domingo, 9 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10354: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (1): A estreia de um fadista ou a desesperança do Esperança, no EREC 2454, do cap cav Manuel Monge




Guiné > Região do Cacheu > Bula > 1969 >  O 1º Sargento Correia, eu e o morro que separava a parada das instalações onde dormia e vivia o pessoal do EREC 2454, que era comandado pelo cap cav Manuel Monge




Guiné > Região do Cacheu > Bula > 1969 > Eu e o Furriel Moncada Cordeiro 



Guiné > Região do Cacheu > Bula > 1969 >  CCS/BCAÇ 2861 > O Furriel Francisco Dias e eu, em traje domingueiro,  passeando pelas ruas de Bula. De costas, o Luís Crasto, furriel  mecânico de transmissões da CCS.

Foto (e legenda): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados


1. O Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) é um homem da rádio e tem um particular talento para contar histórias. Está connosco, atabancado, desde agosto de 2009 (segundos os registos oficiais). Tem vindo a reencontrar camaradas que com ele partilharam as alegrias e as tristezas dos dias de Bula e Bissorã, nos tempos idos de 1969/70. E tem escrito sobre isso (*).

Tem, já cerca de duas dezenas de referências no nosso blogue. Mais recentemente mandou-nos esta história que se segue, com seguinte nota: "Meu Caro Luís Graça, Camaradas Editores: Aqui vos trago mais um contributo para a história dos nosso dias na Guiné. A abraço a vós e a todos os camaradas tabanqueiros". 

Entendo isto como um desafio e uma promessa: outras mais histórias virão... Pelo que, e à revelia do autor, decidi criar uma série só para ele, com um título provisório "Recordações de um furriel enfermeiro, infante, fadista, ribatejano, amigo da cavalaria (Armanod Pires)"... Fica bem ao jeito dele, emotivo, solidário, amigo do seu amigo, camaradão... A criação de um série implica o compromisso da publicação de pelo menos seis postes...

Acho que o Armando vai aceitar, de bom grado, o desafio, que matéria prima não lhe falta nem muito menos a palheta... E tempo julgo que é coisa que não lhe falta. Seria pena que uma história  como esta,  de antologia (no sentido de ser uma história forte e bem escrita), ficasse por aí, no nosso querido blogue, como "estória avulsa" (sem menosprezo para todas as muitas pequenas grandes histórias que temos publicado sob essa rubrica)... Por fim, e não menos importante, sei que o Armando Pires tem sentido de missão, além de sentido de humor, e nutre pelo nosso blogue um especial carinho. (LG)




2. A estreia de um fadista  ou a desesperança do Esperança,

por Armando Pires

Bula, 15 de Abril de 1969, depois das oito da noite.

Ofegantes, os noventa cavalos da velha GMC galgaram a cancela do aquartelamento e estacaram às dez rodas em frente ao bar. Ao lado do condutor ergueu-se o Caeiro e gritou-me:

 –  Salta práqui, ó pira, que esta noite vai haver espectáculo no Esquadrão. 

Ordem cumprida, ou não fosse o Caeiro um sargento velhinho e eu furriel periquito, e antes de arrancar ainda perguntou se não vinha mais ninguém à festa. Apenas o Basso, furriel de transmissões da minha companhia, aceitou o convite.

Meia volta volver e lá vai a GMC à desfilada. A tosca luz dos faróis rasgava a noite, o roncar do motor quebrava o silêncio da Vila, o Caeiro e seus rapazes gritavam e cantavam coisas indizíveis a filhos de Deus.

Era uma cena digna de um filme do faroeste. Mas afinal, para onde íamos nós?:
 – ... Esta noite vai haver espectáculo no Esquadrão!... -  mas o Esquadrão ficava no sentido oposto àquele que levávamos. 

Íamos na direcção da estrada de Binar, mas chegados ao fim da Vila contornámos Bula por fora, pelo lado de Sanhar e Ponta Alfama, seguimos sempre pela orla da bolanha (gente atrevida, como se saberá mais à frente), como se em direcção ao Dingal, tornámos a entrar na estrada e eis-nos chegados ao aquartelamento do Esquadrão de Reconhecimento AML 2454.

Estava ali fazia pouco tempo. Ali, era a meio caminho entre Bula e o lugar onde a estrada de Có ligava a João Landim. Antes, aquele espaço fora ocupado pelo Batalhão de Engenharia que levara a cabo a abertura e asfaltagem da estrada João Landim-Bula, daí para Có, Pelundo e Teixeira Pinto.

Terminados os trabalhos, ficando vago o lugar, o comandante do EREC, capitão Manuel Monge, um homem notável que nasceu para comandar sem galões nem gritos, intercedeu junto do General Spinola para que ali o deixasse instalar a sua gente.

Moravam entre chapas onduladas de zinco que mal se viam da parada, porque dela separadas, como protecção, por um morro de terra com quase três metros de alto.

E o que fazia eu ali?

Bom, porque tudo tem um começo, temos de regressar ao dia 15 de Fevereiro daquele ano de 1969, quando eu, com cinco dias de Guiné, aturdido com tudo à minha volta, saltei da jangada em João Landim.
- Armando! Armando! Ó Pires!

