quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19173: Historiografia da presença portuguesa em África (136): Dois mapas da Guiné, 1948, 1951: quantas dúvidas, quantas interrogações (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Nunca debatemos aqui a fundo as cartas geográficas da Guiné, antes e durante a guerra e após a independência. As cartas concebidas com a ajuda soviética nos anos posteriores à independência foram um desastre eloquente, estão postas de parte, tal o volume de erros, com distâncias inconcebíveis.
As cartas com que combatemos andavam próximo da realidade, com a natural exceção de que com a passagem dos anos as antigas localidades iam desaparecendo, tomadas pela natureza.
O exemplo de que hoje me socorro são duas cartas, uma com a data de 1948 e outra publicada em 1951, não têm nada uma a ver com a outra, a não ser o nome das principais localidades e o rigor das linhas fronteiriças. O resto é um acervo de dúvidas, hoje irresolúveis, o que levou aqueles geógrafos a referirem povoações inexistentes e posicionamento de etnias totalmente fora da realidade? Isto só para dizer que os historiadores não podem na sua atividade excluir mais este escolho: quem ali vivia e efetivamente ali vivia.

Um abraço do
Mário


Dois mapas da Guiné, 1948, 1951: quantas dúvidas, quantas interrogações

Beja Santos


 (Clicar nos mapas para ampliar)

Quando consultamos as cartas geográficas anteriores àquelas que utilizámos na nossa atividade operacional, elaboradas pelos Serviços Cartográficos do Exército e que contaram com os trabalhos da Missão Geoidrográfica da Guiné, encontramos disparidades de monta. Sugiro, como exercício, que tomemos como referência estas duas cartas geográficas. A primeira foi impressa no Instituto Geográfico e Cadastral, em 1948. Encontramos nela bastante precisão. No trabalho que levo em curso sobre a história do BNU na Guiné, encontrei inúmera informação sobre o início da luta armada. O gerente do BNU em Bissau possuía muito boa informação confidencial e tinha acesso à documentação produzida pela gerência da Sociedade Comercial Ultramarina. Ficamos a saber, por essa documentação, como iam evoluindo as infiltrações do PAIGC, veja-se a região Sul, em meses Xugué, Salancaur, Caboxanque, Cadique, Cafine, Cacoca e Campeame foram sistematicamente sujeitos à pressão do PAIGC, as populações do Sul, ao longo de 1963 foram-se concentrando em Cacine, Cabedu, Catió, Bedanda e Empada. Podemos olhar para a carta e perceber a quase ausência populacional na chamada região do Gabu, as povoações contam-se pelos dedos.

Tive acesso a este esboço da colónia da Guiné através de uma carta adquirida na Feira da Ladra. A segunda carta vem publicada num livro em que muitos de nós estudámos, intitulado “Novo Atlas Escolar Português”, por João Soares, Sá da Costa, 1951. A carta, teoricamente mais recente que a anterior, exclui a generalidade dos nomes que vêm referidos na de 1948, e que se traduziram nos ataques do PAIGC na região Sul e que levaram à concentração populacional em lugares como Gadamael, Cacine, Catió, Cufar, Bedanda e Empada. Refere populações predominantes que não tinham nada a ver com a realidade: nem a região Leste e Centro era esmagadoramente constituída por Fulas, nem a região Sul por Beafadas, não há uma só referência a Mandingas ou mesmo Felupes, destacam-se os Nalus, que já naquele tempo eram uma perfeita minoria. Igualmente o nome das povoações deixa muito a desejar: falando de um território que palmilhei, do outro lado de Bambadinca, refere-se Sambel Nhanta, que há muito não existia, nem mesmo Caranque Cunda e muito menos Checibá de que nunca encontrei qualquer referência. Nunca encontrei qualquer estudo, tirando o trabalho sobre a antroponímia de Teixeira da Mota, que permita pôr luz sobre a verdadeira posição das localidades, em diferentes períodos temporais, e um efetivo posicionamento de etnias, pelo menos no período correspondente à chamada ocupação efetiva, depois de 1915.

Tudo isto para dizer que esta complexidade de fixação de etnias e de designação de povoações dificulta qualquer trabalho historiográfico, subtraindo-lhe rigor e autenticidade. É este um dos empecilhos quase irresolúveis, dado o progressivo desaparecimento dos mais velhos, que poderiam contribuir para dar uma certa ordem e clarificação aos nomes do passado e a sua relação com os nomes do presente.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19152: Historiografia da presença portuguesa em África (134): Relatório anual da Circunscrição Civil dos Bijagós, 1932 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19172: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 70: Os Extraordinários, os amigos que ficaram para sempre.


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda >3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > O Aníbal em 1º plano é o de sorriso mais aberto na foto. O Dino é o segundo a contar da esquerda.


Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*):


Quase a chegar ao fim da sua viagem pelas memórias de Fulacunda, socorrendo-se do seu "roteiro literário-sentimental", o autor evoca aqui, no capº 70,  alguns dos seus melhores amigos, com destaque para o Aníbal, o padeiro.

Recorde-se que o  autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ] 

2.  Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Cap 70º 




70º Capítulo > OS EXTRAODINÁRIOS


Comecei por dizer que éramos números e, entretanto, fui atribuindo nomes. Baseado em passagens dispersas, pela minha correspondência, é de alguns que hoje quero lembrar.

Podia colocar mais umas dezenas, ou até a totalidade dos soldados da companhia, mas estes viveram mais de perto comigo.

O Jorge

O Jorge foi operador cripto. Creio ser o único voluntário da companhia. Nas suas conversas comigo dizia que o tinha feito para poder sair da tropa ainda novo e ir para o Brasil. Quando lhe perguntei porque não foi antes para o Brasil, em vez de ir para a tropa, disse-me que o pai não deixou. Visto a esta distância, parece ridículo, mas aproveito para mostrar que em menos de meio século o respeito pelos pais mudou muito. Hoje, a maioria dos filhos pura e simplesmente ignora as opiniões dos pais e isso não tornou os filhos melhores.

O Jorge visitou-me na primeira vez que veio a Portugal, contando-me que estava radicado em Belém do Pará, possuía uma empresa de táxis. Fico feliz por ele ter concretizado os seus objectivos. Lamento não saber da sua situação actual.

