terça-feira, 1 de agosto de 2006

Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca.

Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3).

A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole. De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).

Apesar do apartheid (leia-se: segregação sócio-espacial) que vigorava, não só na sede dos batalhões, como em muitas unidades de quadrícula, uns e outros, oficiais e sargentos, tinham uma cozinha comum (19). Do lado direito, ao fundo, a menos de um quilómetro corria o Rio Geba, o chamado Geba Estreito, entre o Xime e Bafatá.

O aquartelamento de Bambadinca situava-se numa pequena elevação de terreno, sobranceira a uma extensa bolanha (a leste). São visíveis as valas de protecção (22), abertas ao longo do perímetro do aquartelamento que era todo, ele, cercado de arame farpado e de holofotes (24). A luz eléctrica era produzida por gerador... Junto ao arame farpado, ficavam vários abrigos (26), o espaldão de morteiro (23), o abrigo da metralhadora pesada Browning (25). Em 1969/71, na altura em que lá estivemos, ainda não havia artilharia (obuses 14).

A caserna das praças da CCS (11) ficava do lado oeste, junto ao campo de futebol (3). Julgava-se que o pessoal do pelotão de morteiros e/ou do pelotão Daimler ficava instalado no edifício (12), que ficava do outro lado da parada, em frente ao edifício em U. Mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14). Creio que por detrás ficava o refeitório das praças. Em frente havia um complexo de edifícios de que é possível identificar o depósito de engenharia (15) e as oficinas auto (16); à esquerda da secretaria, eram as oficinas de rádio (17).

Do lado leste do aquartelamento, tínhamos o armazém de víveres (20), a parada e os memoriais (18), a escola primária antiga (19) e depósito da água (de que se vê apenas uma nesga). Ainda mais para esquerda, o edifício dos correios, a casa do administrador de posto, e outras instalações que chegaram a ser utilizadas por camaradas nossos que trouxeram as esposas para Bambadinca (foi o caso, por exemplo, do Alf Mil Carlão, nosso camarada da CCAÇ 12).

Esta reconstituição foi feita pelo Humberto Reis, completada por mim (LG).

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006)


Texto de Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques, com a inútil especialidade de armas pesadas de infantaria, pião das nicas ou pau para toda a obra da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)(1)


- Ó Pimbas, estou aqui, não tenhas medo! – esta terá sido a expressão, patética, gritada pelo major, o segundo comandante (2), de Walther em punho, o rosto iluminado pelo clarão das explosões, ao comandante do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pimentel Bastos, que rastejava em trajes menores no corredor do edifício do comando, naquela noite em que o céu desabou sobre o aquartelamento de Bambadinca…

Eu não estava lá, não posso testemunhar para a história, nem muitos menos confirmar ou infirmar os detalhes… Não estava lá nem sou voyeurista… Mas esta foi a expressão que ouvi, alguns dias depois, da boca de soldados e milicianos de Bambadinca.

Havia um sentimento misto e contraditório, de alívio, de regozijo e de révanche, nesta expressão dos militares de Bambadinca que faziam do Pimbas e do seu amigo o bode expiatório do grande susto, do cagaço monummental, que todos apanharam nessa noite sem jamais o admitirem… É na desgraça que se vê a relação de amor-ódio dos povos pelos seus líderes, dos subordinados pelos seus chefes…

A história repetia-se, grotesca, desta vez num dos mais belos cenários da Guiné, que era o quartel de Bambadinca, inscrutado num pequeno planalto defronte de uma magnífica bolanha, e com o Geba a seus pés, tortuoso, pérfido, assassino, como uma surucucu… 

A expressão que eu ouvi na caserna – ó Pimbas, não tenhas medo! -, era para todos efeitos reveladora do baixo moral em que as NT se encontrava na Guiné, mau grau o efeito do fenómeno Spínola e do seu populismo…

Para uma grande parte dos militares, do contingente geral, e até e para muitos dos meus camaradas milicianos, ele era uma espécie de anjo justiceiro que vinha, de heli, castigar os maus (os incompetentes oficiais superiores que estavam à frente dos nossos batalhões) e encorajar o Zé Soldado, lídimo representante do bom povo português… Em breve, o BCAÇ 2852 seria decapitado pelo raio fulminante da justiça spinolista, para gaúdio da populaça…

Chovia torrencialmente nessa noite de 28 de Maio de 1969 – por ironia, uma efeméride, sempre grata aos homens do regime, embora o 28 de Maio de 1926, que instaurara Ditadura Militar, e abrira o caminho ao Estado Novo, já nada dissesse ao comum dos meus camaradas de armas, de camuflado novinho em folha, a caminho de Contuboel que ninguém sabia onde ficava…Uma efeméride que –anoteu eu – também foi comemorada, à sua maneira, pelos homens do PAIGC…

Umas horas antes tínhamos nós atravessado o Trópico de Câncer, a caminho da Guiné, a caminho de Bissau, Bambadinca, Bafatá e Contuboel…
- Fomos todos apanhados as calças na mão! – contou-me, ainda em alvoroço, um conterrâneo meu, 1º cabo telegrafista de infantaria – se não me engano - , mostrando-me um monte de cápsulas de granada de canhão sem recuo com inscrições em russo e em chinês.
- Podíamos ter morrido todos! – concluiu, hiperbólico, o meu amigo Agnelo Ferreira por cujas mãos havia passado, três meses antes, a terrível lista negra dos mortos do Che-Che, no Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de Fevereiro de 1969…

Depois da Lança Afiada, toda a gente dormia de cu para o ar: a Browning, junto à pista de aviação, não tinha munições; não havia segurança próxima nem valas de comunicação entre os abrigos; faziam-se quartos de sentinela sem arma; e até os básicos eram escalados como aquele maluco das cozinhas que costumava ver elefantes a pastar ao fundo da pista…
- Os gajos vieram em peso (talvez mais de duzentos!) retribuir-nos a visita que tínhamos feito ao Fiofioli… Por sorte, não houve mortos!

Ainda deu tempo para espreitar um dos quartos dos furriéis, e ver o céu estrelado: o forro tinha sido atingido por uma morteirada; a granada explodiu em cima de uma das camas; por sorte, o tuga que a ocupava, tinha-se posto a milhas, dois minutos antes...
- Por sorte não houve mortos… - comentava eu, em voz alta, para o furriel que ia a meu lado, quando a coluna retomou a marcha, agora em estrada asfaltada, em direcção à próxima paragem, em Bafatá, a capital da zona leste…
- O meu conterrâneo é capaz de ter razão: afinal nesta guerra só morre quem tem de morrer… - ironizava eu.
- Fala a voz do reviralho – interveio o Noronha que seguia à frente, ao lado do condutor – Mas olha lá, ó Camarada Sov, tu com essas ideias derrotistas e dissolventes aqui não vais longe – proferiu o Alferes, em tom de velada ameaça…
- Só espero que a sorte esteja do meu lado…
- Fia-te na Virgem e não corras!... O problema nem é esse: nesta guerra morre-se mais por erros nossos do que por mérito do inimigo… São as estatísticas que o dizem – acrescentou o Ranger, que se meteu na conversa.
- Pelo muito pouco que já vi, não me atreveria a subestimara assim tanto o adversário que temos pela frente – respondi eu.
- Deixa-te de tretas. Os turras não passam de uns cães rafeiros, que ladram mas não mordem… E os cães quando mordem, também se abatem…
- Fico a saber que não gostas de cães…
- Nem muito menos de barrotes queimados – finalizou o Noronha, já agastado com o rumo da
conversa… Por ironia do destino, iria ter que aprender a lidar, durante vinte e meses, com os barrotes queimados que lhe calharam em sorte...

Demagógico e racista, o Noronha aproveitou para contar a última que tinha ouvido, no QG, em Santa Luzia:
- Sabes como é que Deus fez o preto ?... Ao sétimo dia, depois de completada a obra da criação, Deus foi descansar mas, por esquecimento, deixou ao sol o barro com que tinha feito Adão… Quando acordou, e como já não tinha mais nada que fazer, entreteve-se a fazer bonecos, à imagem e semelhança do homem mas, para haver confusões, pintou-os de preto e mandou-os para a floresta onde já estavam os macacos…
- Grande cabrão! – não pude deixar de rosnar, para mim mesmo, ao ouvir o alarve do Noronha por quem, desde Santa Margarida, eu não podia nutrir qualquer simpatia…

E foi assim, aos solavancos, sentados costas contra costas no dorso de um mastodonte, que a nossa conversa prosseguiu, aqui e ali mais azeda, não tanto pelas diferenças de idiossincrasia, como sobretudo pela tensão e pelo cansaço da viagem, até chegarmos a Contuboel, à hora em que o sol raiava de vermelho a savana arbustiva e os bandos se macacos-cães, na orla da floresta, se organizavam para proteger os filhotes das ciladas do leopardo…

Fonte: (Pre)texto: Na Guiné, longe do Vietname (inédito) (Os nomes o pessoal da CCAÇ 12, meus companheiros de viagem, são fictícios.... As restantes personagens são verdadeiras: o Pimbas e o Agnelo, por exemplo).

Luís Graça (1981-2005)

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Notas de L.G.

(1) Vd. posts anteriores:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau

12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá
1 de Agostod e 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané

(2) O 2º comandante, na altura, era o major Manuel Domingues Duarte Bispo, transferido para o Q.G., substituído pelo major Herberto Alfredo do Amaral Sampaio.

