sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo

1. Vamos apresentar nesta série algumas cartas que Carlos Geraldes (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), escreveu ao longo da sua comissão. Uma espécie de diário com todas as emoções do momento, de boa disposição, situações menos agradáveis, enfim, tudo aquilo por que todos mais ou menos passámos e que alguns conseguiram registar quase no momento.

A série terá duas partes, a primeira coincidente com a permanência da Unidade em Bissau, entre Maio e Outubro de 1964 e uma segunda com a permanência da CART 676 no mato.

Em pararalelo continuaremos com a série "Gavetas da Memória".


Apresentação:

Nas décadas de 60 e 70, em Portugal do séc. XX, houve a Guerra Colonial.
Primeiro em Angola, depois na Guiné e Moçambique.

O Império tinha acabado. Os povos subjugados reclamavam a independência.
Os nossos governantes, cegos como toupeiras, obrigavam o povo a mais um sacrifício inútil, enviando milhares e milhares de jovens para um destino inglório, premiado muitas vezes com a morte ou com alguma incapacidade atroz para o resto da vida.

Pertenci também a uma dessas levas. Em 1964, interrompendo uma carreira universitária de pouco êxito, fui enviado para a Guiné, como oficial miliciano, depois de treinado à pressa para uma actuação militar anti-guerrilha, que iria desbaratar um inimigo que não respeitava os nossos valores ancestrais (de roubo, violação e massacre?).

Como todos os outros tratei de me defender o melhor que podia, e regressar são e salvo para casa, para junto dos meus, procurando ser sempre, no entanto, o mais justo e compreensivo possível, para com aqueles que, supostamente, teria de combater e derrotar.

Durante dois anos, mais precisamente 23 meses (ou 90 semanas), fui escrevendo cartas e aerogramas para os familiares, que agora, passados quarenta anos, vim ainda reencontrar, miraculosamente intactos. Escolhi 62 dessas missivas contendo relatos que não dissessem respeito apenas aos casos familiares mais particulares, às saudades por exemplo, mas que contivessem algo mais, relatos breves de uma experiência de vida. Apesar do perigo da Censura, que na época pairava ameaçadora sobre as nossas cabeças, eu ia arriscando nessas cartas, em contar, mais ou menos veladamente, o que ia acontecendo e observando nos terrenos da guerra.
Além do mais, o sortilégio de Africa está também aí, retratado de alguma maneira.

Ficou sempre gravado profundamente na minha vivência. Marca que nunca mais se desvanecerá da minha memória. Por isso achei que era quase uma inconsciência, uma leviandade até, deixar esquecer estas, embora ingénuas, transcrições de um mundo que atravessou a minha vida, e talvez também, a de muitos outros jovens que, naquela época, viveram e sofreram a Guerra Colonial. Não pretendo fazer literatura, apenas quero deixar, com uns rabiscos toscos, um relato mais ou menos fiel do que naquela época vi, vivi e senti, perturbado por vezes, talvez, por uma falta de maturidade, própria de quem ainda é jovem demais, para poder ajuizar correctamente situações tão intensas, num cenário tão gigantesco

No entanto gostaria de fazer algumas ressalvas:

Alguns poderão pensar que estas Cartas dão uma visão demasiado branda do que foi de facto a guerra na Guiné. Mas a explicação é sucinta: nas cartas e aerogramas, que ia enviando de lá, era quase inevitável escamotear, adoçar, a realidade nua e crua para poupar a família de medos e angústias desnecessárias e prematuras. O perigo, o medo, o pavor da morte súbita, existia mesmo em cada momento ali vivido, a milhares de quilómetros de casa, mas para quê fazer com que a família, também o sentisse? Assim, de imediato, talvez fosse melhor disfarçar, tentar dar uma ideia que se tratava de mais uma drôle de guerre, umas férias forçadas é certo, mas que acabariam por vir a ser apenas recordações de um período memorável da nossa juventude.

Além disso as Cartas são também o reflexo da vivência de um privilegiado, um oficial miliciano que embora sofrendo as agruras da guerra como qualquer militar, sofreu-as certamente com outra suavidade do que a de um simples soldado, este sim, obrigado a conviver quase sempre com a mais abjecta das condições humanas. Embora as carências sentidas fossem muito distintas, tanto físicas como intelectuais, isso não invalida que a dimensão moral deste testemunho não seja, na verdade, muito menos pertinente, embora também, não menos importante.

Depois a nossa compreensão, dos factos e das coisas, é também embotada pela distância no tempo. O que agora lemos, foi o que eu senti e escrevi à quarenta anos atrás, num mundo totalmente diferente, um mundo em que não havia computadores pessoais, telemóveis e muitas outras coisas tão banais nos dias de hoje. O entendimento do mundo era muito diferente, não havia o que agora chamamos de conceito da aldeia global.

Tudo era medido, analisado e compreendido à nossa pequena escala, à escala do nosso corpo, da nossa casa, da nossa família, da nossa rua, da nossa pequena cidadezinha de província, do nosso país semi-rural e quase analfabeto.

Mas, mesmo assim, aqui fica como um testemunho, ou apenas um relato, talvez ingénuo, mas realista, do fim da aventura africana, que na década de 60, ficou gravada a sangue e fogo na nossa memória, nos modelou o carácter e nos fez crescer mais depressa.

Viana do Castelo, 2005
Carlos A. Geraldes

P.S. Evidentemente que todos os nomes das personagens (europeias) são pseudónimos.


Prólogo

(Excerto de uma carta escrita, durante uma longa marcha efectuada pelos contrafortes da Serra de Sintra, nos exercícios finais do Curso de Oficiais Milicianos realizado de Agosto a Dezembro na Escola Prática de Infantaria de Mafra)

Silveira, 12 Dez 1963Aproveito agora para vos escrever.
Esta carta esteve para ser começada em Manchôa, Torres Vedras, mas aconteceu que o tempo que calculei para esperar pela emboscada foi muito menor e tive de largar a escrita precipitadamente, para agarrar na espingarda.

A guerra tem andado boa, apesar de eu andar estafado dos pés. Já estamos no fim de quinta-feira e quase tudo me parece impossível. O tempo voa!

A nossa primeira etapa foi até Encarnação, uma vila ao norte de Mafra. Acampámos num pinhal e choveu durante toda a noite. As tendas, improvisadas com quatro panos de tenda do equipamento individual, mal davam para nos abrigarem. Ficámos com os pés de fora! E como dormimos com as botas calçadas, para que estas não ficassem ensopadas com a chuva, remediámos a situação embrulhando-as com mantas. Mesmo assim quase não se pregou olho toda a noite a segurar na tenda para que esta não fugisse com a fúria do vento e da chuva.

Levantámo-nos de madrugada e depois de uma trôpega fila para uma caneca de café a ferver temperado com um golo de aguardente, fizemo-nos de novo ao caminho. Só parámos às cinco e meia da tarde, perto de Torres Vedras, nas termas dos Cucos, onde ficámos acantonados, distribuídos por alguns pavilhões vazios.

Apesar de agora ficarmos deitados em esteiras espalhadas pelo chão, a coisa foi muito melhor que na noite anterior. No dia seguinte, mais descansados, fizeram-nos percorrer montes e vales por mais de 30 quilómetros. Nunca chafurdei em tanta lama junta! As botas metem água por todos os lados e até já mudei de meias uma vez. Creio que ainda hoje voltarei a mudar. Passaremos a noite em Silveira em alojamentos que ainda não conheço, arranjados pelo abade da freguesia.
(Um magnífico palheiro cheio de palha seca e quentinha que nos transportou ao Paraíso…)

Presentemente estou a escrever-vos sentado atrás de um canavial, onde estou com outros camaradas, a preparar uma emboscada ao pelotão que nos tem seguido até aqui. Só existem duas balas (de madeira, claro!) para realizar o simulacro e vou ser eu quem vai dar um dos tiros.
Por todo o lado, em que temos passado, é uma festa para a miudagem que, até fogem da escola para nos ver, meter conversa e correr atrás de nós.
E se não fosse uma água-pé que, pelo caminho, uns camponeses nos ofereceram, creio que não teríamos chegado até aqui tão animados
Amanhã teremos um percurso menor e portanto um maior descanso.


(O tempo decorrido entre esta carta e a anterior, foi passado principalmente no Quartel do antigo RAP 2 em V.N. de Gaia, onde fui colocado após a conclusão do curso de oficiais milicianos, com a patente de Aspirante a Oficial. Aí dei instrução a um pelotão de recrutas, integrado numa Companhia Independente destinada a embarcar para… Moçambique, Namaacha, destino que depois não se cumpriu para grande aflição nossa. Os altos mandatários da Nação começavam já a manobrar febrilmente os peões sobre o tabuleiro de jogo, sem que se vislumbrassem resultados concretos. A juventude de um povo servia de carne para canhão…)

A bordo do “Uíge” – 12 Maio 1964
Em Lisboa não vi ninguém da família e, por conseguinte, não vi também ninguém de quem me despedir.
Chegámos a Lisboa de comboio por volta das oito horas da manhã. Meteram-nos logo em camionetas e levaram-nos para o cais de embarque em Alcântara. O barco é o "Uíge" como já sabem e vai servir apenas para o transporte das tropas. Mais de mil soldados, contando connosco, tudo com destino… à Guiné.

Sim, vamos para a Guiné e isso era a outra coisa que tinha para vos dizer e que, tinha mantido em segredo. Afinal já não vamos para Moçambique como estava prometido de início. À última hora mobilizaram-nos para a Guiné, como aditamento aos soldados enviados agora para lá.