O Carvalho

O Carvalho era empregado de mesa quando foi para a tropa. Foi o homem da messe de oficiais. Que tipo fixe! Foi o primeiro que me fez um cocktail. Descrevi-o assim:

“Deita-se num copo licor Tia Maria e um pouco de Rum. Acrescenta-se um pouco de Fanta e na beira do copo chega-se um bocadinho de Capilé Abadia, como o Capilé é pegajoso, cola-se um pouco de açúcar a toda a volta e vai-se bebendo e andando com o copo à roda a cada golo”.

Quando estive doente, e isso aconteceu várias vezes, não conseguia comer a péssima comida que em certas alturas se fazia na cozinha e, como verão mais adiante, por vezes não havia absolutamente nada que se pudesse comprar para cozinhar. Para o Carvalho, isso não era problema. Preparava-me a marmita com tal requinte que o nojento esparguete com rolhas (salsichas às rodelas) transformava-se numa iguaria dum restaurante 5 estrelas.

Também não sei o que é feito desse amigo que comigo partilhou bons momentos.

O Silva de Lisboa

O Silva de Lisboa que, afinal, era de Almada e que agora é das Caldas e cujo número de telefone ainda mantenho. Foi, juntamente com o Plácido, os meus amigos intelectuais. Sabiam ler. Entre as marcas distintivas entre cada um da companhia, na minha modesta opinião, esses dois eram os mais diferentes. Distinguia-os o nível cultural. E isso dava-lhes uma enorme vantagem sobre os outros.

Um soldado, outro furriel e um cabo, nunca senti,  em nenhuma circunstância, alguma superioridade de um em relação aos outros, creio que com esses dois não foi só de cultura que aprendi, foi muito mais que isso iniciei-me na democracia.

Tanto um como outro estão aí para as curvas.

O Zé Alves

O Zé Alves não se lembra de nada de bom da tropa, excepto da massa que eu e o Leal lhe fizemos quando ele chegou da operação, cheio de fome.

Foi empregado na messe de sargentos. Escrevi sobre isso:

“Ganhei amizade com um tipo que é de São Tomé de Negrelos, Só vem buscar as coisas para a messe quando estou a escrever, vai ser outro chaga mas parece ser porreiro. Só te digo uma coisa. Quem o escolheu foi o 1º sargento que embora eu goste dele é muito militarista, parece-se como meu tio o cabo Chico de Penafiel. O Alves vai-se ver fodido com ele e com a mania que os furriéis têm”.

Enganei-me e parece que o Alves acabou por passar uma comissão razoável no serviço que lhe foi atribuído. Mantemos ainda hoje uma sólida amizade.


O Silva dos Dilagramas

O Silva da equipa de Dilagramas com quem eu fazia reforço nas noites de prevenção era o típico soldado que aceitava tudo na boa. Sem namorada, conseguiu o espectacular feito de arranjar uma em Fulacunda. Calma, foi por fotografia. Apaixonou-se pela foto e depois por ela e, por mais incrível que possa parecer, também ela se apaixonou por ele. Contava eu, na brincadeira, que a foto da garota era duma actriz de Hollywood. Casaram-se e têm uma vida excelente. 


Quanto ao Zé Leal, já me referi várias vezes a ele. Foi o meu Maior confidente.

Estes amigos encaixam nos milhares de histórias que qualquer ex-combatente escreva. Em todas as unidades espalhadas pelas províncias ultramarinas durante a guerra colonial, eles fizeram parte do nosso grupo mais reduzido. Normalmente, eram 5 ou 6 mas a 3ª Companhia do batalhão 6520 não tinha grupos com 5 ou 6. Em todos grupos, sem excepção, havia um que fez parte de todos os outros, era o elemento especial.

Vou tentar escrever para vós o melhor que puder, sabendo de antemão que não terei capacidade para vos transmitir tudo que esse homem fez e vou chamar-lhe:


ANÍBAL, O MULTIPLICADOR DOS PÃES

Podia não haver absolutamente nada, e muito menos farinha. Casqueiro havia sempre.

Sempre me referi à fome na Guiné como perda de peso. Creio que tanto a minha namorada como a minha avó nunca souberam verdadeiramente porque é que os gatos e os cães também desapareceram de Fulacunda. Se não me engano, só a gata “Penicilina” escapou.

Não faço a mínima ideia se a carne da minha festa de aniversário, em Maio de 74, foi Pacaça, Gazela ou seja lá o que for. Naquela altura, estávamo-nos nas tintas para o que comíamos. O casqueiro do Aníbal dava para acompanhar com tudo.

Algumas frases das muitas em que me referi ao Aníbal:

(...) “O barco que nos vinha reabastecer foi atacado e voltou para trás, já não éramos abastecidos há dias, se calhar vai ficar mau, os meus colegas agora gozam. Ao meio dia comemos atum com vianda e à noite vianda com atum, aqui há tempos era. Esparguete com salsichas, salsichas com esparguete. Não faz mal, temos casqueiro que o Aníbal cose todos os dias”. (...)

(...) “Sabes querida por causa de avariar o gerador fui com dois colegas fora do arame farpado buscar água. Nem sabia que havia aqui uma fonte. É onde as mulheres lavam a nossa roupa. A água é para o Aníbal cozer o pão.” (...)

(...) “Ajudei o Aníbal a fazer uma peneira na oficina para peneirar a farinha. Havias de ver, tem milhares de bichinhos pretos, temos de comer o casqueiro às migalhinhas”. (...)


(...) “Não percebo Amélia. Não há na companhia uma única grama de farinha e o Aníbal veio agora ver-me à cama e trouxe-me um bocadinho de casqueiro, disse-me para tirar os bichinhos com cuidado que a peneira é grossa e ainda passaram alguns mas ficaram assados no forno”. (...)


Em Junho deste ano de 2017, encontrei-me com o Aníbal que já não via há um tempinho. Não conseguimos conter as lágrimas. Nesse encontro, pude recordar com ele alguns episódios divertidos. É isso que normalmente gosto de fazer nos nossos encontros anuais.

Perguntei-lhe se recordava como tinha sido possível fazer tanto com tão pouco. Respondeu-me que não, que não sabia e fez tudo igual a outro qualquer.

- Não foi não, Aníbal! Não fizeste igual a outro, meu amigo. Fizeste o que mais nenhum faria!


