Queridos amigos,
Por determinação do Governador Vellez Caroço, o Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis lança-se numa explanação sobre os principais eventos indicadores do princípio da "pacificação", encetado a partir de 1834 e tendo o seu termo em 1924. Seria a primeira vez que a nível oficial se produzia uma listagem de acordos, convénios e tratados entre a soberania portuguesa e as chefias indígenas. Imprevistamente, o Coronel Miguéis resolve por sua conta e risco pronunciar-se sobre a rebelião de Abdul Indjai, que nos vem dizer não está conforme outros relatos, seguramente este oficial do Exército intuía que a detenção e o exílio do régulo do Oio podia empalidecer os atos militares de Teixeira Pinto, e daí as considerações um tanto barrocas e atenuantes que ele profere, como se lerá adiante. Hoje, está claramente demonstrado que Abdul Indjai, independentemente da sua bravura pessoal, cometeu desmandos incríveis e deixou de praticá-los com os seus mercenários, praticaram-se pilhagens e raptos em toda a península de Bissau. E desmandou-se como régulo do Oio, aterrorizando e impondo impostos como direito de saque. Esta é a verdade dos factos.
Abraço do
Mário
A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (2)
Mário Beja Santos
Como é sabido, a Biblioteca da Sociedade de Geografia possui uma secção de Reservados onde tenho tido a felicidade de encontrar algumas peças preciosas. Houve agora oportunidade de regressar a este filão de manuscritos, e deparou-se-me um dossiê intitulado Res 1 – Pasta E-21, que se intitula Apontamentos Relativos às Campanhas para a Pacificação da Guiné de 1834 a 1924, compilados pelo Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis, Bolama, com data de 6 de agosto de 1925, Repartição Militar da Colónia da Guiné, 1.ª Secção. É então Governador Velez Caroço.
Trata-se de um inventário minucioso, o oficial procurou esmerar-se, manda o bom-senso que não se vai escrever por atacado toda a sua narrativa, e não há nada como explicar porquê. Começa por nos dizer que desde a descoberta da Guiné até ao ano de 1834 não encontrou nos arquivos da Repartição quaisquer elementos respeitantes a operações militares.
Como vimos anteriormente, é um elenco extensíssimo, mas de extrema utilidade para quem investiga todo este período da pacificação, já possuímos elementos com certa vastidão nesta matéria, como é o caso do admirável levantamento feito por Armando Tavares da Silva em Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926, Caminhos Romanos, 2016.[*]
O Tenente-Coronel Miguéis mantém uma narrativa neutra até chegar à prisão de Abdul Indjai, aí o seu coração balanceou, quer proceder a uma certa advocacia, seria possível traição daquele que foi o braço-direito de Teixeira Pinto, e temos agora um quase solilóquio à procura de explicação para essa estranha rebelião do régulo do Oio, damos-lhe a palavra:
“Revolta-se contra quem? Contra o governo da Província, representado por Henrique Sousa Guerra, seu companheiro de armas, seu comandante durante o período da doença de Teixeira Pinto, e portanto seu amigo? Não, a rebelião de Abdul Indjai não representa uma rebelião contra o domínio português no Oio, seu regulado, deve representar qualquer coisa que ignoro, mas suponho ser forjada pela intriga que campeia em toda a província da Guiné.
João Teixeira Pinto, se te pudesses levantar do túmulo e lançar em rosto as vilanias daqueles que tem adulavam movendo a intriga, por certo Abdul Indjai, teu companheiro e amigo, não mandaria disparar um único tiro contra as forças portuguesas; correria a abraçar-te e apesar da sua cor e raça serem diferentes chorariam ambos a infeliz pátria que impulsionada pela vil traição de alguns dos teus filhos, que nada produzem, deixa muitas vezes no esquecimento aqueles que por ela sacrificaram o seu bem-estar, o seu sangue e a sua vida.
Por vil intriga, tu, Teixeira Pinto, meu camarada, amigo e condiscípulo, não foste galardoado pelo grande serviço que prestaste à Guiné, na ilha de Bissau. Sofredor como eras, contentaste-te com a dispensa do exame para o posto de major. Não serias tu um general em vez de um major? Tenho fé que apagadas as paixões mesquinhas, num futuro não muito longe, a História há de fazer-se e justiça ser-te-á feita assim como ao teu companheiro Abdul Indjai”.
E pondo termo à exaltação pessoal, preito de homenagem ao camarada e amigo Teixeira Pinto, lança-se na documentação existente, ela é de uma grande importância, não encontrei até hoje nada de tão substancial para descrever os acontecimentos:
“Não se encontra na Ordem à Guarnição a nomeação de qualquer força para combater as hostes rebeldes de Abdul Indjai. Na Ordem à Força Armada apenas se lê que desde 23 de junho até 26 partem para Farim e para Mansoa alguns oficiais, que, suponho, irem tratar desta questão.