A viagem de navio vai demorar seis dias, sem escala em qualquer porto de mar. Só de vez em quando é que passa por nós outra embarcação lá muito ao longe.
Os oficiais vão todos instalados nos camarotes de 1.ª classe. Eu e o Cardoso ocupamos um, com quarto de banho privativo, ar condicionado, ventoinha, etc., todos os requintes de conforto, mesmo junto ao camarote do comandante do navio. As refeições são excelentes e constituem, por assim dizer, uma ansiada quebra na rotina diária. À noite há cinema ao ar livre, pois o navio é tão pequeno que nem sequer tem uma sala de cinema. Os filmes são, quase todos, comédias ligeiras e dois deles, já os tinha visto há dois ou três anos.

O gira-discos não funciona porque, com a pressa, nem me lembrei de comprar as pilhas. Mas não faz mal porque há altifalantes espalhados por todo o convés sempre a vomitar música estridente.

Nos dois primeiros dias enjoei um bocado, mas agora ando perfeitamente à vontade. Gosto imenso da vida no mar. Sabendo ocupar o tempo não há vida melhor. Logo que desembarque enviar-vos-ei esta carta, para que não estejam mais aflitos. Estou bem, não me falta nada e, principalmente, estou cheio de boa disposição. De todos nós, sou até o mais bem-disposto. Veremos depois.
Digam ao Zé que ele havia de gostar de fazer esta viagem e conhecer estas paragens. Ainda hoje vi peixes voadores formidáveis.

CG
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Nota de CV:

Vd. poste de apresentação de 6 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4787: Tabanca Grande (170): Carlos Adrião Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca (1964/66)

Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)



Guiné > Região do Oio > Bissá e Porto Gole > CART 1661 1967/68) > Imagens do destacamento de Bissá, no tempo em que lá esteve o Abel Rei, com o o 3º Gr Comb... Na foto de baixoi, tirada em Porto Gole, o Abel Rei está escrever algumas linhas do seu diário, mais transformado em livro.

Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados


Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002).

Notas de leitura > II Parte (*)

por Luís Graça

A morte do Capitão de 2.ª Linha, o balanta Abna Na Onça, em Bissá

Entretanto, alguns dias depois da ocupação de Bissá, em 7/4/67, que passou a ser um destacamento, guarnecido por um pelotão (-) da CART 1661 e uma companhia (-) da Polícia Administrativa de Porto Gole, o dia 15 de Abril de 1967 seria um “dia trágico”: um ataque do PAIGC a Bissá, de duas horas, na noite de 14 para 15 de Abril de 1967, fizera sete mortos e cinco feridos . Na sequência deste desastre, o destacamento foi abandonado…

Pela primeira vez o autor não esconde que lhe vieram “as lágrimas aos olhos” (p. 69). A tragédia abatera-se sobre Bissá e Porto Gole:

“Houve choro de todos, com gritos e desmaios das mulheres, como que adivinhando o que aconteceu, entraram de rompante, dentro do destacamento, numa altura em que procedíamos à pesagem de peixe frecso, chegado do rio… Tinha morrido um capitão de 2ª linha, mais seis nativos, todos da Polícia Administrativa, e todos eles com as famílias cá na Tabanca de Porto Gole. Morria o homem em quem se tinham fortes esperanças para acabar com a guerrilha inimiga na zona – o capitão Abna Na Onça por ser corajoso e respeitado por negros e brancos”.

E sobre a importância deste aliado, balanta, das autoridades portuguesas, acrescenta o Abel Rei: “Um homem que, desde o início da guerra, vinha enfrentando, com máxima inteligência, aqueles que o fizeram sofrer, matando-lhe toda a família; perseguindo [o Inimigo], matando, capturando armas. Este foi o seu fim, só porque estava do nosso lado". (15/4/67, Porto Gole, pp. 69/70).

Em 20 de Abril de 1967, uma força, comandada pelo próprio Cap da CART 1661, e composta pelo 1º Gr Comb e pelo Pel Caç Nat 53, partiram para Bissá, com a intenção de reocupar o destacamento, que na altura pertencia ao sector do BCAÇ 1888 (Bambadinca).


No Inferno de Bissá

Em 13 de Maio de 1967, o Abel (integrado no seu Gr Comb, o 3º) é destacado para Bissá (onde permanece 15 dias).

É “um destacamento composto por oito casernas-abrigos, vedado com arame farpado e iluminado com (…) petromaxes” (14/5/67, Bissá, p. 84)…

E acrescenta o autor:

“Está cercado por tabancas cujos habitantes são de raça balanta, das quais foram queimadas as mais próxmas para melhor defesa do mesmo. Fica rodeado de bolanhas (terrenos planos cobertos de capim) a nascente, sul e poente, e matas pelo norte – o ponto mais perigoso, e pelo qual os turras têm possibilidades de nos atacar. Há imensas árvores, e de grande porte, que foram deixadas mesmo dentro do aquartelamento”…

A força ali destacada era composta por um grupo de combate da CART 1661 e duas secções de polícia administrativa. 

“Está cá uma secção de sapadores que, além de vedarem o destacamento e armadilharem o s pontos mais estratégicos, fizeram um forno para cozer o pão, e estão a fazer um refeitório e cozinha” (pp. 84/85).

A fonte de abastecimento de água é um charco: 

“Pelas cinco horas, vou habitualmente tomar banho, a uma poça com água da cor de barro, acinzentada, mas que constitui a nossa única base para limpeza, e também onde vamos buscar água para beber” (17/5/67, Bissá, p. 87).

Há uma hostilidade passiva por parte da população local, agravada pela atitude de suspeição dos militares portugueses em relação aos balantas: 

(…) “Fui apanhar alguns mangos, e dar os bons dias a quatro bajudas (…) que andavam a carregar com feixes de palha à cabeça, mas que se limitaram a olhar-me com curiosidade, não respondendo nada!”… 

Comentário (ingénuo) do autor: 

“Não entendo como é que a nossa cultura, que há meio milhar de anos se espalhou por estas terras, nunca os ensinou a falar a nossa língua?!” (18/5/67, Bissá, p. 88).

No dia seguinte, numa coluna de duas viaturas a Porto Gole, para ir buscar o correio e levar um “soldado castigado” para a sede do comando da companhia, o Abel e os seus camaradas encontram treze bajudas e dois homens: 

“Estavam munidos de catanas e machados” (…) e “quando nos viram, largaram logo a fugir (sendo o mais natural que tivessem ido fazer algum ‘serviço’ aos turras). Fizemos um cerco, e apanhámos o ‘bom pessoal’ (termo usado em relação aos civis nativos, que jogam com os dois lados) – que disse andar à lenha! (…).

Em Setembro de 1967, o Abel voltou para Bissá com o seu Gr Comb. No dia 3 há um primeiro contacto com o IN que faz uma flagelação a um tabanca das proximidades, Funcor, em pleno dia, às 14h… Os de Bissá respondem com morteiro 81/ mm; o PAIGC riposta com morteiro 60/mm (p. 105). A 6 de Setembro, uma força da guerrilha (estimada, com evidente exagero, em 180 elementos, segundo a história da unidade, citada pelo Abel), entra na tabanca de Bissá e flagela o destacamento. Há uma baixa mortal, confirmada, entre os atacantes, sendo enterrado dentro do arame farpado:

“Foi a primeira vez que vi de perto, um turra fardado (embora morto!). Tratava-se de um homem forte e tipo da raça balanta” (6/9/67, Bissá, pp. 105/106). Estava equipado com uma espingarda semi-automática Simonov M21, devendo por isso ser um milícia popular do PAIGC e não propriamente um guerrilheiro das FARP (reorganizadas no final de 1967)… A 8 de Setembro há uma nova flagelação a Bissá, com morteiro 82 e armas automáticas… Aumentam as dificuldades de abastecimento do destacamento, devido à chuva, às minas e às emboscadas…

Setembro e Outubro de 1967 vão ser dois meses negros para a CART 1661. O primeiros morto da companhia devido a explosão de anti-carro, ocorre a 16 de Setembro de 1967, com oito meses de comissão, quando uma coluna auto seguia de Porto Gole para o cruzamento da estrada para Mansoa onde se iria encontrar com forças de Bissá, para entrega de géneros alimentícios.

“Balanço: quatro mortos, sendo dois brancos e dois pretos, e mais treze feridos graves; uma viatura em pedaços; e diversos materiais estragados!” (…) (16/5/67, Bissá, p. 110).

Os mortos, todos do Pel Caç Nat 54 (com excepção do condutor), foram o Fur Mil Álvaro Maria Valentim Antunes, casado, natural de Portalegre, comandante da coluna, e os soldados guineenses Mamadu Jamnca e Adulai Sissé. O condutor era o Sold da CART 1661, Manuel Pinto de Castro.

Esta ocorrência é referida pelo José Brandão, no seu livro Cronolohia da Guerra Colonial: Angola, Guiné, Miçambique, 1961-1974 (Lisboa: Prefácio, 2008, p. 165): 16/9/1967: “Morrem em combate na Guiné 4 militares do Pelotão de Caçadores 54”.

