1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (*), com data de 30 de Outubro de 2008 (O Rui, residente na Vila da Feira,é membro da nossa Tabanca Grande, desde 30 de Abril de 2007):
Caros Luís Graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote.
Recebam um abraço. Um dia conhecer-nos-emos pessoalmente.
Envio-vos, desta feita, mais um excerto das minhas memórias,
Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa.
Muita saúde e bem-estar é o meu desejo, também para todos os tertulianos e mais ainda para aqueles que ainda sofrem com sequelas daquela guerra.
Rui Silva
ex-Fur Mil
CCAÇ 816
Bissorã,
Olossato,
Mansoa
1965/67
2. A terrível estrada do K3
Esta estrada ligava
Olossato a
Farim. Julgo que o
K3 era assim chamado por estar a 3 Km de Farim.
Foto 1 > Neste recorte do mapa da Província da Guiné, vê-se localização do K3, na estrada Mansabá/Farim, a 3Km desta localidade. Pode ver-se também a estrada K3/Olossato, onde se deram as inúmeras emboscadas de que fala o nosso camarada Rui Silva e onde perdeu a vida o seu companheiro de armas Silva.Domingo, 1 de Agosto de 1965
O DIA MAIS LONGO, como nós o perpetuámos.As praias na Metrópole, cheias de gente por certo, a gozar das delícias do sol, do mar e da areia (de direito, convenhamos), e nós, os da
816, embrenhados no mato, algures na Guiné aos tiros para acertar no semelhante (só que de côr) para que este não nos matasse primeiro. Tínhamos todos pouco mais de 20 anos de idade.
Do livro das minhas memórias, Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa...passaram-se mais dois dias e eis que o Capitão reúne Sargentos e Oficiais e diz-nos que temos de voltar à estrada do K3 para limpar as abatises (árvores de grande porte abatidas e a obstruir a estrada), pois, segundo um reconhecimento aéreo, o inimigo, em face das outras terem sido retiradas pela tropa, dias antes pela 816, abateu outras e então à laia de vingança, em número muito maior; Portanto, a ordem, que era do Comando do Batalhão, ficou dada através do nosso Capitão.- Agora é que vai ser o bom e o bonito! - comentámos nós de imediato e em surdina.
Feito esse trabalho, pela certa que eles esperavam pela nossa aceitação ao
convite, pelo menos naqueles próximos dias. Os da 566 (Companhia sediada no Olossato), que sabiam bem daquelas manobras inimigas, mostraram-se bem receosos, mais por nós, que para além de irmos à frente e a limpar a estrada, tínhamos toda a parte activa na operação.
Então todo o mundo se queixava pela desdita e temia por o resultado de tal
odisseia. Só nos perguntávamos:
- Mas para quê tirar as abatises, se logo ao outro dia eles põem outras e até mais? E para quê, se aquela estrada nem é de todo necessária pois até está considerada militarmente interdita?. (Havia outros acessos a Farim, quer por rio quer por estrada).
- Isto é orgulho do Batalhão e nós é que nos amolamos - lamentávamo-nos nós!
Mas, enfim, as ordens são para se cumprirem e embora muito fosse de prever naquela estrada o que nós dizíamos não passavam de conjecturas (?).
Naquele célebre domingo, dia 1 de Agosto de 1965, pelo alvorecer, a caravana pôs-se pela 2.ª vez e passado pouco tempo a caminho do K3. Alguns bem se safaram alegando estas ou aquelas maleitas. O Coelho, por causa das hemorróidas; o Coutinho, por indisposição; o Baião, por causa das dores de barriga, etc.
Dos chamados não operacionais, e entre os Furriéis, alinhou o Moreira, que não teve coragem ou jeito de arranjar algum pretexto para fugir ao casual convite do Capitão. Ainda me recordo do desventurado do Silva, aquando da altura das queixas deste e daquele, dizer-me, no sítio aonde dormíamos(?) e enquanto calçava as alpercatas a preparar-se para a partida:
- Eu tenho um forte motivo para ficar, pois tenho os pés cheios de bolhas - (daí ele ter calçado sapatilhas em vez das habituais botas de campanha) e apontava-os ao dizer-mo de seguida - mas eu vou.