3. Nota dobre o autor e sinopse dos postes anteriores:

3.1. Nota biográfica:

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje: que o digam mais de 150 mil portugueses!), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade no âmbito do programa Novas Oportunidades; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

3.2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré; o dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(v) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas da companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vi) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(vii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe"; a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(viii) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(ix) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogramas por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(x) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xi) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xii) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xiii) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xiv) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xv) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não... no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda; manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada; em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xvi) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas; em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xvi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas; o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xvii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia  (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xviii) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;

(xix) vê, pela primeira vez, enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente da guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; manda um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão Serrote por quem não morre de amores: na sequência disso, sente-se "perseguido" pelo seu comandante...

(xx) vai de baixa médica para Bissau, mas não tem lugar no HM 241; passa o Natal de 73 e o Ano Novo de 1974 nos Adidos; conhece a "boite" Chez Toi onde vê atuar alguns elementos do grupo musical Pop Five Music Incoporated, a cumprir o serviço militar na Guiné;

(xxi) grande ataque, em 7/1/1974, ao quartel e tabanca de Fulacunda com canhões s/r, resultandodanos materiais, feridos entre os militares e a população e a morte de uma criança.

(xxii) faltam 5 meses para acabar a comissão... e há mais uma "crise" nas relações com a namorada;

(xxiii) em fevereiro de 1974, comunca à namorada que tem, já algum tempo, um pequeno negócio: venda de  uísque, tapetes, tabacos de marcas que não há na cantina, isqueiros Ronson, etc.

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Nota do editor:

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19171: A galeria dos meus heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)



Luís Graça, Contuboel,  CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, julho de 1969

A Galeria dos Meus Heróis (11): O Zé Nuno, o Tony Mota e o Belmiro Mateus, três amigos, três destinos – Parte I (Luís Graça)




− Meu caro Belmiro, dá-me cá um valente quebra-costelas, como se diz lá em baixo no meu Além... Tejo!

− E tu, como vais, meu velho ? – respondeu efusivamente o Belmiro, ao abraço apertado e prolongado do António, Tony para os amigos.

− Cá vamos andando, menos mal!...Velhos, carecas e gordos! – replicou o Tony.

− Cá vamos andando, como dizem os mouros cá de cima, de Riba... Tejo.

Em muito pouco tempo, em escassas semanas, era a segunda vez que se encontravam, depois de longos anos sem se verem, o Belmiro Mateus, advogado, e o António Mota, professor de história do ensino secundário, dois conterrâneos agora separados pelo Tejo.

− Cada um para seu lado, Belmiro. O nascimento aproximou-nos, a vida ou a história afastou-nos. Bolas, e se éramos amigos de coração!

− Como irmãos, Tony, como irmãos!... É verdade, não se escolhe pai e mãe, e a terra natal é aquela que nos calha na rifa da sorte!

− ... aquela que nos calha na rifa da sorte, dizes bem!

Reencontravam-se agora no cemitério da terra natal, pela segunda vez em dois meses, o que queria dizer “por circunstâncias infelizes”. Desta vez, vinham acompanhar um amigo comum, o Zé Nuno, “até à sua última morada”.

− Que raio de sítio – pragejou o António – para o reencontro de dois velhos amigos, conterrâneos, vizinhos… e condiscípulos!

− E manos, acrescebta aí!

O Belmiro, ainda hoje supersticioso, confessou que, quando era novo, tinha um medo que se pelava de passar por aquelas bandas, sozinho, à noite, fora das muralhas que delimitavam o casco velho do antigo burgo medieval.

O cemitério tinha sido construído há cento e tal anos, no tempo do senhor Dom Luís de boa memória, e localizava-se no início da lezíria, que era o grande celeiros da vila ribatejana.

− À noite, só de pensar nos fogos fátuos, nas corujas, nas bruxas, nas almas penadas, nos lobisomens... ficava com os cabelos em pé!

− Eu, também, confesso, nessas coisas era um medricas… Mas, lembras-te, Belmiro ?!... As nossas patifarias, tais como caçar lagartos no muro do cemitério...


−... com anzóis de pesca e bocados de pão, embebidos em leite!... Para o que nos devia de dar!... Esses lagartos, hoje, foi espécie que desapareceu.

− Espera, não eram lagartos, eram sardões! Eram verdes, podiam medir um ou dois palmos.

O Belmiro lembrava-se que o bando de garotos de escola enfiava um laço à volta do pescoço do bicho, e com um cordão comprido passeavam-no pelas ruas e vielas da terra, metendo medo aos mais fracos, as crianças mais pequenas,as raparigas, as mulheres e os velhotes…


− Acho que éramos sádicos e cruéis como todos os miúdos na pré-puberdade, a aprender a ser machos!

− Mas, já agora, Belmiro, acrescenta ao rol dos nossos crimes de malvadez partir os vitrais da rosácea da velha igreja matriz… À pedrada, imagina!

− Se me lembro, Tony, ainda hoje carrego essa culpa, por crime de lesa-património. Bolas, era (e é) uma magnífica igreja, gótica, monumento nacional, um lugar sagrado, a casa de Deus!... Que estupores!... Meninos de coro e escuteiros, ainda por cima. E, tens razão, era a casa de Deus!

− Se bem que fechada ao culto, na altura estava para obras, com andaimes...

E aqui o Belmiro reconstituiu a cena do grupo de “peles vermelhas”, ululantes, montados nos seus cavalos de cabo de vassoura, comandados pelo grande chefe “Língua de Víbora”, um primo mais velho do António, que há-de, logo a seguir, em meados dos anos 50,  emigrar com a família para o Canadá.


− Montados em cavalos de cabo de vassoura, como os das bruxas,  e disparando saraivadas de setas com arcos de pau de tramagueira!...

− Mas que terrorista,  esse meu primo, filho de uns tios-avós. O gajo safou-se, mesmo a tempo, de ir parar mais tarde, com os quatro costados à Índia ou a até a Angola...

O “Língua de Víbora”!... O Tony nunca conhecera, no seu tempo de escola, miúdo mais endiabrado, mal educado, traquinas, se não mesmo mau e perverso, como o seu primo em segundo grau.