No dia seguinte ao tentar recuperar a viatura sinistrada, as forças de Porto Gole sofrem um emboscada…

A 2 de Outubro Bissá volta a ser atacada, durante três horas… Eram 9h3o quando rebentou a primeira roquetada… O Abel escrevia dentro da enfermaria, “onde durmo, e estava a ouvir rádio”…A história da unidade fala em 150 elementos IN, os quais raptaram seis elementos da população e destruíram várias moranças…

A 5 de Outubro, uma viatura saída de Porto Gole em direcção a Bissá faz accionar outra mina A/C. Balanço: 1 morto e 26 feridos. A 6, uma nova mina (desta vez incendiária!) com emboscada (por um grupo calculado em 80 elementos), junto ao local do rebentamento da mina anterior, faz 10 mortos e mais de duas dezenas de feridos, “com queimaduras, todos evacuados para a Metrópole”…

Diz-nos o Abel, em nota de rodapé, que “para estas evacuações, foi preciso um avião especial de emergência que, ao chegar a Lisboa, fez correr a notícia de que Bissau tinha sido bombardeada, simultaneamente ‘boatado’ pelo inimigo)” (p. 114).

Nesse dia, Abel estava em Bissá, fazendo contas à vida de ‘cabo vagomestre’, sem comer para dar ao pessoal… mas no dia 8/10/67 fez o balanço desta “série negra” que fez de Bissá “o pior aquartelamento” (p. 166) da Guiné, nessa época.

“Tanto na mina como na emboscada, foi precisa imediata colaboração da aviação, que desta vez chegou de pronto, vindo dois bombardeiros que ajudaram os helicópteros a localizar o acidente” (8/10/67, Bissá, p. 115).

O José Brandão, na sua Cronologia da Guerra Colonial, limita-se a referir que no dia 5/10/1967 “morrem em combate na Guiné 2 militares da CART 1661”, o 1 Cabo José Andrade Couto Pinto, natural de Santo André, Bustelo, e o Sold Manuel, natural de Lixa, Fornos. E que no dia seguinte morrem mais cinco: 1º Cabo Abel Carvalho Martins (Montalegre), 1º Cabo Antónoo Ribeiro Machado Sousa (Mato, Ataíde), Sold Artur Rodrigues Alves (Sabuzedo, Mourilhe), Sold João Pimentel Fernandes (Boi Morto, Oriz, São Miguel), Sold José Coelho do Nascimento (Cepelos)…

O Abel Rei fala em 7 mortos. A história da unidade fala em 10 mortos, algumas das mortes tendo provavelmente ocorrido já no hospital… Até na contabilidade das nossas baixas mortais na guerra colonail, há critérios divergentes…

O rol de desgraças não se fica por aqui: 

“(…) em Bissá, se não temos mortos, os vivos não têm que comer. Há mais de oito dias que não temos vinho, cerveja ou outros líquidos que se bebam”… Por seu turno, “o comer acabou: estando-se a comer, ora carne de vaca, ora bacalhau com pão e… água!” (p. 115/116). A 1 de Novembro de 1967, come-se peixe miúdo, “pescado nas poças da bolanha” (p. 117).

Em conlusão, Bissá “cá sabi”… A 11 de Novembro, o Abel regressa a Porto Gole, sendo rendido o seu Gr Comb. “Lá ficaram as piores recordaçõs e… um pedaço de cada um” (p. 118).


‘Apanhado pelo clima’

Com menos de 3 meses de Guiné, o autor interroga-se se não estará já “apanhado pelo clima” (25/4/67, p. 75). Os fantasmas do álcool voltam a aparecer no seu diário: “ de há uns dias para cá, tem sido bebedeira certa; não sendo ninguém prejudicado com isso, talvez só eu!”…

A 30 de Março de 1967, o Abel comemorado, como devia ser, o seu 22º aniversário de nascimento: “À noite, e depois de várias misturas, emborrachei-me” (…) (p. 59).

Porto Gole não tem ainda electricidade: em 4/4/67, o Abel passa a ficar encarregue da manutenção e reparação dos ‘petromaxes’ em serviço na tabanca. Como se não bastasse já a ‘chatice’ de ser cabo, passa também a desempenhar as funções de ‘vagomestre’ (competindo-lhe adquirir e distribuir os géneros no rancho) (12/4/67).

Não esconde a conflitualidade entre camaradas, em especial dentro da sua secção, com destaque para o relacionamento com o seu furriel: 

“Quem nos obriga a andar cá, não olha às ‘qualidades’ dos que comandam, e somos nós os que sofremos consequências. Esse meu registo, gostaria um dia passar uma ‘esponja’ sobre tudo isto!” (9/4/67, p. 65).

Em Bissá, as relações com o seu alferes, um antigo seminarista, também foram tensas: é obrigado a trabalhar de pá e pica, sob um sol escaldante (15/5/1967, Bissá, pp. 85/86).

(Continua)
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Nota de L.G.:

(*) 12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

Guiné 63/74 – P4819: Estórias do Zé Teixeira (38): Mataram o futuro (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. O nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, enviou-nos mais uma estória em 8 de Agosto de 2009:

MATARAM O FUTURO

No dia 24 de Julho de 1968, uma mina A.C. (Anti-Carro) roubou a vida a um camarada que ia em cima da viatura de rádio a comunicar com a base em Buba. Foi o meu primeiro encontro no mato com o IN e o primeiro camarada que vi morrer sem lhe poder valer.

Nunca soube o seu nome. Apenas sei que pertencia à Companhia dos Lenços Azuis, que estava estacionada em Aldeia Formosa e nos foi buscar a Buba para de seguida partilharmos aventuras em comum durante mais de meio ano.

Do Meu Diário
Julho 1968/Buba, 26

… O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem. Era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo a conselho de um soldado da milícia que estava a meu lado, me arrastou para o meio de uns arbustos me mandou cruzar os braços e ficar muito quietinho.

Ele foi a “mão de Deus” que me protegeu das picadas das abelhas. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela cor que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça.

Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada, um tanto hilariante de toda a gente, que protegia a coluna de viaturas naquela área. Se o IN tivesse atacado nesse momento seria um desastre total, tal foi a desorganização gerada.

Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo...

Inimigo cobarde!... frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores.

Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas minhas mãos, que os homens não se amem?

Que culpa tenho eu?

A sua vontade de fugir à morte impressionou-me e ainda hoje parece que estou a ouvir os seus últimos e já ténues gritos de vida.

MATARAM O FUTURO

O destino, no tempo o marcou.
Aquela hora!
A mina escondida!
Aquela viatura!
A quinta que passava,
E a mina que deflagrou
Uma vida cheia de vida,
A morte a levou.
Destino cruel.
Demasiado duro.
Deixou de ser a esperança, no futuro.
Para sempre partiu,
Aquele jovem.
Cheio de saudades de um tempo,
De quem nem sequer se despediu.
Um tempo, para com garra viver,
Mas…
Ficou sem tempo, para o conhecer.
Já não vejo!
Já não vejo!
Vou morrer!
Com ténue voz.
Balbuciou.
Tremendo grito.
Eu quero viver!
E…
Ali se ficou.
Até morrer.
Sede. Muita sede.
Aquela vontade danada de viver,
E um corpo a arrefecer!
Vida.
Quase sem vida.
E eu…
Sem lhe poder valer.
Tremendo momento.
Num mundo mais pobre,
Num futuro em sofrimento.

Aldeia Formosa, 1968 – Agosto, 28

Um abraço,
Zé Teixeira
1º Cabo Aux Enf

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4818: Dia 8 de Agosto de 2009, Lavra presta homenagem aos seus ex-combatentes (Carlos Vinhal)

No passado sábado, dia 8 de Agosto, a Freguesia de Lavra, do Concelho de Matosinhos, prestou homenagem aos mortos em campanha na Guerra Colonial que estão sepultados no cemitério local, e ao descerramento de um memorial no jardim em frente ao edifício da Junta de Freguesia, lembrando todos os Lavrenses que participaram naquela guerra.

Presidiram a estes actos, o Presidente da Junta de Freguesia de Lavra, senhor Rodolfo Maia Mesquita; Presidente da APVG (Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra), Prof. Doutor Augusto Jesus Oliveira Lopes Freitas e em representação do Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, o Dr. António Fernando Correia Pinto.

No cemitério local, no Panteão ali existente, foi descerrada um lápide com os nomes dos militares ali sepultados e depositada uma coroa de flores.

Nomes inscritos na lápide:

Fernando de Jesus Nogueira
José Gonçalves dos Santos
Albino Dias de Sousa
Manuel Azevedo Carvalho
Januário Joaquim Silva Santos
Sebastião Gomes de Matos

O sacerdote que se ocupou da parte religiosa da cerimónia, terminou com uma alocução onde salientou os malefícios da guerra, lembrando que acabada esta, os políticos bebem champanhe, enquanto os ex-combatentes são relegados ao esquecimento.

Viveram-se momentos tocantes quando se procedeu à chamada dos camaradas falecidos, ali evocados, com a assistência a responder PRESENTE. Um Bombeiro Voluntário, ali presente, interpretou o Toque de Silêncio, seguido do momento de recolhimento que a ocasião impunha.

Falaram seguidamente o Presidente da Junta de Freguesia e o Presidente da APVG, lembrando ambos o esforço que a guerra exigiu a uma geração, quase em fim de vida, a quem nunca foi feita justiça.

No jardim frontal ao edifício da Junta de Freguesia, foi descerrado e benzido um Memorial lembrando o esforço de todos os Lavrenses que participaram na Guerra Colonial. Como Memorial, convenhamos que é muito discreto, mas fica registada a iniciativa.

