1. Mensagem de Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610,
Bissum Naga,
Cafal Balanta e
Cafine, 1972/74, com data de 23 de Julho de 2009:
Caro Vinhal,
Enquanto não é corrigida a História de Portugal em Sextilhas (ficaram para trás umas quantas...) envio-te esta história de um ex-emigrante que aproveitou para fugir à tropa e que, despudoradamente, virou
antifascista perseguido pela Pide, obrigado a exilar-se em França...
Os nomes foram propositadamente trocados.
Chamava-se José, Silva José (à moda francesa...) e via a vida a andar para trás...
A tropa e o espectro da guerra de África que já levava uns quatro anos e parecia eternizar-se, começavam a preocupá-lo seriamente e a apavorar o pai, António Silva, que abandonara a jorna nos campos agrícolas desse Trás-os-Montes de Torga, para se aventurar na estranja, lá por França, faz tempo, desde o já distante ano de 1959...
Chegara a Paris (
Banlieue) ainda antes do grande
boom de emigração portuguesa que haveria de ajudar a França a recuperar da destruição sofrida durante a Segunda Grande Guerra Mundial, de que fôra um dos palcos privilegiados.
O seu patrão alugara-lhe uma casa que ele com o tempo haveria de recuperar, transformando-a num tecto acolhedor para viver, por um preço quase simbólico nos arredores da cidade luz...
Paris estava ainda na fase lenta de recuperação.A maioria dos portugueses a demandar terras gaulesas, fá-lo-ia só na década de sessenta, notando-se um crescendo no seu número, de ano para ano, uns por via legal (a minoria) enquanto outros, em maior número, fazendo-o
a salto, correndo inclusive risco de vida ante o disparo de qualquer Guarda Fiscal...
Os
bidonvilles eram, regra geral, a casa dos trabalhadores dos
batiments... casotas de madeira forradas a chapa de
bidon...
A lama, onde dejectos de toda a espécie se misturavam com a água da chuva, era escorregadia e dificultava o acesso aos tugúrios que habitavam em grupos de cinco ou seis, ou mais ainda, cozinhando normalmente de forma colectiva, o caldo de couves arrancadas juntamente com umas batatas e cebolas nas longas madrugadas de domingo, a que juntavam um cibo de toucinho rançoso de porco, trazido ainda de Portugal e guardado numa caixita de madeira com sal, ou comprado numa
boucherie da zona por meia dúzia de patacos...
Era feito duas vezes por semana. Ao domingo no panelão maior e que durava até quarta-feira inclusivé, e à quinta, a caldaça nova era confeccionada na panela um pouco mais pequena.
Aos domingos, às vezes, bebiam uma cervejita pois ao vinho ninguém chegava face ao exorbitante preço pedido por garrafa...
Diariamente, levas e levas de portugueses cirandavam, mala ou saco na mão e garrafão na outra à procura de emprego nos inúmeros
batiments em construção...
Todos se arrogavam de trolhas ou pedreiros, embora a maioria fosse mão de obra não especializada saída do campo, da lavoura, mas interessadíssima em aprender.
Numa primeira fase esses ex-jornaleiros trabalhavam como indiferenciados, mas muito rapidamente absorviam conhecimentos necessários para darem o salto para as várias profissões ligadas à construção como os pintores e carpinteiros de cofragem ou de zimbre...
Traziam umas magras provisões, uns míseros francos, uma vontade enorme de vencer, e geralmente o
catraio de cinco litros como gostavam de chamar ao garrafão, com vinho das mais variadas origens, quando não mesmo, o portuguesíssimo bagaço...
O garrafão e a mala de cartão haveriam de ser um símbolo dos portugueses em França.
As mulheres, que nos anos subsequentes acabariam por demandar a França quando as condições de vida já haviam melhorado, ostentavam o
moustache mais ou menos penugento que seria o alvo das piadas sobre portuguesas por terras gaulesas.
Era uma característica distintiva, tal qual o puxo ou a banana no cabelo...
Depois,
afrancesar-se-iam, cortando-o e pintando-o, tal qual as madames do
batiment onde eram
concierges, isto poucos dias antes do regresso à terra para férias, que mais não eram senão dar no duro, na finalização da casa do tipo
la maison que andavam construindo faz tempo...