Olhei à roda para ver dos meus quem me chamava, mas a voz que com insistência dizia o meu nome vinha de lá, de onde não estava ninguém do meu pessoal. A voz transformou-se numa figura que corria para mim.
Era o Moncada Cordeiro, meu amigo e conterrâneo.

Trocámos um forte abraço e ficou a promessa de falar amanhã, que o Cordeiro tinha mais que fazer. Ele era Furriel Miliciano do Pel Rec AML 2024, e estava ali como parte da escolta que havia de garantir a nossa segurança até ao Quartel de Bula. 

Como previsto, falámos no dia seguinte. Da nossa terra, dos nossos amigos, da nossa Feira do Ribatejo e do fado. Sim, é que o Cordeiro, sabendo da minha queda para cantar o fado, logo ali me disse que eu tinha de ir lá abaixo cantar para a malta do Esquadrão.
 
– É pá, tu sabes que eu só canto com acompanhamento – disse-lhe eu, tentando matar o convite. 
–  Pois aí é que tu te enganas –  matou-me ele a mim, revelando que no Esquadrão havia um furriel que tocava muito bem guitarra. – É o Dias, pá, o Francisco Dias. Não imaginas como o gajo toca. Vais ter de o ouvir para tirares as dúvidas. 

E tirei. Um bom par de dias mais tarde, mas tirei. O furriel Dias tocava mesmo bem guitarra mas com “sotaque” de Coimbra, a sua terra natal. 
–  Ó Dias – atirei-lhe, um tanto desconsolado  –  mas eu canto é fado de Lisboa.  
– E daí? – pergunta ele, para num remate dar a táctica. –  A gente tem tempo, ensaiamos e vais ver como o corrido me sai das cordas da guitarra. 

E lá andámos, sempre que possível, de ensaio em ensaio, ele apanhando o tom e eu afinando a garganta. Até ao dia do grande espectáculo.

Já sabem agora o que fazia eu ali, naquela noite de Abril, “nas Panhard”, como nós chamávamos ao aquartelamento do Esquadrão.

Eu e o Dias fomos para um quarto, eufemismo de um espaço “enlatado” com quatro camas em beliche, ensaiar os fados que, daí a pouco, iria cantar. A assistir ao ensaio ficou o Basso, o tal furriel da minha companhia, o Caeiro e mais um alguém que a memória já não identifica. 

Ia com estilo no segundo verso do “Bairro alto com os seus amores”, quando um tiro suspende a estrofe. 
–  UPS!...  Calma que é fogo nosso  –  sossegou o Caeiro, e voltámos ao fado. 

Voltámos, é uma força de expressão. Ainda mal tínhamos recuperado a posição de sentados quando BUM!!, e o aquartelamento estremeceu.  Afinal, o espectáculo anunciado pelo Caeiro não era o meu, ia ser aquele.

A luz apagou-se e era tudo negro à minha volta, a chapa silvava como sacudida por um furacão, gente a correr e eu sem as ver, gritos de “Vamos lá atrás, vamos lá atrás”, e eu sem saber onde ficava lá atrás nem quem lá ia, as costureirinhas riscavam o céu com tracejantes, a cada granada que caía, o chão sacudia como agitado por um terramoto. 

Eu já tinha embrulhado umas três vezes com a 2466. Uma delas, na estrada de Binar, foi feia, muito feia mesmo. Três emboscadas na mesma manhã. Cinco feridos do nosso lado. Do lado de lá, entre outras baixas, a mais significativa foi a da morte do comandante Nhaga, chefe do 1º bigrupo do Choquemone. Foi a 9 de Abril, seis dias antes daquele ataque dirigido, particularmente, contra o Esquadrão, e que foi, soube-se depois, represália pela morte do Nhaga.

Portanto, eu já sentira o cheiro da pólvora, mas naquela ainda não me vira. Era o meu primeiro ataque dentro do quartel. E no dia do baptismo, via-me “fora de casa”, às escuras, sem ninguém para me dizer que fazer ou para onde ir.

O Dias, o Caeiro e o outro, reagiram ao fogo correndo para os seus lugares, esquecendo-se que aqueles dois pobres de cristo, eu e o Basso, não conheciam o caminho das pedras. Estupidamente, dentro da “casa escura”, sem refúgio nem abrigo, metemo-nos debaixo das camas, cercados de chapa por todos os lados menos por um, o chão, contra o qual colámos os nossos corpos, como se a ele quiséssemos amarrar as nossas vid
as. 
–   F… !, que isto está feio – foi a única coisa que nos dissemos.

Lá fora ouvi alguém dizer que o Esperança tinha morrido. 
–  O Esperança morreu! O Esperança morreu!. 
 – E o enfermeiro, merda? 
–  Estou aqui!” – berrei com quanta força tinha para que me pudessem encontrar. 
 – Aqui, onde? 
–  Aqui, porra, não sei, está escuro, não vejo nada. 

Percebo passos a virem ao meu encontro ao mesmo tempo que uma voz, aproximando-se, ia dizendo: 
–  Mas este gajo tá parvo, ou quê? 