Um relatório que tenho presente diz que em 19 de março foi a povoação de Solinhoté assaltada pela gente armada de Abdul que tinha por fim prender o indígena Malam Sanhá para ser por Abdul Indjai morto na povoação de Mandorno; que em 20 de maio, 2 Oincas refugiados no território de Bissorã entre esta região e a de Gansambu foram atacados pela gente de Cherno Sabali, dos quais feriram um, não aparecendo mais o outro; que dias depois esta mesma gente assaltou a povoação de Fajonquito, levando tudo quanto encontraram; que em 2 de julho, indo a mesma gente assaltar a povoação de Batur, dali levou 36 cabeças de gado; que em 3, quando a gente de Abdul se dispunha a atacar a povoação de Gussafari para roubar, foram atacados pelos auxiliares, e que em 26 a gente de Cherno Sali atacou os auxiliares de Gussafari para se apoderarem de uma lancha que estava no porto.
No relatório do capitão-tenente João Quadros vê-se que este oficial conduziu a bordo do “Bissau”, em 24 de julho, um destacamento de 40 praças indígenas, 3 europeias, 2 sargentos e o alferes Trindade. Comandava esta força o tenente Sobral. Chegaram a Farim no dia 26. Em 29 chega a Farim o vapor “Capitania”, conduzindo o capitão Lima e um destacamento do comando do alferes Alonso Figueira, 13 soldados indígenas e um europeu.
Em 1 de agosto segue para Mansabá um reforço de 30 praças sobre o comando do Alferes Figueira, levando três carregadores. Os rebeldes (diz o relatório) hostilizaram esta força e cortaram a linha telegráfica entre Farim e Mansabá. Em 13 de julho uma diligência de 23 auxiliares e 2 guardas da circunscrição de Farim prenderam 3 jauras (homens de guerra) mal-armados, tendo fugido outros nove também mal-armados que impunham à gente da povoação de Nema o pagamento de uma multa de 20 escudos e 5 vacas. Pelo relatório do capitão Lima conclui-se que houve em Mansabá uma conferência entre Abdul Indjai, o Capitão Espírito Santo e outros oficiais, que particularmente sei serem o Tenente Honório de Oliveira Marques e o Alferes Alberto Soares, na qual Abdul Indjai propõe o seguinte a troco de entregar todas as armas: 1 – A redução da guarnição do posto de Mansabá a 1 oficial, 1 sargento, 2 cabos e 27 soldados; 2 – A retirada da força militar de Farim; 3 – Desarmamento dos auxiliares da região de Bissorã; 4 – Anexação ao seu regulado das razões de Tiligi, Binar, Bula, Canchungo e Churo; 5 – Que lhe fosse paga a quantia de 40 mil escudos como recompensa do seu trabalho por ter batido as regiões de Mansoa, Oio, Costa de Baixo e Bissau e que lhe fosse dada uma percentagem de 10% sobre o imposto de palhota cobrado anualmente nas regiões acima referidas.
Em 1 de agosto, quando uma força do comando do Alferes Figueira seguia de Farim para Mansabá foi este oficial avisado durante o trajeto que vários grupos de forças armadas se dirigiam ao seu encontro, pelo que tomou certas disposições no sentido de evitar qualquer surpresa. Até à povoação de Bironque a marcha fez-se sem incidentes, tendo notado apenas que a linha telegráfica se encontrava cortada. O 2.º Sargento Parreira, que comandava a guarda avançada, foi avisado que uma força armada, mais adiante, se opunha à passagem dos nossos.
Como os carregadores informados do caso pretendessem fugir, o sargento abandonou a coluna dirigindo-se para Farim, sendo seguido por um indígena e um cabo europeu que, alcançando-o, se verificou ser Alburi Indjai, alferes de segunda linha, sobrinho de Abdul, que ia comunicar estar Abdul inteirado de que a força não ia atacar e que por isso podia continuar a marcha, pois já tinha avisado a sua gente para lhe não impedirem a passagem."
(continua)
Jorge Frederico Velez Caroço, governador da Guiné
____________Notas do editor:
[*] - Vd. postes de:
30 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17526: Notas de leitura (973): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (1) (Mário Beja Santos)
3 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17536: Notas de leitura (974): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (2) (Mário Beja Santos)
7 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17554: Notas de leitura (975): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (3) (Mário Beja Santos)
10 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17563: Notas de leitura (976): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (4) (Mário Beja Santos)
14 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17582: Notas de leitura (977): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (5) (Mário Beja Santos)
17 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17591: Notas de leitura (978): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (6) (Mário Beja Santos)
e
21 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17610: Notas de leitura (979): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (7) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 15 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22546: Historiografia da presença portuguesa em África (280): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (1) (Mário Beja Santos)