Guiné 63/74 - P1013: Também eu, apanhado, me confesso (Jorge Cabral)


Guiné > Região Leste > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 > O Jorge Cabral e as suas queridas bajudas mandingas

Foto: © Jorge Cabral (2006)



Guiné > Região Leste > SEctor L1 > Bambadinca > Fá Mandinga, sede do Pel Caç Nat 63 e da 1ª Companhia de Comandos Africanos > Diversos furriéis e alferes da CCAÇ 12 e da CCS do BART 2917, de visita a Fá Mandinga, no 2º segundo semestre de 1970: Reconheço do lado direito, o Alf Machado (CCS) e o Alf Abel Maria Rodrigues (CCAÇ 12). Do lado esquerdo, também à civil, de camisola vermelha, o Fur António Branquinho e de camisola verde o Fur Humberto Reis (CCAÇ 12).
Foto: © Humberto Reis (2006)

Mensagem do Jorge Cabral:
Amigo Luis,

De apanhados percebo eu! Dos bons, dos divertidos, dos saudáveis apanhados.
Dos outros, maus, perversos, sádicos, falarei em dia mais azedo...

Abraço Grande,
Jorge Cabral
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Também eu, apanhado me confesso !


Cada um de nós, é o que é, ou o que parece ser? Na guerra fomos nós ou encarnámos ficcionadas personagens?

Atribuíram-nos papéis. Representámos todos. Alguns improvisaram e saíram do texto. Outros, humildes figurantes, quiseram ser protagonistas. A Guiné, a Tropa, a Guerra – palco de tragédias, de comédias, de revistas.

Fomos actores. Uns bons, outros assim, assim…

Por mim falo. Eu, um apanhado-mor. Anti-militar e pacífico por natureza, como podia ter mantido a sanidade mental, se não tivesse inventado um alter ego, aquele louco alferes Cabral, do qual se relatavam estranhíssimas peripécias… (Ainda há pouco tempo um ex-alferes do Xime me perguntou se era verdade que eu convidava os turras para jantar em Missirá…).

Claro que da situação de apanhado decorriam benesses, mas também riscos… Regressar sozinho, desarmado, e de noite a Missirá…ou ir para o mato de pingalim e galões… constituíam sem dúvida, estúpidas aventuras, que me podiam ter sido fatais. Mas era assim! Constavam do guião daquele alferes Cabral…

Tal como a declaração de amor à libanesa D. Rosa, na presença do Capitão Barbosa Henriques (1), que ainda hoje conta a cena. Ou as intermináveis discussões com o Major Leal de Almeida (2), sobre a implementação da Guerrilha na Serra da Estrela…

Reconhecido o estatuto de apanhado, conquistava-se a liberdade de opinião. Podiam-se afirmar as verdades todas. Muito se divertia o Polidoro Monteiro (3), quando eu gozava o Major de Operações, dizendo-lhe que na vida civil e em Lisboa, não o encarregaria de planear a minha ida ao café, pois certamente seria emboscado…

Com o tempo, era preciso cuidado para a criatura não se apossar do criador. Não sei se o consegui, pois aquele alferes Cabral, de vez em quando, surge e faz das suas… É ele que escreve as estórias cabralianas (4) e pertence à Tertúlia.

Na semana passada, acordou no Pilão. Um fuzileiro dormia no chão, um bebé chorava, e ela já não estava… Parece que no quarto ao lado, um tal Furriel Henriques, havia desistido por não gostar da música

Jorge Cabral

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Notas de L.G.

(1) Instrutor, em 1970, da 1ª Companhia de Comandos Africanos, sedeada em Fá Mandinga. Vd. post de 11 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

(2) Supervisor , em 1970, da 1ª Companhia de Comandos Africanos.

(3) Último comandante do BART 2917 (Bambadinca).

(4) Vd. lista das estórias cabralianas:

5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum... (inclui a estória a que deveria corresponder o nº 1 > A mulher do Major e o castigo do Cabral)

5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXII: Rally turra ? (estórias cabralianas) (Estória que corresponderia o nº 2)

7 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: O básico apaixonado (estórias cabralianas) (Estória a que corresponderia o nº 3)

18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVIII: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos.

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXV: Estórias cabralianas (5): Numa mão a espingarda, na outra...

17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 -DXLVI: Estórias cabralianas (5): o Amoroso Bando das Quatro em Missirá

13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá

17 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIX: Estórias cabralianas (7): Alfero poi catota noba
13 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCC: Estórias cabralianas (8): Fá Mandinga no Conde Redondo ou o meu Amigo Travesti

20 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXVII: Estórias cabralianas (9): Má chegada, pior partida
3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P836: Estórias cabralianas (10): O soldado Nanque, meu assessor feiticeiro

4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P936: Estórias cabralianas (11): a atribulada iniciação sexual do Soldado Casto

20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P974: Estórias cabralianas (12): A lavadeira, o sobretudo e uma carta de amor

Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > 1969 > A morança do comandante do Pel Caç Nat 52 , destruída por uma granada incendiária, por ocasião de um grande ataque ao destacamento em Março de 1969. O Beja Santos perdeu tudo o que tinha: os seus livros, os seus discos, os seus escritos, os seus haveres... Esta morança era tradicionalmente destinada aos ilustres visitantes de Missirá.

Foto: © Beja Santos (2006)




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > S/d > "Um momento de Missirá: à esquerda. Madiu Colubali, baixo de corpo, grande de coragem. Grande conhecedor do Corão e da escrita marabu; à direita, o régulo Malã Soncó, em perfeito traje de chefe mandinga - figura bíblica, bravura sem igual. Atrás, o pequeno monumento que os rebeldes destruiram e nós reconstruímos. Ao fundo, à esquerda, a mesquita. À direita, cubata destruída no ataque de Setembro. Tudo tão belo" (...)

Foto e texto: © Beja Santos (2006)



Mensagem do Beja Santos, com data de 31 de Julho de 2006 :

Caro Luís, estás a pôr à prova os [meus]dotes epistolográficos. Mas eu estou contente. Oxalá um dia possamos juntar a CCAÇ 12 e o BCAÇ 2852 num pleno onde caibam gente como eu e o Vacas de Carvalho.

Amanhã, despeço-me mas prometo levar para férias alguns episódios a latejar. Enviei-te hoje fotografias e bilhetes postais que julgo de uso interessante. Uma das fotografias é Bambadinca em 68. Tenho uma supresa para ti: vou publicar cartas com poemas inéditos do Ruy Cinati, que ele enviou em 69 e 70. Esclareço que perdi tudo nos fogos de Março de 69: livros, discos e respectivo aparelho, toda a correspondência. Felizmente que a memória funciona. E felizmente também que o nosso blogue é um hino à vida. Recebe a cordialidade do Mário.


Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável

O BCAÇ 2852, para mim, era a tropa de Bambadinca. Depois de fazer a bolanha de Finete (cerca de 4 Km de uma língua de terra onde passava à tangente um Unimog 411), chegava ao Geba e gritava pelo canoeiro, Mufali.

Feita a cambança, percorria uma centena de metros até ao estanco do Sr Tavares, onde metia sempre dois dedos de conversa. Daí subia a rampa para Bambadinca, já com as tarefas distribuídas: um grupo ia buscar comida, outro dirigia-se às munições, um outro ao posto de saúde, mais outro em direcção à delegação do Batalhão de Engenharia.

Eu ia fazendo a ronda, portava-me como um capataz, regateando, vociferando, pedindo mais e melhor. Eu tinha autoridade para pedir mais pois estava para lá do fim do mundo. Daí a naturalidade com que roubava da messe jornais desportivos, a revista Flama, alguns jornais diários datados do mês anterior.

Este circuito que passava pela manuntenção, reabastecimento, alimentação, sargento enfermeiro, conversas com mecânicos radiomontadores, sapadores, etc., gerou estimas e os inevitáveis desencontros e pequenos arrufos. Ainda há uns anos atrás quando o pintor Sá Nogueira, de quem fui amigo, festejou 79 anos, fui a um almoço onde o seu marchand se apresentou assim:
- Sou o Dário, o vagomestre de Bambadinca, lembra-se?
A minha resposta foi pronta:
- Ainda bem que não me lembro, pois vagomestre era a gente mais odiada da guerra.

Depois desfiz-me em explicações com o Dário, lembrando-lhe por exemplo com os desacertos do abastecimento e a época das chuvas onde estive 19 dias a pé de porco salgado com feijão verde em latas de conserva da África do Sul e leite com chocolate holandês.

Voltando às relações humanas, concentrava toda a minha diplomacia à hora do almoço. Quando me negavam o essencial, eu gritava para que todos me ouvissem:
- Já que me tratam assim, ficam a saber que amanhã não vou a Mato Cão!

Era tudo treta, mas assim ficava bem claro que a malta de Bambadinca e tudo aquilo que era transportado por estrada para o Leste dependiam também da gente de Missirá e Finete que todos os dias montava segurança às embarcações militares e civis num ponto estratégico.

O BCAÇ 2852 chegou em Setembro e recordo a tarde em que ouvimos a alocução do Prof Marcello Caetano, quando tomou posse. Da minha relação com o Tenente-Coronel Pimentel Bastos, já falei no saudoso Pimbas (1).

Mantive uma relação cordial com o Major Pires da Silva, o oficial de operações com quem trabalhei até pouco depois do ataque a Bambadinca, em 28 de Maio de 1969. Amizade funda mantive sempre com o David Payne e o Ismael Augusto, que já não podia mais com as minhas reindivicações. O Tenente Pinheiro da secretaria era a minha enxaqueca permanente, já que mantive heroicamente toda a burocracia em atraso. O Capitão Batista Neves era o Comandante da CCS e recordo-o pelo bem que sempre me fez e a todos os meus soldados. Histórias com a BCAÇ 2852 foram muitas e agora passo em revista algumas que mantenho vivas.

A primeira operação em que me envolvi foi a Meia Onça (2). Foi tão cansativa e inútil que só guardo a recordação da boa soneca qeu tirei numa GMC entre Xime e Bambadinca, depois de andarmos perdidos mais de um dia à volta do Buruntoni. Foi uma sensação horrível de andar atrás de muita gente sem perceber bem o que se andava a fazer, eu que tinha tantos patrulhamentos à minha espera no regulado do Cuor.