Lembro-me também que ele usava um grande terço religioso à volta do pescoço. Mal sabia o Silva, o saudoso Silva, que ia a caminho da sua derradeira saída para o mato e, o que era pior, a caminho de viver o seu último dia de vida.
A coluna foi-se formando dentro do ritual habitual. Na frente desta vez e com funções bem adequadas à tarefa, o gigantesco
Caterpillar que com a sua grande potência e mobilidade afastaria as abatises. Com o seu enorme peso só uma grande mina o poderia tornar inoperacional. Às abatises tínhamos de ter o cuidado prévio de ver se havia armadilha com granadas ou com os devastadores e artesanais
fornilhos. Foram desmontadas várias armadilhas.
O Capitão mandou um Atirador com a respectiva metralhadora para dentro da
colher do
Caterpillar que aqui seguia, sempre que a coluna retomava a marcha. O lugar era de boa observação e a colher, sendo de aço espesso, era ao mesmo tempo um bom abrigo.
Um pelotão apeado, em duas filas, uma de cada lado da estrada, precedia o
Caterpillar. A seguir a este, outro Gr Comb e outro ainda fechava a 816. Depois a antiquada, mas robusta GMC, com uma cabina improvisada na parte da carga do veículo, onde sobre um tripé estava montada a metralhadora pesada MG42, a meu cargo. Finalmente o Gr Comb da 566 em missão de apoio e segurança fechava a coluna.
A MG 42, que inspirava grande confiança, apresentava-se muito limpa e lubrificada, pois o meu municiador, o Cabo António, ali ao meu lado, tinha muito esmero neste serviço. Longas fitas carregadas de cartuchos ocupavam grande espaço da cabina que não tinha mais do que 1,5 metros quadrados de área. Agachado, a contas com a comunicação, o Radiotelegrafista, o Cabo Fontes, que ia procurando sintonizar o contacto com o posto do quartel de Olossato e mais tarde com a aviação. De tanto em tanto tempo ele tinha de entrar em comunicação com o quartel para que fosse mantido um regular e permanente contacto entre este e a coluna. Nos intervalos das ligações ele arranjava música oriunda não sei de onde, mas que em tão angustiosa aventura dava um toque de descompressão.
Os bombardeiros logo apareceram também e para o devido apoio aéreo, e pronto, agora era só andar, limpar, e estar pronto para aguentar o que, desta vez, muito provavelmente, estava para vir. O IN estava perto, por certo, sentíamo-lo, respirávamo-lo.
À medida que íamos avançando, mais cuidados tomávamos e então coloquei o capacete na cabeça. As nossas expressões diziam tudo. Ninguém
piava. O perigo de cilada era evidente, pressentia-se isso a cada passo. Barulho, só o inevitável dos guinchos a trabalhar, para além, claro, dos motores das viaturas, que só iam as indispensáveis.
Então, algumas centenas de metros andados e... eles aí estão!!
Rebenta uma emboscada! Durou alguns minutos. A Companhia reagiu com ímpeto. A emboscada incidiu na cabeça da coluna e logo, nós os que íamos na cabina da metralhadora na GMC, cá atrás, procurámos saber (pergunta sacramental)
se havia feridos.
- Nada - alguém dos apeados respondeu.
Companhia recomposta e a coluna prossegue a marcha. Volvidas mais algumas centenas de metros e, como já era de esperar, rebenta nova emboscada. As emboscadas estavam a incidir na cabeça da coluna e como eu ia quase no fim desta, e fora da zona de fogo, sem qualquer hipótese de atirar sobre o inimigo, não chegava a intervir.
Ouviu-se uma voz alarmada:
- Eles estão a fazer fogo para os bombardeiros e de metralhadora anti-aérea!. Está bonito! - alguém acrescentou. Cá para mim disse:
- Bem armados estão eles. Vamos ter bem que aturar.