Entra alguém que me aponta a luz e segue-se um diálogo de loucos à beira de um ataque de nervos:
–   Não és tu, porra!| 
– não sou eu, o quê? 
– o enfermeiro!
– Então eu sou o quê?
 – Não és tu, é o nosso
– E eu não sirvo? 
– Serves, anda lá. 

Pelo caminho percebi que procuravam o “Madeirense”, furriel enfermeiro do Esquadrão, com quem acabei por me encontrar quando entrei na enfermaria.  Lá dentro estavam quatro homens feridos. Ferimentos ligeiros, felizmente.

Pior foi o Esperança, soldado maqueiro que morreu estupidamente no dia em que fazia anos.
Ao longo da noite, naquelas horas em que se lambiam as feridas, soubemos que lá em cima, no meu aquartelamento, o furriel mecânico de transmissões, apanhado dentro da “fortaleza” que eram as comunicações, quando uma canhoada desfez parte da parede, saiu pelo buraco do projéctil, mas para o lado de fora do quartel, de onde vinha o fogo inimigo. Encontrou-o o grupo de combate que partiu na perseguição dos atacantes.

Soubemos que naquela viagem nocturna, com o Caeiro aos gritos, entre o aquartelamento de Bula e “as Panhard”, passámos mesmo nas barbas da força do PAIGC que aguardava a hora de atacar.

E soubemos como morreu o Esperança.  O soldado maqueiro do Pel Rec AML 2024, Bento Lemos Esperança, estava no bar com outros camaradas, celebrando o seu aniversário, quando se iniciou o ataque. Saiu em direcção à enfermaria mas, para atalhar caminho, em vez de ladear o morro subiu-o para atravessar a parada. Foi morto pelo rebentamento, ali à sua frente, de uma granada de morteiro.

Os dias que se seguiram foram muito difíceis para os homens do EREC. Não esqueço as lágrimas que vi, naquela noite, nos olhos do capitão Monge.

Há dias, numa troca de e-mails com o nosso recém grã-tabanqueiro Bernardino Cardoso, meu amigo e ex-furriel miliciano do Pel Rec AML 2024, tendo-lhe dado conta de que iria contar aqui aquela noite no Esquadrão, e que falaria de como morrera o Esperança, ele respondeu-me num texto com esta revelação:

“Tenho para te dizer que no dia da saída da tropa no cais de Alcântara, ele foi o único que chorou e chorou de forma muito consternada e veemente, proclamando que morreria e nunca mais voltaria a ver a sua filha. Tentávamos todos que se mentalizasse que não era assim etc. , mas ele estava certo disso. Absolutamente seguro. Premonições dos diabos”.

Que puta de desesperança a tua, ó Esperança!

Armando Pires

PS – O António Basso, infelizmente, há muito que nos deixou. Do Caeiro nada sei. O Francisco Dias está em Coimbra e é um notável guitarrista. O Cardoso apresentou-se aqui no P10156. O Moncada Cordeiro continua na nossa terra e vou almoçar com ele um dia destes. Agradeço à malta do EREC sempre me ter visto como um dos seus. Por último, declaro agora e para futuro que não assinei nenhum acordo ortográfico.


3. Resposta do Armando na "volta do correio":

(i) Meu caro Luís Graça, Camarada:


Deixa que te agradeça as palavras com que apresentas o meu último texto para o nosso blog e o desafio que me lanças. Tal como escrevo em comentário "lá no sitio", já me lixaste com F grande. Mas vou procurar corresponder à expectativa.

Quanto ao titulo que propões para os meus textos futuros, "Recordações de um furriel enfermeiro, infante, fadista, ribatejano, amigo da cavalaria (Armanod Pires)"... ainda bem que o dás como provisório porque, e aqui tens de me perdoar mas, "defeito" de jornalista antigo, não consigo abandonar o rigor.

Tudo certo, se quiseres, até chegar ao "amigo da cavalaria". É um exagero porque pode levar a que confundam a parte com o todo. Eu apenas estive seis meses em Bula, com o EREC 2454. Aconteceu de Fevereiro a Agosto de 1969. 

Depois a sede do batalhão zarpou para Bissorã e não mais voltei a ver "um cavaleiro" à minha ilharga.
Apenas estiveram comigo, ou eu estive com elas, tanto faz, a CCAÇ 2444 e a CCAÇ 13. Sim, a minha amizade com o EREC (ou com o Pel Rec 2024) solidificou-se, não apenas por causa do fado, e manteve-se para além do nosso "contacto físico".

De tal forma que aquando dos encontros de confraternização por eles levado a cabo, sempre que e minha vida profissional fazia coincidir a minha presença no país com a data desses encontros, eu era convidado e marcava presença.

Mas amigo da cavalaria, para me apresentar, é exagerado. Espero que me compreendas e que aceites a minha explicação. Numa casa em que tanta gente, de todos os lados, partilha o seu salão e honra, não gostava de ver niguém melindrado.

Aceita um abraço camarada do Armando Pires.

