Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 25 de agosto de 2009
Guiné 63/74 - P4862: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (5): Como se vivia no abrigo da ponte de Uaque
1. Mais um episódio da série do Rui Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67, enviado em mensagem com data de 21 de Agosto de 2009:
Novembro de 1966.
O abrigo de Uaque.
Reviver o homem das cavernas trocando a moca pela G3.
Ali pelo menos aumentei os meus dotes de cultura geral, pois fiquei a saber que:
- Os porcos nadam e de que maneira;
- que com 20 anos pode-se comer tudo e de tudo que tudo engorda (portanto não mata) e que atirando uma granada ofensiva para um rio (passe a selvajaria) os peixes numa fracção de segundo e num raio de 10 metros aparecem todos a boiar de barriga para o ar acabando ali o seu reinado.
Das minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”
Foi então aqui no abrigo de Uaque a 5-6 quilómetros de Mansoa e na estrada que ligava aquela a Bissau, um pouco depois do carreiro para Jugudul, que eu vivi das páginas mais interessantes e palpitantes de toda a minha vida na Guiné. Não por ser um sítio maravilhoso, pacífico ou acomodativo, antes pelo contrário, no que diz respeito principalmente aos dois últimos predicados, mas sobretudo pelo insólito da situação.
O abrigo, construído recentemente, em pedra ligada por uma massa espécie de barro escuro, o tal barro que os indígenas usavam na construção das suas moranças, de planta quadrada, tinha seteiras em todos os seus 4 lados o que nos dava a possibilidade de defesa em todos os ângulos. Interiormente, outro quadrado em parede, paralelo ao exterior, formando assim um corredor em quadrado de circuito fechado. Era então aqui no corredor em forma de galeria que tomávamos posições em caso de ataque inimigo. Este corredor servia de tudo: arrecadação de munições, víveres, dormitório, etc. Era a nossa casa.
As paredes do abrigo ficavam metade abaixo do nível do solo (portanto enterrado) cerca de 1,5 m. Visto do lado de fora o abrigo tinha sensivelmente aí uma altura de 1,5m também. Logo as seteiras estavam um pouco acima do nível do solo visto do exterior e à altura adequada do lado de dentro. Estávamos assim protegidos quer pela frente quer pelas costas, quer ainda por cima, pois o dito corredor estava coberto de espessa camada do mesmo material usado nas paredes ou parecido e tal como de um túnel se tratasse. Cada cama estava colocada junto a uma seteira para que a nossa reacção, em caso de ataque inimigo à noite (o mais provável), fosse a mais rápida possível. O número de camas estava dividido pelos quatro lados do abrigo.
No vão deixado pelo quadrado interior em parede, e aqui já a descoberto, ficava a cozinha ou espécie disso: 4 caibros ao alto sustinham uma cobertura em chapa de bidão (esta dava para tudo) por causa da chuva e que cobria então os tachos e as panelas que cozinhavam ao sabor das chamas da lenha, o comer da malta. Mais ao lado, uma mesa comprida de madeira e de construção rudimentar e com bancos corridos um de cada lado e em todo o comprimento da mesa, também em madeira e feitos também de forma tosca à boa maneira da tropa nos seus vinte anos.
Tudo isto dava um ar de guerra e ao jeito do far-west a que o tipicismo e a fisionomia natural da terra africana completava num enquadramento de belo significado.
A lenha que se ia apanhando um pouco por todo lado era empilhada no dito vão interior e devido à sua grande quantidade, ocupava, em alta pilha, mais de metade da área. De lenha para cozinhar estávamos bem fornecidos só que da outra lenha, era só aguardar…
Num do vértices do abrigo e do lado da ponte, portanto da estrada também, e para o lado de Mansoa, destacava-se, numa posição acima aí 1-1,5 metros do tecto do abrigo, uma guarita em jeito de pequena torre mas também de espessas paredes onde permanentemente ficava um homem, o homem que zelava pela vida dos camaradas, mantendo uma atenta vigilância e um ouvido muito apurado principalmente durante a noite: o sentinela. Este posto de sentinela era feito durante a noite normalmente por um milícia indígena.
Uma vez ao meio da noite subi para ver se ele estava tranquilo a dormir, mas não, de olho bem vivo varria com este todo o terreno circundante. Good, pensei eu.
Uma tosca mas segura escada também de madeira fazia o acesso a tal poleiro.
Ali estávamos e ali passávamos dias e dias naquele local um tanto inóspito, vivendo como ciganos acampados algures no mato.
O ambiente era de guerra pura, só guerra e sempre a guerra, pois dentro do abrigo respirava-se pólvora e só pólvora para além de um ar saturado de uma mistura de tudo. O volume do ar no abrigo não era grande e aquele também não corria. Só das seteiras é que se sentia algum ar fresco a entrar. Junte-se a isto o cheiro dos cozinhados(?), das drogas usadas para afugentar os malfadados dos mosquitos, também de alguns cheiros orgânicos, naturalmente, e assim vivíamos em ar interior muito adverso principalmente quando dormíamos. Por todo o lado, no dito túnel, só se viam cunhetes e mais cunhetes, - tropeçávamos neles - espingardas aqui e acolá, granadas de mão, de bazooka e de morteiro nem sempre bem acomodadas, um pouco de ao Deus dará.
Estávamos atolados em munições ou seja armados até aos dentes, e por aqui… O radiotelagrafista também tinha lugar ao seu posto privado. Parecia um escritório, só que depois de um terramoto.
Assim, em tais condições, julgávamos também que muito dificilmente o inimigo levaria a melhor pois estávamos numa autêntica fortaleza e o armamento que nos equipava dava-nos a maior garantia para além de contarmos com um rádio que periodicamente comunicava com Mansoa, e portanto seria fácil pedirmos reforços também. Estes podiam era demorar, estávamos conscientes disso.
A guarnição, (uma Secção reforçada) compunha-se de 10 homens: eu que era o comandante daquele destacamento, de um radiotelegrafista, de um bazookeiro na circunstância o destemido e voluntarioso Chaves que me avisou logo: - Furriel, se eles aparecerem eu vou lá para fora com a bazooka, aqui dentro não estou a fazer nada - , um homem do morteiro, respectivos municiadores e os restantes atiradores. Tínhamos lá medicamentos para as primeiras impressões: pensos, tinturas (a inevitável presença do 1214!), garrotes, ligaduras, etc. O Vizela pôs anti-alérgico na cabeça rachada de uma velha indígena! Dizendo-lhe que ia ficar boa!… e a pobre confiante e a agradecer com sorriso largo a mostrar uma cremalheira já muito desfalcada. O anti-alérgico dava para tudo, dizia ele. Os indígenas passavam por lá a socorrerem-se de qualquer ferimento mas a partir do episódio da velha, o Vizela ficou impedido de fazer curativos (conhecimentos clínicos a mais). A nossa iluminação era feita através de garrafas vazias de cerveja cheias de petróleo e uma tira de gaze a funcionar como pavio. Este era o mesmo tipo de iluminação que era usado exteriormente. Fora do abrigo havia uma cerca em arame farpado e a toda a volta daquele. Esta cerca ficava a uns 30-40 metros do abrigo. Nos dois pontos que atravessava a estrada Mansoa-Bissau, a cerca era substituída por cavalos de frisa que eram desviados sempre ao alvorecer para dar passagem à passagem eventual de viaturas e também ao pessoal indígena que fazia a sua vida necessitando de passar naquele ponto da estrada.
À noite e aquando da altura de se acenderem os exóticos candeeiros pendurados a espaços regulares na cerca, colocavam-se novamente os cavalo de frisa impedindo a passagem de pessoas ou viaturas pela estrada e garantindo assim uma protecção em todo o redor do abrigo. O arame farpado ficava assim em circuito fechado (mais ou menos).
Entre os soldados havia um que cozinhava muito bem, fazendo, e dentro dos condicionalismos existentes, uns pratos bem saborosos.
De manhã tomávamos café com leite com casqueiro, este preparado em torradas(?), principalmente quando ele ficava duro (o que era sempre). Por vezes calhava às outras refeições, frango e até leitão(!), pois os soldados metiam-se pelo mato dentro um tanto ou quanto arriscadamente, diga-se de passagem, e compravam (?) aos nativos aqui e ali a habitarem, os referidos animais.
Ainda me recordo de um belo dia em que o Barrumas saca de cada bolso do camuflado, qual ilusionista, um assustado frango. Diz-me ele orgulhoso e atirando os frangos ao ar. - Sabe quanto custou cada um, meu Furriel? Cinco coroas! - O Barrumas quando contava as façanhas dele até nem gaguejava.
Duma outra vez eis que aparece um porco (?) de focinho bastante comprido, à frente de um pequeno grupo de soldados e amarrado por uma corda e a dar bastante trabalho ao seu condutor. - Custou 30 paus, Furriel. Eles queriam um bocado mais mas fizemos-lhes ver que era 30 paus ou… de graça. Eles optaram pela primeira oferta.
Foi uma risota com o porco, pois este a dada altura soltou-se e tão cedo não deu descanso à malta, pois fugia e deambulava em todas as direcções. Foi um jogo do gato e do rato. A certa altura ele mete-se numa profunda e extensa poça de água e alguém grita: - Lá vai o nosso porco - mas qual não é o nosso espanto, que o porco nada com surpreendente destreza, atravessa o charco e volta à desenfreada correria. - Alto, temos porco outra vez - disse mais que um, de imediato. Após alguns segundos de expectativa e surpresa por o porco nadar, volta a perseguição. A nossa vingança não se fez esperar muito, pois volvidas algumas horas o porco assava numa comprida travessa de engelhado e oxidado alumínio, num improvisado mas eficiente(?) forno. O forno propriamente dito era nem mais nem menos que um bidão de chapa, outrora de óleo ou de qualquer combustível, aqui e ali meio enferrujado, embutido num pequeno combro mesmo junto ao abrigo. Este forno haveria de assar(?) muita coisa dali em diante e que nos iria saber às mil maravilhas. Talvez o cheiro ainda do óleo…
O habilidoso cozinheiro temperava aquilo cá com um jeito! Bem, também se não fosse os temperos esconderem muita coisa, muita coisa por certo ficaria por comer, apesar da fome.
De dia matávamos o tempo indo para o rio ali perto - um afluente do rio Mansoa -, cuja ponte feita com tábuas de madeira grossas e largas dispostas ao través justificava a presença do abrigo e militares ali perto. Nadávamos ou simplesmente saboreávamos da frescura proporcionada pela presença da água do rio. De vez em quando e para quebrar a rotina, levava uma granada e atirava-a à água. Breves segundos após a granada explodir apareciam à superfície diversos peixes a boiar de barriga para o ar. Coitados dos peixes, como se eles tivessem alguma coisa a ver com a guerra…
Agora me recordo de como por vezes nos arriscávamos a sermos cercados sem possibilidades de defesa, pois, se ao princípio nos preveníamos levando as G3 connosco, a partir de certa altura a malta e à boa maneira do Zé português prescindiu de tal empecilho, a ponto de estarmos ali uns poucos sem qualquer arma a acompanhar-nos. Era a tal predisposição para o comodismo e descontracção!... Coisas do diabo, e que só atentávamos nelas depois de acontecer alguma coisa. O que vale é que o inimigo não sonhava com tanto à-vontade da nossa parte e… fez o favor de nunca aparecer.
Acontece que uma vez até tremi dos pés à cabeça pois, ao chegar ao abrigo vindo do rio, verifiquei que não havia lá viv’alma pois uns fiados nos outros, deu em o abrigo ficar completamente abandonado. O abrigo até podia mudar de dono. Toda a malta estava portanto a banhos e longe do abrigo. Os que estavam mais perto era os que estavam na ponte e mesmo assim esta ficava a uma centena de metros do abrigo.
Uma imprevidência - no meio de tantas outras - que nos podia custar bem caro.
À noite, depois de jantarmos, jogávamos às cartas na grande mesa do tacho até o cansaço tomar conta de nós.
Tomávamos banho(?) com um dispositivo de chuveiro soldado a um latão e este pendurado num pau apoiado transversalmente em dois prumos também de madeira.
Enchíamos o latão numa poça de água estagnada ali ao pé - a mesma água que já tinha feito num sei quantos banhos! - pendurávamos então o latão outra vez e abríamos o dispositivo de chuveiro para a água jorrar. A água portanto era sempre a mesma (circuito fechado) e só se chovesse é que se alterava alguma coisa, e interrogava-me eu como é que nós estamos a tomar banho se a água até era cada vez mais suja. Valia pelo efeito psicológico e sabia bem a água a cair no corpo, este sempre muito acalorado. Acresce dizer que este exótico (e o que não era ali exótico?) chuveiro ficava na retaguarda do abrigo e aí a uns vinte metros afastado deste.
Bom, falta falar verdadeiramente da nossa missão ali e o porquê dum abrigo - eu diria fortaleza ou forte ou mina ou até bunker - ali instalado.
Corria o boato e ainda mais a avaliar pelos precedentes, pois já tinham sido vários os pontões por aquela zona a irem pelos ares pelas mãos dos turras neutralizando assim o trânsito de pessoas e carros e que a ponte de Uaque estava também ameaçada de destruição. Esta ponte, de grande importância na ligação Bissau-Mansoa, uma das principais artérias no norte da Guiné, com um razoável movimento de viaturas sobretudo e já se vê, militares. Este tráfego ia-se tornando cada vez mais arriscado pois a actividade terrorista na zona vinha gradualmente acentuando-se. E lembrar que eu, o Baião e o Martins aquando da nossa ida para férias na metrópole, alugamos um Volkswagen (o vulgo carocha) em Bissau a um Sargento e fizemos os três o trajecto Bissau-Mansoa e depois Mansoa-Bissau por causa de um documento qualquer que faltava - o Comandante Operacional em Mansoa até mudou de cor quando soube que tínhamos feito isto e não nos queria deixar sair de Mansoa. E eu que tinha acabado de tirar a carta militar e peguei num carro pela primeira vez…. O que vale a estrada Bissau-Mansoa era praticamente uma enorme recta. A ponte ficava e como já disse, a cerca de 5-6 quilómetros da concorridíssima Mansoa. Mansoa era muito populacional e com muito efectivo militar. Era sede de Batalhão, tinha uma Companhia operacional para além de por vezes também estarem por ali Companhias ou militares isolados em trânsito ou colunas para reabastecimento de quase todas as unidades militares no Oio: Bissorã, Cutia, Mansabá, Olossato e os diversos destacamentos: Encheia, Braia, Maqué.
Mansoa situava-se também num ponto estratégico quer geograficamente quer por estar servida de uma boa estrada para a capital Bissau e ser marginada por um dos maiores e importantes rios da Guiné: o rio Mansoa. Era também, ao que me pareceu, a porta de entrada para todo o norte da Guiné. Por aqui já se pode ver qual o interesse do inimigo em fazer ir pelos ares a ponte em Uaque. Sendo assim, havia a imperiosa necessidade de preservar a existência daquela e assim só com um efectivo militar de presença e vigilância permanente isso poderia ser garantido. A cerca de 100 metros da ponte e para o lado de Bissau e do lado esquerdo da estrada naquela direcção também, construiu-se então um seguro abrigo com um efectivo de 10-12 homens armados de Bazooka, morteiro 60 e todos com a sua G3. Como atrás disse, além de fazerem segurança à ponte, os militares ali presentes - parte deles - patrulhavam de vez em quando os terrenos limítrofes que até dava para trazer (ou pilhar?) frangos e outros animais de criação.
Para além do isolamento, pois estávamos ali como sós no mundo, nada se divisava que denunciasse a existência humana, e as privações, já se vê, eram muitas.