Bom, era clarividente que os íamos ter à perna até ao fim, fim esse que ainda vinha longe, muito longe.
Nós na estrada, e eles a acompanharem-nos mesmo ali ao lado na orla do mato, quais animais felinos atrás da presa, e a emboscarem-se no sítio que achassem mais apropriado. Era este o quadro equacionado!
1 de Agosto, dia de pleno verão na Metrópole; as praias por certo, ou não fosse domingo, cheias de gente folgazia e a gozar das delícias do mar e da areia e, nós ali, em cenário de guerra, guerra latente, aberta e declarada. Que contraste! - meditei eu - se bem, que, passageiramente pensei nisto, pois logo me conformei ao lembrar-me que tinha de ser assim... talvez.
Alguém teria de estar ali a defender aquela parte do património do país, património de Portugal. Portugal que é dos portugueses. Na circunstância éramos nós, os que estávamos ali, os defensores da integridade da nação, assim quis o destino.
Outra emboscada ainda surge. Esta mais forte e mais duradoura que as anteriores.
Parecia que à medida que o tempo passava, e o que era natural, eles iam concentrando mais pessoal, aumentando assim o seu efectivo. Por outro lado, eles confiando, talvez, mais nas suas possibilidades e com o efectivo a aumentar com o correr do tempo, atacavam cada vez com mais ímpeto e potência. O resultado desta emboscada não nos chegou, aos que iam na cauda da coluna, mas eis que surge no ar o
pássaro sinistro – o helicóptero Alouette - que logo era o mesmo que dizer que havia feridos a evacuar, senão mortos. Soubemos depois que o
Jaquim, um preto dos nossos, tinha levado um tiro num ombro e que outro soldado, este branco, tinha também sido atingido com um tiro e ainda outro tinha apanhado com estilhaços. Nada de cuidado, apesar de tudo. Foram evacuados rapidamente para o Hospital Militar de Bissau e a Companhia prosseguiu com a sua missão. Houve ainda uma flagelação e eis que chegamos ao K3. A missão estava virtualmente cumprida. A estrada estava agora e outra vez, literalmente desimpedida e a Companhia vinha reagindo aos sucessivos ataques inimigos, com prontidão e vigor.
Foto 2 > Este recorte do mapa da Província da Guiné, mostra a zona mais problemática do Óio limitada pelas estradas Mansoa/Bissorã/Olossato/Farim/Mansabá/Mansoa. Bem no meio o Morés.
Agora era o regresso!Extenuados, física e psicologicamente, aproveitámos aquela breve paragem para descansarmos um pouco. Havia já passado umas poucas de horas que tínhamos deixado o aquartelamento do Olossato. Deitados no chão, de braços e pernas abertas, olhando o céu e esquecendo por momentos aquela clima de guerra, assim se prostrou a maioria da malta ganhando força e alento para a derradeira, mas longa etapa, o regresso, o sempre temeroso e difícil regresso à base, na circunstância o aquartelamento de Olossato.
Era para cima de uma dezena de quilómetros que teríamos de vencer para chegar ao Olossato.
O Capitão então, de arma apoiada nos ombros e encostada à nuca, gritou:
- Embora, o 1.º Grupo de Combate à frente.
Competia agora a este GComb a dianteira da coluna uma vez que até ali tinha vindo na retaguarda. Mas parecia que ninguém era do 1.º grupo. Todos nós estávamos receosos; era fácil de adivinhar que ia haver guerra, muita guerra, agora no regresso. Muitos segundos de tensão, depois alguma hesitação, mais gritos do Capitão e então os homens do 1.º Grupo vão-se arrastando paulatinamente tomando lugar na cabeça da coluna agora com progressão no sentido contrário para Olossato. O Capitão, como que dando o exemplo, põe-se à frente da coluna, encorajando desta forma a malta.