A alcunha cabia-lhe que nem uma luva, tinha-lhe sido dada, ninguém sabe por quem, devido às patifarias que ele pregava e sobretudo às asneiras que ele deitava pela boca fora. Todos os palavrões que o Tony sabia (e que usou pela vida fora...) tinha-os aprendido com o primo, mais velho uns três ou quatro anos... Era expulso com frequência da escola e da catequese pela sua insolência e má-criação. E, no entanto, a mãe era uma santa senhora, daquelas que iam à missinha todos os dias. O pai, pelo contrário, era um carroceiro.

− Mas, sabes, eu tenho saudades dele e do nosso bando de "índios" – atalhou o Belmiro. – Dele e toda essa malta, rapazes e raparigas que fizeram parte da nossa infância e que, já em plenos  anos 50, começaram ir-se embora, uma parte deles para o Brasil, a América, o Canadá!...

− Cá tens, o exemplo de um mau líder de grupo que faz maus rapazes. O "Língua de Víbora", há séculos que não sei dele, espero que não se tenha perdido no Novo Mundo… Oxalá ainda esteja vivo!

− Ficas a saber, Tony, que eu nunca tive a coragem de confessar ao padre frei Batista esse grave pecado, o de atirar pedras aos vitrais da igreja. Para mim, puto, era um pecadilho, daqueles que não dava condenação ao inferno, apenas simples castigo no purgatório.

E foi logo recordado por ambos os amigos a figura do bom frei Batista, mais tarde missionário, franciscano, barbaramente assassinado,  a golpe de catana, em março de 1961, no norte de Angola.

− Que raio de memórias, fomos buscar!... Mas, voltando ao que aqui nos traz hoje, o doloroso dever de homenagear o nosso já saudoso amigo Zé…

− Já se foi, António, já aqui está na terra da verdade… Horrível, um cancro, fulminante, que em poucos meses o levou…

− É tramado, Belmiro… Um rapaz da nossa geração, da nossa colheita...

O Zé Nuno era ligeiramente mais velho, uma meia dúzia de meses, que o Tony e o Belmiro. Fez o antigo curso de engenharia técnica em Lisboa e depois alistou-se na Marinha. Ficou na Reserva Naval e foi mobilizado para Moçambique onde desempenhou funções de imediato de uma orveta da Marinha.

− A imagem que eu tenho dele era o moço de forcados, rijo pegador de touros, marialva, “bon vivant”...

− Bom garfo, melhor copo, mas… mau cavaleiro! Não tinha jeito nenhum para montar, até eu, que não tinha cavalos, montava melhor do que ele…

− Mas valente como ninguém na cara dos touros... Enfim, é o lídimo representante de uma geração que está a desaparecer.

− Inteiramente justo o que dizes, Tony.

− Como sabes, Belmiro, eu nunca fui amante da festa brava, que continua a ter muitos aficionados na nossa terra, em todo o nosso Ribatejo e o nosso Alentejo.

− Eu sei, Tony, os amigos não têm que ter todas as afinidades. Como eu gosto de dizer, no círculo estreito da amizade cabemos todos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... E as touradas (e já agora a bola e a política) são algumas delas...

− Sim, Coisas que nos podem separar, a política, a religião, o futebol…, o que no cômputo final representa 90% das nossas conversas de machos…

− Mete aí também o tempo, passamos a vida a falar do tempo que faz, ora sol ora chuva, ora calor ora frio... Mas isso é inócuo, é conversa da treta... De qualquer modo, o Zé tinha outras vivências e origens sociofamiliares. Os touros, o fado, os cavalos, o marialvismo, a boémia... eram coisas que ele tinha bebido no leite materno...

− ... e que estavam nos genes do pai. De qualquer modo, vai-nos fazer falta, o Zé, a todos nós – lamenta o António.

− Vai fazer falta à terra, ao grupo de forcados, à festa brava, à malta que gosta do fado e sobretudo à família e aos amigos. Era um coração aberto, generoso como poucos…

Fez-se um silêncio, entre ambos, sentados, ali no muro do cemitério, a "relembrar os bons velhos tempos"... O Belmiro continuou a conversa:

− Sabes, fico sempre jeito, nestas ocasiões. Eu que tenho a mania que falo bem, e de improviso, com tantos anos de barra nos tribunais, nunca encontro as palavras certas para consolar a família e os amigos mais íntimos... Sim, o Zé era o mais afável de todos os nossos amigos de infância, e se calhar o melhor de todos nós. Aquelas mãos brutas e aqueles braços compridos de pegador de touros, e sobretudo aqueles dedos mágicos de dedilhar a guitarra,  também sabiam dar afagos e xicorações, como ninguém… Era uma joia de moço, um encanto...


E esclarece:

− Foi meu companheiro de caça durante muitos anos, se bem que a política nos tenha afastado um pouco, antes e depois do 25 de Abril. Ele teve dificuldade em lidar e aceitar o meu esquerdismo dos verdes anos... Foi também para Lisboa, estudar, mas raramente nos encontrávamos lá, eu em direito, ele em engenharia... Sei que o seu sonho era ir para o curso de regentes agrícolas em Santarém, tinha lá amigos do grupo de forcados... Mas o pai, homem autoritário, achava que seria borga a mais... De resto, o irmão mais velho, o "Morgadinho", é que começou cedo a tomar conta da herdade. Dizia que não tinha cabeça para estudar...

− Autoritário e mulherengo, o pai, acrescenta aí. Nunca foi, aliás, das minhas relações – arrematou o Tony.

− Infelizmente, a casa agrícola, outrora próspera, prestigiada, com tradições republicanas, está de pantanas, hipotecada aos bancos... Confirma-se a velha teoria de que em três gerações dá-se cabo do  património de uma empresa, neste caso agrícola, uma das maiores e melhores do nosso concelho.

− Olha, costuma-se dizer "coitado é de quem cá fica", refiro-me em concreto à viúva, que encontrei, ontem, no velório, lavada em lágrimas...

− Era uma miúda muito gira, talvez a mais bonita da terra. Destroçou corações...

− Disso já não me lembro, Belmiro. É bastante mais nova do que nós, e eu mal a conheço.

Para o Belmiro, o advogado, estes não eram tempos bons para um gajo bater a bota e deixar a família em maus lençóis.

O Zé tinha casado tarde, ficou solteirão até aos quarenta, mantendo uma tradição que remontava até ao bisavô, republicano, amigo e admirador do José Relvas, da Golegã.