Tínhamos à noite a habitual rotineira e impiedosa visita de milhares de mosquitos. Uma vez o rio ali perto cuja água praticamente sem corrente - esta existia em função das marés (lembra-se que a maior parte dos rios na Guiné são extensões do mar) - e a existência de bolanhas mais ou menos alagadas a toda a volta do abrigo, tudo isto originava a proliferação de mosquitos que com a sua sede sanguinária viam ali em nós pasto a considerar. A vingança dos peixes se calhar…
À noite dava-se uma autêntica invasão e por mais que nos cuidássemos eles faziam-se sempre sentir através das suas desesperantes picadas. Ali o grande problema a seguir à guerra era a praga dos mosquitos. Uma das soluções para dormirmos sem esta indesejável companhia, era de ao deitarmo-nos agitar fortemente uma peça de roupa que estivéssemos a despir na ocasião e sem deixar de agitá-la ao mesmo tempo abríamos uma nesga do mosquiteiro até então hermeticamente fechado, e entrarmos em habilidade qual contorcionista e na máxima rapidez para dentro da cama, e logo sem demora fechar a nesga aberta. Apesar de tudo de todo o esforço e cautela, e para nossa grande arrelia não é que entravam sempre connosco 2 ou 3 daqueles clientes! Estes faziam-se ouvir logo após a nossa quietude para prepararmo-nos para dormir. Que raiva! Filhos da puta! era o que mais se ouvia aqui e ali naquelas alturas.
Havia então quem não se importasse com a presença de 2 ou 3 mosquitos no seu habitat, mas os mais impacientes não desarmavam enquanto o ambiente debaixo do mosquiteiro não ficasse limpo, e então davam-se ao trabalho de tentar liquidá-los espalmando-os entre as mãos. Quem não soubesse do que se tratava julgava que aquilo seria de malucos ou de então de algum intróito para uma peça de ópera. Bate aqui, bate acolá, era uma sinfonia de palmas quase ritmada e um pouco por todo o abrigo. Entretanto num, chegou a entrar um pirilampo que fez com que o hospedeiro dissesse: - Este filho da p… como não me via bem foi buscar uma lanterna.
Tínhamos connosco o Lion Brand, que era um produto de cor verde e em forma de espiral e que ia queimando como o morrão de um cigarro e cujo fumo era fortemente insecticida, mas isto ali pouco funcionava, a não ser deixar um cheiro pestilento naquele corredor quadrado do abrigo. Havia quem dissesse que ali o Lion Brand se calhar até os alimentava.
Colocávamos uns poucos a espaços regulares (2 metros) pendurados nas paredes interiores do abrigo mesmo junto às camas. Portanto ficavam a arder uma boa quantidade deles ao mesmo tempo. Uma unidade de Lion Brand dava em princípio para um quarto de dimensões normais e ali, colocados aos montes, parecia nada adiantar. Portanto a protecção única e válida ali, era ter o mosquiteiro muito bem fechadinho e preso por baixo do colchão e não encostar qualquer parte do corpo ao mosquiteiro pois se havia o azar de durante o sono deixar um braço ou um pé encostado ao mosquiteiro o desgraçado tinha muito que contar e coçar depois. O inimigo, na circunstância, atacava mesmo do lado de fora do mosquiteiro.
Esta guarnição esteve cerca de 3 semanas em Uaque. Acresce dizer que durante a minha estada no abrigo de Uaque nunca fomos atacados ou sequer vítimas de qualquer flagelação ou até dado por qualquer presença inimiga nas imediações. Os mosquitos é que nos davam cabo do toutiço e nos punha a tocar harpa (coça, coça) durante muito tempo.
P.S. - Hoje Uaque, ver fotos seguintes (reproduzidas com a devida vénia do site do Hotel Rural de Uaque”, tem um empreendimento turístico com base em bonitos bungalows com boa piscina e tudo. Como os tempos mudam! Neste caso para muito melhor, penso eu, e ainda bem.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4656: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (4): CCAÇ 816, Operação faísca em Cansambo
Guiné 63/74 - P4861: Cartas (Carlos Geraldes) (3): 1.ª Fase - Agosto e Setembro de 1964
1. Terceiro e último poste da 1.ª Fase - Bissau da série "Cartas" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.
1.ª Fase: Bissau
Bissau, 06 Ago. 1964
Nos últimos três dias não estivemos em Bissau. Fomos para mais uma perigosa operação.
O perigo é a minha profissão, como dizia o outro, mas acho que por aqui o perigo é ainda um bocado difícil de encontrar. Por enquanto corre tudo relativamente bem, sem sobressaltos. Esperemos que assim continue.
Nesta carta, como noutras anteriores, é evidente a preocupação de aligeirar a imagem da guerra, de mascarar a realidade, para não atormentar a família que lá longe na Metrópole, seguia angustiada as notícias que chegavam dos vários teatros da guerra colonial
Desta vez fomos para os lados de Catió e Bedanda, perto da fronteira Sul. Fomos e viemos a bordo de um contratorpedeiro, o “Vouga”. Ficámos assim a conhecer uma série de oficiais da Marinha, extraordinariamente simpáticos. Ficámos todos entusiasmados com o nível de educação, camaradagem e cultura destes indivíduos. Trataram-nos muitíssimo bem, principalmente quando no regresso do mato aparecemos todos sujos e esfarrapados. Não se pouparam a esforços, arranjando-nos banho, roupas lavadas e comidas quentes, apesar de já passarem das duas horas da madrugada.
A operação tinha o nome de código, “Broca”. Participaram, além de nós, várias Companhias de Infantaria, dois Destacamentos de Fuzileiros, dois Pelotões de Pára-quedistas, comandados por um amigo dos tempos da Universidade, o Mascarenhas. E ainda a Aviação, peças de Artilharia e, é claro, também a Marinha, com os barcos para o transporte de todo aquele pessoal.
A zona era território dominado pelo inimigo e há mais de um ano que ninguém se atrevia a ir lá. Os turras, segundo se constava, tinham até campos de treino. A missão da nossa Companhia era bater a mata a noroeste da estrada que vai para Catió e depois limpar essa estrada. Não encontrámos resistência armada limitando-nos a destruir todas as tabancas que por ali existiam e que davam o sustento necessário ao inimigo, matando todo o gado, estragando as plantações de bananeiras e fazendo prisioneiros aqueles que não fugiam e se entregavam pois, caso contrário, eram mortos pelos nossos soldados que, desta vez, se comportaram com um sangue frio extraordinário e não dispararam um único tiro a mais.
Quem na realidade defrontou propriamente o inimigo foram os fuzileiros que tiveram cinco feridos e um morto. Como resposta mataram uma quantidade de turras, apreenderam muito material e creio que por uns tempos aquela zona ficará controlada pelas nossas tropas. A estrada que tínhamos de percorrer estava toda semeada de enormes árvores abatidas e, de não passar lá ninguém, tinha capim com quase 3 metros de altura. Agora ficou totalmente desimpedida.
Estivemos naquela zona dois dias (segunda e terça) e nunca vi mato tão cerrado como aquele. Autêntica floresta virgem. De segunda para terça-feira, dormimos metidos em buracos, à chuva, comidos pelos mosquitos. Quando chegámos, às 6 horas da tarde de terça-feira, a Catió, demos um enorme suspiro de alívio. Ao tirar a mochila de cima dos ombros até me senti flutuar. Regressámos depois ao “Vouga” em lanchas de desembarque e ia enjoando pois o mar estava picado e continuava a chover. O transbordo foi uma coisa de loucos. As ondas tanto levantavam a LDM acima do convés do “Vouga” como nos precipitavam num abismo profundo quase até à quilha. Tínhamos que calcular o momento certo para saltar para bordo, arremessando primeiro as armas e as bagagens, para depois saltarmos nós próprios de qualquer maneira fechando os olhos ao perigo, numa confusão indescritível.
Chegados a Bissau às 13H30 da tarde do dia seguinte e, depois de lavados e vestidos de novo, corremos até à Baixa, para comer frangos de churrasco e beber muita cerveja. E à hora do jantar regressámos à Messe dos Oficiais para de novo encher o estômago, tal era a fome que sentíamos depois de dois dias alimentados apenas a rações de combate.
No dia seguinte convidámos os oficiais do “Vouga” para uma jantarada, numa modesta retribuição pela forma magnífica como sempre nos têm tratado. No final acabámos todos a ouvir fados. Sim, porque aqui também se ouvem fados e dos mais castiços.
Juntou-se um grupo de sargentos e alferes, mais ou menos todos de Lisboa e foi uma noite de fados em cheio, até às cinco da madrugada a beber vinho e a comer anchovas (à falta de melhor) com queijo e pão. Garanto que ninguém ficou bêbado, mas fiquei um pouco farto de fados…
Os da Marinha gostaram tanto do convívio que agora são eles que nos querem convidar para bordo do “Vouga” para outra confraternização.
Se entrássemos nesse ritmo o resto da comissão até que nem seria nada desagradável. Mas em Dezembro já se vão embora, deixando estes mares.
Bissau, 22 de Ago.1964
A operação “Crato” demorou dois dias, 18 e 19 de Agosto. Choveu forte e sem parar.
Embarcámos na madrugada de terça-feira, às 04H00 num barquito de guerra que atravessou o rio Geba para sul e nos foi colocar na outra margem junto à região de Tite (acima de Bolama), zona de forte implantação dos turras, apesar de estar assim tão perto de Bissau. Às 06H00 e às 07H00 desembarcaram primeiro os fuzileiros enquanto do navio metralhavam a margem com balas tracejantes (era bonito, parecia fogo de artifício). Por volta das 08H00 desembarcámos nós na praia, tal como os aliados fizeram no dia D, na Normandia, com água pela cintura e com os pés a enterrarem-se no lodo. Mal chegávamos a terra firme, dispersávamos e corríamos a abrigarmo-nos atrás das árvores e nas depressões do terreno mais propícias. Mas não houve novidade alguma, pois também lá não havia os terroristas que, segundo as Informações, era costume estarem sempre por ali alvejando qualquer embarcação que se aproximasse. O local chama-se Jabadá (Mafra no código da operação) e forma nessa zona uma espécie de promontório conhecido precisamente por Ponta de Jabadá.
Começamos então a penetrar para o interior, em manobra conjunta com mais quatro Companhias que vinham de sul e, com dois destacamentos de fuzileiros (o equivalente a duas Companhias de Infantaria) que progrediam paralelamente a nós. Por volta das 04H00 da tarde chegámos à tabanca que era o nosso primeiro objectivo, pois era lá que supostamente se refugiava um antigo grupo de turras. Fizemos o envolvimento (a mim calhou-me o lado esquerdo) e, depois de termos disparado dois ou três tiros de bazooka como medida dissuasora, avançámos em pequenos grupos isolados. Mas não havia ninguém em toda a aldeia, tudo deserto, apenas porcos e galinhas que esvoaçavam assustadas. Cabras presas a estacas berravam desalmadamente. Os soldados atravessaram rapidamente as leiras à volta das palhotas, derrubando as cercas para mais facilmente poderem passar. Houve ainda quem chegasse a ser atacado por um enxame de abelhas, deixado ali, talvez de propósito, mas conseguiram evitá-las a tempo.
Não se tocou em nada e atravessando a aldeia chegámos a um descampado mesmo na margem da bolanha onde resolvemos acampar para passar a noite que se aproximava rapidamente (às 18 horas já é escuro). Formámos um círculo, aí com cem ou cento e cinquenta metros de diâmetro, e preparámo-nos para ali nos acomodarmos o melhor possível. Eu, o capitão e quase todo o grupo de comando reunimo-nos no centro, junto de uma árvore bem grossa. Escusado será dizer que estávamos ainda todos encharcados e não podíamos alimentar esperanças de secar a roupa durante a noite, pois a chuva continuava a cair.
Foi a maior noite da minha vida.
Cansados e cheios de frio, mesmo assim, quando já cabeceávamos de sono, os malditos mosquitos não nos deixavam dormir atacando-nos como loucos furiosos, entrando pelos ouvidos, nariz e boca! Nessa noite ninguém dormiu. E quase ia havendo uma desgraça, pois uma manada de vacas que por ali andava à solta, resolveu passar por cima de nós, procurando certamente o habitual local onde se recolhia à noite nas cercanias da aldeia. Inacreditavelmente ninguém entrou em pânico e eu lá andei a fazer de cow-boy à força (sem cavalo) a assobiar baixinho para encaminhar as vacas o melhor que podia para fora do nosso acampamento. Houve ainda quem não resistisse a efectuar alguns tiros à toa, pretendendo ver alguns vultos suspeitos a rondar as palhotas. Provavelmente alguém que, a coberto da noite se arriscava a regressar à aldeia para recolher algumas coisas que não tinha podido levar na precipitação da fuga que, com certeza, antecedera a nossa chegada.
De manhã foi a destruição total da tabanca, deitando-se fogo a tudo, cortando as bananeiras e abatendo as perto de cem vacas, a tiro de G-3. As cabras e os porcos eram mortos mesmo à cacetada.
O resto do dia foi preenchido com o percurso de regresso ao ponto de partida. Encontrámos as Companhias que vieram do Sul e fez-se então uma grande batida a toda aquela zona. Soubemos depois que os nativos daquela região tinham ido entregar-se à protecção da guarnição de Tite, prometendo não auxiliar mais os bandidos, como eles chamam aos turras, tal o medo que esta concentração de tropas lhes causou.
O reembarque nas LDM’s é que foi demoradamente trágico, com toda a gente impaciente por regressar, mas sem encontrar maneira de sair dali. A maré tinha subido de tal modo, que só podíamos alcançar as lanchas com água pelo pescoço, pois as margens cobertas pela densa vegetação do mangal não permitiam a suficiente aproximação. Alguns de nós tiveram mesmo de ir a nado.
E chovia sempre sem parar.
Regressámos a Bissau às 18H30 de quarta-feira, cansadíssimos (mais do que da outra vez), apesar de a operação ter durado menos tempo e ter tido menos perigos que as anteriores.
Tomei banho e o sabão até custava a fazer espuma. Jantei mesmo sem fazer a barba e caí na cama como um pedregulho de meia tonelada.
Bissau, 27 Ago. 1964
São nove horas da noite e vou ainda aproveitar para vos escrever, pois amanhã de manhã fecham as malas do Correio.
Já passaram quase quatro meses.
Sei que dentro em pouco direi que já passaram seis, depois dez… e, finalmente começarei a contar os meses que faltarão.
A guerra continua na mesma, fria e tensa. Não acredito que tenha alguma coisa de comum comigo. Apenas sei que a experiência que estou a viver será útil talvez para quando for velho ter muitas histórias de aventuras e guerreiros antigos para contar aos meus netos se os chegar a ter.
Ando um bocado falho de memória. Talvez seja da humidade que fez criar bolor no meu cérebro. Sabiam que aqui a percentagem de humidade do ar ronda os 96%?
As chuvas caem agora com mais intensidade e sempre que saio para o mato é rara a vez que não regresso todo encharcado, da cabeça aos pés. Mas mesmo assim, ainda não me constipei.
Bissau, 08 Set. 1964
Na tarde de quarta-feira partimos para mais uma operação. Esta chamava-se operação "Dedal" e dela só regressámos no domingo seguinte no final do dia. Vim todo picado pelos mosquitos e tive de tomar dois comprimidos para a comichão que me fizeram muito sono.
A operação realizou-se de novo na outra margem do rio Gêba, mas agora mais para o interior, numa península defronte de Porto Gole. Como de costume, foram connosco várias Companhias. A missão consistia em fazer uma batida a mais completa possível naquela zona, destruir todas as povoações e tentar capturar o maior número de elementos inimigos e material que encontrássemos. Tínhamos uma lista com mais de cinquenta nomes que, caso fossem feitos prisioneiros, nem era preciso interrogar, podiam ser logo abatidos ali mesmo no local.
Desta vez a minha Companhia dividiu-se e cada Pelotão (ou Grupo de Combate, como lhe chamam agora, por ter mais uma Secção de armas pesadas, com um morteiro de 60 mm e uma bazooka do tempo da Maria-Caxuxa) progredia sozinho por sua conta e risco. A mim calhou-me a ala direita e tive mais sorte que os outros, pois desloquei-me muito menos e passei quase dois dias inteiros estacionado num local perto da margem do rio para impedir a fuga daqueles que, querendo escapar às nossas tropas, procurariam refúgio mais a Sul. A noite de quarta para quinta-feira foi dormida a bordo do navio que nos transportou. Desembarcámos às 09H00 da manhã de quinta-feira e logo depois cada qual foi para seu lado.