Experiência dramática foi a Anda Cá, que merecerá capítulo próprio. Quando, em Março de 1969, Missirá foi devorada por uma flagelação numa noite quente, ardeu tudo e eu fiquei reduzido ao que tinha vestido. Recordo a cortesia de quem me deu roupa nova e empolgante movimento de solidariedade que foi a primeira reconstrução de Missirá, de Abril a Julho: desde arame farpado a cimento, passando por chapas, armamento, vestuário e equipamento, nada nos faltou. Como num filme épico, fez-se uma jangada para transportar oito bidons preparados como chuveiro moderno, e que era o indicador de modernidade da nova Missirá. Só por esses momentos eu saúdo aqui todos aqueles que fizeram bem à gente do Cuor.

A solidariedade também se permuta. Em 27 de Maio de 1969, depois de horas de paciência em emboscada, colhemos de surpresa uma coluna de reabastecimento do PAIGC em Chicri (3). Foi um êxito, mas resolvi não correr mais riscos depois da surpresa inicial da destruição provocada na coluna, dei ordem de retirada imediata.

Duas coisas aconteceram que nunca mais esqueço. O Cabo Barbosa, já tinhamos avançado cerca de 6 Km e veio ter comigo exigindo que voltássemos a Chicri, pois deixara lá a sua boina de estimação. Para quem nos lê e nunca fez esta guerra, este comportamento parece uma bizarria. A guerra desenvolve superstições e a nossa não era diferente das outras, onde há objectos fetiches.

Acreditem ou não, demorei meia hora a negociar com o Barbosa a voltarmos lá no dia seguinte. É no regresso a Missirá, nessa noite de 28, que começou um ataque em que eu supus que Finete estava a ser destruída, em jeito de retaliação. Em cima de um abrigo, petrificado, eu via o fogo dos obuses a subir e a descer num céu espectral, apocalíptico.

Arrebanhei 20 voluntários e atirei-me para a picada num [Unimog] 404 que voou até Finete. Aqui, estava-se em paz, lá atravessámos o bolanha de Finete, veio o Mufali, mas o Geba estava praticamente a vau, de modo que chegámos completamente enlameados a uma Bambadinca transformada em campo de batalha.

O PAIGC atacara com três canhões, vários morteiros e outro armamento uma sede de Batalhão até então esquecida da guerra. Nessa noite, vi com os meus olhos um grande milagre: caíram postos electrificados e ninguém morreu; choveu fogo desencontrado e as baixas limitaram-se a dois feridos ligeiros.



Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 : O Padre Poím, capelão militar, de origem açoriana, com o furriel Guimarães da CART 2716. Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, tal como outros (o caso mais famoso foi o do Padre Mário da Lixa)

Foto: © David J. Guimarães (2005)


Limitei-me a pedir que desligassem a electricidade e que se esperasse pelo amanhecer para arrumar os estragos. Pelo caminho, pedi ao capelão (4) que conversava em cuecas à porta de um abrigo com a mulher do Tenente Pinheiro (5) em camisa de noite que fosse ajudar algumas almas em sofrimento. Foi quando ele veio apressado saber onde estavam as almas, que lhe pedi discretamente que pusesse mais roupa em cima...

Voltarei à carga, pois irei pertencer a Bambadinca em Novembro de 1969. Como era de esperar, a relação que se estabeleceu teve novos contornos e eu deixei de ser o visitante de Missirá e Finete.

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852

(2) Iniciada em 11 de Outubvro de 1968, com a duraçãod e dois dias, para "procurar aniquilar ou capturar elementos IN no acampamento de Buruntoni (Baio). Tomaram parte na operação as CART 1746 e 2339, os pel Caç Nat 52 e 53, 1 Gr Comb /CCAÇ 2401 e Pel Art. As nossas tropas perderam-se e não tibveram contacto nem vestígios" (História do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, Cap II, pág. 7).

(3) Vd. post de 21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)


(4) Tratava-se do Padre Poím, açoriano, segundo informação do Beja Santos. O nome do capelão do BCAÇ 2852 aparece em branco, na história da unidade.Também serviu o BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), acabando por ser expulso do exército, creio que já em finais de 1970.

(5) Tenente Manuel Antunes Pinheiro, chefe da secretaria do Comando do BCAÇ 2852.

Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > 1969 > "Interrogatório a um prisioneiro. Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita. O sorriso é o mesmo nas duas fotos. O prisioneiro era o Malan Mané".... 

Foto do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso ; legenda do ex-Alf Mil Torcato Mendonça; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos) (1).


Texto de Luís Graça (2)

Malan Mané. Vinte anos ? Menos de vinte ? Talvez da idade dos nossos soldados mais novos. Temos alguns com dezasseis ou dezassete. Não tenho qualquer jeito para advinhar a idade dos africanos. Mas ele próprio não saberia responder. Aqui ninguém tem certidão de nascimento, cédula pessoal, bilhete de identidade, passaporte, boletim de vacinas, caderneta militar, um papel que seja, a dizer quem tu és, de quem és filho, quando e onde nasceste. Para a tropa, do recrutamento local, é-se escolhido a olhómetro: altura, peso, massa muscular… A idade não conta. Experiência de combate, quase todos a têm, os fulas desta região, ou pelo menos algum treino como milícias...

Malan Mané. Mandinga do regulado do Cuor, lá para os lados do Enxalé. Podia ter sido nosso soldado. Temos dois mandingas na CCAÇ 12: Malan Nanqui e Ussumane Sissé… Mas há mais outros dois Malan, de etnia fula: Malan Baldé e Malan Jau…

Malan Mané. Roqueteiro do bigrupo de Mamadu Indjai, um comandante de guerrilha famoso, também ele de etnia mandinga. Veste um dolmen, velho, de cor já irreconhecível. Calças rotas no joelho. Apresenta-se descalço. Está deprimido, talvez aterrorizado. Cair, vivo, nas mãos dos tugas é talvez pior desgraça do que do que ser morto em combate – deve ter ele pensado muitas vezes no mato. Ou se calhar nunca pensou nisso. É uma pergunta que não ele entende ou a que não quer responder. Pelo menos, em público, neste cenário de circo, enjaulado como um animal selvagem, rodeado de hominídeos...

Os páras, esses, não tiveram grande dificuldade em desatar-lhe a língua. Bastou-lhes encostar a faca de mato à barriga. A mala pata do Mané!... Por azar, foi apanhado pelos páras com o seu RPG-2 na mata do Rio Biesse, na região de Camará, lá para os lados de Candamã, quando o céu desabou em cima dele (3).

Está agora às ordens do comando do sector [L1]. De mãos algemadas, metido numa gaiola de jardim zoológico. Espectáculo degradante. A Convenção de Genebra sobre os prisioneiros de guerra não se aplica aqui. Oficialmente o meu país não está em guerra com ninguém, com nenhum outro estado soberano. Oficialmente não há nem pode haver prisoneiros de guerra no meu país, do Minho a Timor, passando pela Guiné. Malan Mané é bandido. Homem do mato. Turra (2).

Faz-me lembrar o Gungunhana, passeado em gaiola por Lisboa, em 1896, como troféu de caça do Mouzinho de Albuquerque. Está aqui mesmo ao lado das instalações do rancho, o refeitório dos praças. Entre a escola e o posto administrativo. Há um correpio de gente que vem ver o turra capturado pelos paras, na Op Nada Consta, em 28 de Agosto, no sub-sector de Mansambo (1). Participámos na operação. Mas a nós, ao Pelotão de Caçadores Nativos e aos gajos de Mansambo coube-nos fazer o papel da tropa-macaca.

Básicos, cozinheiros, padeiros, pintores, carpinteiros, fiéis de depósito de géneros, faxinas de bar, maqueiros, corneteiros, mecânicos auto-rodas, desempanadores, condutores auto, escriturários, amanuenses, quarteleiros, sapadores, ajudantes de capelania, operadores de transmissões, radiolegrafistas, cabos cripto, municiadores e apontadores de metralhadora Browning, caçadores e suas presas, todo o mundo tem hoje espectáculo de borla. Até a senhora professora, a única branca (cabo-verdiana, ao que parece) que reside dentro do perímetro do aquartelamento, espreita à janela da escola.


Guiné > Circa 1969 > Cartaz de propaganda das NT, dirigido ao homem do mato...

Imagem enviada por: © A. Marques Lopes (2006)

A senhora professora (que os senhores oficiais tratam com a deferência de cavalheiros) deve estar a olhar para o prisioneiro como o bicho do mato que lhe apareceu nos pesadelos nocturnos. Ou talvez não. Se calhar é simpatizante do PAIGC. Ou até mesmo militante. Nunca lhe soube a idade nem o nome. Vejo-a agora de relance. E pergunto-me como terá reagido ela ao ataque ao aquartelamento em 28 de Maio de 1969. Se calhar portou-se com mais dignidade do que alguns dos militares que deveriam saber defender a sua unidade (5).

Intriga-me a situação desta estranha personagem: uma mulher, mestre escola, talvez à beira da reforma, que insiste em viver aqui, no cú do mundo. Numa terra inóspita. Não sei donde veio. O chefe de posto é de Cabo Verde, como manda a tradição. Desde, pelo menos, os tempos de Honório Pereira Barreto, comendador da Ordem de Cristo, tenente-coronel de Artilharia de segunda linha, governador de Bissau, de Cacheu e da província da Guiné, por carta de 24 de Janeiro de 1885, e que tem nome de rua no Porto...

Na realidade, a Guiné é (ou foi) uma colónia de Cabo Verde. Missionários e missionárias, oriundos da Europa, nem sequer os há aqui. Comerciantes tugas, só dois, perfeitamente cafrealizados, como se dizia no vocabulário colonial e racista dos europeus do Séc. XIX que exploravam estas paragens inóspitas.Os dois tugas vivem fora do perímetro do quartel. Um deles tem um bando de filhos, de mãe negra. O Rendeiro. Já nos convidou para lá ir comer a sua famosa galinha à cafriela. Fala dos filhos com ternura. Uma das raparigas está a estudar na Metrópole. Contou-nos a sua história. Veio da Murtosa, salvo erro, muito jovem ainda. Aos dezassete anos. Compra mancarra, vende arroz. Procura cultivar boas relações com a tropa. Acho-o demasiado afável...