− E, ao que sei, deixa ainda um filho a estudar em Coimbra. E outro com problemas de saúde mental, creio que é bipolar.

− A desvantagem de se viver num vilória como a nossa: não há vida privada – concluiu o Tony. 
– Vai parar tudo à praça pública, até os segredos de padre no confessionário e do clínico no consultório...

E prosseguiu:

− O raio da gadanha da morte não escolhe idade nem condição, ceifa o pobre, ceifa rico, o jovem e o velho, o homem e a mulher… Também não sabia que ele tinha passado por África, pela guerra colonial…

O António tinha perdido o contacto com a malta do seu tempo, da escola primária Conde de Ferreira e do colégio João XXIII, os que ficaram pela terra e sobretudo os que partiram... E foram muitos, não só para a França e a Alemanha, como até para o Novo Mundo (Brasil, EUA, Canadá)... Um ou outro fixou-se em Angola e Moçambique, depois de terminado a comissão de serviço militar.

− Além da grande Lisboa, os felizardos, como tu e o Zé, que tiveram possibilidade de prosseguir os seus estudos…


O António, Tony para os amigos da terra, estudara até ao 5º ano do liceu no colégio João XXIII, com grande sacrifício do pai, que tinha uma pequena oficina de serralharia. 

Depois, aos 16 anos, tinha tido uma “crise mística” e decidiu ir para o seminário. Fez a filosofia e parte da teologia, envolvendo-se no 10º ano com um grupo da JUC – Juventude Universitária Católica que, na associação de estudantes,  tirava a “stencil” uns panfletos contra a guerra colonial. 

Numa noite, foi apanhado pela PSP a colar "papéis subversivos" nos candeeiros, junto às esplanadas dos cafés da Avenida de Roma... Terá havido uma denúncia de algum empregado mais zeloso da propriedade alheia ou, o que era mais provável,  de algum bufo da PIDE… As mensagens eram "pacifistas", o que não  livrou o Tony, já "quase padreco"(siv), de passar uma noite na António Maria Cardoso, juntamente com mais dois ou três rapazes do grupo da JUC. O caso chegou aos ouvidos do Patriarcado de Lisboa e foi comunicado ao seminário dos Olivais. 

O silêncio da Igreja em relação à guerra colonial e aos católicos presos por "motivos políticos" levaram o Tony a questionar a sua vocação. Saiu do seminário, aos 20 anos. E aos 21 estava em Mafra a fazer a recruta. Escassos meses depois era mobilizado, em rendição individual, para a Guiné, como alferes miliciano de infantaria, para uma companhia de caçadores, independente, composta por praças do recrutamento local.


 [Continua]

Guiné 61/74 - P19170: Parabéns a você (1520): Jorge Cabral, ex-Alf Mil Art, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1979/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19162: Parabéns a você (1519): Tenente-General PilAv António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA12 (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19169: Notas de leitura (1117): “Racismo em português, o lado esquecido do colonialismo”, por Joana Gorjão Henriques; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
O trabalho da jornalista Joana Gorjão Henriques apareceu inicialmente no Público, foi um projeto de cinco reportagens nas cinco ex-colónias africanas. Quarenta anos passados sobre a independência das ex-colónias, importava questionar até que ponto o racismo afeta ainda hoje as relações sociais, políticas e económicas nesses países. Reconheço o mérito do trabalho, mas confesso que o mesmo merecia tratamento caleidoscópico, por isso introduzi uma questão de peso para Angola e Moçambique, os brancos de primeira e de segunda. Acresce que também era útil questionar como é que a descolonização, ao olhos dos portugueses afeta as nossas relações com esses países, também tem que se medir o pulso aos antigos colonizadores e sua descendência para saber como se pôde descomplexar e erradicar as relações sociais em que o branco aparecia sempre em superioridade.

Um abraço do
Mário


Racismo em português, o lado esquecido do colonialismo: 
O testemunho da Guiné-Bissau

Beja Santos

“Racismo em português, o lado esquecido do colonialismo”, por Joana Gorjão Henriques, Tinta-da-China, 2016, é uma reportagem em que 40 anos depois da descolonização a jornalista foi perguntar até que ponto persistem ainda hoje as ideias de raças espalhadas por Portugal nesses países, como é que as populações dos países colonizados olham para o papel de Portugal enquanto colonizador, trabalho feito em cinco viagens às cinco ex-colónias portuguesas. A autora conta-nos como trabalhou: “Em cada país escolhi uma amostra de entrevistados, proporcional ao número de habitantes. O objetivo era reunir vozes que representassem as diferenças existentes: de classe social, de género, de situação profissional, de origem geográfica, de experiência pessoal, de interpretação. Interessou-me ouvir o passado e saber que marcas persistem desse passado ainda hoje”.

Como seria de esperar, há narrativas similares e naturais dissemelhanças decorrentes do processo descolonizador. Veja-se Angola: houve segregação racial em autocarros para brancos e para negros; havia brancos, assimilados e indígenas. A autora não entra em pormenores, mas havia duas categorias de brancos, os de primeira e de segunda, como Jerónimo Pamplona em “Angola Noutros Tempos, Por Terras do Golungo e de Ambaquistas”, Pangeia Editores, 2016, claramente refere: os naturais da colónia e os oriundos da metrópole, brancos europeus e brancos de segunda, estes nascidos nas colónias. A identidade de cada um fixava-se nos documentos oficiais, para os brancos com indicação do território colonial de origem e a menção de não indígena ou europeu para os nascidos na metrópole. E adianta: “O regime colonial português construiu uma hierarquia racial baseada no cruzamento de dois conceitos distintos – raça e naturalidade. Os brancos naturais de Angola foram oficialmente classificados de euroafricanos a fim de os distinguir dos metropolitanos, eram os brancos de segunda”. Os assimilados e indígenas assumiam a inferioridade que lhes era ditada pelo colonialismo. A partida do colonialismo não significou o fim da discriminação, continuam a existir os musseques e desenvolveram-se os arranha-céus para a classe dirigente.