A primeira povoação que encontrámos estava abandonada, pois já nos tinham pressentido na noite anterior e tinham fugido. Queimámos tudo e matámos todo o gado que havia. Mais adiante encontrámos duas cabanas escondidas numa zona de mato mais cerrado e com indícios de servir para ponto de reunião ou para aquartelamento de algum pequeno grupo armado. Numa delas estava uma granada de mão colocada tão à vista que deu logo para desconfiar. Mandei que todos se afastassem e disse ao furriel especialista em minas e armadilhas que fosse investigar. Era de facto uma armadilha um pouco tosca mas para a qual teríamos de tomar muita atenção, pois a cavilha de segurança da granada estava presa a um fio que no outro extremo ia prender-se a um tronco espetado no chão da cabana. Assim se qualquer um de nós descuidadamente a agarrasse e levantasse do chão ela rebentaria imediatamente causando-nos graves danos certamente. Com o credo na boca rebuscámos tudo, o mais cuidadosamente possível e encontrámos, nas redondezas, uma caixa de madeira com mais de duzentas munições variadas e ainda três granadas de tipo desconhecido. Na caixa estavam pintadas várias palavras e indicações que pareciam ser russas ou checas.
Com a febril sensação de quem está na pista da arca do tesouro dali para a frente esquadrinhámos palmo a palmo toda a mata à medida que progredíamos. Mas com muito pouco proveito com grande pena nossa. Só mais à frente, noutra povoação abandonada, é que se encontrou uma velha carabina de carregar pela boca, o vulgar canhangulo deitado fora por alguém que não se queria comprometer, pela certa.
Quando chegou a noite (de quinta para sexta-feira) preparámo-nos para dormir uma noite mais descansada, na orla da mata que limitava a imensa bolanha que tínhamos vindo a rodear. No meio da escuridão tentando não dar a perceber a nossa presença, improvisámos o melhor que podíamos os locais para passar a noite. Mas um dos soldados, inadvertidamente, encostou-se a um pequeno montículo julgando ter achado ali um óptimo travesseiro mas que mais não era do que um morro de bagabaga, formigueiro repleto de furiosos insectos que, perante o perigo iminente de uma invasão por um ser estranho, atacaram inesperadamente o intruso com todas as forças das suas mandíbulas. Quando todos nós já deslizávamos nas asas de Morfeu, acordámos de repente com uma barafunda e uma gritaria tais que mais parecia que o acampamento tinha sido atacado por inimigos sanguinários que a coberto da escuridão nos queriam degolar.
Quando consegui vislumbrar com a pouca luz que o reflexo da bolanha deixava chegar até nós, o corpo do soldado que desesperadamente se esfregava no chão arrancando toda a roupa para se poder ver livre daqueles furiosos insectos, não sabia se havia de rir ou ter um ataque de fúria perante aquela cena caricata que deitava abaixo todas as medidas de segurança que procurámos ter para não denunciarmos a nossa presença. Com vontade de lhe partir a cabeça à coronhada para o fazer calar, mesmo assim lá consegui acalmar os ânimos e aos poucos restabeleceu-se o silêncio. Dali para a frente a sorte estava lançada, só poderíamos beneficiar dela se o inimigo assim o permitisse.
Mais ninguém conseguiu voltar a dormir naquela noite, esquadrinhando as sombras reflectidas nas águas da bolanha, com medo de tudo e de nada.
Na manhã seguinte continuámos a progressão conforme estava planeado e no meio de um caminho largo e com aspecto de ser muito movimentado deparámos com uma pistola de fabrico checo ainda com quatro balas no carregador. Certamente mais uma que foi abandonada na precipitação da fuga. Foi talvez o nosso mais valioso achado, a que o capitão chamou logo seu…
Continuando sempre em ligação rádio com o comando da Companhia, acabei por me instalar num sítio à margem do rio Corubal (um afluente do Gêba), local onde aguardei até ao reembarque no domingo de manhã. Fiquei ali, portanto, também a proteger a retirada. Como não dormia há duas noites já adormecia de pé, encostado às árvores. Mas nessa noite dormi bem, pois até tivemos tempo para fazer camas com troncos cruzados, cobertos de capim e, com as capas impermeáveis (que desta vez não nos esquecêramos de levar) improvisar uns toldos para nos abrigar da chuva. Fizemos fogueiras e assámos galinhas que, temperadas com os caldos das sopas instantâneas das rações de combate, ficaram uma delícia. Os mosquitos, miraculosamente, resolveram não aparecer nessa noite e dormimos regaladamente, sem nos lembrarmos do inimigo, como se estivéssemos no Paraíso.
O sábado passou-se ali, parados sempre no mesmo sítio, enquanto aqueles que tinham ido pelo lado esquerdo, faziam batidas ao Norte para empurrarem os turras, se os houvesse, para o nosso lado. Felizmente não demos pela presença de ninguém. Eu, também, tinha sempre o cuidado de mandar acender fogueiras para lhes assinalar a nossa presença e lhes dizer que era escusado virem por este lado…
Parece que me perceberam e não tive qualquer problema.
Os restantes pelotões foram chegando nos dias seguintes mais ou menos estafados e com mil histórias para contar, mas também de mãos a abanar. Apenas o último, encontrou uma Mauser e algumas munições diversas. E como também tinham encontrado, num acampamento abandonado, um grande barracão coberto de folhas de zinco, aproveitaram e carregaram esse material que ainda estava em bom estado, depois de destruírem todo o resto. Foi uma sensação curiosa e ao mesmo tempo hilariante, vê-los chegar, em fila indiana, carregando, cada soldado, uma folha de zinco à cabeça, como laboriosas formiguinhas a acartar mantimentos para o ninho.
Este último dia foi porém o mais movimentado e atrapalhado de todos.
Como de costume, pela manhã chegou a LDM dos fuzileiros que trazia de Bissau os abastecimentos. O oficial que a comandava, o Tenente Silva, meu conhecido de anteriores passeios náuticos, veio logo ter comigo todo entusiasmado com uma ideia que tinha tido. Pouco antes de atracar avistara umas vacas a vaguear junto à margem, bem perto dali.
E a ideia era a seguinte: se pudesse meter algumas daquelas vacas dentro da LDM, podia levá-las para Bissau, onde, vendidas para a Messe, dariam de certeza bom lucro. Só que precisava que eu lhe emprestasse alguns homens, dois no mínimo, para o ajudar a metê-las dentro da LDM.
Embora eu estivesse alertado para não me movimentar fora das áreas que me estavam estipuladas no plano de acção, ingenuamente acreditei que nada de mal poderia acontecer e cedi dois homens que se ofereceram como voluntários, o José Figueiredo, de alcunha o Braga-1 e o Alberto Carlos, o Braga-2.
Só que, como sempre acontece, o que pode correr mal, acaba sempre por correr mal.
Quando a LDM encostou no local onde tinham sido vistas as vacas, em vez de vacas, do meio do capim, levantaram-se de súbito dois supostos turras que desataram a fugir. Os nossos bravos soldadinhos vão logo a correr atrás deles, como loucos. Acontece que por acaso, estava mesmo a passar por ali um avião T6 que patrulhava a zona e detectou um movimento no solo que lhe pareceu suspeito. Tendo rapidamente entrado em contacto com a base, certificou-se que naquela zona não era previsto estar a nossa tropa, portanto só poderia ser o inimigo e, sem hesitar dispara dois rockets sobre o alvo.
Resultado: o inimigo desapareceu como fumo, deixando os meus dois soldados deitados no capim a gemer, feridos com estilhaços nas pernas.
Guardei sempre em meu poder uma cópia do relatório oficial desta operação que se tornou de bastante utilidade quando, muitos anos mais tarde, um desses soldados se lembrou de requerer do Exército uma pensão por ferimentos em combate. O que só conseguiu graças à existência daquele documento, única prova que restou para comprovar o acontecido. Nem no hospital de Bissau havia qualquer registo. Bom e, no relatório também não apareciam as vacas, felizmente
Depois foi a grande confusão. O capitão da nossa Companhia, alertado pela rádio, não sabia de nada e não compreendia como é que poderiam estar soldados dele naquela zona. Todos berravam, pedindo socorro para os feridos, os altos comandos exigiam relatórios e toda a gente julgava estar a ser submetida a uma grande ofensiva inimiga, indignada também pela incompetência da aviação que não sabia distinguir as nossas tropas, do IN.
Mas só eu e o oficial da Marinha sabíamos o que de facto se tinha passado por causa de duas vacas.
Quando as coisas se acalmaram e os feridos foram levados finalmente para o hospital de Bissau, ainda conseguimos esboçar um sorriso de alívio depois de tamanho susto. Os feridos não tinham sido atingidos com gravidade e o pior foi-se esvanecendo.
Mas o capitão preveniu-me logo: os altos comandos nunca poderiam vir a saber a verdade senão a confusão iria ser muito pior.
Desde aí, entre mim e o Tenente Silva, estabeleceu-se uma longa amizade, nascida de uma cumplicidade num delito, embora fortuito, do qual nos sentíamos igualmente culpados, sem no entanto sabermos quem era o mais culpado dos dois.
Apesar de pertencermos a ramos diferentes das Forças Armadas e, na Guiné nunca mais nos termos encontrado, mantivemos contacto por escrito durante largos anos, até que lhe perdi o rasto depois dele ter emigrado para França
Falta ainda referir que, na noite anterior, os fuzileiros tinham feito uma emboscada na outra margem do rio Corubal e tinham apanhado uma metralhadora pesada, duas metralhadoras ligeiras, várias espingardas e pistolas. Parece que um grupo terrorista, pressentindo que havia barcos no rio, passou de Uána Porto para a outra margem para os flagelar de mais perto. Mas foram cair direitinhos na armadilha que os fuzileiros tinham armado.
Chegados a Bissau, no domingo à tarde, talvez até por isso, estava o cais cheio de gente para nos ver chegar. Foi um espectáculo inédito (quase surrealista) apreciar o nosso desfile que mais parecia uma parada de vagabundos sujos e famintos, sem qualquer ponta de brio militar. Mas até o Brigadeiro, Comandante Militar, apareceu para nos cumprimentar! Tudo fogo-de-vista, claro, para encher os olhos do Zé Pagode, pois no dia seguinte, surgiram no nosso aquartelamento uns capitães de outras unidades dizendo que tinham ordens para levar as tais chapas de zinco. Refilámos de tal maneira que foram constrangidos a retirar ordeiramente.
Existem sempre os eternos figurões que aproveitam todas as oportunidades para tentar enfiar o barrete ao próximo. Então aqui na tropa é demais. É ver quem mais se pode aproveitar.
O tempo continua de chuva, embora sejam só aguaceiros espaçados.
É a altura dos tornados que provocam quase sempre estragos no porto de mar, afundando umas lanchas e avariando outras.
Comprei um rádio a pilhas. É um Sony com ondas médias e curtas que, por 1.450$00, me vai ajudar a passar o tempo entre as guerras.
Bissau, 15 Set.1964
Não tenho saído para o mato pois o Cardoso é que o tem feito, com o meu Pelotão. Coisas do nosso Capitão que, é para o Cardoso se ir treinando…
Só no outro dia é que saí para ir prender, por ordem do Administrador do Concelho de Bissau, um sujeito que seria um agente terrorista, escondido aqui numa tabanca perto. Creio que a tarefa dele era angariar adeptos e depois enviá-los para o mato.
Meteu-me pena, pois ele não nos esperava, quando entrámos rapidamente pela aldeia dentro. Ficou a tremer e só teve tempo de gaguejar qualquer coisa que, creio ter sido uma despedida para os outros.
Como vêem até isto nos obrigam a fazer, papéis de Pide! Não tive dificuldade nenhuma com ele, pois nem reagiu. E fui eu lá, com um jeep e uma camioneta carregada com 14 homens armados para trazermos mais um borrego para a matança! Geralmente são raros que sobrevivem aos interrogatórios. É sempre a teoria do mais um, menos um…
Só queria ver isto acabado!
Bissau, 23 Set. 1964
Chegámos no “Vouga”, ontem à noite. Tudo ainda me parece um pesadelo que desejaria não ter vivido. A operação “Tornado”, como se chamava, foi terrível. A região era a pior que já vi, toda semeada de bolhanhas, completamente alagada pela chuva que tem caído incessantemente. Não era terra nem água mas sim uma enorme região mergulhada em lama líquida. Uma lama viscosa que, nos prendia como tenazes. Quando algum de nós mergulhava até à cintura, eram precisos três a puxá-lo para ao fim de muitos esforços o arrancarem de lá sem botas e com as calças em farrapos.
Localização: zona Sul, entre Cacine e a fronteira com a República da Guiné.
Saímos daqui no nosso habitual contratorpedeiro “Vouga”. É o único navio grande que está cá, tendo chegado agora um outro que, o vem substituir, a fragata “Diogo Gomes”.
Chegámos diante da famigerada Ilha de Como, ao fim da tarde. Pelas nove da noite passámos para lanchas de desembarque. O Carvalho na mais pequena, a LDP 101 e eu e o Castro, o capitão e o grupo de comando da Companhia, na maior a LDM 202.
Subimos o rio Cumbijã e desembarcámos finalmente em terra, pelas seis da manhã do dia seguinte. Se é que aquilo se podia chamar terra. Era só água, lodo e o entrelaçado dos ramos do mangal que delimitava as margens. Atravessada essa primeira barreira, estendia-se à nossa frente um enorme arrozal, tendo como pano de fundo um formidável maciço de palmeiras e mato cerrado. Dispersámo-nos o mais possível e fomos avançando com todas as cautelas.
Desta vez foram alguns grupos pequenos que nos atacaram com tiros inofensivos, fugindo sempre quando tentávamos apanhá-los.
Já a uns 200 metros da mata ouvimos as primeiras rajadas de pistola-metralhadora, de um grupo de cinco ou seis que deviam estar empoleirados no cimo das palmeiras. Sempre o mais abaixados possível e fazendo fogo de vez em quando, para nos protegermos, lá nos fomos aproximando cada vez mais. Mandámos duas ou três granadas de morteiro e uma rebentou mesmo na orla das árvores. Após meia hora de tiroteio e vendo talvez que a nossa manobra de envolvimento os pudesse vir a dominar, fugiram e nunca mais ouvimos as famosas rajadas de pistola-metralhadora, a tão característica PPSH, a costureira, pois faz um matraquear que lembra uma máquina de costura.
Depois deste primeiro incidente, continuámos a progressão atravessando a mata até encontrarmos uma estrada. Uns metros mais à frente fomos novamente alvejados por vários tiros que nem soubemos de onde vieram. Ninguém ficou ferido mas como não respondemos, tornaram a fugir, deixando-nos o caminho livre. A táctica deles foi sempre a de utilizar grupos pequenos de 5 ou 7 que, rapidamente se deslocam para qualquer lado, flagelando e fazendo parar Companhias inteiras. Como não os conseguimos ver, fogem sempre que lhes apetece. São extraordinariamente ágeis, pois por duas vezes, dois grupos deles (alguns até já usam farda camuflada) iam tropeçando nas nossas posições, mas logo que davam por isso, desapareciam com tal rapidez que pareciam eclipsar-se. Mesmo assim creio que matámos alguns.
Esta operação durou três dias, sábado, domingo e segunda-feira. O último dia foi o pior, pois choveu sempre, ininterruptamente. Actuaram mais de 900 homens e a missão que nos coube consistia em formar uma linha de cerco à volta de uma mata onde se acoitava o inimigo. Ali parados, enrolados nas capas impermeáveis que nos abrigavam da chuva que não parava de cair, por volta do meio-dia já tiritávamos de frio. Mas o pior, o que mais custou, foi o lodo e os pântanos intermináveis que tivemos de atravessar, sem qualquer esperança de amparo, sem qualquer protecção, receando a morte que nunca se faz anunciar.
Como consolo valeu-nos a habitual e sempre simpática recepção que tivemos no regresso, quando embarcámos no “Vouga”, por parte dos nossos já conhecidos companheiros destas lutas, os oficiais, os sargentos e os marinheiros daquele barco de guerra.
Tendo regressado na terça-feira à noite, bastante cansado, isso não me impediu no entanto de, após um rápido banho, fazer a barba e vestir a roupa civil, ir com os outros a um restaurante da cidade, o “Tropical”, comer a tradicional omeleta de camarão, o bife com batatas fritas e um ovo estrelado, tudo regado com a bela cerveja Sagres com que todos, Exército e Marinha, nos habituámos a confraternizar, cimentando amizades, tentando esquecer os horrores e os malefícios desta guerra.