Guiné 63/74 - P10353: Parabéns a você (470): Tertuliana Filomena Sampaio, esposa do nosso camarada Manuel Castro Sampaio

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10331: Parabéns a você (469): José Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)

sábado, 8 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10352: Memórias de Joaquim Cruz (3): A minha passagem pelo BENG 447

1. Final da publicação das Memórias do nosso camarada Joaquim Cruz* (ex-Soldado Condutor Auto-Rodas da CCS/BCAÇ 4512, Farim, 1972/74), que fez parte da sua comissão integrado numa Brigada do BENG 447, mas por ironia do destino, sempre bem perto da sua Unidade de origem.


MEMÓRIAS QUE O TEMPO NÃO CONSEGUE APAGAR (3)

Sou Transferido para o Batalhão de Engenharia 447

Um certo dia sem que eu esperasse sou chamado à presença do nosso Comandante de Batalhão, o já falecido Ten Cor António de Vaz Antunes e este pergunta-me se eu tinha alguém influente que tivesse feito com que eu fosse chamado para Bissau. Fiquei surpreendido com a notícia, respondi-lhe que não, que desconhecia por completo a razão, e perante a pergunta que me fez se eu estava interessado em ir eu respondi-lhe que sim, apercebi-me pelas suas palavras que se eu não quisesse ir ele resolveria o problema de outra forma, mas para quem estava ali quase há um ano e de ter passado por momentos complicados ir para Bissau era um prémio caído dos céus. Bem me enganei.

E assim foi, passados uns dias conseguiram-me um lugar numa avioneta civil que nos visitava de longe a longe, que ao mesmo tempo me proporcionou o meu batismo de voo, que começou da pior forma possível, comigo iam mais três ou quatro passageiros, entramos para o interior da avioneta e quando o piloto tenta colocar o motor em marcha este não arranca. Depois de varias tentativas e já quando não víamos qualquer esperança de levantarmos voo, alguém com autoridade, penso que o oficial de dia, se lembrou com a anuência do piloto de chamar o 1.º Cabo Mecânico do nosso Pelotão Auto, o Piedade, se não estou confundido no nome, foi este nosso camarada que resolveu o problema, mas para quem voava a primeira vez, eu confesso que fui a viagem toda meio arrepiado, a olhar para as matas e a pensar para comigo quando é que o motor se vai lembrar de parar e nós vamos esmagarmo-nos lá em baixo. Felizmente tudo correu bem e lá me apresento eu no BENG.

Já no BENG petiscando na companhia dos camaradas Flamínio, à esquerda, e Barrelas à direita.

Aqui já com a nova ferramenta de trabalho

Só eu sei quantas vezes me arrependi, primeiro quando descubro a razão da minha presença ali no BENG mas já era tarde para voltar a trás, nada a fazer nestes casos, segue-se em frente e enfrentam-se as adversidades com o maior rigor possível; segundo quando venho a saber que no principio do ano o Alf Mil Paiva e Pona Comandante do Pelotão-Auto procede à troca dos condutores, os que estiveram no primeiro ano no quartel ocupam o lugar dos que tinha calcorreado as picadas, não tiveram estes também tarefa fácil, já que acionaram algumas minas e tiveram envolvidos em emboscadas na perigosa zona de Lamel entre eles os nossos camaradas Simão, que saiu ileso duma violenta emboscada em que lhe passou uma roquetada perfurante por baixo do banco da Berliet que este conduzia, o Vieira e o Rui da Eira, mais conhecido por (Espite) entre outros, que no primeiro ano foi o condutor do nosso Comandante de Batalhão e no segundo acabou por vir evacuado na sequência do rebentamento de uma mina que teve a infelicidade de acionar.

Logo nos primeiros dias na Engenharia sou informado que se está a formar uma brigada para abrir uma nova picada para Guidaje, e que por falta de manobradores desta arma foram às várias Unidades buscar elementos para completar essa brigada, então como eu era o único condutor dos elementos rebuscados, foi-me distribuída uma motoniveladora que para quem conhece trabalhos de terraplanagem, é só uma das mais trabalhosas. Depois de um pequeno estágio onde ainda passei uns dias em Tite, mais uns trabalhos para adaptação nos arredores de Bissau e ficamos prontos a partir.

Embarcamos toda a maquinaria numa LDG, como mostra a foto, e com a proteção de um navio patrulha que com umas varredelas do tarrafo e matas junto às margens nos foi acompanhando, subimos o Cacheu e lá chegamos a Binta sem problemas de maior.

A viagem na LDG de Bissau a Binta subindo o Cacheu

Eu com a máquina em plena atividade

As máquinas eram normalmente duas de cada tipo, para que trabalhássemos alternadamente, ou seja um dia de trabalho alternado com um dia para manutenção da máquina e o merecido descanso, só que a outra niveladora que tinha sido a um manobrador pertencente à Engenharia, passados uns dias, para meu azar, teve uma avaria na caixa de velocidades, ao tempo que surgiu um problema numa perna, um pouco abaixo do joelho, ao dito manobrador, e lá vai o nosso amigo Varandas, de seu nome, evacuado para Bissau.

Nunca mais lá voltou como era de esperar, então o serviço que estava programado para dois manobradores passou inteiramente para mim, é que mesmo já passados, naquela altura mais de seis meses da luta travada ali entre Binta e Guidaje, o nome impunha respeito, mesmo a quem por lá não tinha passado.