Andadas algumas centenas de metros, o Capitão salta para dentro da cabina da metralhadora, na GMC, aonde eu ia, viatura que agora ia à cabeça da coluna e que precedia então os primeiros homens apeados, que eram como se disse os do 1.º Grupo de combate. O Capitão ordena que saia o municiador - o António - e que eu tome o lugar deste. O roncar dos bombardeiros fazia-se ouvir agora, por fadiga nossa também, de forma ensurdecedora, pois desde a manhã cedo que o seu ruído característico nos acompanhava sem cessar. Os bombardeiros voavam em círculo em redor da coluna.
Silenciosos, tensos, antevendo o perigo a cada segundo, mais ainda quando surgia zonas de capim denso nas margens da estrada, lá íamos seguindo de regresso com a maior das atenções e apreensões.
O Capitão desaloja a MG42 do tripé e coloca-a agora sobre o parapeito da cabina apertando-a firmemente nas suas mãos. Uma vez nesta posição, a arma tinha um maior campo de acção e mais facilmente manobrável. Apareçam eles, parecia querer dizer o seu olhar frio.
Eu ia colocando as fitas dos cartuchos o mais acessíveis possível a uma rápida alimentação da metralhadora e preparando os canos de reserva. Devido à grande cadência da arma, os canos condutores dos projécteis aqueciam muito e antes de encravarem procedia-se regularmente à sua troca.
O Capitão abre fogo.
- Que foi? - perguntei eu, surpreso.
- Eles cruzaram ali a estrada. Oh Fontes, - gritou ele - transmita à aviação para eles largarem ali umas bombas depois da bolanha, pois eles estão lá emboscados - presumia o Capitão.
Logo o cabo Fontes transmitiu, mas os bombardeiros disseram não. Que só as largariam pela certa, pois, segundo eles, as que tinham iriam ser poucas até ao fim.
- Pró diabo com a aviação - vociferou o capitão, visivelmente contrariado.
- Está bonito - disse para comigo.
Passamos pelo tal sítio que o Capitão referenciou, mas nada, nem o mais leve sinal de presença inimiga. A coluna continua, tão receosa e alertada como nunca. A altura era da maior tensão como nunca se tinha visto e o nervosismo acentuava-se. Começa a findar o dia e os bombardeiros ameaçam sair da cena alegando que logo que comece a escurecer vão-se embora. Aqui palavras ininteligíveis saem da boca do Capitão. A distância para o Olossato entretanto vai-se encurtando, mas naquela situação, parecia que nunca mais chegávamos. Começámos a ficar perplexos com a inesperada ausência de emboscadas. Estávamos agora a escassos 5 ou 6 quilómetros do quartel e eles ainda não tinham aparecido, surpreendentemente!
Enganaram-se? Desistiram da ideia, por qualquer razão ou motivo? Que se passaria?
Estas e outras interrogações baralhavam-se no nosso espírito. Mas não, pela conversa dos pilotos dos T6, a coisa estava feia, mas só nós os da cabina da GMC é que sabíamos disto. A Companhia começa a então a convencer-se que eles já não deviam aparecer. Estávamos agora pertinho do Olossato e portanto não era crível que eles ainda fossem aparecer. Mas, num ápice e em potência, eis que rebenta a emboscada. A terrível emboscada!
Estávamos junto à bolanha de Joboiá. É desencadeada à base de lançamento de granadas de mão. Estas chovem de todos os lados e ouvem-se também tiros de metralhadoras ligeiras e pesadas do lado deles. A emboscada que marcaria de forma indeleve a Companhia 816. Jamais outra causaria tantas vítimas e traumatizaria tanto o espírito da malta. Jamais outra, e agora no sentido positivo, nos espicaçaria tanto o brio e nos ferisse tanto o orgulho com evidentes resultados em operações futuras.
O tributo pago foi alto e testemunha, o desventurado do Silva, a grande e principal vítima daquela violenta e surpreendente emboscada, Sim, em Joane, Famalicão, jaz o saudoso Silva, o que tinha os pés cheios de bolhas e que quis vir à Operação.