Desta vez, quando caí na cama, parecia o rochedo de Gibraltar desabando no mar.
Descansámos dois dias, de licença e, só hoje é que fui ao Quartel ver como é que paravam as modas…
Comprei uns chinelos para a mãe e já os mandei pelo Correio. Oxalá goste! Ultimamente tem havido muita falta de aviões, de maneira que não sei quando é que receberão a encomenda.
__________
Nota de CV:
Vd. postes da série Cartas de:
14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo
e
21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4848: Cartas (Carlos Geraldes) (2): 1.ª Fase - Maio a Julho de 1964
1.ª Fase: Bissau
Bissau, 06 Ago. 1964
Nos últimos três dias não estivemos em Bissau. Fomos para mais uma perigosa operação.
O perigo é a minha profissão, como dizia o outro, mas acho que por aqui o perigo é ainda um bocado difícil de encontrar. Por enquanto corre tudo relativamente bem, sem sobressaltos. Esperemos que assim continue.
Nesta carta, como noutras anteriores, é evidente a preocupação de aligeirar a imagem da guerra, de mascarar a realidade, para não atormentar a família que lá longe na Metrópole, seguia angustiada as notícias que chegavam dos vários teatros da guerra colonial
Desta vez fomos para os lados de Catió e Bedanda, perto da fronteira Sul. Fomos e viemos a bordo de um contratorpedeiro, o “Vouga”. Ficámos assim a conhecer uma série de oficiais da Marinha, extraordinariamente simpáticos. Ficámos todos entusiasmados com o nível de educação, camaradagem e cultura destes indivíduos. Trataram-nos muitíssimo bem, principalmente quando no regresso do mato aparecemos todos sujos e esfarrapados. Não se pouparam a esforços, arranjando-nos banho, roupas lavadas e comidas quentes, apesar de já passarem das duas horas da madrugada.
A operação tinha o nome de código, “Broca”. Participaram, além de nós, várias Companhias de Infantaria, dois Destacamentos de Fuzileiros, dois Pelotões de Pára-quedistas, comandados por um amigo dos tempos da Universidade, o Mascarenhas. E ainda a Aviação, peças de Artilharia e, é claro, também a Marinha, com os barcos para o transporte de todo aquele pessoal.
A zona era território dominado pelo inimigo e há mais de um ano que ninguém se atrevia a ir lá. Os turras, segundo se constava, tinham até campos de treino. A missão da nossa Companhia era bater a mata a noroeste da estrada que vai para Catió e depois limpar essa estrada. Não encontrámos resistência armada limitando-nos a destruir todas as tabancas que por ali existiam e que davam o sustento necessário ao inimigo, matando todo o gado, estragando as plantações de bananeiras e fazendo prisioneiros aqueles que não fugiam e se entregavam pois, caso contrário, eram mortos pelos nossos soldados que, desta vez, se comportaram com um sangue frio extraordinário e não dispararam um único tiro a mais.
Quem na realidade defrontou propriamente o inimigo foram os fuzileiros que tiveram cinco feridos e um morto. Como resposta mataram uma quantidade de turras, apreenderam muito material e creio que por uns tempos aquela zona ficará controlada pelas nossas tropas. A estrada que tínhamos de percorrer estava toda semeada de enormes árvores abatidas e, de não passar lá ninguém, tinha capim com quase 3 metros de altura. Agora ficou totalmente desimpedida.
Estivemos naquela zona dois dias (segunda e terça) e nunca vi mato tão cerrado como aquele. Autêntica floresta virgem. De segunda para terça-feira, dormimos metidos em buracos, à chuva, comidos pelos mosquitos. Quando chegámos, às 6 horas da tarde de terça-feira, a Catió, demos um enorme suspiro de alívio. Ao tirar a mochila de cima dos ombros até me senti flutuar. Regressámos depois ao “Vouga” em lanchas de desembarque e ia enjoando pois o mar estava picado e continuava a chover. O transbordo foi uma coisa de loucos. As ondas tanto levantavam a LDM acima do convés do “Vouga” como nos precipitavam num abismo profundo quase até à quilha. Tínhamos que calcular o momento certo para saltar para bordo, arremessando primeiro as armas e as bagagens, para depois saltarmos nós próprios de qualquer maneira fechando os olhos ao perigo, numa confusão indescritível.
Chegados a Bissau às 13H30 da tarde do dia seguinte e, depois de lavados e vestidos de novo, corremos até à Baixa, para comer frangos de churrasco e beber muita cerveja. E à hora do jantar regressámos à Messe dos Oficiais para de novo encher o estômago, tal era a fome que sentíamos depois de dois dias alimentados apenas a rações de combate.
No dia seguinte convidámos os oficiais do “Vouga” para uma jantarada, numa modesta retribuição pela forma magnífica como sempre nos têm tratado. No final acabámos todos a ouvir fados. Sim, porque aqui também se ouvem fados e dos mais castiços.
Juntou-se um grupo de sargentos e alferes, mais ou menos todos de Lisboa e foi uma noite de fados em cheio, até às cinco da madrugada a beber vinho e a comer anchovas (à falta de melhor) com queijo e pão. Garanto que ninguém ficou bêbado, mas fiquei um pouco farto de fados…
Os da Marinha gostaram tanto do convívio que agora são eles que nos querem convidar para bordo do “Vouga” para outra confraternização.
Se entrássemos nesse ritmo o resto da comissão até que nem seria nada desagradável. Mas em Dezembro já se vão embora, deixando estes mares.
Bissau, 22 de Ago.1964
A operação “Crato” demorou dois dias, 18 e 19 de Agosto. Choveu forte e sem parar.
Embarcámos na madrugada de terça-feira, às 04H00 num barquito de guerra que atravessou o rio Geba para sul e nos foi colocar na outra margem junto à região de Tite (acima de Bolama), zona de forte implantação dos turras, apesar de estar assim tão perto de Bissau. Às 06H00 e às 07H00 desembarcaram primeiro os fuzileiros enquanto do navio metralhavam a margem com balas tracejantes (era bonito, parecia fogo de artifício). Por volta das 08H00 desembarcámos nós na praia, tal como os aliados fizeram no dia D, na Normandia, com água pela cintura e com os pés a enterrarem-se no lodo. Mal chegávamos a terra firme, dispersávamos e corríamos a abrigarmo-nos atrás das árvores e nas depressões do terreno mais propícias. Mas não houve novidade alguma, pois também lá não havia os terroristas que, segundo as Informações, era costume estarem sempre por ali alvejando qualquer embarcação que se aproximasse. O local chama-se Jabadá (Mafra no código da operação) e forma nessa zona uma espécie de promontório conhecido precisamente por Ponta de Jabadá.
Começamos então a penetrar para o interior, em manobra conjunta com mais quatro Companhias que vinham de sul e, com dois destacamentos de fuzileiros (o equivalente a duas Companhias de Infantaria) que progrediam paralelamente a nós. Por volta das 04H00 da tarde chegámos à tabanca que era o nosso primeiro objectivo, pois era lá que supostamente se refugiava um antigo grupo de turras. Fizemos o envolvimento (a mim calhou-me o lado esquerdo) e, depois de termos disparado dois ou três tiros de bazooka como medida dissuasora, avançámos em pequenos grupos isolados. Mas não havia ninguém em toda a aldeia, tudo deserto, apenas porcos e galinhas que esvoaçavam assustadas. Cabras presas a estacas berravam desalmadamente. Os soldados atravessaram rapidamente as leiras à volta das palhotas, derrubando as cercas para mais facilmente poderem passar. Houve ainda quem chegasse a ser atacado por um enxame de abelhas, deixado ali, talvez de propósito, mas conseguiram evitá-las a tempo.
Não se tocou em nada e atravessando a aldeia chegámos a um descampado mesmo na margem da bolanha onde resolvemos acampar para passar a noite que se aproximava rapidamente (às 18 horas já é escuro). Formámos um círculo, aí com cem ou cento e cinquenta metros de diâmetro, e preparámo-nos para ali nos acomodarmos o melhor possível. Eu, o capitão e quase todo o grupo de comando reunimo-nos no centro, junto de uma árvore bem grossa. Escusado será dizer que estávamos ainda todos encharcados e não podíamos alimentar esperanças de secar a roupa durante a noite, pois a chuva continuava a cair.
Foi a maior noite da minha vida.
Cansados e cheios de frio, mesmo assim, quando já cabeceávamos de sono, os malditos mosquitos não nos deixavam dormir atacando-nos como loucos furiosos, entrando pelos ouvidos, nariz e boca! Nessa noite ninguém dormiu. E quase ia havendo uma desgraça, pois uma manada de vacas que por ali andava à solta, resolveu passar por cima de nós, procurando certamente o habitual local onde se recolhia à noite nas cercanias da aldeia. Inacreditavelmente ninguém entrou em pânico e eu lá andei a fazer de cow-boy à força (sem cavalo) a assobiar baixinho para encaminhar as vacas o melhor que podia para fora do nosso acampamento. Houve ainda quem não resistisse a efectuar alguns tiros à toa, pretendendo ver alguns vultos suspeitos a rondar as palhotas. Provavelmente alguém que, a coberto da noite se arriscava a regressar à aldeia para recolher algumas coisas que não tinha podido levar na precipitação da fuga que, com certeza, antecedera a nossa chegada.
De manhã foi a destruição total da tabanca, deitando-se fogo a tudo, cortando as bananeiras e abatendo as perto de cem vacas, a tiro de G-3. As cabras e os porcos eram mortos mesmo à cacetada.
O resto do dia foi preenchido com o percurso de regresso ao ponto de partida. Encontrámos as Companhias que vieram do Sul e fez-se então uma grande batida a toda aquela zona. Soubemos depois que os nativos daquela região tinham ido entregar-se à protecção da guarnição de Tite, prometendo não auxiliar mais os bandidos, como eles chamam aos turras, tal o medo que esta concentração de tropas lhes causou.
O reembarque nas LDM’s é que foi demoradamente trágico, com toda a gente impaciente por regressar, mas sem encontrar maneira de sair dali. A maré tinha subido de tal modo, que só podíamos alcançar as lanchas com água pelo pescoço, pois as margens cobertas pela densa vegetação do mangal não permitiam a suficiente aproximação. Alguns de nós tiveram mesmo de ir a nado.
E chovia sempre sem parar.
Regressámos a Bissau às 18H30 de quarta-feira, cansadíssimos (mais do que da outra vez), apesar de a operação ter durado menos tempo e ter tido menos perigos que as anteriores.
Tomei banho e o sabão até custava a fazer espuma. Jantei mesmo sem fazer a barba e caí na cama como um pedregulho de meia tonelada.
Bissau, 27 Ago. 1964
São nove horas da noite e vou ainda aproveitar para vos escrever, pois amanhã de manhã fecham as malas do Correio.
Já passaram quase quatro meses.
Sei que dentro em pouco direi que já passaram seis, depois dez… e, finalmente começarei a contar os meses que faltarão.
A guerra continua na mesma, fria e tensa. Não acredito que tenha alguma coisa de comum comigo. Apenas sei que a experiência que estou a viver será útil talvez para quando for velho ter muitas histórias de aventuras e guerreiros antigos para contar aos meus netos se os chegar a ter.
Ando um bocado falho de memória. Talvez seja da humidade que fez criar bolor no meu cérebro. Sabiam que aqui a percentagem de humidade do ar ronda os 96%?
As chuvas caem agora com mais intensidade e sempre que saio para o mato é rara a vez que não regresso todo encharcado, da cabeça aos pés. Mas mesmo assim, ainda não me constipei.
Bissau, 08 Set. 1964
Na tarde de quarta-feira partimos para mais uma operação. Esta chamava-se operação "Dedal" e dela só regressámos no domingo seguinte no final do dia. Vim todo picado pelos mosquitos e tive de tomar dois comprimidos para a comichão que me fizeram muito sono.
A operação realizou-se de novo na outra margem do rio Gêba, mas agora mais para o interior, numa península defronte de Porto Gole. Como de costume, foram connosco várias Companhias. A missão consistia em fazer uma batida a mais completa possível naquela zona, destruir todas as povoações e tentar capturar o maior número de elementos inimigos e material que encontrássemos. Tínhamos uma lista com mais de cinquenta nomes que, caso fossem feitos prisioneiros, nem era preciso interrogar, podiam ser logo abatidos ali mesmo no local.
Desta vez a minha Companhia dividiu-se e cada Pelotão (ou Grupo de Combate, como lhe chamam agora, por ter mais uma Secção de armas pesadas, com um morteiro de 60 mm e uma bazooka do tempo da Maria-Caxuxa) progredia sozinho por sua conta e risco. A mim calhou-me a ala direita e tive mais sorte que os outros, pois desloquei-me muito menos e passei quase dois dias inteiros estacionado num local perto da margem do rio para impedir a fuga daqueles que, querendo escapar às nossas tropas, procurariam refúgio mais a Sul. A noite de quarta para quinta-feira foi dormida a bordo do navio que nos transportou. Desembarcámos às 09H00 da manhã de quinta-feira e logo depois cada qual foi para seu lado.
A primeira povoação que encontrámos estava abandonada, pois já nos tinham pressentido na noite anterior e tinham fugido. Queimámos tudo e matámos todo o gado que havia. Mais adiante encontrámos duas cabanas escondidas numa zona de mato mais cerrado e com indícios de servir para ponto de reunião ou para aquartelamento de algum pequeno grupo armado. Numa delas estava uma granada de mão colocada tão à vista que deu logo para desconfiar. Mandei que todos se afastassem e disse ao furriel especialista em minas e armadilhas que fosse investigar. Era de facto uma armadilha um pouco tosca mas para a qual teríamos de tomar muita atenção, pois a cavilha de segurança da granada estava presa a um fio que no outro extremo ia prender-se a um tronco espetado no chão da cabana. Assim se qualquer um de nós descuidadamente a agarrasse e levantasse do chão ela rebentaria imediatamente causando-nos graves danos certamente. Com o credo na boca rebuscámos tudo, o mais cuidadosamente possível e encontrámos, nas redondezas, uma caixa de madeira com mais de duzentas munições variadas e ainda três granadas de tipo desconhecido. Na caixa estavam pintadas várias palavras e indicações que pareciam ser russas ou checas.
Com a febril sensação de quem está na pista da arca do tesouro dali para a frente esquadrinhámos palmo a palmo toda a mata à medida que progredíamos. Mas com muito pouco proveito com grande pena nossa. Só mais à frente, noutra povoação abandonada, é que se encontrou uma velha carabina de carregar pela boca, o vulgar canhangulo deitado fora por alguém que não se queria comprometer, pela certa.
Quando chegou a noite (de quinta para sexta-feira) preparámo-nos para dormir uma noite mais descansada, na orla da mata que limitava a imensa bolanha que tínhamos vindo a rodear. No meio da escuridão tentando não dar a perceber a nossa presença, improvisámos o melhor que podíamos os locais para passar a noite. Mas um dos soldados, inadvertidamente, encostou-se a um pequeno montículo julgando ter achado ali um óptimo travesseiro mas que mais não era do que um morro de bagabaga, formigueiro repleto de furiosos insectos que, perante o perigo iminente de uma invasão por um ser estranho, atacaram inesperadamente o intruso com todas as forças das suas mandíbulas. Quando todos nós já deslizávamos nas asas de Morfeu, acordámos de repente com uma barafunda e uma gritaria tais que mais parecia que o acampamento tinha sido atacado por inimigos sanguinários que a coberto da escuridão nos queriam degolar.
Quando consegui vislumbrar com a pouca luz que o reflexo da bolanha deixava chegar até nós, o corpo do soldado que desesperadamente se esfregava no chão arrancando toda a roupa para se poder ver livre daqueles furiosos insectos, não sabia se havia de rir ou ter um ataque de fúria perante aquela cena caricata que deitava abaixo todas as medidas de segurança que procurámos ter para não denunciarmos a nossa presença. Com vontade de lhe partir a cabeça à coronhada para o fazer calar, mesmo assim lá consegui acalmar os ânimos e aos poucos restabeleceu-se o silêncio. Dali para a frente a sorte estava lançada, só poderíamos beneficiar dela se o inimigo assim o permitisse.