Seguiu-se uma cerimónia mais formal no Salão Nobre da Junta de Freguesia, sendo a Mesa da Presidência ocupada pelas mesmas entidades.

Começou por falar o Presidente da APVG que numa longa intervenção fez um historial da acção dos militares desde o princípio da guerra colonial até ao 25 de Abril, terminando, batendo na mesma tecla do esquecimento a que os ex-combatentes foram votados.

Falou das iniciativas da APVG em prol dos ex-combatentes que atravessam momentos menos bons da vida, e que são muitos. Atacados pela doença, alcoolismo, stress pós-traumático, abandono por parte da família e consequente vivência na rua, há imensos ex-combatentes muito carenciados. Tudo se faz para colmatar estas necessidades a alguém que já não sabe o rumo, nem consegue viver com normalidade.

Seguiu-se a intervenção do senhor Presidente da Junta de Lavra, que também na qualidade de ex-combatente em Angola, falou das cerimónias realizadas naquele dia e dos combatentes em geral. Retive uma frase relacionada com o esquecimento a que nos remeteram - "Se o povo anda distraído, os combatentes não". Atrevo-me a perguntar se o nosso camarada, permita-se-me este tratamento, se se referia ao Povo propriamente dito ou aos seus legítimos representantes.

Lembrou Rodolfo Mesquita os nossos camaradas sepultados por tudo quanto foi teatro de operações, em cemitérios abandonados, e cujo regresso ao chão pátrio é da mais elementar justiça.

Propôs que o dia 8 de Agosto, em Lavra, fosse doravante dedicado aos ex-combatentes Lavrenses.

Por último, o Dr. António Fernando Correia Pinto, em representação do Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, tomou a palavra, começando por dizer que não sendo ex-combatente, sentiu de perto, tragicamente, os efeitos da guerra colonial, na pessoa de um familiar muito chegado, que veio a falecer em resultado de sequelas contraídas como militar.

Mantendo a tónica dos oradores anteriores, salientou o esquecimento e o abandono a que os ex-combatentes foram sujeitos pela sociedade.

Seguir-se-ia uma palestra versando o tema stress pós-traumático a que já não assisti pelo aproximar da hora de almoço.

Cerimónia religiosa junto ao Panteão do cemitério de Lavra

O Panteão. Do lado esquerdo, a placa com os nomes dos militares mortos em campanha e a coroa de flores depositada momentos antes.

O Presidente da APVG no uso da palavra após o descerramento do pequeno Memorial a todos os Lavrenses ex-combatentes da Guerra Colonial

Vista do Memorial localizado no Jardim em frente do edifício da Junta de Freguesia

Pequeno e discreto, no meio do Jardim.

O Presidente da APVG no uso da palavra, no Salão Nobre da Junta de Freguesia

Pormenor da assistência, no Salão Nobre da Junta de Freguesia

Fotos: © Ribeiro Agostinho e Carlos Vinhal (2009). Direitos reservados.

Guiné 63/74 - P4817: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (10): Operação "Diamante Azul"


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71, tem um blogue com estórias e missões da sua companhia, do qual nos cedeu, pronta e incondicionalmente, a extracção de algumas das mais importantes e significativas passagens, para publicarmos neste nosso blogue, no seguimento da sua série: Estórias do Mário Pinto. O endereço do blogue é: http://www.cart2519osmorcegosdemampata.blogspot.com/

2. Neste poste publicamos as ocorrências da operação “Diamante Azul”, que se realizou entre os dias 13 e 16 de Outubro de 1970, com a colaboração operacional de 2 Grupos de Combate da sua CART 2519:


Operação "DIAMANTE AZUL"

Dois grupos de combate da Cart. 2519 participaram na operação "Diamante Azul", integrando uma Companhia de Intervenção que, por sua vez, ia colaborar com uma Comp.ª de Pára-quedistas na Zona de UNAL, a Sul da Província.

A Companhia de Intervenção, foi então constituída por dois grupos de combate da Cart. 2519 de MAMPATÁ, um grupo de combate da Cart. 2521 estacionada em ALDEIA FORMOSA e um grupo de combate da C.Caç. 2615 do B.Caç. 2892. Tinha como Comandante de Companhia, o Cap. Marques da Cart. 2873 aquartelada em EMPADA.

OBJECTIVO PRINCIPAL - Tentar impedir a fuga do IN enquanto em SAMBASÓ a Comp.ª de Pára-quedistas, fazia uma batida no intuito de capturar elementos IN e o respectivo material que, segundo notícia, tentava passar para o QUIMARA.
Dia 13 - Cerca das 12h00 foi formada a companhia em ALDEIA FORMOSA, ficando à ordem do Batalhão, a fim de, em qualquer momento, ser helitransportada para o local da operação.
Dia 14 - Cerca das 07h00 foi transmitida pelo Comandante da Comp.ª aos Comandantes dos Grupos de Combate, a missão a cumprir.

Cerca das 08h00, do Aeródromo de ALDEIA FORMOSA, foram helitransportados para a região de SAMBASÓ onde, até cerca das 15h00 estiveram emboscados, enquanto a Comp.ª de Pára-quedistas procedia à batida. Após ter sido feita a batida, a Comp.ª de Intervenção deslocou-se para SAMBASÓ a fim de ser evacuada.

Em SAMBASÓ as tropas Pára-quedistas durante a batida, verificaram que o IN deixara vestígios de presença e passagem no local, dois dias antes.Em SAMBASÓ, as forças da Comp.ª de Intervenção capturaram um elemento IN armado com espingarda "SIMONOV", que confirmou ter passado ali dois dias antes em direcção a BUBA, sempre a corta-mato, numa coluna de cerca de 40 elementos.

Não devia tratar-se de coluna de reabastecimento mas sim de um grupo armado.

Em SAMBASÓ as nossas forças capturaram ao IN, 4 granadas de Morteiro 82, 10 granadas de Canhão s/recuo, 1 mina A/C (Anti-Carro), outro material diverso e documentos.

Cerca das 17h00 o Comandante da Comp.ª recebeu nova missão.
Visitar, no dia seguinte, as povoações controladas pelo IN de LENGUEL e NHACOBÁ.

Pelas 18h00, as NT foram helitransportadas para perto de LENGUEL onde pernoitaram.

Dia 15 - As NT, em progressão pela mata no Sul da Província, entraram nas povoações de LENGUEL e NHACOBÁ.

A população ao pressentir as NT pôs-se em fuga. Entretanto em NHACOBÁ as NT capturaram 7 elementos do IN.

Recebeu, também, a visita do General ANTÓNIO SPÍNOLA que na qualidade de COM-CHEFE das FORÇAS ARMADAS da GUINÉ ali se deslocou helitransportado, para pessoalmente se inteirar da operação.

O Comandante da Comp.ª recebeu então nova missão.

Emboscar num trilho IN na Zona de SALANQUEL, para onde foi helitransportada a Comp.ª cerca das 17h00. Nesta Zona se pernoitou e no dia seguinte emboscou-se sobre o trilho, enquanto as tropas Pára-quedistas procediam a uma batida. Não se registou aqui qualquer contacto com o IN, tendo cessado a operação no dia 16 pelas 17hoo, hora que as NT foram evacuadas para BUBA.

É de realçar o entusiasmo e boa vontade com que todos os elementos das NT se empenharam nesta operação, em que a falta de água obrigou as NT a um sofrimento quase insuportável.

Nota: Este resumo biográfico foi retirado da nossa História da Unidade.
Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Fotos: © Mário Pinto (2009). Direitos reservados.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4816: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (12): E se o Algássimo tivesse razão ?

1. Continuação da publicação das memórias do Cherno Baldé, menino e moço em Fajonquito (1970/75), hoje quadro superior da administração pública da República da Guiné-Bissau (*):


Ambientes e ambiguidades > Algássimo, o visionário


Quando finalmente saía do quartel, a noite, encontrava o Algássimo Djaló à minha espera, ele gostava da sopa (entenda-se comida do quartel) que trazia metida em latas de conservas de tomate. Não podia entrar dentro do quartel, por ordens do seu pai, de princípios rígidos e ortodoxos como todos os seus conterraneos de Futa-Djalon que em tudo se comportavam como perpétuos emigrantes e nunca se integravam nas comunidades locais consideradas de nível inferior, religiosamente falando.

O Algássimo queria viver como uma criança normal da sua idade mas vivia quase numa clausura. Nao podia frequentar nem a escola, nem o quartel, nem os locais de festa, de baile, de futebol, nada, nada. Ele podia, sim, procurar lenha seca nos arredores da aldeia para a fogueira da noite onde passavam, ele e mais outros rapazes da mesma comunidade, horas a fio, a repetir alguns sons escritos em árabe arcaico numa tábua de madeira cujos significados nem o próprio mestre sabia. Era esta a faceta da religião que alguns religiosos, sobretudo Futa-fulas, nos queriam ensinar. Tempo perdido (**).

Mais tarde o Algássimo, por iniciativa própria, acabaria por entrar no quartel e também frequentar a escola mas com meios próprios pois o pai, na impossibilidade de o impedir, tinha sido peromptório:
- Queres ir para a escola dos brancos, então, vai!..Mas nãoe peças nada e nãso me contes nada porque não te dou nada e não quero saber de nada pois o seitan será o teu companheiro no inferno.

O Algássimo foi e ficou, do satanás não viu nem os rastos. O pai, este, acabaria mais tarde, por falecer, doidinho da Silva.