Iniciamos os trabalhos, adianto que o traçado da nova picada raramente coincidia com a picada antiga, passamos razoavelmente afastados dos restos das viaturas que ali na zona de Genicó tinham sido destruídas pela nossa FA, lá estavam vários destroços espalhados por uma vasta área, procurando seguir o mais reto possível, lá fomos progredindo em direção à tristemente célebre bolanha do Cufeu. Para quem por lá passou naquela época hoje é muito fácil certificar o que aqui descrevo através do Google, pois nota-se perfeitamente a linha da nova picada que ali construímos.

A parte que me tocava no desenvolver dos trabalhos era deveras árdua, todo o trabalho era feito no interior duma enorme nuvem de poeira levantada pelos camiões, que de um lado circulavam carregados de saibro e pelo outro vazios, num vaivém continuo desde que começávamos logo pela manhã até à meia tarde sensivelmente, ainda com a agravante de até meio do percurso mais ou menos, termos que levar e trazer as máquinas para o destacamento, quando terminávamos as tarefas e nos banhávamos para tentarmos comer alguma coisa, o que era de todo impossível porque o organismo já não respondia, a qualidade da alimentação também não ajudava e a salvação eram umas cervejolas bem frescas. Daí resultou que ainda hoje o fígado se ressente desses maus tratos, foi já na parte final que as máquinas passaram a ficar no local de trabalho devidamente protegidas, todos os dias era feita a picagem do trajeto, assim como da zona de trabalho. Foram no decurso dos trabalhos detectadas e levantadas enumeras minas mercê da perícia de um ex-Fur Mil que fazia parte do Pelotão de Sapadores que também foi constituído com elementos de várias Unidades.

Além destes eramos protegidos por duas Companhias que garantiam a segurança para que pudéssemos realizar os trabalhos, mas das muitas minas que foram desativadas ouve uma anticarro que não foi detectada e que viria a ser acionada por mim, como adiante explicarei.

A primeira operação que eu fazia ao chegar à frente de trabalho era limpar a chamada caixa para que os camiões começassem a vazar os montes de saibro, depois vinha para trás e procedia ao seu nivelamento. Fiz este trabalho durante bastante tempo, mas cheguei a uma altura que derivado ao cansaço, tive que recorrer à compreensão e boa vontade do Comandante da Brigada, o ex-Alf Mil Ferreira, se não estou em erro com o nome, e este acedeu a que eu fosse alternadamente para poder ter algum tempo de descanso.

Quando eu não estava, era um camarada e quem chamávamos Faísca, natural do Algarve, que com um D4 fazia o que lhe era possível, facilitando-me um pouco a tarefa. Com esta alternância calhei a não estar presente quando houve uma emboscada à coluna, mas desnecessário será dizer que no dia em que lá estava. Esforçava-me ao máximo para conseguir levar a contenda a bom termo.

E é assim nesta azáfama que recebemos a noticia do 25 de Abril, continuamos a trabalhar como se nada se tivesse passado, e por ironia do destino, no dia 1 de Maio sensivelmente por volta das nove da manhã, precisamente à entrada da celebre bolanha do Cufeu onde a nova picada se sobrepôs com a antiga, no sentido de Binta Guidaje onde o terreno fazia um pequeno declive, ao proceder à rotina habitual da limpeza da caixa na frente de trabalho, passo a primeira vez, sempre com algum receio, passo uma segunda já mais descontraído, e à terceira passagem explode debaixo da roda do meio do lado esquerdo um valente caixote de trotil, que no dizer dos entendidos tinha ficado ali desde o conflito do ano anterior e a época das chuvas tinha-se encarregado de tapar com uma vasta camada de areia.

O estado em que ficou a máquina depois do rebentamento da mina

O Bulldozer D6


É a robustez da máquina e a lamina que ia perpendicular a esta que evitam que a mesma tombe. O estrado onde eu de pé vou a manobrar, fabricado em chapa xadrez de razoável espessura impede que os estilhaços me atinjam mas fica bastante abaulado, eu recebo um violento choque que se tivesse ali perecido. Não tinha chegado a aperceber-me de nada, tal foi a violência da explosão, mas passados uns segundos reagi, com a ajuda do bom amigo e camarada Barrelas, Sapador que fazia parte do pelotão ali destacado de apoio à construção da picada, que é o primeiro elemento a chegar junto a mim, que me agarra e pergunta insistentemente como é que eu estou. Por incrível que pareça apenas fiquei com um ligeiro ferimento na testa e claro com o corpo todo dorido e completamente todo coberto com pó negro e terra, como só poderão imaginar aqueles camaradas que viveram situações semelhantes.

Passados os primeiros momentos verifico que me consigo movimentar, sou de imediato transportado para a enfermaria de Binta, mas não há necessidade de ir para Bissau, passo duas semanas a recuperar, talvez as únicas em que estive em verdadeiro descanso. E passados esses dias, como não havia niveladora operacional, ainda dei uma ajuda aos outros camaradas manobrando um D6 na saibreira, até que foi dada por terminada a missão.

Em Binta com os camaradas Luz o do meio e o Barrelas em primeiro plano.