Mais ninguém conseguiu voltar a dormir naquela noite, esquadrinhando as sombras reflectidas nas águas da bolanha, com medo de tudo e de nada.
Na manhã seguinte continuámos a progressão conforme estava planeado e no meio de um caminho largo e com aspecto de ser muito movimentado deparámos com uma pistola de fabrico checo ainda com quatro balas no carregador. Certamente mais uma que foi abandonada na precipitação da fuga. Foi talvez o nosso mais valioso achado, a que o capitão chamou logo seu…
Continuando sempre em ligação rádio com o comando da Companhia, acabei por me instalar num sítio à margem do rio Corubal (um afluente do Gêba), local onde aguardei até ao reembarque no domingo de manhã. Fiquei ali, portanto, também a proteger a retirada. Como não dormia há duas noites já adormecia de pé, encostado às árvores. Mas nessa noite dormi bem, pois até tivemos tempo para fazer camas com troncos cruzados, cobertos de capim e, com as capas impermeáveis (que desta vez não nos esquecêramos de levar) improvisar uns toldos para nos abrigar da chuva. Fizemos fogueiras e assámos galinhas que, temperadas com os caldos das sopas instantâneas das rações de combate, ficaram uma delícia. Os mosquitos, miraculosamente, resolveram não aparecer nessa noite e dormimos regaladamente, sem nos lembrarmos do inimigo, como se estivéssemos no Paraíso.
O sábado passou-se ali, parados sempre no mesmo sítio, enquanto aqueles que tinham ido pelo lado esquerdo, faziam batidas ao Norte para empurrarem os turras, se os houvesse, para o nosso lado. Felizmente não demos pela presença de ninguém. Eu, também, tinha sempre o cuidado de mandar acender fogueiras para lhes assinalar a nossa presença e lhes dizer que era escusado virem por este lado…
Parece que me perceberam e não tive qualquer problema.
Os restantes pelotões foram chegando nos dias seguintes mais ou menos estafados e com mil histórias para contar, mas também de mãos a abanar. Apenas o último, encontrou uma Mauser e algumas munições diversas. E como também tinham encontrado, num acampamento abandonado, um grande barracão coberto de folhas de zinco, aproveitaram e carregaram esse material que ainda estava em bom estado, depois de destruírem todo o resto. Foi uma sensação curiosa e ao mesmo tempo hilariante, vê-los chegar, em fila indiana, carregando, cada soldado, uma folha de zinco à cabeça, como laboriosas formiguinhas a acartar mantimentos para o ninho.
Este último dia foi porém o mais movimentado e atrapalhado de todos.
Como de costume, pela manhã chegou a LDM dos fuzileiros que trazia de Bissau os abastecimentos. O oficial que a comandava, o Tenente Silva, meu conhecido de anteriores passeios náuticos, veio logo ter comigo todo entusiasmado com uma ideia que tinha tido. Pouco antes de atracar avistara umas vacas a vaguear junto à margem, bem perto dali.
E a ideia era a seguinte: se pudesse meter algumas daquelas vacas dentro da LDM, podia levá-las para Bissau, onde, vendidas para a Messe, dariam de certeza bom lucro. Só que precisava que eu lhe emprestasse alguns homens, dois no mínimo, para o ajudar a metê-las dentro da LDM.
Embora eu estivesse alertado para não me movimentar fora das áreas que me estavam estipuladas no plano de acção, ingenuamente acreditei que nada de mal poderia acontecer e cedi dois homens que se ofereceram como voluntários, o José Figueiredo, de alcunha o Braga-1 e o Alberto Carlos, o Braga-2.
Só que, como sempre acontece, o que pode correr mal, acaba sempre por correr mal.
Quando a LDM encostou no local onde tinham sido vistas as vacas, em vez de vacas, do meio do capim, levantaram-se de súbito dois supostos turras que desataram a fugir. Os nossos bravos soldadinhos vão logo a correr atrás deles, como loucos. Acontece que por acaso, estava mesmo a passar por ali um avião T6 que patrulhava a zona e detectou um movimento no solo que lhe pareceu suspeito. Tendo rapidamente entrado em contacto com a base, certificou-se que naquela zona não era previsto estar a nossa tropa, portanto só poderia ser o inimigo e, sem hesitar dispara dois rockets sobre o alvo.
Resultado: o inimigo desapareceu como fumo, deixando os meus dois soldados deitados no capim a gemer, feridos com estilhaços nas pernas.
Guardei sempre em meu poder uma cópia do relatório oficial desta operação que se tornou de bastante utilidade quando, muitos anos mais tarde, um desses soldados se lembrou de requerer do Exército uma pensão por ferimentos em combate. O que só conseguiu graças à existência daquele documento, única prova que restou para comprovar o acontecido. Nem no hospital de Bissau havia qualquer registo. Bom e, no relatório também não apareciam as vacas, felizmente
Depois foi a grande confusão. O capitão da nossa Companhia, alertado pela rádio, não sabia de nada e não compreendia como é que poderiam estar soldados dele naquela zona. Todos berravam, pedindo socorro para os feridos, os altos comandos exigiam relatórios e toda a gente julgava estar a ser submetida a uma grande ofensiva inimiga, indignada também pela incompetência da aviação que não sabia distinguir as nossas tropas, do IN.
Mas só eu e o oficial da Marinha sabíamos o que de facto se tinha passado por causa de duas vacas.
Quando as coisas se acalmaram e os feridos foram levados finalmente para o hospital de Bissau, ainda conseguimos esboçar um sorriso de alívio depois de tamanho susto. Os feridos não tinham sido atingidos com gravidade e o pior foi-se esvanecendo.
Mas o capitão preveniu-me logo: os altos comandos nunca poderiam vir a saber a verdade senão a confusão iria ser muito pior.
Desde aí, entre mim e o Tenente Silva, estabeleceu-se uma longa amizade, nascida de uma cumplicidade num delito, embora fortuito, do qual nos sentíamos igualmente culpados, sem no entanto sabermos quem era o mais culpado dos dois.
Apesar de pertencermos a ramos diferentes das Forças Armadas e, na Guiné nunca mais nos termos encontrado, mantivemos contacto por escrito durante largos anos, até que lhe perdi o rasto depois dele ter emigrado para França
Falta ainda referir que, na noite anterior, os fuzileiros tinham feito uma emboscada na outra margem do rio Corubal e tinham apanhado uma metralhadora pesada, duas metralhadoras ligeiras, várias espingardas e pistolas. Parece que um grupo terrorista, pressentindo que havia barcos no rio, passou de Uána Porto para a outra margem para os flagelar de mais perto. Mas foram cair direitinhos na armadilha que os fuzileiros tinham armado.
Chegados a Bissau, no domingo à tarde, talvez até por isso, estava o cais cheio de gente para nos ver chegar. Foi um espectáculo inédito (quase surrealista) apreciar o nosso desfile que mais parecia uma parada de vagabundos sujos e famintos, sem qualquer ponta de brio militar. Mas até o Brigadeiro, Comandante Militar, apareceu para nos cumprimentar! Tudo fogo-de-vista, claro, para encher os olhos do Zé Pagode, pois no dia seguinte, surgiram no nosso aquartelamento uns capitães de outras unidades dizendo que tinham ordens para levar as tais chapas de zinco. Refilámos de tal maneira que foram constrangidos a retirar ordeiramente.
Existem sempre os eternos figurões que aproveitam todas as oportunidades para tentar enfiar o barrete ao próximo. Então aqui na tropa é demais. É ver quem mais se pode aproveitar.
O tempo continua de chuva, embora sejam só aguaceiros espaçados.
É a altura dos tornados que provocam quase sempre estragos no porto de mar, afundando umas lanchas e avariando outras.
Comprei um rádio a pilhas. É um Sony com ondas médias e curtas que, por 1.450$00, me vai ajudar a passar o tempo entre as guerras.
Bissau, 15 Set.1964
Não tenho saído para o mato pois o Cardoso é que o tem feito, com o meu Pelotão. Coisas do nosso Capitão que, é para o Cardoso se ir treinando…
Só no outro dia é que saí para ir prender, por ordem do Administrador do Concelho de Bissau, um sujeito que seria um agente terrorista, escondido aqui numa tabanca perto. Creio que a tarefa dele era angariar adeptos e depois enviá-los para o mato.
Meteu-me pena, pois ele não nos esperava, quando entrámos rapidamente pela aldeia dentro. Ficou a tremer e só teve tempo de gaguejar qualquer coisa que, creio ter sido uma despedida para os outros.
Como vêem até isto nos obrigam a fazer, papéis de Pide! Não tive dificuldade nenhuma com ele, pois nem reagiu. E fui eu lá, com um jeep e uma camioneta carregada com 14 homens armados para trazermos mais um borrego para a matança! Geralmente são raros que sobrevivem aos interrogatórios. É sempre a teoria do mais um, menos um…
Só queria ver isto acabado!
Bissau, 23 Set. 1964
Chegámos no “Vouga”, ontem à noite. Tudo ainda me parece um pesadelo que desejaria não ter vivido. A operação “Tornado”, como se chamava, foi terrível. A região era a pior que já vi, toda semeada de bolhanhas, completamente alagada pela chuva que tem caído incessantemente. Não era terra nem água mas sim uma enorme região mergulhada em lama líquida. Uma lama viscosa que, nos prendia como tenazes. Quando algum de nós mergulhava até à cintura, eram precisos três a puxá-lo para ao fim de muitos esforços o arrancarem de lá sem botas e com as calças em farrapos.
Localização: zona Sul, entre Cacine e a fronteira com a República da Guiné.
Saímos daqui no nosso habitual contratorpedeiro “Vouga”. É o único navio grande que está cá, tendo chegado agora um outro que, o vem substituir, a fragata “Diogo Gomes”.
Chegámos diante da famigerada Ilha de Como, ao fim da tarde. Pelas nove da noite passámos para lanchas de desembarque. O Carvalho na mais pequena, a LDP 101 e eu e o Castro, o capitão e o grupo de comando da Companhia, na maior a LDM 202.
Subimos o rio Cumbijã e desembarcámos finalmente em terra, pelas seis da manhã do dia seguinte. Se é que aquilo se podia chamar terra. Era só água, lodo e o entrelaçado dos ramos do mangal que delimitava as margens. Atravessada essa primeira barreira, estendia-se à nossa frente um enorme arrozal, tendo como pano de fundo um formidável maciço de palmeiras e mato cerrado. Dispersámo-nos o mais possível e fomos avançando com todas as cautelas.
Desta vez foram alguns grupos pequenos que nos atacaram com tiros inofensivos, fugindo sempre quando tentávamos apanhá-los.
Já a uns 200 metros da mata ouvimos as primeiras rajadas de pistola-metralhadora, de um grupo de cinco ou seis que deviam estar empoleirados no cimo das palmeiras. Sempre o mais abaixados possível e fazendo fogo de vez em quando, para nos protegermos, lá nos fomos aproximando cada vez mais. Mandámos duas ou três granadas de morteiro e uma rebentou mesmo na orla das árvores. Após meia hora de tiroteio e vendo talvez que a nossa manobra de envolvimento os pudesse vir a dominar, fugiram e nunca mais ouvimos as famosas rajadas de pistola-metralhadora, a tão característica PPSH, a costureira, pois faz um matraquear que lembra uma máquina de costura.
Depois deste primeiro incidente, continuámos a progressão atravessando a mata até encontrarmos uma estrada. Uns metros mais à frente fomos novamente alvejados por vários tiros que nem soubemos de onde vieram. Ninguém ficou ferido mas como não respondemos, tornaram a fugir, deixando-nos o caminho livre. A táctica deles foi sempre a de utilizar grupos pequenos de 5 ou 7 que, rapidamente se deslocam para qualquer lado, flagelando e fazendo parar Companhias inteiras. Como não os conseguimos ver, fogem sempre que lhes apetece. São extraordinariamente ágeis, pois por duas vezes, dois grupos deles (alguns até já usam farda camuflada) iam tropeçando nas nossas posições, mas logo que davam por isso, desapareciam com tal rapidez que pareciam eclipsar-se. Mesmo assim creio que matámos alguns.
Esta operação durou três dias, sábado, domingo e segunda-feira. O último dia foi o pior, pois choveu sempre, ininterruptamente. Actuaram mais de 900 homens e a missão que nos coube consistia em formar uma linha de cerco à volta de uma mata onde se acoitava o inimigo. Ali parados, enrolados nas capas impermeáveis que nos abrigavam da chuva que não parava de cair, por volta do meio-dia já tiritávamos de frio. Mas o pior, o que mais custou, foi o lodo e os pântanos intermináveis que tivemos de atravessar, sem qualquer esperança de amparo, sem qualquer protecção, receando a morte que nunca se faz anunciar.
Como consolo valeu-nos a habitual e sempre simpática recepção que tivemos no regresso, quando embarcámos no “Vouga”, por parte dos nossos já conhecidos companheiros destas lutas, os oficiais, os sargentos e os marinheiros daquele barco de guerra.
Tendo regressado na terça-feira à noite, bastante cansado, isso não me impediu no entanto de, após um rápido banho, fazer a barba e vestir a roupa civil, ir com os outros a um restaurante da cidade, o “Tropical”, comer a tradicional omeleta de camarão, o bife com batatas fritas e um ovo estrelado, tudo regado com a bela cerveja Sagres com que todos, Exército e Marinha, nos habituámos a confraternizar, cimentando amizades, tentando esquecer os horrores e os malefícios desta guerra.
Desta vez, quando caí na cama, parecia o rochedo de Gibraltar desabando no mar.
Descansámos dois dias, de licença e, só hoje é que fui ao Quartel ver como é que paravam as modas…
Comprei uns chinelos para a mãe e já os mandei pelo Correio. Oxalá goste! Ultimamente tem havido muita falta de aviões, de maneira que não sei quando é que receberão a encomenda.
__________
Nota de CV:
Vd. postes da série Cartas de:
14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo
e
21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4848: Cartas (Carlos Geraldes) (2): 1.ª Fase - Maio a Julho de 1964
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Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Estadia em Contuboel e Dunane (OUT-DEZ 1965)
Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (VII)
Contuboel, 12 de Outubro de 1965
O meu Grupo de Combate vai dentro em breve para o destacamento de Dunane, quartel de campanha rodeado de arame farpado, sem qualquer tabanca (a que aí existia foi incendiada pelas nossas tropas, e a população que não morreu, fugiu para outros chãos) - fica então Dunane entre Piche e Canquelifá, onde existem duas companhias, uma em cada uma dessas localidades, que por aquelas bandas a guerra é mesmo a doer. Vamos então render um outro Grupo de Combate, o do João Cortesão Casimiro, da nossa companhia, que, por estes dias mais próximos, conclui um mês de estada naquele que é considerado um dos piores destacamentos daquela zona, sem as mínimas condições para se viver como gente: água bichenta, instalações em abrigos feitos de bidões de gasolina cheios de pedregulhos, o tecto coberto de troncos e por um oleado, e tudo isto rodeado de mata e de silêncio e guerrilheiros. Esta zona militar abrange, além das unidades já mencionadas, Nova Lamego, Bruntuma e Madina do Boé, onde, aí, nem se atrevem as nossas tropas a meter o nariz fora dos abrigos de cimento armado, recebendo os víveres e o correio através de helicóptero, que lança os sacos das alturas e desapega-se logo para lugar mais seguro... Em Dunane não há população, só meia dúzia de milícias indígenas. Com cerca de trinta homens, ao fim de pouco tempo não há solidão que resista. Só é preciso é que não falte vinho nem correio, porque assim o soldado acomoda-se com mais facilidade...
Contuboel, 15 de Outubro de 1965
Recebi um rádio do comandante do batalhão acantonado em Bafatá, ao qual pertencemos, anunciando a rendição do pelotão de Dunane para o dia 18. Temos de sair às primeiras horas da manhã. E vinham tambémvárias instruções sobre o material a levar, não esquecendo os sacos de areia nas cabinas dos Unimogs por causa de surpresas desagradáveis, que vamos atravessar zonas perigosas e algumas quase terra-de-ninguém, além das rações de combate para a viagem, que deve demorar as suas quatro horas, com paragem em Nova Lamego e Piche... Reuni os homens do meu pelotão e transmiti-lhes todas as ordens que achei convenientes quando à nossa futura partida (só não lhes revelei nem o dia nem a hora), ordens que são para se cumprir à risca, sem a mínima discussão. E avisei-os que comecem, desde já, a preparar os seus sacos de campanha, porque nunca se sabia quando largávamos para Dunane, a fim de render os nossos camaradas.