Mas voltando ao Malan Mané: uns mandam-lhe piropos, outros dão-lhe um cigarro. Ou oferecem-lhe uma garrafa de cerveja, que ele recusa, delicadamente, como bom muçulmano que deve ser. Não entende as provocações que lhe dirigem:
- Então, pá, quantos tugas já mataste com o teu rocket ?

Há ordens, do comando, para o tratar bem. Tem-se mostrado colaborante. E para começar nada como um bom prato de bianda, arroz com mafé. Come com dignidade. No mato a vida é dura. Uma refeição por dia, um maço de cigarros por mês. Farda e botas novas só para os chefes. Bajudas, manga di sabe, também só para os chefes, imagino. Todos iguais, mas uns mais iguais do que outros.

Tinha começado a aprender o português há pouco tempo. Sabe algumas letras do alfabeto latino. Não sei se chegou a aprender o Alcorão. Com a guerra, a sociedade mandinga desintegrou-se. Muitos mandingas foram no mato. Com os balantas e os beafadas. Mas só fala o crioulo e o seu dialecto mandinga O crioulo é a língua tanto do colonizador como do PAIGC. Ninguém se entende nesta Babel sem o crioulo que é uma genial criação dos homens, de diferentes grupos étnicos, que querem comunicar entre si. O exército não faz, porém, qualquer esforço para nos ensinar o crioulo.

Malan fala pouco, a custo. As suas respostas às minhas perguntas são lacónicas, arrancadas a ferro e misturadas com um leve sorriso resignado. Procuro transmitir-lhe sinais de simpatia e de compaixão. Foi no mato ainda menino, não consegue precisar com que a idade. Não deve ter conhecido outra vida. Chefe da tabanca levara menino e mulher para o Morès com medo de avião dos tugas. Primeiro deram-lhe uma semi-automática Simonov (uma arma bem melhor que a nossa velha Mauser que está distribuída ao pessoal das tabancas em autodefesa). Começou como milícia: fazia segurança à tabanca e ao pessoal que ia lavrar a bolanha. Mais tarde, é promovido a combatente como municiador do RPG-2. Passou depois a apontador. Há um ano atrás foi ferido em combate, no Xime, quando atacava lancha-grande em Ponta Varela.

Sabia quem era o novo homem grande Bissau.
- E homem grande di bó ?, perguntei-lhe eu.
- Amílcar Cabral. – Respondeu-me, de pronto, não sem uma certa expressão de orgulho (ou foi impressão minha ?). Não, nunca o tinha visto. Só o conhecia de nome e de retrato. Comissário político falava dele e da luta di partido africano.

O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus cento e tal quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 3º Gr Comb, do Alferes Rodrigues. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané (6). Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima. Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Conquistadores. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. São os cipaios, os agentes do colonialismo... Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar.

Malan é franzino e frágil, embora de estatura normal. Uma criança crescida na guerra. Procuro tranquilizá-lo. Mas não adianta. Vêm buscá-lo para mais interrogatórios. O interrogador do BCAÇ 2852 é o famigerado sargento do cavalo marinho do Pelotão de Informação e Reconhecimento. Um personagem sinistro, a quem nunca dirijo a palavra. Não posso com estes gajos. Fazem o trabalho sujo. Trabalham em estreita colaboração com os pides de Bafatá. Explorando-se o seu estado físico e psicológico, e muito provavelmente sob tortura ou ameaças físicas, o Malan Mané acabou por dar com a língua nos dentes e revelar mais algumas informações preciosas, comprometendo a segurança dos seus companheiros.

Foi a minha primeira grande decepção em relação aos guerrilheiros do PAIGC. Ingenuamente, eu julgava-os da estatura humanal, moral e até intelectual de um Che Guevara ou de um Amílcar Cabral!... Que idiota!... Acredito que a escola de guerrilha do PAIGC tenha formado já grandes combatentes e comandantes. Mas o pobre do Malan Mané não é muito diferente dos meus soldados e de mim próprio: fomos todos apanhados na rede como cães vadios; somos todos vítimas da História; nascemos no sítio e na data errados… Se eu fosse guinéu, muito provavelmente estaria a combater, com ou sem convicção, num dos dois lados da barricada.

Por um dia, O Malan Mané foi o meu herói, o meu anti-herói (7)...

O Malan Mané, se hoje ainda for vivo (8), terá por volta de 55 anos. Há muito que ultrapassou a esperança média de vida, à nascença, estimada para os homens da sua geração. Se alguém o descobrir, lá para os lados do Enxalé ou nalguma outra tabanca do antigo regulado do Cuor, mandem-lhe um abraço meu.

A última vez que o vi, ia preso por uma corda, à guarda do Iero Jau (9). Foi gravemente ferido por um diligrama nosso, no assalto a um acampamento da guerrilha na Ponta do Inglês. Na madrugada do dia 7 de Setembro de 1969. Não sei se sobreviveu aos ferimentos. O Iero Jau morreu. Morreu a meu lado. O Malan, também a meu lado, ficou gravemente ferido e foi evacuado para Bissau (8). Mesmo que tenha sobrevivido e chegado a ver a independência da sua terra por que lutou, não sei o que lhe terá acontecido depois.

Não sei como é que o PAIGC, organizado à boa maneira marxista-leninista, terá lidado com este e outros casos de colaboracionismo de antigos combatentes, feitos prisioneiros. Colaboracionismo ? Delação ? Traição ? Um homem não nasce herói. Mas eu posso testemunhar que o Malan Mané tentou resistir, tentou ludibriar-nos. Não demos com o acampamento da Ponta do Inglês, à primeira, em 25 de Agosto de 1969. Ele alegou que o capim estava muito alto e que se perdera. O tanas! O tipo conhecia aquilo de cor e salteado, de olhos vendados. Resistiu enquanto pôde, o pobre diabo.

Só lá voltámos, à toca do lobo, no dia 7 de Setembro (Op Pato Real). Os espíritos da floresta (bons ou maus, quem sabe distingui-los ?) não lhe perdoaram. Se ele morreu, de morte natural, em consequência dos seus ferimentos, ou de morte matada, dentro da lógica infernal dos movimentos revolucionários que acabam sempre por devorar as suas criaturas, espero ao menos que o seu fantasma continue a vaguear, agora mais tranquilo, pela orla da bolanha do Poidon, com o seu RPG-2 ao ombro, ou a sua velha Simonov a tiracolo, guardando desta vez os bons espíritos da terra. Para que eles iluminem o presente e o futuro daquela terra onde um dia nasceu uma criança, de seu nome, Malan Mané, e a quem cedo, talvez demasiado cedo, deram uma arma e uma bandeira. E onde nós próprios fomos soldados contra a nossa própria guerra. Eu, pelo menos, fui.
____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

(2) Há uma outra versão anterior: vd post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(3) Sobre a Op Nada Consta, vd. post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)

(4) Vd. post de 25 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXI: Cartazes de propaganda dirigidos aos "homens do mato"

(5) Bambandinca foi atacada ("flagelada", segundo a expressão, mais light, das autoridades militares locais), no dia 28 de Maio de 1969, "durante 40 minutos", por um grupo de uma centena de guerrilheiros ("elementos IN"), usando um forte dispositivo militar que incluiu, entre outros, 3 canhões sem recuo, além de vários morteiros, lança-rockets e armas automáticas.

Apesar da envergadura do ataque, houve apenas 2 feridos entre as NT. Por razões disciplinares, todos os oficiais superiores do BCAC 2852 foram punidos pelo Com-Chefe, a começar pelo comandante (tenente-coronel Pimentel Bastos, mais conhecido pelo diminuitivo Pimbas), na sequência desta ousada iniciativa do PAIGC, conduzida em resposta à grande operação de limpeza no Sector L1 a que foi dado o nome de código Op Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969).

Vd. post de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)


(6) O Abibo Jau consta da lista dos guineenses que combateram do nosso lado e que terão sido fuzilados a seguir à independência: vd. post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

(7) Vd. posts anteriores:

13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã ;

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau

segunda-feira, 31 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1010: Pensamento do dia (6): O único rio a sério, na nossa terra, é o Corubal (Amílcar Cabral) (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Rio Corubal > 2001 > Os rápidos de Cussilinta

Foto: © David J. Guimarães (2005)

Texto de Amílcar Cabral (com adaptações de L.G.):

Na Guiné, terra cortada por braços de mar, que nós chamamos rios, mas que no fundo não são rios:
(i) Farim só é rio para lá de Candjambari;
(ii) o Geba só é rio de Bambadinca para cima, e por vezes mesmo para lá de Bambadinca há água salgada;
(iii) Mansoa só é rio depois de Mansoa para cima, já a caminho de Sara, perto de Caroalo;
(iv) Buba, esse não é rio de lado nenhum, porque até chegarmos a terra seca, é só água salgada;
(v) Cumbidjâ, Tombali, são todos braços de mar, a não ser na parte superior com um bocadinho e água doce na época das chuvas, sobretudo o rio de Bedanda, que vem a Balana buscar água doce.
(vi) O único rio de facto a sério, na nossa terra, é o Corubal.

Esta é uma realidade muito importante para nós, porque se, por um lado, temos muitos portos para entrar na nossa terra, com barcos, por outro podem ver o perigo que isso representa para nós. Se a nossa terra fosse toda fechada, com as andanças todas em que estamos nesta luta, o tuga já estava desesperado porque os quartéis não tinham comida. Mas como eles têm barcos e a nossa gente não ataca bastante os barcos, eles podem usar os barcos de mar para levar comida e material aos seus quartéis do interior" (...)

Fonte: Extractos de: CABRAL, Amílcar - A arma da teoria: unidade e luta. Volume I. 2ª ed. Lisboa: Seara Nova. 1978. (Obras Escolhidas de Amílcar Cabral. Textos coordenados por Mário de Andrade). p. 135.