Em Binta, junto à jibóia que ali se deixou agarrar, com camaradas da 1.ª C.ª do 4512 e da Brigada de Engenharia


Na saibreira junto à bolanha do Cufeu com alguns dos camaradas que comigo participaram na construção da nova picada, nunca mais tive contacto com qualquer deles e os nomes já não consigo recordar.

Em Binta no banquete do dia de Páscoa de 1974

Em Binta, aliás como nos outros destacamentos, fui sempre bem recebido como o provam estas imagens onde estou com camaradas do Pelotão Auto da 1.ª C.ª do meu Batalhão em que oficiais sargentos e praças partilhavam das mesmas patuscadas. Reconhecem-se à esquerda, sem camisa, o ex-Alf Mil Morais e à direita, fardado, o ex-Alf Mil Oliveira.

Passados uns dias procedesse ao embarque novamente numa LDG de toda a maquinaria e chega-se à conclusão que desta vez não cabem todas, não cheguei a perceber porquê. O certo é que em Binta ficou a aguardar embarque precisamente a motoniveladora do manobrador que há muito estava em Bissau. Por decisão do Ex-Alf Ml Ferreira, ficava o Cruz até que a máquina fosse recolhida. Por muito que me custasse, compreendi eu era o único que manobrava aquela ferramenta.

Os dias foram-se passando e eu preocupado: - O meu Batalhão qualquer dia faz as malas e eu, o que é que faço à máquina? Então socorri-me dos bons serviços do 1.º Cabo Mecânico da 1.ª C.ª sediada lá em Binta, o nosso camarada e amigo Neto, oriundo de Portalegre se não estou enganado, e ele abriu a caixa de velocidades da máquina e conseguiu que esta funcionasse, coisa que os mecânicos da Engenharia, integrados na Brigada, acho que nem tentaram. Não estava a cem por cento mas para já resolvia o problema.

Primeiro experimentei-a na reparação das zonas envolventes das tabancas, pelos trabalhos prestados angariei algumas cicés que eram prata fina comparado com o que comíamos às refeições, uma pequena galinha bem barrada com gindungo fazia a refeição de meia dúzia de amigos com uma boa quantidade de bazucas para constantemente refrescar a boca, tal era o picante bem conhecido de todos nós que passamos por aquelas bandas.

Depois houve que pedir autorização ao comandante da 1.ª C.ª para me deixar ir para Farim, obtida essa autorização desloquei-me para lá e o primeiro passo já estava dado.

A raspagem do campo de bola de Farim o edifício à direita era o nosso dormitório

Aqui estou junto à maquina em que viajei de Binta a Farim e daí a Bissau.

Entretanto o comandante do Batalhão já era outro, este não me conhecia, mas sempre aproveitou a máquina para dar umas raspadelas nos campos de futebol e depois com muito jeito lá consegui autorização para viajar para Bissau e entregar a dita máquina no BENG.

O conflito tinha terminado e não havia que ter receio. Estaríamos nos meados de Julho mais ou menos e uma bela manhã atravesso o Geba na nova jangada e ai vou eu a caminho de Bissau; encontrei pelo caminho dois grupos de militares do PAIGC, abrandei fiz-lhe um gesto de cortesia o qual eles retribuíram e prossegui até ao meu destino, senti um enorme alívio quando entrei com a máquina e me dirigi ao oficial de dia e lhes fiz a entrega da máquina. Nunca mais vi ou tive contacto com o alferes que me deixou em Binta com tal fardo, mas quem sabe se um dia ainda vou ter o privilégio de trocar umas palavras com ele.

Apresento-me de novo na minha Unidade, em Farim, e como estava bastante folgado, tinha trabalhado pouco durante a comissão e não deveria haver por lá camaradas disponíveis, entregam-me a viatura que servia de ambulância e toca de viajar para Bissau para transportar as senhoras dos oficiais e sargentos que residiam em Farim e que se despunham a ir às compras à capital.

Depois ainda voltei às Berliet, fiz uma última coluna a Cuntima onde assisti à entrega do quartel ao PAIGC e pouco depois preparamo-nos para a partida, talvez pelos bons serviços prestados no primeiro ano de comissão, no dia em que saímos de Farim para Bissau fui premiado com três viagens consecutivas, e na última de regresso para deixar a viatura junto ao rio onde estavam alguns militares da Unidade que nos rendeu, cruzei-me com as últimas viaturas já muito próximo de Mansabá. Foi o então comandante da CCS na altura Ten. Almeida Ferreira que voltou para trás e me levou no seu jeep para Bissau. Fui portanto o último condutor da Companhia a terminar funções, na verdade a fava tinha que calhar a alguém, mas logo eu que tinha sido um privilegiado, enfim para tudo é preciso ter sorte e reconheço que apesar de tudo por que passei, outros houve que tiveram muito menos sorte do que eu.

Peço-vos desculpa se me alonguei demasiado, mas os camaradas publicarão aquilo que entenderem ser de maior relevância para ajudar a completar a história da guerra em que participamos, e em que alguns episódios nos marcaram de tal forma, que jamais os esqueceremos até ao fim dos nossos dias.

Acrescento que todas as fotos são do meu espólio, noutra ocasião posso enviar-vos mais se tal for conveniente.