Pela idade, experiência e ansiedade que ele tinha acumulado, rapidamente galgou os escalões do ensino e por pouco não me ultrapassava de classe. Foi nessa altura que, também eu, animal livre, resolvi encarar com alguma seriedade a escola, e consegui, finalmente, aguentar-me na sala, sentado, aquelas duas horas que me pareciam uma eternidade.

Mais tarde ele tirava conclusões interessantes das suas observações sobre aquela época, em Fajonquito, a sua entrada no quartel, os soldados portugueses, o ambiente do refeitório geral e a escola onde curiosamente o professor era um Sanhá que queria dizer mandinga ou um beafada islamizado. Disse-me uma vez:
- O melhor e o pior que aprendi com estes brancos, durante a minha permanência entre eles, e que depois continuou em diferentes lugares e circunstâncias, foi o espírito sempre presente da irreverência e da insubmissão, o sentido da busca, da insatisfação permanente, do questionamento sobre o que parece evidente, da insaciável curiosidade e coragem de ultrapassar limites, da revolta, da reviravolta... Com eles nenhuma situação é imutável e a mudança é uma constante. Enquanto continuarem a liderar, o mundo nao terá sossego.

Este espírito irreverente e mutante, este paradigma filosófico de mudança em permanência, se quiserem, é, na opinião do Algássimo, "a maior força e quiçá, também, a maior fraqueza do Homem branco, europeu, que está constantemente a pôr em questão as suas próprias verdades ainda agora conquistadas e reconhecidas mas insuficientemente amadurecidas".

Continuando ainda sobre o mesmo assunto, dizia que, na sua opinião, "o tumulto materialista e a incongruência lógica do mundo em que vivemos hoje nasceram desse posicionamento ambíguo do homem europeu que prolonga a vida mas também a sua agonia nas incertezas que engendra sobre o amanhã que está por vir mas cujo porvir já está hipotecado nas bolsas de valor de Londres e Nova Iorque".

O meu amigo Algássimo, temeroso ou grande visiánario, não conseguiu aguentar o período após independência, nãoo, ainda aguentou uns seis anos, até 1980, altura em que, tendo emigrado para Portugal, com o falecimento do pai, voltou e decidiu mudar-se para o Senegal.

Antes de partir, estando eu nessa altura em Bissau a terminar o liceu, disse-me claramente que não podia continuar na Guiné-Bissau porque, segundo ele, esta seria, durante muito tempo, a terra dos outros. Perguntou-me ele:
- Você não ouviu as cantigas deles ?...

Ele referia-se a uma cantiga em crioulo que dizia assim: Kim ki tem terra? Anós ki tem terra. kim ki na labráá...? kim ki na furtáá...? etc. E a sonoridade da música nao colocava quaisquer margens de duvidas sobre as suas origens étnicas.

Na sua opinião, a Guiné-Bissau tinha poucas probabilidades de sucesso porque em vez do bom pastor o gado tinha sido entreque aos lobos, vestidos com pele de ovelhas. Em vez de pessoas instruídas e com experiência na administração do Estado eram pessoas iletradas, quase analfabetas, que dirigiam e controlavam a vida económica e política do pais.
- Assim não vamos a sítio nenhum - arrematava.

Verdade ou mentira a opinião é dele e no que me concerne, sem capacidade de visionar o futuro, e tendo acreditado e abraçado firmemente a visão e os ideais de Amilcar Cabral sobre a necessidade da luta pela afirmação do homem africano, do terceiro mundo, de um mundo mais justo, de progresso, paz e fraternidade, voltei alegremente dos estudos e estou ainda aqui na esperança de ver se aparece a luz ao fundo do túnel.

Mas a questão é, de algum tempo para cá, recorrente e.... inevitável:
- E se o Algássimo tinha razão?...

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho

(**) Vd. poste de 23 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3089: Antropologia (7): As tabuinhas das escolas corânicas: tradutor de árabe, precisa-se (A. Santos / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

Capa do livro de Abel Rei, ex-1º Cabo da CART 1661 (Fá, Enxalé, Porto Gole, 1967/68).

Contra capa do livro, com selos da Guiné da época colonial...

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CART 1661 1967/68) > Desembarque de tropas, na praia de Porto Gole.

Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados


Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 196/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002).

Notas de leitura > I Parte (*)
por Luís Graça

“Esta é a história verdadeira que eu escrevi; não a história que eu gostaria de escrever”, alerta-nos o autor à guisa de preâmbulo. 

Pessoalmente, confidenciou-me que foi também a história possível. Conheci o autor por ocasião do nosso IV Encontro Nacional, na Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, no passado dia 20 de Junho.

O livro é a transposição do seu diário, ou das notas que diariamente ia passando para o papel, durante a sua comissão de serviço na Guiné. Diz-me que é o livro possível porque, pelo meio, havia a figura da PIDE, que ele nunca cita, e de cuja existência nem sequer se suspeita, mas que se sabia ser poderosa e omnipresente, levando à autocensura (tanto dos aerogramas como dos próprios diários que alguns de nós, secretamente, iam escrevinhando)…

Por outro lado, há notas de rodapé, retiradas da História da Unidade, a CART 1661, a que o autor só teve acesso em 1995, através de um exemplar que lhe foi facultado por um camarada açoriano.

E quem é o autor ?

Abel Rei nasceu ainda durante a II Guerra Mundial, em 30 de Março de 1945, na freguesia de Maceira, concelho de Leiria. O pai era operário vidreiro. A família mudou-se para o concelho da Marinha Grande, O Abel começou a trabalhar bem cedo numa mercearia local, mal acabada a escola primária, aos dez anos. Aos quinze era serralheiro civil.

É bem possível que, ainda antes da tropa, o Abel Rei, nascido e criado em meio operário e, em princípio, politizado como o da Marinha Grande, tivesse já as suas dúvidas sobre a legitimidade e a viabilidade da guerra do ultramar/guerra colonial. No seu diário, porém, em nenhuma ocasião o dá a entender, a não ser quando confessa que não se despediu de ninguém, da família e dos amigos, tendo querido “sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê” (p. 22).

Mobilizado para a Guiné, serviu na CART 1661, que passou por Fá Mandinga, Enxalé, Bissá e Porto Gole. Partiu em 1 de Fevereiro de 1967 e regressou em 19 de Novembro de 1968. A companhia teve três comandantes: Cap Mil Art Luís Vassalo Namorado Rosa, Alf Mil Art Fernando António de Sá e Cap Art Manuel Jorge Dias de Sousa Figueiredo.

Depois da tropa, o Abel voltou a estudar, tendo completado o Curso Geral de Mecânica da Escola Industrial.

Citando o prefácio do Ten Gen Ref Júlio Faria de Oliveira, presidente da Direcção Central da Liga dos Combatentes, “ainda bem que o antigo combatente Abel Rei escreveu esta história verdadeira, a qual, em minha opinião, é extremamente interessante e duvido que aquela, que ele gostaria de ter escrito, fosse ainda melhor” (p. 17).

Em geral, são notas diárias, de um, dois ou três parágrafos, que o Abel Rei foi redigindo num caderninho que sempre o acompanhava. A primeira tem a data de 1/2/67 (partida do T/T Uíge, do cais da Rocha Conde de Óbidos) e a última data de 19/11/68 (regresso à Metrópole, também no mesmo navio).

Ao todo, são 178 registos diários, em pouco mais de 21 meses de comissão, mais de metade das quais (53,4%) correspondem aos quatro primeiros meses (de Fevereiro a Maio de 1967). De Junho até ao final do ano, escreveu apenas, em média, 4 vezes por mês… No segundo ano (Jan-Nov 1968), o ritmo da escrita, certamente por cansaço, saturação ou quebra de disciplina, baixou ainda mais: um pouco mais de 3 registos por mês, embora mais extensos, ocupando 4 dezenas de páginas (de 126 a 166) (Vd. Gráfico a seguir).






A escrita é simples, chã, cingida aos factos do quotidiano ao autor, Abel Rei, 1º Cabo da CART 1661, 3º Grupo de Combate. O autor procura ser objectivo e assertivo. As notas de rodopé confirmam, a posteriori, a veracidade e a precisão dos seus apontamentos. Em geral, procura não emitir opiniões ou falar dos seus sentimentos. Há algumas excepções quando, por exemplo, explica a razão por que decidiu escrever um diário secreto:

(…) “Quando parti de casa, com a mochila às costas e uma mala vermelha com as minhas coisas, deslocando-me a pé para o comboio que me levaria a Lisboa, e ao passar o pinhal, donde ainda avistava o meu lugar onde cresci, olhei para trás e despedi-me do meu povoado, dizendo para comigo: até breve!

“Estas foram as despedidas possíveis, pois não tive coragem de dizer absolutamente nada a ninguém antes de partir. Quis sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê ?

“ Espero apagar a minha solidão, escrevendo o meu dia a dia enquanto Deus me der forças e saúde para tal”
(4/5/1967 – Navio Uíge, pp. 21/22).

É pena a edição do livro não ter tido revisão de texto. Para além de alguns erros de ortografia e gramática, a pontuação poderia e deveria ser corrigida e melhorada.


Um título enganador

O inferno? Seguramente, para o Abel e os seus camaradas, o inferno foi Porto Gole, Bissá, Enxalé, pela dureza das condições de vida, nos dias de paz e nos dias de guerra… Paraíso ? Não sei se o autor se refere à breve estadia, no início da comissão, em Fá Mandinga, onde a guerra só se antevia ou pressentia, ao longe… Há também momentos, de alguma felicidade, passados em Porto Gole, à beira rio, ajudando a esquecer as praias atlânticas da infância e da adolescência do autor (Praia da Vieira, São Pedro de Moel…).