Em Julho e Agosto regressavam, carros cheios de tralha, alguma achada nos passeios, mas para a qual encontravam sempre alguma utilidade iniciando um período em que procuravam mostrar algum
status, sujeitando-se para isso à exploração desenfreada da aldeia que apostara em tirar-lhes a massa...
Da comissão fabriqueira da festa do Santo Orago da freguesia, passando pelo padre, que conseguia sempre o óbolo para as obras da igreja, ao merceeiro e ao dono da tasca que chamava
restaurant ao seu espaço onde servia um bacalhau assado na brasa ou umas febras, uns bifes ou cabrito, que em geral era anho, todos apostavam enm aliviar-lhes os bolsos de forma escandalosa...
Nesses dois meses os carros de matrícula francesa sobrepunham-se aos nacionais.
Nas zonas costeiras, o pescador chegava à praia com meia dúzia de
ranhosas(depois de descarregar o pescado para os restaurantes em locais foras da zona de veraneantes) reclamando que o mar estava um cão... uma noite inteira de trabalho para esta mão cheia de peixes. Assim ninguém tinha coragem de regatear o preço pedido e os emigrantes até davam gorjeta...
Foram, infelizmente, sempre espoliados pelos conterrâneos
chico espertos...
Nos ultimos anos, as
vacances do António Silva foram passadas (aliás como na maioria dos casos...) a erguer a sua casa na aldeia, ajudado pela sua Conceição, que lhe carregava os baldes da massa quando estavam a carregar a placa...
Era até doer as costas, até não poder mais. Tinha de ser!
No último ano, contrariamente aos anteriores, António ao invés de
fazer férias em Julho ou Agosto, viera em Maio para ir a Fátima agradecer à Virgem Maria e acabar de vez a casa. Conceição disse-lhe:
- Olha lá, Tone. Tens de levar o rapaz contigo pois o governo qualquer dia já não o deixa sair...
- Deixa-o acabar o ano que não o quero à tábua da cal...
- Queres ver o nosso filho morto na guerra? Ai Jesus, Maria Santíssima que até me arrepio toda só de falar nisto...
- Está descansada, mulher dum raio, que o rapaz acabando o ano em Julho os exames segue em Agosto. Já tratei de tudo lá e mando-o chamar através da agência para ficar tudo mais oficial. O passaporte que não usou ano passado(porque chumbou e acabou por ficar mais um ano...) vai usá-lo este ano, está descansada. Quando lá chegar já tem emprego à sua espera na Citroen. Pedi ao senhor engenheiro quando andei a fazer-lhe uma obra em casa e ele disse que sim. Pediu o nome do rapaz e ele até já tem ficha pronta...
Mal regresado a Paris, António deu andamento ao processo de chamamento do filho José.
Agosto, estação de Campanhã no Porto.
O Zé passeava-se em companhia da mãe, da avó Beatriz, da irmã Margarida e do senhor Joaquim, taxista que os trouxera até à Invicta... Bilhete comprado, papelada toda no bolso (incluindo o passaporte) José despede-se e avança para o combóio.
Os lugares à sua beira estavam ocupados por dois jovens da sua idade que também demandavam a terra dos gauleses. Não se conheciam entre si, mas rapidamente o Zé se apresentou e passados uns curtos momentos do arranque do Sud-Express já todos se conheciam como se fossem amigos de peito... Fôra o destino que os juntara. Haveriam de ser amigos vida fora...
Cada um transportava um saco ou uma mala velha para além do inseparável garrafão.
O Zé, para além da pinga, levava também outro garrafão com bagaço para o pai oferecer ao senhor engenheiro que lhe arranjara emprego.
No cesto de vime, comprado na feira d'ano anterior, levava uma galinha assada, que em viva fôra preta e que a mãe escolhera por causa do mau olhado...
Tinha um cheirinho divinal... levava ainda uma dúzia de chouriças de carne feitas em casa pela sua avó Beatriz, duas mouras, um chouriço e uns bolinhos de bacalhau que deviam estar mesmo bons,dado tratar-se da especialidade da avó, a quem todos recorriam nos casamentos, tal a qualidade evidenciada...