Dunane, 19 de Outubro de 1965
Após uma viagem atribulada e cansativa, chegámos por fim ao nosso destino. E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim... Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de cardos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim...
Dunane, 21 de Outubro de 1965
CRISTAIS DE DOR
Cristais de dor na noite tenebrosa,
Ferindo o silêncio duro e magnético;
Nenhum gesto de luz, leve, carinhosa,
Calando na noite o grito profético.
Em bandos descem pássaros estranhos,
Trazem recados no bico agoirento;
Muito ao longe nos currais os rebanhos
Tremem e choram lágrimas de vento.
Nas palhotas sem luz sonhos vencidos,
Crianças sem estrelas nos olhos caídos,
E pão de tristeza em bocas de fome.
Silêncio, dor, tristeza, solidão,
Tudo o que tem quem vive nesta prisão,
E um número no lugar do próprio nome.
Dunane, 3 de Novembro de 1965
MORTOS-VIVOS
Somos os mortos-vivos duma geração
Trancada nos aposentos do medo.
Se ousamos outra voz no coro duma canção,
Dão-nos nova alma e este degredo.
Se puderes olha em frente de olhos repousados,
Arreda o medo da mente ferida.
E teus dias serão plenos, serenados
E a vida será um salmo de vida...
Dunane, 6 de Novembro de 1965
ANSIEDADE
Conto os dias pelos dedos
Um a um sem falhar.
Triste de quem tem segredos
E não tem a quem contar...
Parti triste e triste estou
Longe de ti nesta terra,
Onde o Sol se apagou
Sob negras nuvens de guerra.
Se a dor que no peito sinto
Tivesse boca e contasse
Tudo o que peno (não minto)
Talvez ninguém acreditasse...
Dunane, 10 de Novembro de 1965
PRIMEIRA CANÇÃO DO MAR
A minha voz vem do mar,
Meus cabelos de espuma são,
É no cais que vou cantar
As penas do coração.
As coitas do coração
Ai, coimas de amargura.
Diz-me lá tu, ó canção,
Que é da velha ternura
Do mar da minha infância
E porquê vida tão dura,
Este viver sempre em ânsia?
Tatuaram-me no braço
Uma âncora de esperança...
Ai, e no peito um cansaço
Já do tempo de criança...
O mar embalou meu berço
- Velha canção de embalar
E assim rimei meu verso
Com a triste voz do mar.
O mar indicou-me o mundo
Nas rotas das caravelas...
Foram-se os sonhos ao fundo,
Rotas ficaram as velas.
Dunane, 15 de Novembro de 1965
SEGUNDA CANÇÃO DO MAR
Nas ondas do mar salgado
Escrevi o meu destino
Assim tracei o meu fado
Desde o tempo de menino.
Fez-se o mar meu amigo
Desde os tempos de outra idade:
- Quando não está comigo,
Chora triste de saudade...
Tantas vezes boiei morto
Na crista das ondas bravas,
Mesmo à vista dum porto
Onde, amor, me esperavas...
Dunane, 18 de Novembro de 1965
UM BARCO NA NOITE
Na noite subversiva havia um barco
Ancorado no cais.
O céu era o reflexo de um charco
E de outras sombras mais
Súbito acordou uma luz
Nos olhos adormecidos...
Uma candeia que conduz
A vitória aos vencidos.
Todo o Universo se encheu de asas
E de itinerários...
Trancámos as portas de nossas casas
Nós, os revolucionários...
Tudo por fim rolou na lembrança
Na noite subversiva
O barco ancorado partia para França
E nós ali à deriva...
Só nos ficou o sonho e a esperança,
E o barco ancorado partiu para França...
Dunane, 23 de Novembro de 1965
- Estou com o meu pelotão há mais de um mês neste destacamento de Piche. Antiga tabanca balanta, destruída pelas nossas tropas há já algum tempo, é agora um aquartelamento destinado a um pelotão das nossas tropas e a uma secção de milícias indígenas. Estamos em solidão absoluta e com falta de víveres. À noite, entretém-se o pessoal com o espectáculo deslumbrante dos incêndios das tabancas atacadas pelos guerrilheiros e cujas chamas se vêem ao longe lambendo o horizonte circular que deste cabeço onde se situa o aquartelamento se abarca. Nem dentro do perímetro do arame farpado se pode andar à vontade.
Contuboel, 1 de Dezembro de 1965
- Chegou o novo capitão para comandar a companhia. O primeiro, o que foi ferido na tal operação simulada, com o intuito de treinar os homens para a dureza da guerra, nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima. Informou-me há dias o nosso primeiro Mota que ele tinha sido transferido para uma repartição do Quartel General, em Bissau, após ter estado em prolongada convalescença na metrópole. O guarda-costas, esse, foi para a Alemanha para lhe porem uma prótese nos cotos das pernas. Nesta vida da tropa são tão efémeros os sentimentos.
Contuboel, 25 de Dezembro de 1965
OUTRO TEMPO
Tempo loiro, maduro,
Nas mãos o Universo.
Sentia-me seguro
Como a rima num verso...
Depois veio o frio
Das noites de Inverno.
E pensava (agora sorrio)
Nas penas do inferno.
- Já rezaste, rica cara?
Perguntava uma velha tia.
Dizia que já terminara
E tinha a alma em dia...
__________
Notas de CV:
Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67
Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VI): Estadia em Contuboel e férias na Metrópole (27MAI65 a 29SET65)
Contuboel, 12 de Outubro de 1965
O meu Grupo de Combate vai dentro em breve para o destacamento de Dunane, quartel de campanha rodeado de arame farpado, sem qualquer tabanca (a que aí existia foi incendiada pelas nossas tropas, e a população que não morreu, fugiu para outros chãos) - fica então Dunane entre Piche e Canquelifá, onde existem duas companhias, uma em cada uma dessas localidades, que por aquelas bandas a guerra é mesmo a doer. Vamos então render um outro Grupo de Combate, o do João Cortesão Casimiro, da nossa companhia, que, por estes dias mais próximos, conclui um mês de estada naquele que é considerado um dos piores destacamentos daquela zona, sem as mínimas condições para se viver como gente: água bichenta, instalações em abrigos feitos de bidões de gasolina cheios de pedregulhos, o tecto coberto de troncos e por um oleado, e tudo isto rodeado de mata e de silêncio e guerrilheiros. Esta zona militar abrange, além das unidades já mencionadas, Nova Lamego, Bruntuma e Madina do Boé, onde, aí, nem se atrevem as nossas tropas a meter o nariz fora dos abrigos de cimento armado, recebendo os víveres e o correio através de helicóptero, que lança os sacos das alturas e desapega-se logo para lugar mais seguro... Em Dunane não há população, só meia dúzia de milícias indígenas. Com cerca de trinta homens, ao fim de pouco tempo não há solidão que resista. Só é preciso é que não falte vinho nem correio, porque assim o soldado acomoda-se com mais facilidade...
Contuboel, 15 de Outubro de 1965
Recebi um rádio do comandante do batalhão acantonado em Bafatá, ao qual pertencemos, anunciando a rendição do pelotão de Dunane para o dia 18. Temos de sair às primeiras horas da manhã. E vinham tambémvárias instruções sobre o material a levar, não esquecendo os sacos de areia nas cabinas dos Unimogs por causa de surpresas desagradáveis, que vamos atravessar zonas perigosas e algumas quase terra-de-ninguém, além das rações de combate para a viagem, que deve demorar as suas quatro horas, com paragem em Nova Lamego e Piche... Reuni os homens do meu pelotão e transmiti-lhes todas as ordens que achei convenientes quando à nossa futura partida (só não lhes revelei nem o dia nem a hora), ordens que são para se cumprir à risca, sem a mínima discussão. E avisei-os que comecem, desde já, a preparar os seus sacos de campanha, porque nunca se sabia quando largávamos para Dunane, a fim de render os nossos camaradas.
Dunane, 19 de Outubro de 1965
Após uma viagem atribulada e cansativa, chegámos por fim ao nosso destino. E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim... Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de cardos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim...
Dunane, 21 de Outubro de 1965
CRISTAIS DE DOR
Cristais de dor na noite tenebrosa,
Ferindo o silêncio duro e magnético;
Nenhum gesto de luz, leve, carinhosa,
Calando na noite o grito profético.
Em bandos descem pássaros estranhos,
Trazem recados no bico agoirento;
Muito ao longe nos currais os rebanhos
Tremem e choram lágrimas de vento.
Nas palhotas sem luz sonhos vencidos,
Crianças sem estrelas nos olhos caídos,
E pão de tristeza em bocas de fome.
Silêncio, dor, tristeza, solidão,
Tudo o que tem quem vive nesta prisão,
E um número no lugar do próprio nome.
Dunane, 3 de Novembro de 1965
MORTOS-VIVOS
Somos os mortos-vivos duma geração
Trancada nos aposentos do medo.
Se ousamos outra voz no coro duma canção,
Dão-nos nova alma e este degredo.
Se puderes olha em frente de olhos repousados,
Arreda o medo da mente ferida.
E teus dias serão plenos, serenados
E a vida será um salmo de vida...
Dunane, 6 de Novembro de 1965
ANSIEDADE
Conto os dias pelos dedos
Um a um sem falhar.
Triste de quem tem segredos
E não tem a quem contar...
Parti triste e triste estou
Longe de ti nesta terra,
Onde o Sol se apagou
Sob negras nuvens de guerra.
Se a dor que no peito sinto
Tivesse boca e contasse
Tudo o que peno (não minto)
Talvez ninguém acreditasse...
Dunane, 10 de Novembro de 1965
PRIMEIRA CANÇÃO DO MAR
A minha voz vem do mar,
Meus cabelos de espuma são,
É no cais que vou cantar
As penas do coração.
As coitas do coração
Ai, coimas de amargura.
Diz-me lá tu, ó canção,
Que é da velha ternura
Do mar da minha infância
E porquê vida tão dura,
Este viver sempre em ânsia?
Tatuaram-me no braço
Uma âncora de esperança...
Ai, e no peito um cansaço
Já do tempo de criança...
O mar embalou meu berço
- Velha canção de embalar
E assim rimei meu verso
Com a triste voz do mar.
O mar indicou-me o mundo
Nas rotas das caravelas...
Foram-se os sonhos ao fundo,
Rotas ficaram as velas.
Dunane, 15 de Novembro de 1965
SEGUNDA CANÇÃO DO MAR
Nas ondas do mar salgado
Escrevi o meu destino
Assim tracei o meu fado
Desde o tempo de menino.
Fez-se o mar meu amigo
Desde os tempos de outra idade:
- Quando não está comigo,
Chora triste de saudade...
Tantas vezes boiei morto
Na crista das ondas bravas,
Mesmo à vista dum porto
Onde, amor, me esperavas...
Dunane, 18 de Novembro de 1965
UM BARCO NA NOITE
Na noite subversiva havia um barco
Ancorado no cais.
O céu era o reflexo de um charco
E de outras sombras mais
Súbito acordou uma luz
Nos olhos adormecidos...
Uma candeia que conduz
A vitória aos vencidos.
Todo o Universo se encheu de asas
E de itinerários...
Trancámos as portas de nossas casas
Nós, os revolucionários...
Tudo por fim rolou na lembrança
Na noite subversiva
O barco ancorado partia para França
E nós ali à deriva...
Só nos ficou o sonho e a esperança,
E o barco ancorado partiu para França...
Dunane, 23 de Novembro de 1965
- Estou com o meu pelotão há mais de um mês neste destacamento de Piche. Antiga tabanca balanta, destruída pelas nossas tropas há já algum tempo, é agora um aquartelamento destinado a um pelotão das nossas tropas e a uma secção de milícias indígenas. Estamos em solidão absoluta e com falta de víveres. À noite, entretém-se o pessoal com o espectáculo deslumbrante dos incêndios das tabancas atacadas pelos guerrilheiros e cujas chamas se vêem ao longe lambendo o horizonte circular que deste cabeço onde se situa o aquartelamento se abarca. Nem dentro do perímetro do arame farpado se pode andar à vontade.
Contuboel, 1 de Dezembro de 1965
- Chegou o novo capitão para comandar a companhia. O primeiro, o que foi ferido na tal operação simulada, com o intuito de treinar os homens para a dureza da guerra, nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima. Informou-me há dias o nosso primeiro Mota que ele tinha sido transferido para uma repartição do Quartel General, em Bissau, após ter estado em prolongada convalescença na metrópole. O guarda-costas, esse, foi para a Alemanha para lhe porem uma prótese nos cotos das pernas. Nesta vida da tropa são tão efémeros os sentimentos.
Contuboel, 25 de Dezembro de 1965
OUTRO TEMPO
Tempo loiro, maduro,
Nas mãos o Universo.
Sentia-me seguro
Como a rima num verso...
Depois veio o frio
Das noites de Inverno.
E pensava (agora sorrio)
Nas penas do inferno.
- Já rezaste, rica cara?
Perguntava uma velha tia.
Dizia que já terminara
E tinha a alma em dia...
__________
Notas de CV:
Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67
Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VI): Estadia em Contuboel e férias na Metrópole (27MAI65 a 29SET65)
Guiné 63/74 - P4859: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (11): “Tiros no Cacheu”
1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos mais uma humorística estória, com data de 22 de Agosto de 2009, que mais uma vez muito agradecemos, acompanhada da seguinte introdução:
Camaradas,
Hoje e envio-vos a minha história nº. 11.
É escrita pelo médico da C.Caç. 675 - Dr. Alfredo Roque Gameiro Martins Barata - e faz parte do livro "Golpes de Mão's". Tem sentido de humor e está muito bem escrita. O desenho final é feito pelo irmão dele, que tem 80 anos e é um Arquitecto muito conceituado.
O Médico
Uma viagem acidentada vivida e contada pelo Médico da «675»
Alfredo Martins Barata
«Esta é a história da «minha guerra»
«Tiros no Cacheu»
Houvera um desembarque de fuzileiros em Tambato Mandinga, no Oio, numa tabanca que um observador atento que suba o Cacheu até Farim descobre, a custo, entre árvores de grande porte que se erguem na margem Sul do rio.
A operação fora bem sucedida.– Agora os tipos devem estar irritados. Já não torno a ir a Farim de bote de borracha; só de submarino – disse eu um dia depois ao jantar. Todos riram. Alguém depois falou:
– Dos presentes só o Doutor é que desconhece o que é uma emboscada.
– Sim, respondi e não tenho nenhum prazer em conhecer.
O problema em princípio não se podia encarar seriamente.
Estávamos em Binta havia 7 meses, nenhum barco tinha ainda sido atacado e, para ir à Metrópole como seria o meu caso dentro de pouco tempo, qualquer um de nós seria capaz de se meter a caminho nem que fosse a nado.
Porque apesar de todos os melhoramentos que tornam a vida menos dura em Binta, Binta é Binta e Lisboa é Lisboa.
Ora a primeira meta da viagem era precisamente Farim e foi fardado de «ronco» amarelo, de galões dourados e tudo, com máquina fotográfica na mão direita e o saco de bagagem na esquerda que embarquei, despreocupadamente, (e porque não?) certa manhã de Fevereiro numa ronceira L.D.M. rumo àquela vila.Não ia só.
Comigo ia uma pequena multidão colorida e palradora: eram mulheres indígenas cuidadosamente sentadas no chão, com as saias bem enroladas entre as pernas, tendo a seu lado um estendal de tachos e meias-cabaças cheias de tomates e arroz, era um cabrito barulhento e saltitante, eram pretos acocorados fumando cachimbo ou mastigando cola, eram alguns companheiros de Binta (entre os quais o nosso primeiro Santos) que na proa conversavam.
Toda esta feira flutuante dava uma nota colorida e alegre àquela austeridade cinzenta-bélica tão característica dos navios de guerra. Abandonada a um canto, uma metralhadora apontava para o ar e chamava-nos à verdade: estávamos em guerra. Uns tiros isolados podiam atingir toda esta gente amontoada...