A Companhia tinha sido apanhada um pouco desprevenida. Já não vínhamos em adequado dispositivo de progressão, como as circunstâncias até aconselhariam, mas sim em magote. A GMC - a auto-metralhadora - vinha apinhada de soldados, dependurados ou sentados de qualquer jeito sobre os guarda-lamas dianteiros. Eles já não acreditavam que o IN aparecesse e assim aproveitaram as últimas centenas de metros para descansarem as pernas e relaxar o conturbado espírito. Lembro-me então da boa disposição reinante em todo o pessoal.
A temida operação tinha começado logo ao romper do dia daquele domingo. O inimigo começou a massacrar bem cedo. A confiança e o cansaço apoderaram-se então da malta; Olossato já estava ali tão perto... Alguns pagariam então bem caro a sua descontracção e desatenção.
Tudo começou com um grande estrondo na cabina da auto-metralhadora onde ia eu, o Capitão e o Fontes.
- Foi uma
bazookada - disse eu instintivamente ao Capitão.
Este, de expressão dura e fria, desfechava agora os tiros da metralhadora naquela orla onde se alojava o inimigo. Os rebentamentos continuavam aqui e acolá. Na situação em que nós fomos apanhados, a reacção não foi muito rápida o que favoreceu o inimigo e que por certo fez parte da sua táctica. O pânico estabeleceu-se e alguém disse para dentro da cabina da GMC:
- O nosso Furriel Silva morreu.
Não quis acreditar... a confusão e o estado emocional da malta, alterado, tirava discernimento, e instintivamente ripostei:
- Morreu, qual carapuça, apanhou algum estilhaço e vocês já dizem que morreu.
A emboscada continuava e os bombardeiros (que belo trabalho!) não paravam de lançar bombas aqui e acolá de forma arrojada. O fogo era geral e pleno.
Afinal o tempo que eles demoraram a aparecer foi uma táctica, constataríamos nós. Os rebentamentos continuam sem cessar, eram os da aviação, eram os nossos, eram os deles. Entretanto o Capitão, a meu lado, sangra da cara e de um braço. Dois pequenos estilhaços feriram-no, embora que superficialmente.
Mas, e para desespero nosso, as munições começam a faltar! Partimos do quartel bem apetrechados, com caixas de cartuchos em tudo que era bolso do camuflado, como prevenira o Capitão, mas as emboscadas foram tantas que estávamos quase sem munições.
Que situação! Já alguns feridos, ainda um pouco afastados do quartel, poucas munições e o inimigo a não dar sinais de ceder, pelo contrário.
Pelo rádio o Fontes pede auxílio para o Olossato e então mais munições chegam rapidamente através de um GComb da 566 que nos vem reforçar também. Tive a oportunidade de ver um Cabo desta Companhia, de metralhadora Dreyse na mão, a peito descoberto e em cima do capot da GMC, com os dentes cerrados, fazer fogo e a dizer entre dentes:
- Estupores que eu desfaço-vos, só se não puder.
Ele só pedia carregadores para a metralhadora. Aquela metralhadora vomitava balas atrás de balas. Que valentão, disse para cá comigo.
Até que a emboscada, a pouco e pouco foi acabando. Ouvia-se agora um ou outro tiro esporádico da parte deles; uma última rajada nossa de resposta e foi o fim.
Era quase noite quando entramos no Olossato. A Companhia estava extenuadíssima.
- Os feridos, onde estão? - perguntei eu.
Alguém me apontou um Unimog. Passei pelo Furriel Enfermeiro Ludgero, que chorava e me dizia que o Silva morrera. Saltei para a viatura e então tive uma terrível visão. No chão da carroçaria jaziam uns poucos de corpos envoltos numa toalha de sangue. Uns gritavam de dores, outros de desespero e, entre eles, de olhos vidrados, estava o Silva. Todos se mexiam, menos o Silva, que inerte, parecia completamente alheio ao cenário que o rodeava. O Silva estava morto. Sucumbiu logo ali na emboscada. “
- Não viveu nem um minuto - disse depois alguém.