Levava ainda uma boa dúzia de moletes para fazer sandes, e um cibo de broa e azeitonas para mastigar com o presunto da pata da frente do porquito que morrera atropelado pela motorizada do vizinho. Um melão e uma dúzia de maçãs completavam a ementa...
Cada um dos outros também no seu farnel apresentava bolinhos de bacalhau, sandes de presunto alguma fruta...
O Quim levava até umas iscas de bacalhau que parece que do dito apenas terão apanhado o cheiro...
O Álvaro, tinha também umas sardinhinhas fritas com molho de cebolada dentro dum tachito pequeno que também levava arroz seco.
Decidiram que a comida seria de todos para todos e foi assente que a galinha do Zé só seria comida já no domingo a chegar a Paris.
Por essa noite de sexta adentro lá se entretiveram a comer umas sardinhinhas e um bocado de arroz que colocaram no único prato que o Álvaro levava e comeram à vez... os bolinhos de bacalhau, alguma fruta.
Quando acordaram seis, sete da manhã de sábado, beberam dos termos que todos tinham levado um café que acompanharam com umas sandes de presunto e até de bolinhos de bacalhau...
Por volta das dez e meia começaram a sentir um cheiro algo incomodativo vindo de debaixo dos seus bancos...
Era a galinha que devido ao calor se estragara...
Havia que deitá-la fora urgentemente
Temos de deitar isso fora pá antes que se estrague o meu salpicão - disse o Zé.
-Salpicão, chamas salpicão a um chouricito manhoso? Salpicão é o meu, ripostou o Álvaro...
-Isso não interessa agora para o caso. Façam costas que eu deito o bicho p´ra fora.
Entretanto, todas as janelas estavam bem abertas até baixo, por via do calor e do cheiro...
-Custa-me deitar a bichinha fora...
-O gajo é tolo! Dá cá isso que eu resolvo. Não vês aqueles gajos lá do fundo a olhar p´ra nós? Façam costas.
O comboio circulava a duzentos e muitos quilómetros por hora...
Tão depressa Álvaro jogou borda fora a galinha envolta no guardanapo e em jornais, logo ela reentrou (não fosse ela uma ave...) por uma das janelas do fundo indo bater com fragor no encosto de cabeça de uma cadeira vazia para saltar já toda esparramada para o colo do passageiro que aí seguia em frente...
Segundos depois, o homem de meia-idade abeirou-se deles para dizer:
- Merde, merde, qui va payer?
E mostrava o fato beje claro cheio de manchas de galinha, a gravata toda suja e a camisa com restos de ave impregnados.
-
Merde, merde, qui va payer?
-Merda não pá, que até era uma galinha que eu vi crescer, disse o Zé...
-Está calado pá que ainda vem aí o revisor e estamos feitos ao bife. Neguem, neguem tudo...
Entretanto, sorte a deles, o combóio chega a Paris. Aglomeram-se as pessoas à espera dos passageiros. No meio de tanta confusão, os três aproveitam para se esgueirar...
Todos tinham os pais à espera que não se conheciam, mas depressa em uníssono surgiria uma gargalhada logo que lhes foi contada a aventura...
Promessas de reencontros. Despedidas, cada um para o seu lado.O tempo foi passando, os seus conhecimentos evoluíram, e entretanto, dá-se o golpe militar em Portugal.
Quase de imediato, Zé desembarca em Lisboa, discurso de antifascista engatilhado, autoproclamando-se exilado político perseguido pela PIDE, e filia-se num partido da extrema esquerda.Pouco depois dá o salto para um dos grandes, e agora é vê-lo, fatos de
cashemire, gravatas de seda natural e sapatos italianos.
Arranjou a vidinha...
Só não esteve na guerra da Guiné porque era antifascista, objector de consciência, e um perseguido pela PIDE...
O pior é se o Quim e o Álvaro lhe descobrem a careca...
Manuel Maia
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Julho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4630: Destas não reza a História (Manuel Maia) (4): História da esgraçadinha