Mas, logo a seguir, a nossa atenção saltava para a vida, para o Sol e para a natureza que nos envolvia.Chegámos finalmente a Farim, onde, depois de umas horas de espera inútil soubemos que o voo do Dakota tinha sido adiado para o dia seguinte. Paciência só no dia imediato chegaria a Bissau.
Para não ter de dormir numa cama estranha, num ambiente estranho, numa terra estranha, aproveitando o transporte da L.D.M. resolvi deixar a bagagem e voltar rio abaixo até Binta.
A viagem de regresso com os mesmos companheiros foi mais calma.
Entardecia. A lancha empurrava as águas paradas, levantando com o seu barulho bandos de pássaros e macacos que na margem, escolhiam poiso para a noite.No dia seguinte de madrugada, embarquei novamente a caminho de Farim, Bissau e Metrópole, desta vez só, sem o bulício da véspera.O dia começava a amanhecer, cinzento e húmido; mais tarde viria o sol brilhante e quente. Agora pairava uma neblina ténue junto ao tarrafo que escondia os ramos mais altos e que pouco a pouco se ia desvanecendo com o romper da claridade.
No interior do barco a tripulação tomava a seu café. Em cima, o piloto olhava atento o rio pela vigia largamente aberta na cabine blindada, cortando curvas para abreviar caminho.
Encostado à torre da peça desguarnecida, passava os olhos pelas margens do rio sempre belo, pensando comigo mesmo:
– Aqui é a foz do Caur, mais adiante Tambato Mandinga...
Mas há aqui uma aberta nas árvores das margens... Se não me engano... Que deixa ver as moranças da tabanca... Sim, é ali.
(Já lá tínhamos chegado e com efeito era ali).
De repente, ali mesmo, um clarão reluz, e outro e mais outro.
Antes que me pudesse aperceber do sucedido, caí, não sei se obedecendo ao instintivo «deitar» das instruções de combate, se por ter sentido uma pancada quente e indolor no flanco esquerdo que me puxava para o chão.
As ideias de baço, de hemorragia, de esplenectomia que passaram no espírito, desapareceram rapidamente logo que verifiquei que tudo não passava de um ferimento muscular parietal.
Entretanto a lancha virara de bordo, a fim de conseguir melhor posição de tiro.
O artilheiro subiu ao seu posto de combate e com umas rajadas potentes de calibre 20 mm «calou» o tiroteio inimigo.Aproveitei para acenar para o local onde deveriam estaros terroristas para que eles, quando fizessem o relatório da «operação», não dissessem que tinham abatido um alferes da tropa de Binta...A lancha voltou ao seu primitivo rumo e continuou Cacheu acima, a caminho de Farim.
Fez-se o balanço da situação; quando souberam que tinha sido atingido de raspão os homens da lancha excederam-se em cuidados pondo ao dispor o material de enfermagem de bordo e oferecendo café quente que aceitei com agrado. Estava em jejum e à minha volta percebia um estranho cheiro a carne assada que depois vi que provinha das feridas.
Discutia-se o ataque; uns diziam que tínhamos sido atingidos com uma bazucada, outros, como eu, sustentavam que os rebentamentos ouvidos não passavam de granadas de mão lançadas da margem para «ronco».Os malandros tinham visto um oficial a 80 metros, de pé, isolado na coberta da lancha, feito «pato» com as mãos nos quadris e esperaram que o alvo ficasse no enfiamento de tiro para abrir fogo.Pouco depois desembarquei em Farim. O «Dakota» já tinha chegado e, quando a correr alcancei o Comando, já o avião se preparava para deslocar.
Ainda não era dessa vez que ia para Bissau.
Teria que esperar mais um dia, talvez dois, e, à noite dormi numa cama estranha, num ambiente estranho e numa terra estranha.
Alferes Mil. Médico Martins Barata “visto” pelo seu irmão Arqtº. José Pedro Roque Gameiro Martins Barata.
Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
Gravura: José Pedro Roque Gameiro Martins Barata (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
22 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4852: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (10): “Em sentido não mexe!"
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Guiné 63/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)
Guiné > Zona Leste > Enxalé > O famoso granadeiro, uma GMC transformada, que pertencia à CCAÇ 1439 (1965/67).
Foto: © Henrique Matos (2007). Direitos reservados
Foto: © Henrique Matos (2007). Direitos reservados
Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados
Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira.
Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002)
Notas de leitura > III Parte (*) > Uma dramática operação a Madina/Belel e... férias em Bissau
por Luís Graça
Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira.
Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002)
Notas de leitura > III Parte (*) > Uma dramática operação a Madina/Belel e... férias em Bissau
por Luís Graça
Uma dramática operação a Madina
Depois de 73 dias em Bissá, o nosso 1º Cabo Abel Rei regressa a Porto Gole, exausto e adoentado. Visto pelo médico, que lhe receitou “três injecções e comprimidos” (sic), voltou a estar apto, ele e os demais “companheiros de Bissá”, ao fim de três dias.
A 27 e 28 vemo-lo a participar na Op Foguetão, para um golpe de mão uma acampamento da guerrilha na região de Madina. Tratou-se da repetição da Op Frango, envolvendo forças da CCAÇ 1646 (Fá Mandinga) e da CCAÇ 1749 (Mansoa), além da CCART 1661 (Porto Gole).
A CCAÇ 1646 (que passou por Bissau, Fá Mandinga, Xitole, Fá Mandinga e Bissau, entre Janeiro de 1967 e Outubro de 1968) pertencia ao BART 1904 (Bambadinca), tendo por comandante o Cap MiL Art Manuel José Meirinhos.
A CCAÇ 1749, por sua vez, passou por Mansoa, Mansabá e Quinhamel, entre Julho de 1967 e Junho de 1969. Era comandada pelo Cap Mil Art Germano da Silva Domingos.
Na Op Frango, que se realizara a 16 de Novembro de 1967, as NT não atingiram o objectivo, por se terem perdido e por haver falha nas ligações com o PCV. Diz a história da CCAÇ 1661, citada pelo Abel Rei (p. 120), que “o único guia que nos foi possível arranjar, informou não saber atingir o objectivo pelo itinerário determinado superiormente”.
Eis, em resumo, o filme dos acontecimentos da Op Foguetão, de acordo com o diário do Abel Rei (29/11/1967, Enxalé, pp. 120-122), e que me faz trazer à memória peripécias e trapalhadas semelhantes, ocorridas numa outra operação, ao mesmo objectivo, dois anos e meio depois, em Março de 1970 (Op Tigre Vadio) (**): erros de planeamento, guias que se perdem, itinerários mal escolhidos, PCV que denunciam a presença das NT, falhas no abastecimento de água, progressão para o objectivo a horas proibidas, casos de exaustão e desidratação, indisciplina de fogo, relatórios fantasiosos, debandada geral, regresso dramático ao Enxalé…
(i) “Partimos à meia noite do dia 27, com um ração de combate para cada dois homens, e a caminho dum acampamento dos ‘turras’, situado em Madina, onde eles tinham bastante armas pesadas, entre elas um ou dois morteiros 82 e canhão sem recuo (?)" (…).
(ii) As NT chegam ao objectivo “volta das dez e meia da manhã”, altura em que começam a ser sobrevoadas uma avioneta com um ‘major de operações’ (sic), leia-se, PCV…
(iii) Sob um “sol escandante”, depois de mais de uma hora parados e, obviamente, já localizados pelo IN, “fomos obrigados a avançar para o objectivo. Nessa ocasião fazia-se a entrada numa bolanha cheia de água” … (Recorde-se que estamos no fim da época das chuvas)…
(iv) Há quatro baixas por exaustão e desidratação. Esses são helievacuados. Ficam 20 homens a fazer segurança ao helicóptero. Os restantes continuam a avançar para o objectivo.
(v) A progressão faz-se no meio do capim alto (com “mais de três metros de altura”). A zona em que o helicóptero, começa a ser batida por tiro de morteiro. Avança-se para o objectivo…
(vi) “O tiroteio sucedia-se cobrindo aqueles matos! (…) Os homens que ficaram atrás comigo, contaram que foram obrigados a retirar para fugir ao fogo dos ‘turras’ que batiam a zona. Perderam-se…”
(vii) Os “outros, são obrigados pelo capitão (de nome Figueiredo) [referência que me parece explícita, ao Cap Dias Sousa Figueiredo, da CART 1661], “a irmos contra as trincheiras do inimigo – apontando-lhes a sua arma, com ameaça de disparos, se não avançassem” (p. 122)…
(viii) As NT sofrem “dois mortos e três feridos”, não lhes sendo possível “trazer os mortos: um soldado nativo das milícias, e o próprio guia, pois o fogo era intenso”.
(ix) Concluindo, “chegaram já de noite, divididos em dois grupos, aqui ao quartel [do Enxalé], tendo andado perdidos uns dos outros. Vinham estafados”…
(x) A história da unidade diz, seca, cínica e sucintamente, que “o objectivo de Madina foi atingido e destruído, tendo sido mortos 9 elementos IN; as NT tiveram um milícia morto e três feridos” (p. 122)… Não há qualquer referência ao pobre diabo do guia cujo cadáver lá ficou, também, para os jagudis…
Só quinze dias depois é que o Abel volta escrever, para nos dar conta da existência da ‘arma secreta’ da CART 1661, o famoso ‘granadeiro’, uma “viatura pesada blindada com chapas metálicas e areia”, que é utilizada numa coluna auto, de reabastecimento a Bissá… “Pela estrada, em que fomos sempre pé, picando a área em todo o percurso, ao longo da nossa deslocação foram encontrados jornais de propaganda subversiva terrorista” (14/12/1967, Enxalé) (***)…
As festas de Natal e Ano Novo
No final do ano de 1967, o comando da CART 1661 muda-se para Porto Gole, passando o Enxalé a ser apenas um simples destacamento, depois na primeira daquelas localidades se terem construído as necessárias instalações para o pessoal, bem como o depósito de material. Foi também construído uma pista de aterragem para aeronaves tipo D0 27…
Aproximam-se as festas do Natal e o Ano Novo, e o Abel é encarregue de ir a Bafatá fazer as compras (“bebidas, doces e frutas”). Sobre esta localidade (a segunda maior da Guiné, a seguir a capital, mas que ainda não é cidade, nesta época), diz o Abel:
“(…) Foi a primeira vez que visitei uma cidade da Guiné ! (…) Não vou deixar aqui as minhas impressões sobre aquela cidade, pois que lá não achei nada de especial, somente pequenina! Uma cidade, onde a sua base é o comércio, desfrutando o progresso da guerra, e onde a mesma não faz sentir os seus efeitos destruidores”… (30/12/1967, Enxalé, pp. 14-125).
No Natal “houve uma ligeira ceia” e “até umas filhoses feitas por mim” (p. 125).
Três dias depois, a 28, houve visita dos ‘turras’ (sic), uma pequena flagelação, sem consequências… Mais grave seria o ataque de 4/1/1968, levado a cabo por um “Gr IN estimado em 150 elementos” (!)… Diz o autor que “os turras utilizaram o dobro das armas que nós temos”, mas mesmo assim retiraram com pesadas baixas (um morto confirmado e numerosos rastos de sangue) (p. 127)
O ano de 1968 é saudado como da “peluda” (p. 126). A partir de 11 de Janeiro, o Abel tem um novo comandante de pelotão. Antes tinha sido o capitão que tinha dado o “gosse”, bem como outro alferes (17/1/1968, Enxalé, p. 128).
Férias em Bissau, hospedado na Pensão Chantre
A partir de 2 de Fevereiro de 1968, o 1º Cabo Abel Rei está de férias em Bissau… “Vim juntamente com o ‘Conjunto João Paulo’, que fez nesse mesmo dia em actuação musical em Porto Gole, partindo de seguida numa lancha, pelo Rio Geba, para cá”… Ficou hospedado na Pensão Chantre (14/2/1968, Bissau, p. 130).
A cidade é descrita nestes termos: “É grande, não muito, já conta com algumas moradias modernas, e enormes bairros, embora para isso tivesse influência a visita do Presidente da República Portuguesa, feita no princípio deste mês (…) A minha opinião sobre Bissau é bastante boa, em que sobressai o comércio (…) ” (18/2/1968, Bissau, p. 132).
O Abel aproveita o tempo para passear e descansar. “Tenho percorrido praticamente toda a cidade incluindo o Pilão - onde abundam festas nocturnas com bailes, sobretudo nesta altura do Carnaval”… O Pilão é “a parte mais pobre da capital, composta por bairros de população nativa” (sic).
A Bissau chegam rapidamente as notícias da guerra: o ataque a Porto Gole (a 9), ao Enxalé (a 13), prenunciando um recrudescimento da pressão do PAIGC sobre o “chão balanta”… O Abel dá conta também de um ataque em Tite…
A própria cidade de Bissau sofre uma flagelação no mês de Fevereiro na sequência do ataque à BA 12, em Bissalanca: “parece ter havido três mortos e quinze feridos, todos nativos (?)” (3/3/1968, Bissau)… Foram dias “turbulentos” (sic), esses das férias do Abel, em Fevereiro.
Pressão sobre o chão balanta
A 9 de Março, está de regresso a Porto Gole, em LDM (Lancha de Desembarque Média), numa viagem de quatro horas. Três dias depois ainda permanece em Porto Gole, aguardando transporte para o Enxalé… (12/3/1968, Porto Gole, p. 135). Isto quer dizer também que a estrada de Bissau-Bafatá deixa de ser seguro, sobretudo no sector de Mansoa… (O Batalhão de Mansoa “não nos autoriza que façamos colunas em viaturas auto, devido ao número de mortos que temos nos percursos por estrada”… Para se ir do Enxalé para Bissau, vai-se por Bambadinca, via Xime, apanha-se a LDM e vai-se até Porto Gole e daí para Bissau…
“De Bambadinca até cá vim numa lancha de patrulhamento da nossa Marinha de Guerra. Com eles comi e dormi duas noites (e trabalhei, claro!) enquanto esperavam a saíde de um barco civil, com carregamento de produto produzidos no interior, para Bissau, e ao qual, duas vezes por semana, têm de manter segurança, via rio Geba” (27/1/1968, Porto Gole).
Na mesma lancha, veio uma companhia operacional “que tem andado a recolher todos os habitantes das tabancas existentes para além de Porto Gle, assim como todos os seus haveres, sendo depois deitadas abaixo todas as suas habitações” (p. 135). Essa LDM, ao regressar, de Enxalé, na madrugada de 12/3/1968, “sofreu um ataque em pleno Rio Geba”, tendo sido atingida por rockets (p. 135).
A 20 de Março, prosseguem as operações de evacuação e reagrupamento de populações até então sob duplo controlo, e destruídas as suas aldeias. “Foram queimadas e destruídas perto de uma dúzia de moranças. Entretanto trouxemos tudo aquilo que foi possível agarrar: porcos, galinhas e cabritos . (Eu trouxe três galináceos). Voltámos era quase meio-dia” (20/3/1968, Porto Gole, po. 137-138). Uma parte dessa população (balanta) é redistribuída por Enxalé, Porto Gole e Bissá (p. 139).
Entra-se no mês de Abril de 1968, “sem comida nem bebida”… Vinho, café, batatas e bacalhau são quatro dos itens referidos pel Abel, como faltando já há vários dias no aquartelamento de Porto Gole (3/4/1968, p. 140)…
As colunas de e para Bissá continuam a fazer baixas… Logo no dia 2 de Abril, mais dois mortos, da CART 1661… O ambiente é de consternação e apreensão, a escassos seis ou meses do fim da comissão. “Hoje ainda se encontram cá as duas urnas chumbadas com os meus colegas, e ontem foi a enterrar o Soldado ‘Samba’ do Pel Caç Nat 54. Os feridos mais graves foram evacuados para Bissau” (12/4/1968, Enxalé / Porto Gole, pp. 140-142).
(Continua)
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes anteriores:
12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)
14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)
(**) Vd. postes de:
10 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio
27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças) (Luís Graça)
(***) Vd. poste de 2 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2148: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (3): O famigerado granadero do Enxalé, da CCAÇ 1439 (1965/67)
(...) Para a história do famigerado granadero que se vê no Post 2001. Aqui vão duas fotografias do mesmo que tirei no Enxalé. É uma GMC que foi transformada por pessoal da CCAÇ 1439, uma unidade de Madeirenses, que ali esteve até Abril de 1967 e foi substituida pela CART 1661 que passou a sede para Porto Gole em Dezembro de 1967, ficando o Enxalé apenas como destacamento.