Guiné 63/74 - P1009: Cancioneiro do Xime (1): A canção da fome (Manuel Moreira, CART 1746)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Esboço do sector, vendo-se a posição do antigo destacamento da Ponta do Inglês, abandonado pelas NT em Novembro de 1968, na nargem direita do Rio Corubal. Havia uma estrada que ligava directamente a Ponta do Inglês ao Xime.

Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971

Infografia: © Luís Graça (2005)


1. Mensagem do Paulo Santiago (ex-alf mil do Pel Caç Nat 52, Saltinho, 1970/72):

Mando-te a letra da Canção da Fome, da autoria do meu amigo e conterrâneo Manuel Moreira (1), ex-1º cabo do Pelotão comandado pelo Gilberto Madail, da CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (2):


CANÇÃO DA FOME

Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês (3).
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.

A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da GUINÉ.

Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com Bianda,
E sardinha p´ró jantar
E uma pinga acompanhar
Sempre com a velha manga.

Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos Turras à cabeça,
Não sei que será de mim.

Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.

A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:

MANUEL VIEIRA MOREIRA.

Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968 (4)


______________

Notas de L.G.

(1) O Paulo Santiago e o Manuel Vieira Moreira são naturais de Águeda. O Paulo vive em Aguada de Cima.

(2) Vd. post de 23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P979: O Gilberto Madail pertenceu à CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69) (Paulo Santiago)

(...) "O mundo é pequeno. Tenho um amigo, aqui em Aguada, ex-soldado do pelotão comandado pelo Gilberto Madaíl. Telefonei-lhe há minutos, para me informar dos dados que procuravas.O Madaíl pertencia à CART 1746, transferida de Bissorã para o Xime. O grupo de combate, comandado pelo Madaíl, e do qual fazia parte o meu amigo Manuel Moreira, esteve destacado na Ponta do Inglês durante algum tempo, regressando ao Xime, visto ser muito difícil aguentar aquela posição. Conheço uma canção muito interessante, feita pelo meu amigo, durante a estadia naquele destacamento. Vou ver algo mais que possa ser publicado na Tertúlia, e que ele tenha em casa" (...).

(3) O estratégico aquartelamento da Ponta do Inglês , na margem direita do Rio Corubal, foi abandonado pelas NT em Novembro de 1968. Na altura era guarnecido por forças da CART 1746, a unidade de quadrícula do Xime: vd post de 19 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado

A queda (ou o abandono) da Ponta do Inglês significou a interdição do Rio Corubal à nossa navegação, quer civil quer militar. E, como muito bem lembrava Amílcar Cabral, "o único rio de facto a sério, na nossa terra, é o Corubal"...


(4) Pontuação da minha responsabilidade. Para o Manuel Moreira vai um grande abraço de um camarada, da CCAÇ 12, que muito penou nas idas à Ponta do Inglês... Aliás, quem, da malta que esteve no sector L1 (triângulo Xime-Bambadinca-Xitole), não tem dramáticas recordações da Ponta do Inglês ? Refiro-me aos operacionais das companhias de quadrícula (Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho) e das sub-unidades de intervenção, dependentes de Bambadinca como a CCAÇ 12 e os Pel Caç Nat (52, 53, 54, 63)...

O Manuel Moreira está automaticamente feito membro da nossa tertúlia, desde que ele nos possa disponibilizar um endereço de e-mail (ou caixa de correio electrónico) para onde a gente possa mandar-lhe as nossas mensagens...

Agora que está inaugurado o Cancioneiro do Xime, espero que a veia dos nossos poetas populares não seque (ou não seque tão depressa).

Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852


Guiné > Bissau > Outubro de 1969 > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70), à direita, com mais três elementos da sua sub-unidade. Legenda da foto: "Bissau, Outubro de 69. A uma mesa de café, junto das docas de Bissau, Barbosa, o herói das emboscadas, o condutor Areal, o bom amigo Teixeira. Momentos de grato convívio de gente que partilha com resignação os mesmos sacrifícios. A ver se se tomamos uma 'bica' nesta mesma daqui a 2 meses (...)".

Texto e foto: © Beja Santos (2006)


Texto do Beja Santos:

Caro Luís, aqui vai mais um naco de prosa. Dentro das tuas possibilidades, ilustra com fotografias. Tudo farei para que isto não seja uma conversa caquética nem cheire a memórias de um autoconvencido. O que mais me está a empolgar é o fio da memória. Pegando na história do Batalhão [de Caçadores] 2852 [Bambadinca, 1968/70], verifico com curiosidade que o sector L1 era exclusivamente considerado para cá do Geba, o que não era bem assim. Eu estava para lá do Geba, e sem tropas no [regulado do] Cuor a vida do L1 seria um inferno. Ironias do destino. Prometo escrever-te segunda e terça e depois faço férias. Abraços, Mário Beja Santos.


O Saudoso Pimbas,

Cheguei a Bambadinca ao anoitecer de 2 de Agosto de 1968. Foi uma viagem de mais de 10 horas pelo Geba, salvo erro com uma paragem em Porto Gole. Deram-me no cais de Bissau uma ração de combate e comprei três peças de fruta. Houve muitos protestos com o transporte das duas pesadas caixas onde eu transportava livros e discos. Viagem relativamente aprazível, com lindos palmares, muita quietude das águas e o prazer de observar as conversas dos djilas (1) que partiam com as suas mercadorias para o Leste.

Aliás, quando cheguei a Bambadinca e me apresentei ao Comando, informaram-me que eu estava no sector L1. A três, o oficial de operações informou-me que eu ia para uma colónia de férias, Missirá e Finete:
- O régulo vai tratá-lo bem, vai lhe dar umas raparigas para não andar chateado, o Furriel Saiegh fará a guerra por si.

Já se sabe que não foi nada assim e do Saiegh (2) falaremos mais adiante. Ao reler a história do BCAC 2852, com quem convivi ao longo de mais de um ano, saltou-me à memória o nome do seu primeiro Comandante, Manuel Maria Pimentel Bastos (3), de quem guardo uma saudade sem fim. Na caserna, ele era afectusoamente tratado por Pimbas. Conversar com ele era uma delícia, pela sua cultura vastíssima e dotes soberbos de colocar a voz e teatralizar as emoções.

Sobrinho de João Bastos, o famoso criador de revistas do Parque Mayer, conhecia o meio mas adorava igualmente música clássica e frequentava concertos. A sua relação com a guerra era vaga e difusa. Era um cosmopolita acidentalmente colocado num teatro de operações, mantendo notavelmente uma conversa com nexo sem nunca arremessar palavrões ou recorrer ao calão. Os que com ele conviveram recordam a Sra Dona Maria Alzira, a mulher que sempre o acompanhou e que nos fazia rissóis de camarão na cozinha da messe.

Guardo do Pimbas algumas histórias irresistíveis. A primeira, a visita que fez em Novembro de 68 a Missirá. Fui buscá-lo na cambança do Geba, a meio da manhã, com um esquadrão impecavelmente fardado. À chegada a Finete, o Pimbas deslumbrou-se com as reverências das mulheres grandes, muito ao jeito do protocolo mandinga. Fizemos os 14 Km a conversar sobre literatura, astronomia e etnografia. Em Missirá comeu assado numa espelunca transfigurada em refeitório. E pediu música. Ouviu deliciado a Aida, cantada por Nilsson, Corelli, Bumbry e Piero di Palma, dirigida por Zubin Mehta. Acompanhava os momentos triunfais e dramáticos com uísque puro ou copos de água Perrier.

A meio da noite mandou-me patrulhar à volta de Missirá, alegando que um Comandante não podia ser apanhado à mão. Falámos um pouco da guerra e ele tranquilizou-me:
- Menino, mantém-te assim, não há guerra que te aborreça!

O Pimbas voltará a Missirá em circunstâncias dilacerantes, nos momentos patéticos da Op Anda cá (4), submetido às pressões do Hélio Felgas (5), que o desprezava. Aos poucos, o Pimbas foi-se isolando e ficando isolado, se bem que muito apoiado pelo médico, o David Payne, e alferes como Ismael Augusto e o Taco Calado (6). Nunca fora agressivo, e via a guerra com grande distância (salvo erro estivera no Maiombe, talvez em Macau e Índia dos bons tempos) e relativa serenidade. Nessa espiral de isolamento, conversámos muito e fomos úteis um ao outro.

Trocávamos livros, confidências e outras notas íntimas. A operação Lança Afiada (7) foi o ponto culminante que levou à sua queda, acusado de incapacidade, negligência e nulo sentido das realidades. Foi graças ao Pimbas que aprendi que estar numa guerra não é só uma questão de cultura, de assertividade ou convicções. Havia o problema do sentimento. Por sensibilidade, o Pimbas não estava na guerra, mas moldou-se até ao limite das suas forças por se manter enérgico e determinado. Mais tarde, visitei-o em Lisboa e ele recuperara para a vida cosmopolita o que perdera definitivamente com a humilhação da passagem à reserva.
Creio que está por fazer um conjunto de inventários: os oficiais do quadro permanente que não podiam transformar-se em oficiais prussianos e contra-guerrilheiros inflamados, por razões da trajectória profissional e moral; os oficiais milicianos, sobretudo os capitães, que eram lançados na fogueira dos acontecimentos bélicos sem qualquer preparação, pondo entre parêntesis a vida pessoal, profissional e familiar, por vezes com uma violência inaudita. Foi o que foi dado a verificar com homens como o Capitão Maltez, com quem colaborei no Xime.

Vergo-me respeitosamente à memória do Pimbas e logo à noite vou ouvir a Aída em sua homenagem.

___________

Notas de L.G.

(1) Djila: comerciante ambulante, em geral fula, futa-fula ou mandinga, que percorria a Guiné, em especial a zona leste, que tinha acesso privilegiado aos países limítrofes (Senegal e Guiné-Conacri). Em geral falava nelhor o francês do que o português. Eram considerados agentes quer da PIDE, quer do PAIGC, sendo os seus serviços (de informação) disputados por uns e por outros.