A 7 de Fevereiro de 1967 o autor segue com os seus camaradas da CART 1661, a caminho de Fá (Mandinga), em LDG, rio Geba acima… até Bambadinca. Chegados na véspera a Bissau, os militares foram directamente transbordados para a LDG, sem terem posto um pé em terra firme.

O autor escreve que se levantaram às 3 da manhã. Chegaram a Bambadinca às 13h. Dali seguiram em coluna auto para Fá (Mandinga). Comeram a primeira refeição quente às 10h das noite. Parece, pois, poder concluir-se que a viagem da LGD, até Bambadinca, terá levado no mínimo 6 a 7 horas. No meu tempo (1969/71), já não tenho ideia das LDG subirem o Geba Estreito até Bambadinca. Em geral, ficavam no Xime, donde se seguia em coluna auto para as todas as principais localidades da zona leste (Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Piche, Contuboel, Galomaro, etc.).

Em (que tem "a melhor água da província") não se vê a guerra (de perto), mas “sonha-se com ela” (12/2/67).

Chega, entretanto, o primeiro correio da família e os primeiros jornais da terra (16/2/67). A 18, começa o treino operacional da CART 1661 cujos grupos de combate seguem para o Xime, onde está sediada a CCAÇ 1550 (subunidade que esteve em Farim e Xime, de 20/4/66 a 17/1/68).

Sobre a estrada Xime-Bambadinca, escreve o autor:

“O percurso é péssimo e perigoso. Costuma ser muitas vezes armadilhado com minas pelo inimigo, mesmo perto do quartel, contando-se já vários mortos e viaturas destruídas. O chão é picado cuidadosamente em todo o percurso e todos os dias” (20/2/67, p. 30). Aqui, no hall de entrada da Zona Leste, eis a guerra que já se sente ou pressente…

A 23/2/67, o Abel Rei tem o seu primeiro contacto com a guerra. A tabanca fula, em autodefesa, de Dembataco (minha velha conhecida…) tinha sido atacada e incendiadas algumas moranças. Há dois mortos entre a população: uma mulher e uma bajuda. O ataque foi repelido, apenas com mausers, que estavam distribuídas à população civil e às milícias (23/2/67).

A 24/2/67, o 3º Gr Comb, do Abel Rei, segue para a Enxalé, de LDM (Lancha de Desembarque Média). Está aqui aquartelada a CCAÇ 1439, madeirense (que passará por Xime, Bambadinca, Enxalé e Fá, durante a sua comissão, de 2/8/65 a 18/4/67). No dia seguinte, vai até Porto Gole, buscar “homens vindos de uma operação, que tinha começado oito dias antes, nas matas do Sará, e onde estiveram com mais companhias, batendo a zona, que é povoada de forte terrorismo” (sic)…

(É curioso, o autor nunca se refere explicitamente ao PAIGC, não usa sequer termos como guerrilha ou guerrilheiros, fala explicitamente em inimigo, elementos inimigos, turras, terroristas, de acordo com a designação da época, em que era comandante-chefe e governador geral da Guiné o Gen Arnaldo Schulz, um militar que não estava preparado para a guerra de guerrilha, dando primazia à reconquista e controlo do território em vez da luta político-militar e a acção psicossocial junto das populações, sob duplo controlo ou vivendo em áreas que o PAIGC considerava como “libertadas”).

Ficamos a saber que nesta mata [de Sará] foi capturado “um importante hospital militar” (…), “composto do mais moderno equipamemnto, e duma variedade extraordinária de medicamentos” (25/2/67, p. 34).


O baptismo de fogo

Um mês depois, temos as primeiras referências à comida que se come na guerra: ”Comemos uma mal confeccionada refeição, de arroz com ervilhas e sardinhas de conversa, regada com o já célebre vinho baptizado” (Enxalé, 4/3/67)… Mas também à água, o precioso líquido que costuma ser bebido “com comprimidos e filtrado”… Desta vez, depois de uma duríssima operação de Porto Gole (partida às 3h da madrugada) a Bissá (chegada às 7h30) com a missão de comprar gado aos nativos, com regresso a Enxalé, às 16h:
“A água (…) bebeu-se por todos, sofregamente, sem olhar a limpeza e origem. Bebia-se todo o líquido que nos aparecia, quer nas poças do terreno, ou nos poucos cursos de água, fosse ele da cor que fosse!” (5/3/67, pp. 39/40).

De regresso a Fá (“a capital do sossego”), o 1º Cabo Abel Rei recebe o primeiro patacão, 613 pesos da Guiné, “menos cento e tal que o vencimento normal” (8/3/67, p. 42).

O dia 12 de Março de 1967 foi “histórico” para o Abel, dia “em que as ouvi cantar por cima da minha cabeça”… (‘As’ são as balas do inimigo)… Foi o seu baptismo de fogo, na região do Poindon, no âmbito da Op Granada, operação conjunta com a CART 1550… “As NT foram emboscadas duas vezes pelo IN, sem consequências” (p. 46).

Poindon (ou Poidon) tornou-se, no Sector L1 (Bambadinca), um nome mítico, para as tropas portugueses: era inevitável haver contacto com o IN sempre que se lá ia… Na época, ainda havia o destacamento de Ponta do Inglês, na Foz do Corubal, posteriormente abandonado (creio que em Novembro de 1968, já sob o consulado de Spínola, que tomaria posse, em 2 de Maio desse ano, do cargo de Com-Chefe e Governador-Geral).

Ao fim de mês e meio de Guiné, o Abel começa a queixar-se dos primeiros problemas de saúde: é-lhe extraída uma matacanha da sola do pé, “tendo sofrido intensas dores, ao ponto de trincar a boina” (14/3/67, p. 47). Três dias depois queixava-se dos intestinos e dos dentes. Fica a aguardar vez para uma consulta externa no Hospital Militar de Bissau… “Assim éramos enganados e mantidos como operacionais (…). Estas consultas não chegaram jamais a ser efectivadas” (…) (17/3/67, pp. 48/49). O Abel já ter que aprender a viver com as mazelas do corpo e da alma…


Op Guindaste, uma atribulada ida ao Buruntoni (Xime)

De 19 a 21 de Março de 1967, há uma detalhada referência a uma operação ao Buruntoni (e não Burontoni), a sul do Xime (pp. 49-53).

Eis o que diz, em resumo, a história da unidade: A 19, a companhia realiza, em conjunto com a CCAÇ 1550, a Op Guindaste na zona do Buruntoni. “Destruída uma casa de mato, feitos 8 mortos confirmados e capturado o seguinte armamento: 1 pistola-metralhadora PPHS, 1 pistola COSKA, 3 carregores vários, centenas de munições e outros materiais”… Regresso a Fá em 21…

Vejamos o que escreveu o 1º Cabo Abel Rei, no seu diário:

Era domingo de Ramos, o 19 de Março de 1967. O pessoal levantou-se cedo, tomou um “ligeiro pequeno almoço”, seguindo depois em viatura auto para Bambadinca e estrada do Xitole. Alguns quilómetros depois, seguiram a pé, “durante mais de duas horas”, até Dembataco, a aldeia atacada em 23/2/67. “Lá almoçámos ração de combate (…). O apetite era pouco, começando desde esse momento a ser alimentado a água” (p. 50).

À uma da tarde, as NT partem para o objectivo, “por intermináveis picadas da mata, sob um calor escaldante, com a sede e o cansaço a apertar” (….). Fazem uma paragem às 6h30, já noite. Pernoitam no local. Retomam, ao nascer do dia, a marcha para o Buruntoni, aonde chegam por volta das 11h. A água já se tinha acabado no dia anterior…

Às 11 e picos, há um contacto com “elementos inimigos, numa casa de mato” (…), “causando-lhes mortos (oito confirmados), e fugindo os restantes apavorados pela nossa chegada inesperada”... Foi capturado diverso material (incluindo “uma pistola metralhadora pesada e uma ligeira”).
Segue-se a descrição da retirada, a 20 de Março de 1967:

“Retirámos, deixando tudo em chamas, em passo acelerado, tendo alguns desmaiado, em parte devido ao calor, mas também por falta de água, contando-se entre eles o nosso capitão e um sargento.

“Quando tornámos a passar pelo riacho, que sabíamos existir, parecíamos que estávamos loucos, procurando a água com ânsia, mesmo com ela quase preta, do calcar dos pés. Lá estivemos mais de uma hora, para abalarmos depois, bastante mais frescos, a caminho de Dembataco, aonde chegámos às sete da noite”
(p. 51).

Nova corrida (“louca”) para o abastecimento de água e uma clara prova de solidariedade entre camaradas, para mais oriundos da mesma terra: “(…) eram sempre duas rações que tinha de arranjar, a minha e a do meu colega Saraiva, dos Moínhos de Carvide [, freguesia de Monte Redondo, concelho de Leiria], que vinha completamente abatido, e o qual ajudei nas últimas horas de marcha, amparando-o e trazendo o seu equipamento” (p. 51).