Envio um forte abraço a todos os ex camaradas
Joaquim Cruz
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Nota de CV:

(*) Vd. postes da série de:

15 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10267: Tabanca Grande (354): Joaquim Cruz, ex-Soldado Condutor-Auto da CCS/BCAÇ 4512 (Farim, 1972/74)
e
3 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10321: Memórias de Joaquim Cruz (2): Chegada à Guiné, deslocação para Farim e os dias trágicos vividos em Guidaje

Guiné 63/74 - P10351: Convívios (472): 23º Almoço/Convívio da 3ª CCAÇ do BCAÇ 4612/72 – 6 de Outubro de 2012 – Caldas da Rainha (Jorge Canhão)


1. O nosso Camarada Jorge Canhão, (ex-Fur Mil At Inf da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74), enviou-nos a seguinte mensagem, com pedido de divulgação do programa da festa da sua 3ª CCAÇ do BCAÇ 4612/72. 

Camaradas, 

Dia 6 de Outubro haverá mais uma reunião/almoço da minha companhia, será a 23ª. 

Embora este ano não possa estar presente devido a um compromisso familiar inadiável, desejo-vos um excelente almoço como de costume em sã camaradagem. 

Estejam presentes, pois espero estar com vocês no próximo ano. 


 

Abraços 
Jorge Canhão 
Fur Mil At Inf da 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72 

Mini-guião e emblema de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados. 
____________ 
Notas de M.R.: 


Guiné 63/74 - P10350: Historiografia da presença portuguesa em África (44): Construção da ponte-cais do porto de Bissau, em betão armado, pela empresa Moreira de Sá & Malevez (1910-1913) (Luís Calafate, bisneto de Moreira Sá)







Guiné > Bissau > Antiga ponte cais do porto de Bissau,em madeira. Fotos c. 1910, "édition Philipe Garès". Em 1910-1913 irá ser construída uma ponte cais em betão armado... a cargo da empresa portuguesa Moreira Sá & Malevez... O nosso leitor Luís Calafate é bisneto de Moreira Sá, a quem se deve, associado a Malevez, a construção das primeiras pontes em betão armado em Portugal, nos finais da monarquia e início da República.... (L.G.)

 Fotos do álbum Cartes postales de jadis, do sítio Guinnée-Bissau.net (com  a devida vénia...)



Imagem nº 1: Engenheiros construtores Moreira de Sá & Malevez, agentes gerais do sistema de betão armado Hennebique, e a quem foi concessionada a construção da ponte cais do porto de Bissau, em 1910-1913.


Documento gentilmente cedido por Luís Calafate (2012)


1. Mensagem do nosso leitor Luís Calafate, professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto:

Data: 3 de Setembro de 2012 21:39

Assunto: Porto de Bissau: ponte cais

Estimado colega Luís Graça,

Enviei este email à Administração dos Portos de Bissau porque descobri uma imagem histórica do Porto de Bissau na página web.

Saudações,
Luís Calafate
http://www.facebook.com/luis.calafate.3

2. De Luís Calafate para a Administração do Porto de Bissau:

To: abgl_5@yahoo.com.br

Subject: Porto de Bissau: ponte cais

Date: Sat, 1 Sep 2012 09:35:34 +0100


Exmo. Senhor

Eng.º Anselmo Gomes Lopes

Gabinete de Estudos e Planeamento,


1- Venho informar que, na base de dados francesa Archiwebture encontrei um registo relativo à Ponte-Cais do Porto de Bissau, datado de 1910-1913:

1.1. Concessionnaire Hennebique: Bernardo J. Moreira de Sa et Malevez;

1.2. Ingénieur: Raoul Mesnier de Ponsard.


2 - Após consulta da página web da "Administração dos Portos da Guiné-Bissau", encontrei no 'Historial do porto de Bissau' uma imagem histórica do Porto de Bissau. Consequentemente, venho solicitar mais informação (escrita e imagens), eventualmente disponível, sobre a Ponte-Cais de Bissau.

3 - Em anexo, envio uma Vista do Porto e Ponte Cais de Bissau, datada de 1907.

4 - Aproveito para informar que os engenheiros-construtores Moreira de Sá & Malevez eram agentes gerais do Sistema Hennebique em Portugal. [Imagem nº 1].(*)

Com os melhores cumprimentos,

Luís Calafate
lcalafat@fc.up.pt

Faculdade de Ciências - Universidade do Porto
Porto - Portugal
http://www.facebook.com/luis.calafate.3
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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10179: Historiografia da presença portuguesa em África (42): Missão zoológica na Guiné, 1944/46, chefiada pelo naturalista Fernando Frade (1898-1983) (Parte II)


(*) Não podemos reproduzir aqui, por se tratar de material sujeito aos direitos de propriedade intelectual, o registo de arquivo que nos mandou o Luís Calafate: trata-se do projeto de construção, em betão armado, da ponte cais do Porto de Bissau, a cargo da empresa Moreira de Sá & Malevez, concessionária da Hennebique. 


Recorde-se que François Hennebique, (1841-1921), pedreiro e depois chefe de estaleiro [, não era engenheiro diplomado!], francês, foi o inventor do cimento armado, e o primeiro a usá-la na construção civil: o seu sistema foi patenteado e o inventor criou uma rede internacional de concessionários do seu sistema. Em Portugal era representado pela empresa Moreira Sá & Malevez.