(2) Segundo informação do Beja Santos, o Pel Caç Nat 52 esteve um ano sem alferes, sendo comandado por Zacarias Saiegh, então furriel miliciano, que mais tarde ingressou na 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegou ao posto de capitão. Comandou esta lendária companhia, depois da morte em combate do Capitão João Bacar Jaló, tendo sido fuzilado pelo PAIGC após a independência: vd post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
(3) Tenente coronel de Infantaria Manuel Maria Pimental Bastos, comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), transferido por motivos discipinares, tendo sido substituído em Julho de 1969 pelo ten cor inf Jovelino Pamplona Corte Real.
(4) Op Anda Cá: decorreu entre 20 e 22 de Fevereiro de 1969, com o objectivo de atacar as posições da guerrilha instalada em Madina / Belel. Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
(5) Coronel, na altura, comandante do Agrupamento 2957 (com sede em Bafatá), mais tarde COP 2.
(6) Alf Mil médico David Payne Rodrigues Peereira; Alf Mil Manutenção Ismael Quitério Augusto; e Alf Mil Transmissões Fernando Carvalho Taco Calado. Pertenciam ao Comando do BCAÇ 2852.
(7) Vd posts de:
31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

Guiné 63/74 - P1007: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (15): as colunas logísticas de Galomaro a Bafatá e a Bambadinca

Guiné > 1968 > Mansoa > CCAÇ 2405 > Momentos de descontracção e de convívio. O Alf Mil Paulo Raposo é o único do grupo que está vestido à civil.

Foto: © Paulo Raposo (2006)


XV parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 42-43 (1).


AS COLUNAS

Das muitas colunas que faziamos de Galomaro a Bafatá ou a Bambadinca, há duas que me ficaram gravadas na memória.

Aquele itinerário não tinha qualquer perigo, era uma zona perfeitamente em paz. Geralmente ao lado do condutor segue o militar mais graduado.

1. Um dia segue connosco o Capitão Portugal e, como era o mais graduado, dei-lhe o lugar ao lado do condutor. Recusou e disse para ir eu nesse lugar e ele seguiu no banco traseiro do Unimog.

Um dos outros encantos de África é o convívio. Passamos a ser bons contadores de histórias. Como não há distracções é o convívio que prevalece. Histórias e episódios havia-os para todos os gostos. A televisão e as novelas não só mataram o convívio familiar como mataram também o convívio e as tertúlias de café.

O nosso Capitão Portugal contou-me ele, tinha estado no Comando Distrital da PSP, quando foi lançada a muita ao peão, em Lisboa. Sim, quem atravessasse uma rua sem ser nas passagens de peão, pagava uma multa de 2$50. Isto talvez se tivesse passado no ano da 1955. Era um pouco caricato. As histórias da reacção de cada um eram sensacionais.

Houve um Senhor, contou ele, que ao ver-se confrontado com a multa de 2$50 pediu ao polícia para lhe vender toda a caderneta das multas. Cada um reage de forma diferente às situações que se deparam e estas variam também consoante o momento.

2. O nosso Capitão [da CCAÇ 2405, Cap Mil José M. N. Jerónimo] não tinha carta de condução, mas não se confessava. A muito custo conseguiu arranjar um jeep para andar nas suas voltas em Galomaro.

Numa ida a Bafatá ele lembrou-se de ir a conduzir o Unimog e eu seguia ao lado. Surge uma curva, ele não abranda, o carro foge-lhe, entra terra dentro e vira-se sobre o meu lado. Por esse facto não consigo saltar. Agarro-me ao banco e abaixo-me. Como os taipais eram mais altos, Nossa Senhora me salva.

Atrás nos bancos que estavam montados costas com costas, seguiam vários militares. Todos saltam excepto o Furriel Vagomestre (2). Teve medo, não saltou, e o carro passa-lhe por cima e parte-lhe a coluna. Segue para Bissau em heli, mas vem a falecer no dia seguinte.

Como a Companhia ficou sem Vagomestre, eu cedo um Furriel do meu Grupo, o Ferreira (3), e o Cândido, que era do Alferes David, vem substituir aquele.

Fiz uma grande amizade com o Cândido (4), que era de Beja. Terminada a Comissão convidei-o para vir trabalhar comigo. Ainda estamos juntos.

Ele é o responsável pela minha fábrica. É uma jóia de rapaz, posso-lhe confiar tudo e ele pode contar comigo seja para o que for.

Já vai para 27 anos que trabalhamos juntos sem nunca ter havido qualquer atrito.

___________

Notas de L.G.

(1) Vd. post anterior, de 10 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P949: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (14): regresso às tabancas em autodefesa

(2) Arnaldo R. Fonseca (Fonte: História do BCAÇ 2852)

(3) Adriano M. Ferreira (Fonte: Idem)

(4) Cândido R. Trombinhas (Fonte: Idem)

Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)


Guiné > 1968 > A bordo do Uíge: da esquerda para a direita, os alferes milicianos Raposo, David, Felício e Rijo, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852. O Uige transportava dois batalhões, o BCAÇ 2851 e o BCAÇ 2852. Largou em finais de JUlho de 1968 do Cais de Conde de Óbidos, em Lisboa e chegou a Bissau nos princípios de Agosto. A CCAÇ 2405 seguiu depois para Mansoa onde chegou à noite, sendo saudada com um salva de artilharia pelos velhinhos da CCS do BCAÇ 1911 (1).

Foto: © Paulo Raposo (2006)


Continuação (cronologicamente, neste caso, antecipação) das estórias de Dulombi (2)... O Rui Felício foi alf mil na CCAÇ 2405, juntamente com o Paulo Raposo e Victor David, outros dois membros da nossa tertúlia. Os três estiveram em Mansoa, no início da comissão da respectiva unidade, a CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, de Agosto a Dezembro de 1969.


MANSOA III

CCAÇ 2405

Agosto de 1968


O Vitor David e eu, juntamente com os nosso respectivos Grupos de Combate, fomos destacados para dirigir e fazer a segurança de cerca de 200 trabalhadores balantas, recrutados pelo Chefe de Posto de Mansoa para procederem à capinagem da estrada Mansoa-Jugudul.

Era um autêntico exército de homens armados de catanas, enquadrados por meia dúzia de cipaios que os obrigavam a não perder o ritmo do trabalho.

O mato na Guiné cresce a um ritmo alucinante e, quando menos se espera, devora as bermas e até a própria estrada se esta não fôr utilizada regularmente.

Para prevenir emboscadas do IN tinha que se fazer a capinagem desse mato umas duas ou três vezes por ano, limpando uma faixa de cerca de 50 a 100 metros de cada lado da estrada.

A tropa requisitava mão de obra para o efeito à autoridade administrativa que se encarregava de a mobilizar.

Era um trabalho duro, realizado sob um sol escaldante, desde o amanhecer até ao pôr do sol…

Os homens brandiam ritmadamente as catanas contra os tufos de capim e arbustos, provocando um som cavo que inundava os ouvidos durante todo o dia, e os seus corpos negros, musculados, luzidios de suor, brilhavam sob o tórrido sol da Guiné…

E tinham que beber água muitas vezes para matar a sede e prevenir desidratação…

Por isso, eram colocados ao longo da estrada, mais ou menos de 30 em 30 metros, bidons de 200 litros cheios de água, para que, quem quisesse, ali se dessedentasse.

Sucede que esses reservatórios eram nem mais nem menos que bidons usados de combustivel, que depois de esgotados serviam para encher de água e levados para a capinagem.

E, claro, quando não havia cuidado na sua lavagem, a água neles despejada podia misturar-se com alguns restos de combustível que tivessem ficado no fundo.

Pois foi exactamente isso que aconteceu com os bidons que estava a ser usados na tal capinagem de que falamos.
Guiné > 1968 > Mansoa > CCAÇ 2405 > O Alf Mil Victor David no regresso de uma operação
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Inesperadamente, um dos balantas assomou-se junto ao David e disse-lhe num crioulo arrevesado:

- Alfero! Água num stá bom! – e, para melhor traduzir o que dizia, fazia uma careta de vómito….

O David, pensava para os seus botões:
- Esta gajo é muito fino… Deve querer água Perrier, com certeza…

Tentou despachá-lo:
- Está bem, está bem… Vai mas é continuar o teu trabalho e deixa-te de esquisitices!

Mas o homem não desistia:
- Alfero! Bardadi! Água num sta bom mesmo! Num sabi!
- Eh pá.. Explica lá de uma vez o que é que tem a água - condescendeu o David.

E o balanta, num esforço para se fazer compreender, puxou dos seus rudimentos de português e despejou:
- Água sabe a gasolina, Alfero!... Bardadi!

Uma flash iluminou o cérebro do David que rapidamente compreendeu o que se passava… Aqueles bidons tinham sido mal lavados e ainda continham restos de combustivel…

Não querendo admitir essa falha (a tropa portuguesa precisava demonstrar a sua grande capacidade de organização…), o David, inspirado, rematou:

- Claro que sabe a gasolina.. É de propósito e para vosso bem! Assim, vocês no trabalho, andam mais depressa e cansam-se menos, percebeste?

Nunca saberemos se o pobre do trabalhador balanta acreditou na justificação do David ou se, entre dentes, lhe rogou alguma praga… A verdade é que acenou afirmativamente com a cabeça e voltou ao trabalho.

E, passado pouco tempo, veio de novo beber água com gasolina do bidon.. A tal que fazia andar depressa…


Rui Felício
Ex Alf Mil Inf
CCAÇ 2405
Mansoa

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Notas de L.G.

(1) Vd. posts de

7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa


8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca
(2) Vd. posts anteriores:

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral


(...) "O Natal aproximava-se… Antes da data prevista, chegara-nos um presente inesperado! Um periquito….

"O furriel Cabral foi-nos mandado para substituir o furriel vagomestre, uns meses antes falecido em acidente de viação na estrada de Galomaro-Bafatá numa viagem de reabastecimento de viveres à nossa Companhia…

"O Cabral era uma jóia de pessoa, simpatiquíssimo, um tanto ingénuo e crédulo, sempre bem disposto e que rapidamente granjeou a estima de todos.