Vejamos os testemunhos que Joana Gorjão Henriques recolheu da Guiné-Bissau. A primeira marca era ditada pela cidade onde podiam viver os civilizados e os assimilados e a periferia onde se espalhavam os bairros indígenas. Pelas seis da tarde, uma sirene recordava a todos que a cidade de Bissau passava a pertencer exclusivamente a brancos, mestiços, comerciantes, enfim, gente que comesse à mesa, que usasse garfo e faca, tivesse um salário ou modo de vida e um estilo de vida português. Quando uma pessoa requeria o estatuto de assimilado tinha de provar que se vestia como um europeu e que já não praticava as cerimónias tradicionais. Leopoldo Amado, diretor do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, lembra a época em que um sinal dava ordem de entrada e saída da população negra na cidade, no porto havia um muro para separar as populações africanas dos moradores. Os assimilados mudavam de nome, quem fosse Fodé ou Braima passaria a ser Fernando ou João.

A potência colonial nunca hostilizou a região muçulmana, pelo contrário, construiu mesquitas e apoiou financeiramente as peregrinações a Meca. Há muitas explicações para este comportamento de uma visível tolerância religiosa: o cristianismo claudicou logo nos primeiros séculos, o missionário sentia a adversidade do clima e a absoluta falta de meios; a colonização portuguesa só se torna efetiva depois das campanhas de Teixeira Pinto e da montagem de uma estratégia de convivência interétnica assente no acicate de clivagens entre elas, dando a certas etnias prerrogativas especiais, caso dos Fulas e dos Mandingas, sociedades verticais, pouco interessadas em aberturas políticas. A administração colonial recorria ao trabalho forçado para a construção de estradas, subtraía o sentimento de resistência junto das populações locais evidenciando os benefícios do avanço nos meios de comunicação.

Durante muito tempo pretendeu-se iludir a natureza e a proveniência dos colonizadores, com a luta armada fingiu-se que não havia uma profunda hostilidade do guineense face ao cabo-verdiano. Saico Baldé, atualmente a fazer um doutoramento sobre os migrantes guineenses em Portugal lança alguma luz sobre a questão: “Quem eram os administradores? Raramente eram os lisboetas, muitas vezes eram os cabo-verdianos. Aliás, 70% dos funcionários coloniais em 1971 eram cabo-verdianos: não lidámos com o colono diretamente, mas com o subcontratado. Isto deixou outra marca, a rivalidade entre a ala originária de Cabo Verde e a da Guiné. Os restantes 30% estavam cá em cima: quem lidava com o nativo não era o colono da metrópole era o cabo-verdiano vindo de S. Vicente ou da Praia”.

Chicoteava-se quem não pagava o imposto de palhota, o que nos remete para um outro colaborador do colono: o sipaio, que pressionava as populações para acatar as ordens ou para pagar o imposto, para trabalhar nas estradas e nas construções. E não podemos esquecer os grumetes, cristianizados, vistos como próximos dos brancos, também eles paus para toda a colher ajudando os colonos, combatendo ao lado dos portugueses em todo o período da ocupação.

A jornalista comete por vezes imprecisões graúdas, caso de atribuir os disparos do Pidjiquiti, em 3 de Agosto de 1959 à PIDE, foi a PSP quem avançou e disparou, a PIDE vem mais tarde.

O sistema educativo era irracional, os alunos eram obrigados a aprender de cor os rios e serras de Portugal (como nós aprendíamos de cor todos os principais rios e linhas de caminho-de-ferro do Império), a realidade local era praticamente obliterada. Nota comum aos inquiridos é ninguém acreditar que o colonialismo português tenha sido brando, é evidente que o governador Sarmento Rodrigues trouxe alterações de tomo, a seguir à II Guerra Mundial e que nomeadamente o período de Spínola foi marcante no desenvolvimento, mas era demasiado tarde. Há quem interprete a postura de Cabral em relação ao colonialismo defendendo que o inimigo do povo da Guiné-Bissau não eram os portugueses mas o sistema como o acontecimento decisivo para a harmonia no relacionamento entre portugueses e guineenses.

Na sua reportagem à Guiné-Bissau, Joana Gorjão Henriques refere a rota da escravatura que teve o seu ponto central no porto de Cacheu. Aqui a repórter comete outra imprecisão grave, diz que Cacheu chegou a ser a capital da Guiné-Bissau, a Guiné só teve duas capitais: Bolama e Bissau, Cacheu não foi que sede de capitania. Teve um papel importantíssimo no resgate de escravos. Era um comércio em que havia intermediários entre os armadores e os régulos africanos. E refere-se à Companhia de Cacheu e Rios de Guiné (1676), à Companhia de Cabo Verde e de Cacheu (1690) e à Companhia do Grão-Pará e Maranhão (1755). Na Igreja de Nossa Senhora da Natividade, criada no século XVI, chegou-se a converter 600 a 800 africanos num dia, afirma Leopoldo Amado. Com a abolição da escravatura, Cacheu definhou e a potência colonial teve que reorganizar a economia da Guiné, centrou-se na agricultura, findo o século do comércio de escravos. Leopoldo Amado lembra que a Guiné-Bissau foi uma colónia de exploração, não de fixação e acrescenta textualmente que era um território que alimentava o comércio de escravos de Cabo Verde, o arquipélago prosperou, a Guiné não. Os portugueses nunca tiveram uma política de conquista e de fixação e não se podiam medir com a resistência dos povos africanos. Era uma presença espúria, os portugueses nunca tiveram o domínio exclusivo do comércio de escravos dos rios da Guiné, nunca houve meios para dissuadir as investidas dos espanhóis, franceses e holandeses. Depois construiu-se a fortaleza de Cacheu, a seguir à Restauração, contribuiu para que o resgate de escravos pudesse florescer. Leopoldo Amado refere o número de 3 mil escravos por ano e conclui: “Se considerarmos que esse resgate durou cerca de 3 séculos, estaremos em condições de dizer que esse forte permitiu que pudesse sair cerca de um milhão de escravos de Cacheu e de povoações vizinhas. Por isso, a importância de Cacheu sobreviveu até aos nossos dias através da história lendária das suas grandes famílias que prosperaram e se multiplicaram”.