Ao atirar-se para o chão como era normal (norma militar), o fez com tanto azar que cobriu com o corpo uma granada de mão inimiga lançada na fracção de segundo anterior.
Que quadro comovente aquele!
Mas aquilo eram consequências do que andávamos para ali a fazer. O Vidago, desesperado, deitado de bruços no chão dava murros neste. Enfim reacções de todas as maneiras e feitios, mas todos comungados da mesma desolação e da mesma consternação.
Encostados aqui e ali, ninguém falava, ninguém comentava o que quer que fosse, depois na messe. Cabisbaixos, olhando indefinidamente, cada um de nós parecia meditar e sofrer à sua maneira. Lágrimas corriam nas faces de alguns e os nossos colegas da 566 confortavam-nos como podiam, pois também já tinham sentido na pele a morte de colegas e conheciam bem aquelas horas subsequentes às fatalidades, que eram de profunda tristeza e revolta.
A noite caiu então sobre aquele fatídico e triste dia, e a noite, negra, pôs tudo ainda mais negro.
Aquele dia ficaria marcado para sempre na nossa retina, aquele dia que nós, perpetuamente chamaríamos de
O DIA MAIS LONGO.
O corpo do Silva foi instalado numa dependência de uma pequena casa, perto da casa do Chefe de Posto. Fizeram-se turnos para velar o corpo. Ao outro dia chegou o cangalheiro, vindo numa Dornier de Bissau. Pouco tempo depois, o Silva jazia numa simples e rudimentar urna chumbada.
Os feridos mais graves foram, depois de assistidos na nossa Enfermaria, evacuados para o Hospital Militar 241 de Bissau.
A Companhia estava então com o moral em baixo e já não saímos mais para o mato, contra o que estava programado. Apenas tivemos uma saída para Cansambo.
A operação de limpeza da estrada para o K3 saldar-se-ia com a perda do Silva e com ferimentos mais ou menos graves em 14 homens. O ferido mais grave era o Bezerra com um tiro num pulmão.
E regressamos a Bissorã. Todos, todos... menos um.
Chegados, encontramos ali o resto da Companhia. Tristes, taciturnos, conhecedores já dos acontecimentos no Olossato, os nossos camaradas que ali tinham ficado cumprimentaram-nos, numa saudação que podia ter sido de alegria, mas que não o era, pois um membro da nossa
família tinha morrido, enquanto estivemos separados. O Sargento Silva, que era um dos que tinha ficado, era dos que mais exteriorizava a sua mágoa e tristeza. O falecido Silva era do seu Pelotão.
Os que tinham ficado em Bissorã tinham planeado uma recepção em grande à malta quando chegasse do Olossato. Fazia parte do programa a inauguração do Bar da nossa casa, mas nada se fez. Não havia moral para isso.
O Bar estava um brinco. O Sargento Silva tinha dado as ideias - e o trabalho - e com gosto requintado. A um canto, um balcão feito com troços de palmeiras colocados ao alto, revestidos a esteiras, portanto com um aspecto típico de África. Mesas e cadeiras feitas com as travessas de madeira dos barris de vinho em que os tampos das mesa eram feitas das tampas do bidões de chapa da gasolina. Tudo isto estava também muito bem pintadinho e com cores alegres. Tínhamos um bar muito requintado. Mas, tudo aquilo, pese o bom gosto, a surpresa e tal melhoramento, estava-nos a passar ao lado. O saudoso Silva era estimado por todos e a imagem dele só tarde se dissiparia dos nossos espíritos.
Um de Agosto de 1965
(O dia mais longo) não mais esqueceria, nem esquece aos militares da 816 (**).
Rui Silva
ex-Fur Mil
CCAÇ 816
Guiné
1965/67
3. Comentário de Carlos Vinhal
Parte desta zona me é familiar, também a calcorreei durante a nossa estadia em Mansabá.