"Natural de Bissau, de etnia pepel, um verdadeiro e retinto preto da Guiné" (...)

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

(...) "O Carvalho Araújo já estava em Bissau para nos levar de volta à Metrópole… Viera cheio de tropa para substituir os velhinhos, ansiosos pelo fim da sua comissão.

"O tempo custava a passar para finalmente se dar a rendição, e por isso, cada um à sua maneira ia encontrando formas de apressar o tempo, de esquecer a lentidão inexorável do relógio…

"Ao cair da tarde, com a luz alaranjada do sol a começar a esconder-se na linha do horizonte poente, o Paulo Raposo, alferes da CCAÇ 2405, de quem guardo as mais pistorescas histórias, estava sentado perto do bunker do Capitão, com o olhar fixo num ponto afastado a sul do aquartelamento, perto do arame farpado" (...).

19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

(...) "20 de Julho de 1969. Era domingo… Durante todo o dia a rádio ia noticiando a chegada do homem à Lua… A célebre frase do astronauta afirmando que o passo que acabara de dar em solo lunar era um passo de gigante para a humanidade, era escutada repetidamente nos pequenos transistores que nos mantinham ligados ao mundo.

"Claro que não havia televisão na Guiné e, mesmo que houvesse, jamais seria vista em Samba Cumbera, pequena tabanca onde a luz nos era fornecida através de garrafas de cerveja cheias de petróleo, nas quais se embebiam torcidas de desperdício que, depois de acesas, nos enchiam os pulmões de fuligem e fumo.

"Mas nos confins da mata, longe de toda a civilização, a importante notícia precisava de ser partilhada e divulgada... Os soldados se encarregariam de o fazer à sua maneira, junto das bajudas" (...).

domingo, 30 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > Foto tirada no centro da povoação, atravessada pela estrada (ou picada) que vai para Bafatá... Uma autêntica autoestrada, diz o Albano Costa que por lá passou em 2005, onde o jipe pode chegar aos 120!.

Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


Segundo texto (1) do Renato Monteiro, de uma série de cinco, que intitulei estórias de Contuboel, pequenos apontamentos que o meu amigo escreveu com base na sua experiência de instrutor de recrutas guineenses, em Contuboel, no 1º semestre de 1969. O Renato Monteiro foi furriel miliciano na CART 2479 / CART 11, Cuntuboel e Piche; e depois na CART 2520, Xime e Enxalé (1969). É autor, com Luís Farinha, do livro Guerra colonial: fotobiografia. (Lisboa,D. Quixote,1998,307 pp). É também autor de livros de poesia e de fotografia. Conheci-o e tornámo-nos amigos nos meses de Junho e Julho de 1969 em que estive (eu e os meus camaradas da CCAÇ 2590, mais tarde CCAÇ 12) a dar a instrução de especialidade aos nossos queridos nharros...



SEGUNDO PELOTÃO


Divididos por quatro pelotões, faço parte do segundo bem como o alferes Ilhéu, açoriano, ex-seminarista, os furriéis Paz de Alma, do Norte, o Bera, de Cabo Verde, por quem nutro uma antipatia correspondida e o nosso cabo, ainda sem alcunha, e a quem um dia destes hei-de perguntar donde é. Feita a contabilidade, o que temos? 53 Guineenses, 2 insulares, 3 europeus continentais. Ou cromaticamente falando: 53 negros, 4 caras pálidas e um que nem é uma coisa nem outra, e sim as duas. Mas adiante...

Sem o poliglota do Carlos, entretanto integrado noutro pelotão, lançamos mão ao Jaló que, apesar de menos apto para intérprete do que o primeiro, sempre vai desenrascando em fula e em crioulo, a nossa pretendida comunicação com o grupo. Para levantarem os joelhos, c’um raio, se possível até ao queixo, darem meia volta volver, distinguir o que se toma por esquerda e por direita, manter o peito erguido e cheio de ar, por nada mexer quando em sentido, porra, sequer tossir; enfim, toda a panóplia de movimentos exigíveis numa formatura estacionada ou em marcha. Porque com má execução, há merda: 10, 20 ou mais flexões de bruços, mantendo a regular distância da barriga ao chão, quando não mesmo rastejar até aquela mangueira ou cajueiro ainda mais afastado. Punições tão sabidas de cor, por força da aprendizagem para a guerra levada a cabo nos quartéis, como os nomes dos rios aprendidos durante a instrução primária.

Por mim, e apesar de exigente quanto à execução dos exercícios, dispenso a aplicação de castigos sem crime, achando mil vezes preferível, nesta fase inicial de instrução, antes fomentar a troca com que todos crescem: umas lições básicas de português pelos depoimentos prestados, com o apoio do Jaló, sobre a experiência vivida na guerra por um bom número de recrutas que, havendo sido milícias, já se envolveram em confrontos. Com o fogo a doer fora da carreira de tiro, mas no cenário real da mata. Ou tão só os que foram alvo de flagelações dirigidas aos aldeamentos donde são originários.

E quem sabe se, deste modo, não evitaríamos mais facilmente confundir o Ali com o Guilage, estes com quaisquer outros já que, à excepção do Malagueta, excessivamente franzino, e do Turé, de desmedida altura e de voz apagada, todos se apresentam indistintos aos nossos olhos. Como se fossem cópias fisionómicas do mesmo padrão, cheirando desagradavelmente à maior parte dos camaradas a catinga. Ou não fosse natural um cão tressuar a canino; um gato transpirar a felino; os cravos marcarem o ar com o seu perfume... Sem nunca perguntarmos a que cheiramos nós. Mais tarde ou mais cedo, hei-de sabê-lo...

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)
Tenho dúvidas se era CART 11 ou CCAÇ 11... Já alguém me chamou a atenção para esse facto: as companhias africanas era todas de caçadores (CCAÇ 5, CCAç 6, CCAÇ 12, CCAÇ 13, CCAÇ 15, CCAÇ 21...). Bom, vamos ter que esclarecer isto.

sexta-feira, 28 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1004: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (1): o pudor das nossas recordações

Esposende > Fão > 26 de Novembro de 1994 > Convívio da CCAÇ 12, da CCS do BCAÇ 2852, do Pel Caç Nat 52 e outras unidades destacadas em Bambadinca, entre 1968 e 1971... Na imagem, ao centro o Beja Santos, rodeado por malta da CCAÇ 12, os furriéis milicianos Humberto Reis (à direita), o Tony Levezinho (de costas, à esquerda) e o T. Roda, ao fundo, sorridente. Na 4ª feira passada, dia 26, reencontrámo-nos doze anos depois, e revivemos o nosso passado comum por sítios míticos da Guiné: Bambadinca, Xime, Enxalé, Rio Geba, Rio Corubal, Missirá, Cuor, Finete, Mato Cão, Madina/Belel, Nhabijões, Ponta Varela, Madina Colhido, Ponta do Inglês, Baio/Buruntoni...

Foto: © Humberto Reis (2006)




Guiné-Bissau > Zona Leste > Xime > 2001 > Rio Geba. O famoso macaréu. No Rio Amazonas é conhecido por pororoca. Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança. Neste rio, ou nesta parte do rio que ainda é de água salgada, dois soldados da CART 3494, aquartelada no Xime, desapareceram, apanhados pelo macaréu numa operação ao Mato Cão, em 1972. Um terceiro camarada, doutra companhia, também desapareceu (Informação do Sousa de Castro).

Foto: © David J. Guimarães (2005)

Texto do Beja Santos:

Caro Luís, foi muitíssimo agradável ter-te revisto ontem [4ª feira, dia 26 de Julho], passadas estas décadas. Do muito que falámos, estou neste momento publicamente comprometido com todos os parceiros do blogue a depor sobre o que vi e conservei da minha experiência na guerra colonial.

Durante anos, acalantei a ideia de escrever um romance sobre a minha experiência (na ficção, como em todas as manifestações de arte, escrevemos sempre sobre nós, condicionando a nossa imagem, seleccionando o que queremos comunicar aos outros). Assim, escrevi na cabeça Soncó, que teria como base os Soncó, a família dos régulos do Cuor. Com os empregos antes do 25 de Abril e os estudos, a ideia esmoreceu.

Aí pelos anos 80, ocorreu-me A Rua do Eclipse. Nem imaginas como. Um dia estava numa reunião num edifício da Comissão Europeia, em Bruxelas, olhei para a cabine de tradução, bati à porta e disse a uma senhora que gostava de almoçar com ela para lhe pedir ajuda para uma obra de ficção que estava a preparar. Ingrid Schorkps (vamos imaginar que é este o nome) ouviu-me com os olhos arregalados. Pretendia conhecer um casal belga com alguma profundidade, pois tinha imaginado um português que se apaixonara por uma belga, num contexto de triângulo amoroso. Precisava da ajuda dela e do marido, o romance iniciar-se-ia por um encontro de interesse fulminante, seguir-se-ia muita correspondência do português para a sua apaixonada (um flamenga), as vicissitudes dos encontros esperádicos, a dor das distâncias, as visitas à casa de Ingrid na Rua do Eclipse.

Na correspondência para Bruxelas, falaria da Guerra da Guiné. A verdade é que visitei a família de Ingrid, ao princípio estranharam, depois tomaram-me como um escritor a sério quando eu comecei a abrir mapas em cima da mesa, explicando os encontros que teríamos pelas ruas da Antuérpia e arredores.

A ideia também esmoreceu. As guerras coloniais que Portugal travou devem ser as mais documentadas das últimas décadas, com excepção da guerra do Vietnam. Temos os aerogramas, as fotografias, as cartas, os filmes, os relatórios. Não temos é o pano de fundo. Ontem, durante o almoço, avançámos algumas explicações. Uma delas tem a ver com a falta de rigor nos relatórios. Outra, com a privacidade e o pudor das nossas recordações.