Importa não descurar que um dos objetivos do trabalho de reportagem de Joana Gorjão Henriques era o de questionar se os portugueses terão sido mais brandos e menos racistas do que as outras potências coloniais, igualmente questiona o silêncio que mantemos quanto ao trabalho escravo que existiu em parcelas do Império até 1974 e tece por último uma interrogativa que não é menos inquietante: “O que revela esta perspetiva de brandura de olhar sobre nós próprios, portugueses?”.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19161: Notas de leitura (1116): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (58) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19168: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (São Domingos e Nova Lamego, 1967/69) - Parte XLIX: Mensagem de parabéns enviada à namorada, pelo seu 21º aniversário, em noite de luar, em São Domingos, em 5 de novembro de 1968


Matosinhos > Tabanca de Matosinhos > Restaurante Espigueiro (ex-Milho Rei) > 5 de setembro de 2018 > Almoço de homenagem à memória do nosso saudoso camarada Joaquim Peixoto (1949-2018) > Virgílio Teixeira e a esposa Manuela... Vieram, pela primeira vez, à Tabanca de Matosinhos. Moram em Vila do Conde.


Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]





Foto nº 3  > Eu, olhando para a Lua às 10,30h da noite  do dia 5 de Novembro de 1968, em São Domingos.


Foto nº 1 > A Lua Cheia fotografada às 10,30 horas da noite do dia 5 de Novembro de 1968



Foto nº 2 > O Luar já visto através de arvoredo, sensivelmente à mesma hora e no mesmo dia.







Foto nº 4 > Uma das muitas fotos de preparação e teste feitos no dia anterior, em 4 de Novembro de 1968



Foto nº 5 > A Lua vista entre o arvoredo, na mesma hora e dia (5 de Novembro de 1968, 10h30)


Foto nº 11 > Foto do arame farpado, com as luzes de presença, e a noite sempre negra e sempre um mistério (São Domingos, 5 de Novembro de 1968)





Foto nº 6 > Depois da sessão exterior, e já com outra máquina e rolo com slides, no quarto, escrevendo o que me veio à cabeça, à minha namorada que fazia 21 anos



Foto nº 7 > Posto de observação e controlo da Pista de São Domingos (c. Janeiro - Fevereiro de 1969).


 
Foto nº 8 > Vista aérea da vila de São Domingos, sede do Batalhão e da Circunscrição local (c. Janeiro-Fevereiro de 1969)



Foto nº 10  > No meu quarto – dos oficiais milicianos – antiga maternidade de S. Domingos, deitado e pensativo. Como estava à civil, estaria à espera da hora do jantar ou talvez num Domingo (s/d)



Foto nº 10A >  Deitado na minha com o retrato da minha namorada na mesa de cabeceira



Foto nº 9 > O meu retrato com farda camuflada, oferecido à minha mãe e à minha namorada. (São Domingos, Novembro de 1968)



Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



Virgílio Teixeira
CTIG - Guiné 1967/69 - Álbum de Temas:

T511 – MENSAGEM DE PARABÉNS ENVIADA À NAMORADA
ATRAVÉS DA LUA DE ÁFRICA – NO NORTE DA GUINÉ, NUMA NOITE EM SÃO DOMINGOS, A 5 NOVEMBRO 1968





Para a minha mulher e minha companheira, Manuela:

Neste dia há 50 anos atrás, eram 10 e meia da noite, conforme previamente combinado, olhamos os dois para a Lua, e assim te enviei os Parabéns pelo teu 21º Aniversário.

Havias atingido a ‘maioridade’, pois nesse tempo era aos 21 anos e não 18, como hoje.

Foi um momento de grande emoção, pois a distância que nos separava fisicamente, ficou mais curta com a LUA a fazer a ligação.

E hoje, já mais perto, com esta mensagem conseguida pelas novas tecnologias, desejo que tenhas um dia muito feliz, com saúde, alegria, a tua coragem e a força que te move com os teus 71 anos, na companhia daqueles que mais amas no mundo – A Nossa Família.

Estas fotos que são postadas hoje, são os 50 anos que separam essa simbólica efeméride.

Espero que gostes e aprecies.

Um grande beijo com amor, do teu Virgílio

Em 05 Novembro 2018.



I - Anotações e Introdução ao tema:

Não sei se este tema é do agrado de alguns, mas sei que não é de todos, seguramente, nem se é compatível com o objecto deste Blogue.

A origem deste assunto como tantos outros, são fruto da nossa solidão e isolamento duma vivência dita normal. Esta vida lá no extremo profundo da Guiné, não foi fácil para ninguém, qualquer que fosse a função de cada um. Nas várias centenas de dias passados no mesmo local, cada dia com 24 horas, 60 minutos, 60 segundos, é de ficar ‘apanhado pelo clima’.

Assim cada um à sua maneira e segundo as suas posses, ia passando o tempo que sobrava das funções diárias obrigatórias, ora dormindo, ora jogando, bebendo e fumando, pouco mais havia que fazer, depois de escrever a sua carta diária.

Eu virei-me para as fotos, fui-me tornando um viciado e apreciador das fotos, coisa que nunca tinha tido antes, era uma novidade na minha mão.

A minha namorada, que sempre adorou e adora festejar os seus anos e os dos outros, pode ter escrito algo, com a aproximação desta data, estando eu longe dela, mas hoje não sei como surgiu esta ideia.

Combinamos por carta, que no dia 05-11-68 pelas 10 horas e meia da noite, ela estaria a olhar para a Lua na porta da sua casa, a mesma que também nos iluminava a nós, e através desta dava-lhe os parabéns e uma mensagem de amor, claro.

Mas sem dizer nada, eu fui preparando outra surpresa, fui estudando com antecedência, como ficavam as fotos da Lua à noite, com diversos tempos de exposição, mandei revelar e vi mais ou menos como devia fazer no dia certo.

E assim foi, a essa hora, no silêncio da noite, sozinho, com o meu tripé e demais equipamentos, fui tirando as fotos, várias, com diferentes tempos, e assim seleccionei estas, bem como as do dia anterior, em que a Lua estava bem cheia, pois se falhasse no dia seguinte, já tinha outras.

Depois foi só guardar e enviar por correio, as fotos da noite de 5 de Novembro de 1968, captadas em São Domingos, junto à fronteira do Senegal.

São imagens e sentimentos daquela época, claramente de amor, sem pieguices ou lamechas.

II - Legendas das fotos:


F01 – A Lua Cheia fotografada às 10,30 horas da noite do dia 5 de Novembro de 1968. Foto conseguida com recurso ao apoio da Máquina num Tripé, com disparador automático, com cerca de 10 a 15 segundos de abertura total do diafragma e sem flash. Foram feitos vários testes com bastante antecedência para apanhar a melhor Lua e Luar.


