BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO - VI
Os Pelotões de Fuzilamento
O Coronel sr. Eurico de Deus Corvacho
O soldado sr. Carlos Gonçalves de Freitas
Quando o nosso Pira de Mansoa, veio, de certeza com a melhor das intenções, eu conheço-o bem pois já convivi com ele em circunstâncias várias para lhe reconhecer a nobreza do seu carácter, a sua disponibilidade para com o próximo, a sua dedicação ao nosso Blogue após as suas oito horas de trabalho de assalariado e a sua preocupação com terceiros, dizia eu, quando o Pira para justificar certas atitudes tentou pôr água na fervura com a troca de prendinhas e com os Pelotões Virtuais de Fuzilamento, pensei logo em contactá-lo para lhe manifestar a minha não concordância com tantos paninhos quentes.
Não foi necessário, pois, acabado de chegar de Coimbra dirigi-me de imediato ao nosso Blogue (Oh Vasco que vício… já fizeste aquilo, já trataste daqueloutro… vai perguntar a minha mulher quando dentro de uma hora chegar a casa... ) e tive o grato prazer de ler o texto do nosso Camarigo Mexia Alves, bem como os comentários que se lhe seguiram e onde , também eu, deixei uma papaia, que constituem no seu conjunto o somatório de reacções irmãs dos verdadeiros Combatentes da Guiné, mostrando a todos qual o significado de um espaço de fraternidade, de amor e também de saber perdoar, muitas vezes não perdoando.
Então qual a razão de trazer até vós, camaradas e amigos, os Pelotões de Fuzilamento?
É que eles existem e continuam a matar!
São pelotões que matam em silêncio sem utilizarem o barulho da metralha. Não usam G3, nem Kalashnikov nem morteiros nem obuses. Usam armas mais sofisticadas que causam uma morte mais lenta, mais prolongada, de muito maior sofrimento.
Usam o desprezo!
Usam o abandono!
Usam o esquecimento!
Ignoram os combatentes da Guiné!
Nem sequer nas suas campanh
as eleitorais se dignam por um segundo que seja, falar dos nossos mortos em combate, dos males que a guerra promoveu, desfazendo famílias, provocando em muitos de nós distúrbios de tal ordem graves que transformaram, alguns de nós, Homens sãos, íntegros e vigorosos em pedintes de mão estendida, esmolando pelas ruas das cidades.
Todos nós conhecemos inúmeros companheiros nossos que passam ou passaram por situações destas.
O poste respeitante ao coronel Corvacho, que todos nós conhecemos no mínimo como combatente da Guiné, encheu-me de tristeza e pode bem ser um exemplo do que acabo de dizer.
Ler, nas palavras do seu filho sr. Eurico Corvacho que o seu pai esteve numa casa de saúde ao abandono, falar em lar de idosos, em assistentes sociais, em ver se consegue o seu internamento no Hospital militar, é mostrar à evidência a existência dos silenciosos pelotões de fuzilamento.
Quantos Corvachos existirão por esse país fora? Quem não conhece camaradas que sofrem e vivem no mais completo isolamento desprezados pelos nossos “grandes homens” da política?
Eu conheço gente da minha Companhia com grandes dificuldades, que a solidariedade dos mais próximos tenta de alguma forma minorar.
Conheci de muito perto um conterrâneo meu de seu nome Carlos Gonçalves Freitas, que foi soldado condutor na minha Companhia de Cavalaria 8351 “Os Tigres”.
No dia 12 de Maio de 1973 conduzia uma das viaturas no regresso da coluna Aldeia Formosa - Cumbijã que sofreu uma violenta emboscada, da qual resultou um morto, o meu camarada António Bento Bôa e dois feridos graves; todos eles seguiam no seu Unimog.
O Freitas nunca mais foi o mesmo!
Os tiques nervosos que lhe valeram a alcunha de PISCA, aumentavam diariamente.
Os olhos não paravam de abrir e fechar, a cabeça abanava continuamente, o nariz fazia ruídos esquisitos e o consumo da cerveja aumentava exponencialmente.
Natal de 1972 em Aldeia Formosa. O FREITAS ou PISCA, é o soldado que está por trás de um capitão a puxar para o gordo (tem bigode, SEM BARBA).
Conversava com ele quase diariamente sobre assuntos da Figueira dos quais ele rapidamente fugia. Vinha em consulta externa para Bissau de onde regressava rapidamente; não aguentava estar onde não conhecia ninguém. A asa protectora dos seus camaradas, mesmo nas profundezas do mato, merecia-lhe mais que a paz da capital.
Acompanhei-o o melhor que consegui.
Quando chegámos a Portugal, trouxe-o de táxi de Lisboa até casa. Procurava-me duas, três vezes por semana. Estava com dificuldades em dar-se com a mulher e com as filhas. Tinha dias em que me aparecia com sinais evidentes de embriaguez e o seu olhar era cada vez mais duro.
Deixou de aparecer! Eu fui para o Porto e depois para Coimbra, onde por mero acaso o encontrei no hospital. Desleixado no vestir e tresandando a álcool. Tivemos uma grande conversa e lembro-me de lhe ter dado o montante que me pediu, a título de qualquer desculpa.
Dei-lhe o meu telefone e a morada em Coimbra de que ele jamais se serviu. Sabia notícias dele pelo Fernando Lopes, outro Tigre da Figueira de quem fui padrinho de casamento. A situação familiar degradava-se, a separação aconteceu até que há uns tempos atrás o Lopes ligou-me: Capitão , morreu o Pisca! Assim, de rajada.
Atirara-se para debaixo do comboio junto à estação das Alhadas.
Fui ao seu funeral onde estavam meia dúzia de pessoas.
Quebrando o silêncio de circunstância, dirigi-me às filhas e naquele momento só eu sei quanta verdade existiu quando lhes expressei o respeito e a dor pelo meu camarada que havia, finalmente, encontrado solução para o seu sofrimento.
O silencioso pelotão de fuzilamento dera mais uma vez sinal.!
Nos encontros da minha Companhia já contamos vinte mortos, fora os camaradas que nunca apareceram ou que não estão por nós referenciados que tornarão a lista, porventura, mais extensa. Um destes dias, mais ano menos ano, já não há nenhum Tigre do Cumbijã para morder as canelas dos rapazes…
Chega de lamentações e de olhar para trás.
Só peço aos meus Camaradas, a todos os Camaradas da Guiné que NÃO DEIXEMOS QUE ESTES PELOTÕES DE FUZILAMENTO NOS CONTINUEM A MATAR.
Um abraço para todos os meus Camaradas da Tabanca Grande.
Vasco A. R. da Gama
Foto: © Vasco da Gama (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4939: Banalidades do Mondego (Vasco da Gama) (V): A minha guerra foi outra, camarada Amílcar Ventura