Na estrada Xitole-Bambadinca (provavelmente próximo do sítio onde mais tarde, em Maio de 1968, a CART 2339 do Torcato Mendonça e do Carlos Marques dos Santos irá erguer o campo fortificado de Mansambo, segundo a designaçºão do PAIGC), era esperado haver viaturas para levar o pessoal no regresso aos aquartelamentos, o que não aconteceu:

“Partimos aos tombos até Bambadinca, onde chegámos à meia-noite, e foram só os teimosos do meu grupo de combate, os outros lá ficaram a aguardar as viaturas”… Lá chegados, voltaram atrás, “a fazer segurança às viaturas, que iam buscar os nossos colegas, que entretanto se tinham posto a caminho por ser perigosa a sua permanência no local onde ficaram” (p. 52). Chegaram por fim a Bambadinca, já no dia seguinte, 22, à 1 da manhã…


Comentário do autor:

“Esta foi sem dúvida uma prova de resistência, superior às minhas capacidades, de que aguentei bem, muito embora na parte final tivesse que acabar estourado fisicamente, pois foram mais de dezassete horas consecutivas, em andamento sob um escaldante clima tropical, no qual vi cair homens mais fortes do que eu” (p. 52)…

Segundo o Abel Rei, não houve apoio aéreo, devido a problemas de transmissões, tornando por isso a Op Guindaste ainda mais penosa para as NT.


Fá, o repouso do guerreiro

De novo em , o autor saboreia o descanso do guerreiro:

“ (…) A ventoínha, mesmo por cima da minha cabeça, gira, dando voltas sem fim, refrescando o ambiente e alimentando-o de mosquitos. O tempo está fresco, lá fora o luar lembra, juntamente com o firmamento celeste, o nosso luar de Agosto: ah!, como saberia bem recordar uma chegada familiar, com as alfaias às costas, duma fresca e saudável campina” (23/3/67, p. 54).

Ficamos a saber que em Fá Mandinga há uma pequena biblioteca, e que o autor tem bons hábitos de leitura:

“Para melhor passar o tempo, levantei alguns livros da nossa pequena biblioteca – eu, além dum dicionário e um prontuário de Português, trouxe mais de uma dúzia de livros, os quais já devorei” (p. 54).

Durante a guerra, Fá Mandinga funcionou como uma espécie de Centro de Instrução Militar (foilá que se formou a 1ª Companhia de Comandos Africana, no meu tempo), a par de Contuboel e de Bolama, três localidades durante muito tempo poupadas pela guerra. Em Fá havia, antes do início guerra, uma estação de desenvolvimento agrário onde se dizia (ao que parece, erradamente) ter trabalhado o Eng. Agrónomo Amílcar Cabral.


Em Porto Gole, com saudades do mar

Dia 26 de Março de 1967, “domingo e Páscoa”, a CART 1661 parte para o Enxalé onde vai render a CCAÇ 1439 que terminava a sua comissão (2/8/65 – 18/4/67). Uma secção do 2º Gr Comb, a que pertence o Abel segue, por seu turno, para Porto Gole. Da guarnição faz parte também o Pel Caç Nat 54. O 3º Gr Comb ocupa, por sua vez, o destacamento de Missirá.

Em Porto Gole, o Abel tem a ilusão de reviver o mar da sua terra: “Pela noite, antes de me ir deitar, fui dar uma vista de olhos pela margem do Rio Geba, revivendo ilusoriamente o nosso já saudoso mar” (27/3/67, Porto Gole, p. 56). Um mês depois arranja coragem para tomar o seu primeiro banho no Rio Geba, matando “saudades do mar” (sic) (1/5/67, p. 78).

Há também pequenos apontamentos sobre o quotidiano da população local, balanta, que se dedica, com muita destreza, à recolha de crustáceos na margem do rio:

“As mulheres nativas, a poucos metros, apanham os chamados ‘cacres’ (espécie de caranguejos) (…), existentes nas margens lodosas. São aos milhares, e ao sentirem aproximar-se alguém, correm a refugiar-se , em buracos feitos por eles, e onde se abrigam das marés. As mulheres, de tanga, andam de um lado para o outro, enterradas em lama, quase até ao ventre, e enfiando as mãos no lodo até chegarem ao fundo dos buracos, agarrando-os, aos quais partem um membro e vão pondo em tigelas” (5/5/67, Porto Gole, pp. 80/81)…

Em Porto Gole, onde há alguma abundância de peixe, o autor terá ainda oportunidade de conhecer o fenómeno do macaréu no Rio Gebal, o qual “chega a virar pequenas embarcações de mercadorias, que os nativos movimentam ao longo do seu curso, e que, ao deslocar-se para a nascente, arrasta um enorme ruído das águas revoltas” (20/4/67, p. 75).

A 31 de Março, a CART 1661 actuou conjuntamente com a CCAÇ 1589, na Op Rorodes, na zona de Mantém. Houve contacto com o IN, mas não se registaram baixas. Regresso a 2 de Abril, também dramático, com homens esgotados e desidratados, transportados em maca…

“Desde que vou a operações, foi a primeira vez que eu fiquei exausto, sem forças nas pernas, e com a garganta seca! Como não podíamos mais, só nos restou esperar e aguardar, até que finalmente lá chegou uma viatura com água, que nos levou até Porto Gole, onde chegámos às duas da tarde” (p. 61)….

A CCAÇ 1589 pertencia ao BCAÇ 1894 (tendo passado, de 30/7/66 a 9/5/68, por Bissau, Fá, Nova Lamego, Fá, Madina do Boé, Bissau).

(Continua)
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Nota de L.G.:

(*) V d. último poste desta série > 2 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4766: Notas de leitura (13): "Os Anos da Guerra Colonial" e as suas incorrecções (António Dâmaso)

Guiné 63/74 - P4814: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (8): “O Padre eterno”

1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 8ª estória, que faz parte do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", que muito agradecemos, com data de 06 de Agosto de 2009, a que deu o seguinte título:

O PADRE ETERNO

O «Padre Eterno» não era alcunha. É apenas o apelido – algo invulgar – do Firmino, alentejano de corpo inteiro.

Nado e criado em Borba e de nome completo Firmino Carola Padre Eterno.

O Padre Eterno foi um militar “especial” na Companhia.

Até se poderá dizer “especial de corrida” porque foi condutor-auto.

Depois de ter andado de “cu tremido” e no “bem bom” uma boa temporada na Metrópole como condutor do Coronel Braancamp Sobral, em diversas unidades militares... um dia... acabou-se-lhe a “mama”. E foi mobilizado.

Foto do Padre Eterno à civil em Bissau
(Obviamente na “5ª.Rep.”)

Foi para a Guiné incorporado na C.Caç. 642, do Batalhão dos Águias Negras como 1º. Cabo Condutor-Auto e por causa de um “levantamento de rancho”... foi punido com 15 dias de prisão disciplinar agravada, despromoção a soldado raso e transferido para outra Unidade.

Calhou-lhe a “675”. Obviamente que na vida militar não é o melhor “cartão de visita” chegar a uma Companhia isolado e “sem para quedas” e com a fama de ter estado metido num "levantamento de rancho".

Teve a sorte de encontrar um Comandante de Companhia como o Capitão Tomé Pinto que lhe “leu” de imediato “a cartilha”...

– O que se passou anteriormente não me interessa. Interessa-me o teu comportamento na C.Caç. 675 a partir desta data. Se te portares bem não vais ter problemas... E recomendo-te que o faças.

O Padre Eterno nunca esqueceu “a recomendação” e entrou na família da “675” como "gente grande".

“Entrou” tão bem que parecia que nunca tinha estado noutro lado.

Bem disposto, brincalhão, mas atilado e excelente operacional.

Foi devido à sua “ratice” que localizou uma mina anti-carro no dia da operação de Sambuiá – 5 de Janeiro de 1965 – e evitou uma tragédia, que podia ter causado mortos e feridos.

A sua versão do levantamento de rancho (de que foi acusado) é anedótica mas na vida militar uma palavra a destempo pode ser... ”a morte do artista”...

O Padre Eterno chegou atrasado a uma formatura para o jantar, desconhecendo que estava iminente um levantamento de rancho, e “caiu” como um “pato” quando o Oficial de Dia chegou à formatura.

– Quem são aqui os “meninos finos”?

– Quem é que não quer comer?

O Firmino não conseguiu ficar calado, como convinha, armou-se em “engraçado” e “lixou-se”:
– Eu é que não janto. Recebi hoje uma encomenda de casa com um paio – daqueles de comer e chorar por mais – e tive um lanche daqueles à antiga. Eu é que não vou comer.

Efectivamente não comeu do rancho mas “comeu” um castigo que... lhe estragou a digestão.
Apesar da azia dos dias seguintes teve a “sorte grande” de ter ido parar à “675”.

Onde foi um militar estimado por toda a gente.

Tinha sempre uma “estória” da sua terra para contar e, mesmo repetidas, os seus ditos causavam sempre gargalhadas no aquartelamento.

Sem dúvida que o apelido – Padre Eterno – ajudava e, não sendo alcunha, passou à história da companhia como sendo o filho do principal sócio de um armazém de vinhos de Borba. O nome da firma em causa deixava sempre a rapaziada de boca aberta e convencida de que o Firmino estava “a regar”.

Mas não estava.

Mais tarde quando fomos ao seu casamento a Borba foi-nos confirmado que o Pai do Firmino tinha sido mesmo um dos sócios da firma “Padre Eterno & Salvador das Almas, Armazém de Vinhos !!!

E depois há aquela estória da “sandes de atum” que arranjou ao “Caldas”, quando ele estava no Hospital Militar de Bissau, cujo crédito já “chegou” ao Céu...

Firmino já um pouco longe do “estado novo” mas ainda em boa forma.