A transformação constou do reforço dos taipais com chapas de bidon, separadas de ± 20 cm com areia no meio. Ficou à prova de bala de Mauser. Tinha também uma camada de areia no fundo da caixa e na frente também vários sacos de areia. Tinha instalada como se pode ver uma Breda. Não sei porque é que lhe chamavam granadero.Com ela fiz vários reabastecimentos a Missirá e Porto Gole .
Segundo a descrição do Abel Rei no seu depoimento Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá-Memórias da Guiné e que na altura estava em Bissá, no dia 5 de Outubro de 1967 esta viatura quando regressava a Porto Gole accionou uma mina incendiária a que se seguiu uma emboscada de que só se safaram com apoio aéreo. Fazia parte duma coluna que saiu de Porto Gole ao encontro doutra coluna saída de Bissá a pé para entregar uns militares destinados àquele destacamento.Desde a abertura de Bissá (que eu conheci bem e considero um erro catastrófico) em Abril de 1967 e até esta última data tiveram três viaturas inutilizadas, mais de vinte mortos e uns cinquenta feridos evacuados. Penso por isso que não andariam propriamente a jogar uns com os outros. (....)
Depois de 73 dias em Bissá, o nosso 1º Cabo Abel Rei regressa a Porto Gole, exausto e adoentado. Visto pelo médico, que lhe receitou “três injecções e comprimidos” (sic), voltou a estar apto, ele e os demais “companheiros de Bissá”, ao fim de três dias.
A 27 e 28 vemo-lo a participar na Op Foguetão, para um golpe de mão uma acampamento da guerrilha na região de Madina. Tratou-se da repetição da Op Frango, envolvendo forças da CCAÇ 1646 (Fá Mandinga) e da CCAÇ 1749 (Mansoa), além da CCART 1661 (Porto Gole).
A CCAÇ 1646 (que passou por Bissau, Fá Mandinga, Xitole, Fá Mandinga e Bissau, entre Janeiro de 1967 e Outubro de 1968) pertencia ao BART 1904 (Bambadinca), tendo por comandante o Cap MiL Art Manuel José Meirinhos.
A CCAÇ 1749, por sua vez, passou por Mansoa, Mansabá e Quinhamel, entre Julho de 1967 e Junho de 1969. Era comandada pelo Cap Mil Art Germano da Silva Domingos.
Na Op Frango, que se realizara a 16 de Novembro de 1967, as NT não atingiram o objectivo, por se terem perdido e por haver falha nas ligações com o PCV. Diz a história da CCAÇ 1661, citada pelo Abel Rei (p. 120), que “o único guia que nos foi possível arranjar, informou não saber atingir o objectivo pelo itinerário determinado superiormente”.
Eis, em resumo, o filme dos acontecimentos da Op Foguetão, de acordo com o diário do Abel Rei (29/11/1967, Enxalé, pp. 120-122), e que me faz trazer à memória peripécias e trapalhadas semelhantes, ocorridas numa outra operação, ao mesmo objectivo, dois anos e meio depois, em Março de 1970 (Op Tigre Vadio) (**): erros de planeamento, guias que se perdem, itinerários mal escolhidos, PCV que denunciam a presença das NT, falhas no abastecimento de água, progressão para o objectivo a horas proibidas, casos de exaustão e desidratação, indisciplina de fogo, relatórios fantasiosos, debandada geral, regresso dramático ao Enxalé…
(i) “Partimos à meia noite do dia 27, com um ração de combate para cada dois homens, e a caminho dum acampamento dos ‘turras’, situado em Madina, onde eles tinham bastante armas pesadas, entre elas um ou dois morteiros 82 e canhão sem recuo (?)" (…).
(ii) As NT chegam ao objectivo “volta das dez e meia da manhã”, altura em que começam a ser sobrevoadas uma avioneta com um ‘major de operações’ (sic), leia-se, PCV…
(iii) Sob um “sol escandante”, depois de mais de uma hora parados e, obviamente, já localizados pelo IN, “fomos obrigados a avançar para o objectivo. Nessa ocasião fazia-se a entrada numa bolanha cheia de água” … (Recorde-se que estamos no fim da época das chuvas)…
(iv) Há quatro baixas por exaustão e desidratação. Esses são helievacuados. Ficam 20 homens a fazer segurança ao helicóptero. Os restantes continuam a avançar para o objectivo.
(v) A progressão faz-se no meio do capim alto (com “mais de três metros de altura”). A zona em que o helicóptero, começa a ser batida por tiro de morteiro. Avança-se para o objectivo…
(vi) “O tiroteio sucedia-se cobrindo aqueles matos! (…) Os homens que ficaram atrás comigo, contaram que foram obrigados a retirar para fugir ao fogo dos ‘turras’ que batiam a zona. Perderam-se…”
(vii) Os “outros, são obrigados pelo capitão (de nome Figueiredo) [referência que me parece explícita, ao Cap Dias Sousa Figueiredo, da CART 1661], “a irmos contra as trincheiras do inimigo – apontando-lhes a sua arma, com ameaça de disparos, se não avançassem” (p. 122)…
(viii) As NT sofrem “dois mortos e três feridos”, não lhes sendo possível “trazer os mortos: um soldado nativo das milícias, e o próprio guia, pois o fogo era intenso”.
(ix) Concluindo, “chegaram já de noite, divididos em dois grupos, aqui ao quartel [do Enxalé], tendo andado perdidos uns dos outros. Vinham estafados”…
(x) A história da unidade diz, seca, cínica e sucintamente, que “o objectivo de Madina foi atingido e destruído, tendo sido mortos 9 elementos IN; as NT tiveram um milícia morto e três feridos” (p. 122)… Não há qualquer referência ao pobre diabo do guia cujo cadáver lá ficou, também, para os jagudis…
Só quinze dias depois é que o Abel volta escrever, para nos dar conta da existência da ‘arma secreta’ da CART 1661, o famoso ‘granadeiro’, uma “viatura pesada blindada com chapas metálicas e areia”, que é utilizada numa coluna auto, de reabastecimento a Bissá… “Pela estrada, em que fomos sempre pé, picando a área em todo o percurso, ao longo da nossa deslocação foram encontrados jornais de propaganda subversiva terrorista” (14/12/1967, Enxalé) (***)…
As festas de Natal e Ano Novo
No final do ano de 1967, o comando da CART 1661 muda-se para Porto Gole, passando o Enxalé a ser apenas um simples destacamento, depois na primeira daquelas localidades se terem construído as necessárias instalações para o pessoal, bem como o depósito de material. Foi também construído uma pista de aterragem para aeronaves tipo D0 27…
Aproximam-se as festas do Natal e o Ano Novo, e o Abel é encarregue de ir a Bafatá fazer as compras (“bebidas, doces e frutas”). Sobre esta localidade (a segunda maior da Guiné, a seguir a capital, mas que ainda não é cidade, nesta época), diz o Abel:
“(…) Foi a primeira vez que visitei uma cidade da Guiné ! (…) Não vou deixar aqui as minhas impressões sobre aquela cidade, pois que lá não achei nada de especial, somente pequenina! Uma cidade, onde a sua base é o comércio, desfrutando o progresso da guerra, e onde a mesma não faz sentir os seus efeitos destruidores”… (30/12/1967, Enxalé, pp. 14-125).
No Natal “houve uma ligeira ceia” e “até umas filhoses feitas por mim” (p. 125).
Três dias depois, a 28, houve visita dos ‘turras’ (sic), uma pequena flagelação, sem consequências… Mais grave seria o ataque de 4/1/1968, levado a cabo por um “Gr IN estimado em 150 elementos” (!)… Diz o autor que “os turras utilizaram o dobro das armas que nós temos”, mas mesmo assim retiraram com pesadas baixas (um morto confirmado e numerosos rastos de sangue) (p. 127)
O ano de 1968 é saudado como da “peluda” (p. 126). A partir de 11 de Janeiro, o Abel tem um novo comandante de pelotão. Antes tinha sido o capitão que tinha dado o “gosse”, bem como outro alferes (17/1/1968, Enxalé, p. 128).
Férias em Bissau, hospedado na Pensão Chantre
A partir de 2 de Fevereiro de 1968, o 1º Cabo Abel Rei está de férias em Bissau… “Vim juntamente com o ‘Conjunto João Paulo’, que fez nesse mesmo dia em actuação musical em Porto Gole, partindo de seguida numa lancha, pelo Rio Geba, para cá”… Ficou hospedado na Pensão Chantre (14/2/1968, Bissau, p. 130).
A cidade é descrita nestes termos: “É grande, não muito, já conta com algumas moradias modernas, e enormes bairros, embora para isso tivesse influência a visita do Presidente da República Portuguesa, feita no princípio deste mês (…) A minha opinião sobre Bissau é bastante boa, em que sobressai o comércio (…) ” (18/2/1968, Bissau, p. 132).
O Abel aproveita o tempo para passear e descansar. “Tenho percorrido praticamente toda a cidade incluindo o Pilão - onde abundam festas nocturnas com bailes, sobretudo nesta altura do Carnaval”… O Pilão é “a parte mais pobre da capital, composta por bairros de população nativa” (sic).
A Bissau chegam rapidamente as notícias da guerra: o ataque a Porto Gole (a 9), ao Enxalé (a 13), prenunciando um recrudescimento da pressão do PAIGC sobre o “chão balanta”… O Abel dá conta também de um ataque em Tite…
A própria cidade de Bissau sofre uma flagelação no mês de Fevereiro na sequência do ataque à BA 12, em Bissalanca: “parece ter havido três mortos e quinze feridos, todos nativos (?)” (3/3/1968, Bissau)… Foram dias “turbulentos” (sic), esses das férias do Abel, em Fevereiro.
Pressão sobre o chão balanta
A 9 de Março, está de regresso a Porto Gole, em LDM (Lancha de Desembarque Média), numa viagem de quatro horas. Três dias depois ainda permanece em Porto Gole, aguardando transporte para o Enxalé… (12/3/1968, Porto Gole, p. 135). Isto quer dizer também que a estrada de Bissau-Bafatá deixa de ser seguro, sobretudo no sector de Mansoa… (O Batalhão de Mansoa “não nos autoriza que façamos colunas em viaturas auto, devido ao número de mortos que temos nos percursos por estrada”… Para se ir do Enxalé para Bissau, vai-se por Bambadinca, via Xime, apanha-se a LDM e vai-se até Porto Gole e daí para Bissau…
“De Bambadinca até cá vim numa lancha de patrulhamento da nossa Marinha de Guerra. Com eles comi e dormi duas noites (e trabalhei, claro!) enquanto esperavam a saíde de um barco civil, com carregamento de produto produzidos no interior, para Bissau, e ao qual, duas vezes por semana, têm de manter segurança, via rio Geba” (27/1/1968, Porto Gole).
Na mesma lancha, veio uma companhia operacional “que tem andado a recolher todos os habitantes das tabancas existentes para além de Porto Gle, assim como todos os seus haveres, sendo depois deitadas abaixo todas as suas habitações” (p. 135). Essa LDM, ao regressar, de Enxalé, na madrugada de 12/3/1968, “sofreu um ataque em pleno Rio Geba”, tendo sido atingida por rockets (p. 135).
A 20 de Março, prosseguem as operações de evacuação e reagrupamento de populações até então sob duplo controlo, e destruídas as suas aldeias. “Foram queimadas e destruídas perto de uma dúzia de moranças. Entretanto trouxemos tudo aquilo que foi possível agarrar: porcos, galinhas e cabritos . (Eu trouxe três galináceos). Voltámos era quase meio-dia” (20/3/1968, Porto Gole, po. 137-138). Uma parte dessa população (balanta) é redistribuída por Enxalé, Porto Gole e Bissá (p. 139).
Entra-se no mês de Abril de 1968, “sem comida nem bebida”… Vinho, café, batatas e bacalhau são quatro dos itens referidos pel Abel, como faltando já há vários dias no aquartelamento de Porto Gole (3/4/1968, p. 140)…
As colunas de e para Bissá continuam a fazer baixas… Logo no dia 2 de Abril, mais dois mortos, da CART 1661… O ambiente é de consternação e apreensão, a escassos seis ou meses do fim da comissão. “Hoje ainda se encontram cá as duas urnas chumbadas com os meus colegas, e ontem foi a enterrar o Soldado ‘Samba’ do Pel Caç Nat 54. Os feridos mais graves foram evacuados para Bissau” (12/4/1968, Enxalé / Porto Gole, pp. 140-142).
(Continua)
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes anteriores:
12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)
14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)
(**) Vd. postes de:
10 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio
27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças) (Luís Graça)
(***) Vd. poste de 2 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2148: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (3): O famigerado granadero do Enxalé, da CCAÇ 1439 (1965/67)
(...) Para a história do famigerado granadero que se vê no Post 2001. Aqui vão duas fotografias do mesmo que tirei no Enxalé. É uma GMC que foi transformada por pessoal da CCAÇ 1439, uma unidade de Madeirenses, que ali esteve até Abril de 1967 e foi substituida pela CART 1661 que passou a sede para Porto Gole em Dezembro de 1967, ficando o Enxalé apenas como destacamento.
A transformação constou do reforço dos taipais com chapas de bidon, separadas de ± 20 cm com areia no meio. Ficou à prova de bala de Mauser. Tinha também uma camada de areia no fundo da caixa e na frente também vários sacos de areia. Tinha instalada como se pode ver uma Breda. Não sei porque é que lhe chamavam granadero.Com ela fiz vários reabastecimentos a Missirá e Porto Gole .
Segundo a descrição do Abel Rei no seu depoimento Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá-Memórias da Guiné e que na altura estava em Bissá, no dia 5 de Outubro de 1967 esta viatura quando regressava a Porto Gole accionou uma mina incendiária a que se seguiu uma emboscada de que só se safaram com apoio aéreo. Fazia parte duma coluna que saiu de Porto Gole ao encontro doutra coluna saída de Bissá a pé para entregar uns militares destinados àquele destacamento.Desde a abertura de Bissá (que eu conheci bem e considero um erro catastrófico) em Abril de 1967 e até esta última data tiveram três viaturas inutilizadas, mais de vinte mortos e uns cinquenta feridos evacuados. Penso por isso que não andariam propriamente a jogar uns com os outros. (....)
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Guiné 63/74 - P4857: ”PAIGC – Análise dos tipos de resistência , 2 - Resistência económica” - Páginas 25 a 28 (Magalhães Ribeiro)
1. Do arquivo pessoal, do Eduardo José Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp (Ranger) da CCS do BCAÇ 4612/74, Mansoa 1974:
Camaradas,
Para os interessados no conhecimento da documentação, hoje histórica, que circulava entre as hostes do PAIGC, nos anos 70, e constituíam peças da sua escassa bibliografia aplicada na filosofia da acção psicológica sobre os seus seguidores, apoiantes e outros interessados dou, nesta mensagem, término à publicação de um caderno prático utilizado nessa finalidade.
A publicação foi iniciada no poste - P4721 (capa e páginas 1 a 4), continuada nos postes – P4753 (páginas 5 a 9), P4799 (páginas 10 a 14), P4810 (páginas 15 a 19) e P4837 (páginas 20 a 24).
Neste, seguem-se as páginas 25, 26, 27 e 28, dum total de 28 páginas.
A qualidade de uma ou outra página não é das melhores.
O documento tem inscrito na capa os seguintes dizeres: ”PAIGC - ANÁLISE DOS TIPOS DE RESISTÊNCIA, 2 - Resistência económica, Aos camaradas participantes no seminário de quadros, realizado de 19 a 24 de Novembro de 1969, (Este texto é escrito a partir de uma gravação das palavras do secretário geral)”.
Um abraço Amigo,
Magalhães Ribeiro
Documentos: © Eduardo José Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
19 de Agosto de 2009 >
Guiné 64/74 - P4837: ”PAIGC – Análise dos tipos de resistência , 2 - Resistência económica” - Páginas 20 a 24 (Magalhães Ribeiro)
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