente

Mejo/Chin-Chin Dari Março de 68
José Brás

3. Comentário de CV:
Caro José Brás, bem-vindo à nossa Tabanca Grande. Lamentamos que tivesses de ter batido duas vezes à porta para entrar, mas na verdade não encontrei as tuas mensagens no endereço do blogue luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com.
Não me apercebi de que fizesses referência à tua Unidade e à tua Especialidade. Num próximo contacto, conta-nos tudo.
Peço-te que esqueças esta atribulada entrada na Tabanca e que continues, já que começaste brilhantemente, com a tua parte na feitura deste repositório, destinado aos nossos vindouros. Cabe a nós, ex-combatentes, a responsabilidade desta tarefa e este Blogue é um meio excelente para o fazermos.
Para terminar, deixo-te um abraço em nome da tertúlia.
CV
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3831: Tabanca Grande (110): João Seabra, ex-Alf Mil da CCAV 8350, Guileje, 1972/73

Guiné 63/74 - P3841: Convívios (95): Pessoal do BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), no dia 7 de Março de 2009 em Arganil (César Dias)

Guião do BCAÇ 2885, Mansoa 1969/71 - Divisa: Nós Somos Capazes


Mansoa > Ponte sobre o Rio Mansoa.
Foto de J. Mexia Alves, editada por CV



1. Mensagem de César Dias, com data de 4 de Fevereiro de 2009

Boa noite Carlos

Espero que esteja tudo bem contigo.
Mais uma vez o BCAÇ 2885 vai confraternizar, e mais uma vez agradeciamos que publicasses, pois penso que tem aparecido mais camaradas alertados pela Tabanca Grande.

Dia 07 de Março de 2009 celebraremos as 38 primaveras do nosso regresso.

Será em ARGANIL no restaurante do Santuário Mont´Alto, e será precedido duma Missa às 11H30 em memória dos militares falecidos.

Para quem queira participar, o número de telemóvel do camarada Ventura da organização é 967 964 368


Camarada Ventura que faz parte da organização do Encontro

Carlos, já deves ter o Guião do nosso BCAÇ, se precisares de alguma foto é só dizeres, envio-te uma do Ventura da organização caso a queiras incluir.

Grato pela atenção
Um abraço
César
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Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3821: Convívios (93): Ex-combatentes da Guiné do Concelho de Matosinhos, dia 7 de Março de 2009 (Carlos Vinhal)