No meu tempo, as estradas Mansabá/Bissorã e/ou Mansabá/Olossato, embora fazendo parte das cartas militares, não eram utilizadas. Manga de problemas. Julgo que o mesmo se passava com a estrada K3/Olossato, mas esta pertencia já à zona de acção da CCAÇ 2753, logo o camarada Vitor Junqueira tem mais informação do que eu. O certo é que as deslocações para Bissorã e Olossato, a partir Mansabá, se faziam por Mansoa. Não participei na Operação Bicho Bravo, mas fui uma vez a Bissorã, por Mansoa.
Ver foto 2.
Na HU da CART 2732, Cap II, pág. 32, Fasc XVII - Período de 01NOV a 30NOV71, Actividades, dia 10, consta:
Às 10h00, 02 GCOMB empenhados na Op. Bicho Bravo com a finalidade de fazer a ligação física entre Mansabá-Olossato. NT partiram de Bironque até à Bolanha de Bissancage. Seguiram para Norte de Coli Sare onde foram detectados 2 trilhos muito batidos, muita população e lavras em Binta 710.99. NT efectuaram vários golpes de mão capturando 5 mulheres e 5 crianças. Em 110500 (5 horas da manhã do dia 11) IN bateu com morteiros 82 e armas ligeiras a região acabada de percorrer sem consequências. Durante a progressão 1 elemento das NT adoeceu sendo evacuado do Olossato. Do Olossato para Mansabá NT deslocaram-se em meios auto em virtude do seu esgotamento, onde chegaram às 19h30Esta Operação, teria como finalidade fazer crer ao IN que a tropa de Mansabá andava por onde queria, mas o certo é que este tipo de penetração nunca mais se repetiu. De salientar que esta
ligação física se fez por uma picada, a partir do Bironque, em detrimento da
estrada de Bissorã, a partir da qual se ia para o Olossato.
Cada um andava na sua
vidinha, nós ouviamos perfeitamente
actividade em Mansodé, mas quando lá chegávamos, nem vivalma. Coisa que não se explicava, mas a gente sabia que havia fuga de informações.
Já agora, peço-te Rui Silva que nos vás presentando com mais salpicos das tuas
Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa. Abri uma série especialmente para ti. Ficas responsável pela sua continuação. Já mostraste que tens talento (literário) suficiente para nos emocionares com a reconstituição da duríssima vida de um militar em terras da Guiné, em especial na região do Óio, para mais na época em que lá estiveste (1965/67). Mas onde também havia lugar para o convívio, a boa disposição, o futebol, a camaradagem. Volta depressa.
Fotos e legendas de CV__________________
Notas de CV
(*) Vd. último poste de Rui Silva, de 25 de Outubro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3355: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (9): Ainda falando do Sarg Pil Av Honório (Rui Silva)(**)Vd. postes anteriores do Rui Silva:
7 de Julho de 2008 >
Guiné 63/74 - P3031: Convívios (70): Pessoal da CCAÇ 816, no dia 10 de Maio de 2008, em Viana do Castelo (Rui Silva)
17 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2546: Álbum das Glórias (40): Equipas de Andebol do Benfica de Bissau e da Ancar em 1966 (Rui Silva)18 de Novembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2279: Bissorã: As rondas nocturnas (Rui Silva, CCAÇ 816, 1965/67)13 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2103: Gente do Olossato (Rui Silva, CCAÇ 816, 1965/67)3 de Junho de 2007>
Guiné 63/74 - P1810: Convívios (14): CCAÇ 816 (Oio, 1965/67), em Joane, Famalicão, em 5 de Maio de 2007 (Rui Silva)3 de Junho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1809: Base do PAIGC, em Iracunda, Oio: Eram quatro horas e meia da madrugada... (Rui Silva)30 de Abril de 2007 >
Guiné 63/74 - P1711: Tertúlia: Apresenta-se o Fur Mil Rui Silva, CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67)