F02 – O Luar já visto através de arvoredo, sensivelmente à mesma hora e no mesmo dia. Foto conseguida nas mesmas condições da anterior.

F03 – Olhando para a Lua às 10,30h da noite do dia 05Nov68. O olhar para a Lua com o pensamento na mensagem que estava a transmitir mentalmente à minha namorada.

Foto conseguida com recurso a máquina e tripé, disparador automático, com temporizador de 10 segundos e com flash. Abertura do diafragma quase a meio, e velocidade de fecho de talvez cerca de 5 segundos. Não sei ao certo.

F04 – Uma das muitas fotos de preparação e teste feitos no dia anterior, em 4Nov68. Foto conseguida nas mesmas condições da foto F01.

F05 – A Lua vista entre o arvoredo, na mesma hora e dia da foto F01. SD, 05Nov68.

F06 – Depois da sessão exterior, e já com outra máquina e rolo com slides, no quarto, escrevendo o que me veio à cabeça.  Note-se que cada carta, com envelope e selo pagos, levava sempre várias folhas, e algumas fotografias do meu álbum. Pode ver-se alguns roncos, arcos, flechas, lanças e outras coisas do artesanato local.

Foto conseguida com recurso a máquina e tripé, disparador automático, com temporizador de 10 segundos e com flash. Abertura do diafragma a 16mm, velocidade 1/500.

F07 – Posto de observação e controlo da Pista de São Domingos, entre Jan-Fevereiro de 1969. Para complementar esta reportagem, é a amostra da pista, tempo seco, e o mais usual meio de saída daquela terra, por via aérea. Estava de Oficial de Dia, novamente.

F08 – Vista aérea da vila de São Domingos, sede do Batalhão e da Circunscrição local.

O objectivo é mostrar a principal porta de saída de SD, para a maioria do pessoal, militar e civis, era a via fluvial, o Rio São Domingos e depois o Rio Cacheu, até ao grande estuário em Bissau. A faixa branca mais comprida, é a pista com 1200 metros. Tem uma faixa branca, que vem do centro na direcção do cais e rio. À Direita pode ver-se a serração, à esquerda da rua as moranças da população.

O plano quadrado que se vê mais em cima, são as instalações da Companhia de intervenção, e neste caso era a CART1744, do Capitão Serrão, Alferes Gatinho e outros.

Por entre árvores e poilões, estavam as instalações diversas do aquartelamento e do pessoal. A cerca de 2-3 quilómetros, a Norte era a terra de ninguém e a seguir o Senegal, e os santuários dos terroristas.

F09 – O meu retrato com fardamento a rigor, oferecido à minha mãe e minha namorada. Foto captada em Novembro de 68.

F10 – No meu quarto – dos oficiais milicianos – antiga maternidade de S. Domingos, deitado e pensativo. Como estava à civil, estaria à espera da hora do jantar ou talvez num Domingo.

A minha cama de ferro, com apenas 2 lençóis brancos. Uma luz fraca, num pequeno candeeiro de mola agarrado às barras de ferro, para poder ler e escrever sem incomodar os outros parceiros de quarto. A mesa-de-cabeceira de madeira, não sei como a arranjei, talvez mandasse fazer na serração. Um dia quando abri as gavetas onde tinha papelada e livros, sai uma grande molhada de baratas, escondidas entre os papéis, que deu comigo em doido, depois mandei fazer uma desinfestação total ao quarto, e já não apareciam muitas.

Em cima da mesa, sempre a moldura que levei comigo com a fotografia da minha então namorada, que nunca deixou de estar junto de mim. Ao lado um frasco de comprimidos, parecem da marca ‘Roche’, devem ser antibióticos, ou comprimidos para dormir. Ao lado o meu desodorizante da minha marca preferida em tudo, a saudosa ‘Old Spice’. E também a minha pasta com o caderno de folhas finas, das minhas cartas, para enviar por avião.

No chão uma ‘esteira’ a servir de tapete, era um luxo. Ainda se vê no chão a minha inseparável lanterna, para sair à noite, nunca a deixava. Várias pilhas velhas espalhadas pelo chão. Botas da tropa e sapatos, bem como os primeiros chinelos de pé ‘havaianas’. Hoje não percebo como toda a gente, a população local, usava já este tipo de chinelos que depois foram baptizados por havaianas. Bem como uma das minhas 3 ventoinhas, por vezes ligava-as todas durante a noite e trabalhavam se e quando havia energia.

Nas paredes alguns roncos do artesanato local, não tudo o que tinha. Só não vejo aqui a minha arma que estava sempre na cabeceira da cama. E falta a máquina fotográfica, que está com outro camarada a tirar a foto, ou no tripé, sendo isto já uma espécie de ‘self’.

A foto, tendo em vista o meu bigode e o fim da carecada, pode ter sido captada entre fins de 1968 e inícios de 1969, não sei ao certo.

F11 – Uma foto do arame farpado, com as luzes de presença, e a noite sempre negra e sempre um mistério.

É uma foto na sequência das outras de 05-11-68.

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano do SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BATCAÇ1933/RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SET67 a 04AGO69».

NOTA FINAL DO AUTOR:

# As legendas das fotos em cada um dos Temas dos meus álbuns, não são factos cientificamente históricos, por isso podem conter inexactidões, omissões e erros, até grosseiros. Podem ocorrer datas não coincidentes com cada foto, motivos descritos não exactos, locais indicados diferentes do real, acontecimentos e factos não totalmente certos, e outros lapsos não premeditados. Os relatos estão a ser feitos, 50 anos depois dos acontecimentos, com material esquecido no baú das memórias passadas, e o autor baseia-se essencialmente na sua ainda razoável capacidade de memória, em especial a memória visual, mas também com recurso a outras ajudas como a História da Unidade do seu Batalhão, e demais documentos escritos em seu poder. Estas fotos são legendadas de acordo com aquilo que sei, ou julgo que sei, daquilo que presenciei com os meus olhos, e as minhas opiniões, longe de serem ‘Juízos de Valor’ são o meu olhar sobre os acontecimentos, e a forma peculiar de me exprimir. Nada mais. #

Acabadas de legendar, hoje,

Em, 2018-10-22

Virgílio Teixeira
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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19132: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XLVIII: Metralhadoras e lança-granadas