Quando, aqui há uns anos, num ambiente recatado me pediram uma recordação inviolável, intrasmissível, falei de um enterro de uma massa encefálica numa caixa de sapatos, num cemitério em Missirá. Explico. Depois de uma grande flagelação, ao amanhecer, patrulhei as imediações do quartel. Encontrei um soldado manjaco do PAIGC morto, com a massa encefálica ao lado do corpo. Fora seguramente um tiro na nossa resposta que produzira aquela morte assim.

Pedi imediatamente uma caixa de sapatos e anunciei que iríamos enterrar o corpo com honras militares. A reacção dos meus soldados foi enorme:
- Turra é para ser comido pelos jagudis!

Mas houve mesmo enterro militar. Este é um dos muitos exemplos do pudor que nos faz calar experiências que nos mudaram o curso da existência, logo em jovens adultos.

Vou pois escrever memórias, sempre balizado pelo pudor de que os nossos camaradas, ou outros leitores avulsos, pensem que o que aqui se escreve é produto de uma mente delirante que se disfarça de herói da guerra. Nada disso. Eu fui eu e a minha circusntância: uma guerra que se travou muitas vezes a um ritmo alucinante, e com uma aprendizagem dolorosa.

Por exemplo o macaréu. Eu estava em Mato Cão, quando ouvi as águas do Geba a entrar em ebulição, com ronco medonho. Fugi apavorado para uma colina, com os meus soldados a gargalhar enquanto eu olhava vidrado as águas a espumar no terrafe. Aprendi depois o que era o macaréu, fenómeno raríssimo no mundo daquela água que vem em torrente pelo Corubal e emerge no Geba gelado.

Pois fica sabendo que a operação Macaréu à vista, as minhas memórias desorganizadas de um registo fotográfico onde às vezes ainda capto cheiros e oiço vozes, acaba de começar neste blogue. Sem data fixa e com calendário muito volúvel. Amanhã seguem mais histórias. Pode-se dar a esta carta a publicidade que entenderes.

Mário Beja Santos
(ex-alf mil Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca, 1968/70)

Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (II): tirem-me daqui!



João Tunes, ontem e hoje: na Guiné, foi Alf Mil trms (primeiro, na CCS do BCAÇ 2884, Pelundo,1969/70; e depois, na CCS de outro Batalhão, Catió, 1970/71). Engenheiro - químico, escreve diariamente, com lucidez, paixão e talento, contra a corrente do(s) tempo(s), no seu blogue Água Lisa (já vão vai na versão 6).


Fonte: Bota Acima, blogue de João Tunes, 7 de Abril de 2004

I - TIREM-ME DAQUI !

Os civis fardados à força que tinham habilitações consideradas suficientes, eram militarizados como soldados cadetes durante seis meses e o seu aproveitamento era coroado com o título (modesto) de Aspirante a Oficial Miliciano.

Esta patente, uma espécie de grau de estagiário em oficialato, durava até chegar a ordem de envio para África. Quando a guia de marcha era recebida, era-se automaticamente promovido a Alferes Miliciano. Todas as regras têm excepções. O Barros foi despachado para a Guiné como Aspirante. Ficou famoso por ser a excepção à regra e porque era meio xoné. Em rigor, perto dos quatro quintos xoné. Licenciado em Filosofia, o Barros era incapaz de se adaptar às regras da vida militar. A instituição castrense bem tentou fazer dele um homem de armas mas o sujeito era relapso à farda, aos procedimentos, à ordem unida e ao espírito guerreiro.

Quando cadete em Mafra, o Barros era sempre o último a chegar à formatura e, quando chegava, os atavios estavam sempre mal amanhados e quantas vezes a Mauser ao ombro vinha com o cano a apontar para o chão... Porque, o que o Barros gostava mesmo era de discutir Sócrates e Platão. A instituição teve de resolver o problema do Barros. Nada fácil. Deve mesmo ter sido caso para reunião de generais reumáticos no Estado Maior General ou coisa parecida. A guerra aquecia e as frentes de combate não paravam de aumentar. Era precisa mais gente, cada vez mais gente, para conter a guerrilha. Começava a haver escassez no recrutamento. A procura de mancebos ultrapassava a oferta. A decisão foi sábia: o Barros ia mesmo para a guerra (mas para a Guiné, porque ele só merecia o pior) mas não era promovido a alferes. Seria Aspirante para sempre. Logo ele, que o que mais aspirava era voltar aos livros e às discussões filosóficas, coisas bem alheias aos trabalhos da guerra.

Na Guiné, andou de quartel em quartel, acumulando punição atrás de punição. O Aspirante Barros não servia, cada vez servia menos, pois a cachimónia cada vez ia trabalhando pior. Como era um perigo nas operações, ia sendo dispensado de sair para o mato, acumulando detenções sobre detenções até o Comandante pedir a Bissau a sua substituição. Então, o Aspirante Barros enchia o saco do fardamento com os seus livros e rumava a outro quartel. Até que a cena se repetia. E repetiu-se muitas vezes.

Uma vez, o General Spínola visitou um quartel onde estava o Aspirante Barros e quis conhecê-lo. O Barros apareceu mal amanhado e com olhar ausente. Spínola disparou a censura:
- Você não tem vergonha de ser o único Aspirante na Guiné?

O Barros concentrou-se, olhou Spínola de frente e disse mansamente:
- Estamos em igualdade, o senhor, que eu saiba, é o único General na Guiné.

Puseram o Barros numa prisão em Bissau por ter insultado o General. O Barros, então, deixou de ler. Podia ler, quem já pouco olhava? O Tenente Coronel Melo, comandante do Batalhão no quartel de Catió, era um oficial com pretensões intelectuais (por onde passava, estudava os costumes étnicos e ia escrevendo livros sobre os usos e costumes das tribos africanas). Era opositor ao regime e não gramava o Spínola, embora fizesse a guerra com todo o profissionalismo. Era também um católico devoto. Em resumo, o Tenente Coronel Melo era um católico progressista, gostava de armas e de paradas, não gramava o fascismo e tinha bom coração. Sabendo da história do Barros, o Tenente Coronel condoeu-se e pediu para o colocarem no seu Batalhão. E o Aspirante Barros lá veio com o seu saco (agora vazio de livros) parar a Catió. E passou a ser meu companheiro de quarto. Companheiro silencioso. O Barros quando chegou a Catió também já tinha deixado de falar.O Barros foi dispensado de serviços e passava os dias deitado na cama. Dispensado de todos os serviços, não. Para lhe dar algum sentido de utilidade militar, o Barros entrava na escala de oficial de dia ao quartel com a missão única de presidir ao içar e ao arriar da bandeira (havia outro oficial que fazia o serviço restante).

O Barros cumpria a sua única tarefa militar segundo um ritual tacitamente assumido por todo o quartel. O sargento de dia perfilava a tropa, dirigia-se à janela do quarto do Barros e berrava enquanto fazia a continência da praxe:
- Meu Aspirante, apresenta-se a guarda de dia.

O Barros, ouvindo o berro do sargento, levantava-se em cuecas, assomava à janela, e naqueles preparos, imitava uma espécie de continência. Então, o sargento de dia mandava içar ou arrear a bandeira portuguesa e o Barros voltava à solidão do seu silêncio.A partir de certa altura, o Barros passou a instalar-se, durante o dia, no bar dos oficiais, bebendo copos atrás de copos. Tinha, como companhia, o Tenente Coronel Melo que preferia escrever os seus livros e fazer os seus despachos ali, no silêncio diurno do bar enquanto o resto dos militares cumpriam as suas rotinas de serviço. O Tenente Coronel escrevia, pensava, escrevia. Barros bebia em silêncio.

De tempos a tempos, o Barros arremessava o copo contra a parede e gritava:
- TIREM-ME DAQUI! 

O Tenente Coronel comentava,  paciente:
- Calma, nosso Aspirante.

E o Barros acalmava até novo arremesso, novo grito e novo apelo à calma por parte do Comandante.

E a cena ia-se repetindo ao longo do dia e dos dias, num ritual assumido pelos dois oficiais e respeitado por toda a tropa sem dar lugar a galhofa. A única consequência negativa destas cenas era a redução assustadora no stock de copos no bar de oficiais. Mas, isso não era problema sem solução: na guerra, para beber é preciso copo?

Era habitual que, a meio da noite, o Nino Vieira se lembrasse de mandar os seus rapazes mandar-nos morteiradas para dentro do quartel. Ao primeiro rebentamento, havia que agarrar a G3, nossa companheira inseparável, e correr para irmos cumprir funções defensivas e contra-ofensivas. Para que o Nino não se ficasse a rir de nós. O Barros não se mexia. Limitava-se a abrir os olhos e fixá-los no tecto. Imóvel. O Aspirante Barros já tinha deixado de aspirar a sobreviver.O Barros esteve duas semanas em Catió, sem castigos que avermelhassem mais a sua caderneta disciplinar.

Um dia, o Tenente Coronel Melo apareceu sorridente. Tinha conseguido (com a ajuda do médico do Batalhão) uma consulta de psiquiatria para o Barros com vista à sua evacuação da Guiné. O Barros não acabou o tempo da sua comissão na guerra da Guiné. Foi libertado para a vida civil como Aspirante a Oficial Miliciano.

Não voltei a ver o Barros. Mas, volta e meio, o Barros entra-me pela memória dentro. E então, a raiva, ai a raiva, a raiva aos que alimentam guerras, faz-me um nó na boca do estômago. Não sei sequer se está vivo, onde está e o que faz o meu antigo camarada e companheiro de quarto. Espero bem que não ande a passear, sem olhar, sem falar, sem ler e a gritar TIREM-ME DAQUI!, ouvindo os palermas saudosistas do Império a clamarem contra o crime da descolonização e caçarem votos aos ex-combatentes. Porque esses merdosos não valem um caracol ao pé do Barros. Desejo sinceramente que o Barros esteja recuperado e a discutir Sócrates e Platão. Algures. Em paz.
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Nota de L.G.: