1. Mensagem do nosso camarada Mário
Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé,
1967/68), com data de 30 de Abril:
Cara Camarada Gigelda e todas as Enfermeiras Paraquedistas:
Tive sempre enorme admiração pelas nossas Enfermeiras Paraquedistas. Como costumo dizer as Mulheres de “M”, Mulher-Mãe; Mulher-Esposa; Mulher-Noiva; Mulher-Namorada; Mulher-Irmã; Mulher-Madrinha de Guerra e Mulher-Enfermeira.
Penso que a Mulher-Enfermeira deveria ter uma outra atenção por parte do poder político.
Aproveito a oportunidade e presto a minha humilde HOMENAGEM À NOSSA CAMARADA GISELDA PESSOA E A TODAS AS NOSSAS AMIGAS ENFERMEIRA PARAQUEDISTAS.
Mário Vitorino Gaspar
No Capítulo 15 do Meu Livro “O Corredor da Morte”, consta a determinado momento:
“Dia 15 de Janeiro de 1968 (…), tinha sido chamado na véspera ao capitão que considerou a utilidade de irmos buscar o correio a Sangonhá, assim patrulharíamos a zona. (…).
As tabancas alinhavam-se à direita. Aproximavam -se os Soldados Nativos e as Praças “U”.
Dei um nó no lenço que colocara ao pescoço. Um lenço de seda que me dera a minha namorada quando estivera de licença em Portugal. Era também “ronco”, como lhe chamavam os nativos.
O cabelo estava demasiado comprido. Gostava assim. Além disso, a barba. Há quantos dias que não a fazia.
O camuflado, uma miséria, parecia que velhice o engolia aos poucos.
Tinha que me confundir com os negros no mato. Assemelhava-me, talvez.
Com o pessoal todo preparado, encaminhámos os nossos passos para a “porta de armas”, se é que poderíamos chamar àquilo tal nome. Seriam duas secções e os Caçadores Nativos e as Praças “U”. O total seria de uns quarenta homens. Não ia qualquer Oficial, seria eu a comandar.
Logo que passada a porta de armas, ficámos automaticamente com as distâncias controladas. Nunca íamos a monte, nem sequer era necessário dizer-se.
As picas avançavam ao solo, massacrando-o com ato delicioso. Os arames rompiam pela terra. O trilho estava seco. A pica chocava no terreno, procurando um objecto que impedisse a perfuração. Eram as “carícias” daqueles arames de ferro, instrumentos improvisados. Eram sem dúvida nenhuma os melhores detectores de engenhos explosivos.
À frente ia o guia, logo a seguir, a uma distância de sete ou oito metros, um soldado. Separava-nos por volta dos sete metros da frente para trás. À esquerda e à direita. Todos a picar. Eu seguia o guia, Praça “U”, que picava, com uma certa minúcia.
Tinha notado, já há algum tempo, que dois soldados que iam à minha frente depois de eu recuar, mais parecia quererem brincadeira. Algo de estranho se passava entre os dois. Saltei para a berma direita, colocando-me entre os dois fiz sinal para terem cuidado. Mudei-me logo para de trás dos dois soldados e continuei a picar.
No meio daquele silêncio profundo, senti um frio percorrer-me o corpo. O cérebro, a espaços, estagnara oco. Nem o vento, as folhas ou viva força da natureza.
- Vamos a ter cuidado - disse-lhe em voz baixa - é picar como deve ser.
Olharam-me, quase como envergonhados, sorrindo de seguida. Transportava, como todos, a G3 sobre o ombro esquerdo, enquanto a mão direita segurava a pica. As Praças “U” e os Caçadores Nativos batiam com a pica na terra que parecia ser acarinhada pelo arame.
Continuei a avisar os dois soldados que me antecediam. Afastei-me para a berma contrária. O silêncio preocupava-me.
Olhei para trás.
Estavam algo eufóricos. Desconhecia o motivo de tal. Seria a correspondência? Não sabia explicar. A verdade é que a alegria é contagiante.
Estávamos na guerra, ali não havia espaço nem tempo para a nostalgia daquelas paragens sufocantes e doentias. O meu lenço de seda estava encharcado em suor. Coloquei o nó mais à frente. Notava a anormalidade de comportamento nos dois soldados da minha secção, colocados na berma do lado direito.
A uns vinte metros à frente, do mesmo lado, o guia parou por instantes, enquanto picava. Os dois soldados seguiam-no, ouvindo aquilo que a Praça “U”, transmitira baixo.
O soldado que vai à minha frente espeta a pica, com raiva. Um estoiro. Um rebentamento forte.
O guia foge para a frente. Apontei-lhe a G3, não sabendo explicar tal acto.
- Alto! – Gritei-lhe – Para aqui já!
O militar negro parou e aproximou-se de nós. Num ápice todos se lançaram para a berma. Era o conhecimento prático, os ensinamentos daquela guerra de guerrilha. O guia estava entre nós.
- Mina! – Gritou o soldado que vinha na minha retaguarda, respirando fundo.
Eu era o único que continuava de pé. Rebentando mina, armadilho ou fornilho, acontecia haver uma forte probabilidade de emboscada. De pé e o coração rompia do peito martelando-o, mas como sempre, mais lúcido, uma lucidez difícil de explicar. Numa fracção de segundo. Mais calmo que anteriormente. Também não entendo. A serenidade fazia parte integrante do “eu”. Era talvez como se tivesse ingerido um calmante. O cérebro respondia na íntegra. Deixei de tremer. Transformara-me como por milagre, num ser diferente.
Ouvi gritos que penetravam não só nos ouvidos, mas também no corpo e no espírito. Excluindo eu e o guia todos tinham sido atingidos pela mina. A minha experiência como especialista de explosivos, minas e armadilhas dizia-me que era, mais uma vez, uma PMD 6, vulgarmente conhecida por “saboneteira”. Uma antipessoal, que possuía mais o efeito psicológico.
O que parecia estar pior era o soldado que ia à minha frente, com o rosto menino, coberto de sangue. Fechava os olhos. O camuflado estava repleto de estilhaços e também de sangue que haviam atingido também o rosto, na zona da vista. Sofria. Aquele sangue do corpo jovem molhava o trapo.
O outro que o seguia era quase o vivo espelho do primeiro, com mais estilhaços talvez. Continuava a não entender porque teria picado com tanta violência. Quereria matar a mina? Gritei para o radiotelegrafista, depois de pedir a um soldado que o chamasse:
- Aqui já! - Fiz sinal ao condutor para virar a viatura.
- Informe Gadamael Porto que temos evacuações para fazer, umas seis ou sete.
Disse ao radiotelegrafista com calma: - Não é grave!
A GMC tinha já dado a volta. Havia que evacuar os feridos. O soldado que tinha sido atingido no rosto, desabafou, com dores:
- Estou cego, cego..., não vejo nada, merda. Estes filhos de uma puta nem nos deixam ir buscar o correio!
Não via as lágrimas, elas agarravam-se ao sangue que continuava a correr do seu rosto.
- Calma rapaz, vamos para Gadamael, não fazemos aqui nada, as evacuações não podem ser feitas daqui! – Disse eu.
Aproximei-me dos feridos. Um gemia em tom demasiado baixo:
- É pá como vai isso? – Perguntei-lhe sorridente, pretendo incutir-lhe a calma e fé que necessitava, enquanto pedia ao telegrafista que pedisse as evacuações.
- Sinto picadas nas pernas. São os mosquitos todos da Guiné que me chupam o sangue – respondeu.
O sangue manchava os camuflados. Julgava serem os três únicos que necessitavam de evacuação, muito embora outros tivessem sido atingidos. A mina era de fraca potência. Feita de madeira, com algum arame. Disse para o condutor:
- É a abrir sempre até Gadamael, não é necessário picar... – Disse-lhe em altos berros.
Logo que arrumados na caixa da GMC, a mesma arrancou, com sete feridos e mais quatros homens. Uma secção de Ganturé, chegava com três viaturas. Subimos todos e com alguma velocidade, chegámos ao cruzamento. A secção de Ganturé saiu e continuámos até Gadamael Porto. Não era necessário picar. Gadamael estava à vista. Já se viam os militares da nossa companhia de calções e tronco nu.
A GMC estava junto daquilo a que chamavam pista. Todos aqueles a evacuar estavam deitados em macas.
O furriel enfermeiro e o auxiliar enfermeiro encontravam-se junto dando o apoio, limpando os ferimentos e retirando os camuflados.
O primeiro soldado atingido, e o que estava em situação mais grave, estava mais sereno. Aproximei-me, eram cinco corpos.
Um murmúrio aqui, outro acolá, nasciam das gargantas daqueles jovens, mas homens de verdade. Homens com um “H” grande.
Ouvia-se o roncar dos helicópteros. Eram dois.
O meu cabelo comprido foi sacudido pelo ar em movimento. Vento.
O capitão estava junto do primeiro helicóptero. Desceu a enfermeira paraquedista de calça camuflada e camisola de um branco lavado. Sobressaíam uns seios rígidos. A enfermeira era de cor branca. A única branca naquele local afastado da civilização. Uma mulher branca, era impensável. Bem torneada!
Aproximou-se das macas, balanceando as ancas.
- Como está? – Perguntou ao soldado que tinha sido atingido na vista.
- Está bem?
- É muito boa! – Respondeu rapidamente o soldado.
Via-se um sorriso naquele homem. Já havia ganho esse estatuto há algum tempo.
O capitão, referiu:
- Não ligue, ele não sabe aquilo que diz!
- Já estou habituada! – Respondeu a enfermeira com um sorriso.
Os helicópteros levantaram dos torrões da pista e desapareceram no horizonte”.
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Nota do editor
Último poste da série de 30de Abril de 2015 >
Guiné 63/74 - P14545: Bibliografia de uma guerra (71): E agora? O que é que vou fazer?, do livro "Guerra na Bolanha", de Francisco Henriques da Silva, Âncora Editora, Lisboa, Março de 2015