(Foto de Maio de 2009, em Évora).

Foto do autor

Firmino Carola Padre Eterno alentejano puro e membro ilustre da “Família 675”.

E quer se queira quer não dá sempre jeito ter por amigo um “Padre” que... ainda por cima é “Eterno”...

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

9 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4803: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (7): O “Caldas” da CCAÇ 675, Binta - 1964/66

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4813: (Ex)citações (38): Resposta a J. Mexia Alves (António J. Pereira da Costa)

1. Resposta de A.J. Pereira da Costa (*), Coronel, comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, ao poste P4680 de J. Mexia Alves (**), enviada ao Blogue no dia 10 de Agosto de 2009:

Caro Camarada
Aqui vai a resposta:

Primeiro quero dizer que para além da guarda das memórias temos o dever de interpretar o que sucedeu. Temos o dever de o analisar fria e logicamente, mesmo que as conclusões não sejam aquelas que mais nos agradariam. Julgo que é isto que o blog pretende ao dizer que temos que falar antes que outros o façam por nós. Enquanto intervenientes, mesmo “a quente”, teremos uma perspectiva mais correcta do que os vindouros, mesmo bem intencionados, que só poderão especular sobre o que possa ter acontecido. Já hoje aparecem por aí umas teses de mestrado e doutoramento, escritas por amadores que terminam por conclusões absolutamente inaceitáveis. Podemos estar certos de que o tratamento de que seremos alvo vai ser muito mais boçal, insensível e injusto do hoje, quando, entre nós, uns dizem que sim, outros que não, outros que talvez, outros que possa ter sido de outro modo ou nem tanto... Temos uma vantagem: mesmo com uma visão sempre parcial, quiçá imperfeita, anima-nos a experiência e essa não se transmite.

Começava por pedir que consultasses o POST 4801 (***) da autoria do Vitor Junqueira que trata dos que fugiram e explicita bem o que eu quis dizer no meu post.

Curiosamente, o número de desertores[1]é surpreendentemente baixo, quer se considerem os que o fizeram já nos TO, quer se considerem os que desertaram ainda nas unidades de Portugal (faço apelo à vossa memória para que se recordem quantos desertaram efectivamente nas unidades onde foram prestando serviço). Não estou a incluir nestes os que desertavam – especialmente praças – para trabalhar e ganhar algum dinheiro, para manterem as famílias no limiar da sobrevivência e que, depois se apresentavam. Tive casos destes. Os jovens – adolescentes, às vezes – que saíam do país antes ou depois de terem “dado o nome” (e foram bastantes, não sei quantos) não desertaram fugiram e, muitos deles talvez tenham saltado da frigideira para o fogo…

Por outro lado, quem se opõem a qualquer coisa pode optar por se afastar, simplesmente, ou hostilizar e lutar contra essa coisa de modo mais ou menos empenhado. Temos exemplos como do Ten. Veloso da FAP que desertou, em Moçambique, com avião, mecânico e tudo… É também uma forma de valentia. Não creio que a apresentação às autoridades e, com lealdade e valentia, informá-las de que se não faz isto ou aquilo tivesse sido uma solução. As “autoridades” eram desonestas e viciosas na sua acção e além de distorcerem o acto e de o apresentaram como algo de ignóbil, triturariam o idealista que se dispusesse a desafiá-las. Não tenho conhecimento de alguém que o tenha feito e se no no estrangeiro o fizeram alguma vez… aqui tal não era possível. Não nos esqueçamos dos tempos que então se viviam. Às vezes parece que as pessoas se esquecem. Os povos têm má memória, mas também não abusemos…

Quando analisamos o desfeche de uma guerra, temos de ser objectivos e aceitar o sucedido. Hipoteticamente podemos determinar causas. No nosso caso particular, estou convencido de que aquilo a que chamamos “guerra” foi um fenómeno sociológico que decorreu em Portugal e que terminou com a independência de várias fracções do país relativamente ao poder central. Talvez fosse boa ideia perguntarmo-nos porque é que havia um “poder central” e se este era parte da solução ou do problema? Qual a relação desse poder com as diferentes possessões? Porque é que mil escudos valiam mil e cem “pesos”/escudos e mil pesos valiam apenas 900 escudos? E outras questões que, na altura, começámos a levantar, uma vez em contacto coma realidade. Porque será que, ainda hoje, com o português como língua oficial, na Guiné, só 16% da população fala e escreve português (correctamente?)?.

Teremos que aceitar razões tácticas e todas as outras: estratégicas, económicas, políticas (seria a guerra possível na conjuntura mundial actual) sociológicas e até antropológicas. Estamos a analisar um fenómeno. Estamos no campo da História e não no campo da moral ou no divã do psiquiatra.

Tê-la-ão perdido os políticos, tê-la-ão perdido uns quantos militares… Claro camarada! Mas a “guerra” é um fenómeno total e os países funcionam com políticos que servem o poder económico e determinam a actuação dos dignitários do sistema (de todas as condições, tipos e níveis) que, à medida que se desce na hierarquia fazem, os trabalhos de cada vez mais maior pormenor, com tudo o que esta expressão possa significar de bom e de mau.

A História faz-se quando os factos começam a ficar frios e, por isso mais exactos e compreensíveis. Ainda agora andamos a re-estudar as Invasões Francesas, ocorridas há exactamente 200 anos, e temos chegado à conclusão que foram tudo menos um jogo Portugal – França a contar para a Taça dos Países com Guerra…

Claro que os opinadores não podem ser aceites, especialmente aqueles que, não tendo estado no terreno, vêm agora explicar como é que se devia ter feito. Como se os povos reagissem “na maior ordem” nas alturas de tensão e crise e as sociedades funcionassem de acordo com as “directivas superiores”… (Se assim fosse a vida dos sociólogos era uma monotonia…) Onde é que isso aconteceu? Não te esqueças que nos degladiávamos havia 13 anos e, por vezes de forma muito dura.

Ter estado e com grande entrega não é, por si só, uma vitória na guerra. É apenas a conduta própria dos homens jovens, por isso mais generosos. E a entrega é própria de quem tem certezas, não esqueças. Nós talvez as tivéssemos, pois nunca tínhamos tido tempo para as questionar, digo eu, claro…

Não creio que alguma vez tenhamos deixado de olhar para o inimigo como inimigo, nem vejo que a recíproca não seja verdadeira, nem havia razões para que assim não fosse. Suponhamos que o Inimigo não passava de um bando de terroristas criminosos. Ao serem capturados deveriam ter sido julgados e condenados, nem que fosse num julgamento imperfeito e tendencioso. E foram-no? Não. Eles eram soldados inimigos. Claro que há maneiras e “maneiras” de tratar o inimigo, mas isso não cabe aqui e agora… Não considero que tenhamos vencido porque hoje realmente não vemos aquele povo e aquela Nação como inimiga. Era imoral e irracional se assim fosse. Devemos vê-la como uma Nação e um povo que gostaríamos – e até gostamos – de ajudar a ser mais fraterna, mais solidária, mais coesa e sobretudo mais feliz. Mas isso não nos dá a vitória. Custa-nos, ver tantos mortos de um lado e de outro, e afinal não vemos um povo mais independente, um povo mais feliz. É o nosso comportamento de homens civilizados a funcionar e nada mais. Claro que a culpa não é só deles, mas também daqueles que não souberam fazer tudo o que estava ao seu alcance para que a Nação se construísse na paz e no progresso. Esta afirmação aplica-se a qualquer outro povo/país flagelado com lutas fratricidas e assolado pelas diferentes formas de miséria, mas convém não esquecer que quem ganha uma Bandeira e uma forma independente de estar no mundo é responsável a partir daí.

Já agora, camarada, lembro-te que as Bandeiras ganham-se contra alguém e é muito raro que essas vitórias não sejam acompanhadas de violência. A História prova-o. Daqui que eu não possa aceitar que nós ganhámos a guerra e que o PAIGC ganhou a guerra.

Só havia dois beligerantes: nós (Portugal) e a Guiné (representada pelo PAIGC). Não entendo como é que quem veio a perdeu total e completamente. Os poderes guineenses independentes só teriam que conquistar o respeito do seu povo – o que é o mais lógico – e os poderes portugueses não eram, e bem, chamados a intervir, para além da ajuda que lhes fosse pedida. Esta sim deveria, talvez, ter sido dada com o estatuto de Nação “mais favorecida”. Mas já passaram 35 anos…
Estou absolutamente de acordo quando afirmas que neste espaço, nos convívios, encontramos espaço para falar do que não falávamos e isso é a razão porque nos devemos manter unidos à volta deste mais que projecto, que nos une até nas divisões próprias do pensar de cada homem, mas que nos leva a fazer a história, feita das nossas histórias, que um dia poderá ser a verdadeira história da guerra da Guiné e não aquela que alguns que sobre ela escrevem querem que seja, por razões que apenas lhes assistem a eles, e com isto não me estou a referir a ninguém em particular, que fique bem expresso.

Também a mim me resta-me deixar-te o abraço de quem contigo viveu momentos que nunca esquecerá e a todos os que os viveram também por aquela Guiné dos nossos sonhos.

Um Abraço do
António Costa
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4672: Blogoterapia (117): Quem somos nós? (António J. Pereira da Costa)

(**) Vd. poste de 13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4680: Resposta ao amigo Pereira da Costa (J. Mexia Alves)

(***) Vd. poste de 8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4801: (Ex)citações (37): Propaganda (Vítor Junqueira)