Guiné 63/74 - P10349: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (38): Poemas da juventude (I): Nasci aqui...





Cherno Baldé (n. 1960), em Kiev, Ucrânia, quando estudante (1989)


Nasci aqui
por Cherno Baldé

Nasci aqui
Em Lamkebembe.
É pasto e campo,
Foi casa,
Em tempos nómadas.

Aqui me abriguei,
Em tempos de guerra-pátria.
Espaço enigma.
É a chuva.
Enredos, entre Sintchã e Santa.
Aqui plantei a última árvore
E minha única esperança.

Nasci aqui.
É Sunkudjumá.
É rio dormindo.
É bolanha.
Fossas e lianas.
São leitos secando.
É peixe escuro e lama.
Aqui lavramos arroz,
E a tristeza dos olhos.

Eu nasci aqui.
É Fajonquito.
Ponto incógnito.
São ruas, caminhos,
É deserto querido.
Labirintos, entre casas e corações,
Aqui começa o cemitério
Dos famintos da terra.

Fajonquito, 20/06/1985

_______________

Nota do editor:

Últimpo poste da série > 4 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10325: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (37): Guerra de titãs, o Almeida Comando contra o Vilar Pára


Vd. alguns dos primeiros postes da série:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

6 de julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

13 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

21 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

27 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

5 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)


Ou ainda:

30 de Junho de 2010 >Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã



sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Guiné 63/74 – P10348: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (20): Um sapo com asas no Olossato

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 3 de Setembro de 2012:

Para abrir nada mais apropriado e saudável do que saudar os amigos Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro e enviar-lhes um abraço.
Que estejam em boa forma, também, para manterem o Blogue sempre em fasquia alta.
E, para fechar, aqui vai um “Salpico” das minhas memórias.
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”

Um salpico!

- 22 de Julho a 10 de Agosto de 1965: A CCaç 816 vai para o Olossato (deixando Bissorã) para atividade operacional naquela zona, durante aquele período. No Olossato estava a residente 566 -

XX - UM SAPO COM ASAS

Estávamos no Olossato em comissão operacional de uns dias. Fomos lá para fazermos (soubemos só há noite na véspera da saída para a operação, claro) a limpeza de abatises na estrada que ligava o Olossato a Farim e que passava pelo K3.

Operação que acabou por ser muito bem sucedida, o que não surpreendeu muito a ninguém. Aquela estrada estava dada como interdita há muito tempo e não havia portanto qualquer movimento de viaturas. Assim, em completa surpresa, foi limpar e andar de princípio a fim. Os Unimogs com os seus potentes guinchos e a destreza do pessoal fizeram o trabalho sempre com o cuidado de uma previsível armadilha. Do inimigo, nem cheiro. A Companhia, no entanto, aguardaria mais algum tempo no Olossato. Iríamos continuar em ação naquela zona.

E a ação foi aquilo que parecia e que foi: aguardar pela reação inimiga que, como se adivinhava, foi só de colocar na estrada outra vez as abatises que tínhamos desviado e acrescentar mais algumas, até de maior porte, pois então.

Estrada Bissorã/Olossato/K3/Farim. Saliquinhedim, mais conhecida por K3 fica um pouco acima da bifurcação da estrada do Olossato com a de Mansabá/Farim

A malta, e aqui refiro-me particularmente aos Furriéis, comia na messe dos Sargentos (boa malta a da 566). Já o nosso alojamento tinha que ser noutro lado e o que se conseguiu era muito precário, pois era improvisado e muito mal. Eu, o Baião, o Piedade, o Belchior e o Silva ficamos numa rudimentar dependência da casa do Chefe de Posto do Olossato mas a algumas dezenas de metros desta e já bastante fora do aquartelamento.

As enxergas, colocadas diretamente no chão, que não era limpo “há séculos”, e pronto, ali dormíamos sobre um lençol, alguns nem este tinham, que de branco passou a negro em breve tempo. Dormíamos assim em muito más condições e sempre incomodados pelos sempre persistentes e sanguinários mosquitos. Foi um tal chupar, e de palhinha. Além disso e por aquela dependência ser vítima de uma falta de limpeza total, havia ali da mais variada fauna: uns residentes, outros de passagem. Aranhões para todos os tamanhos, borboletas de todos os feitios, moscas, moscões, etc., etc.. ah (!) e aqueles insetos de cores bem vivas, voadores, de asas bem largas e finíssimas que pareciam trazer uma bolsa pendurada um centímetro abaixo do abdómen, e que até parecia um trem de aterragem? Que raio!

O que tinha mais mau dormir, por causa sobretudo desta clientela, era o Belchior, pois era o que menos aceitava aquela companhia e então ia relatando a entrada, a residência ou a saída deste ou daquele bicharoco.

Mas, afinal…, os intrusos até parecíamos nós.

A casa do Chefe de Posto do Olossato. Por coincidência apareço de bicicleta, de passeio até ao Morés

Até aí os personagens que entravam ou que apareciam de passagem em cena não eram assim tão incomodativos, e a indiferença era grande a não ser o tal de Anopheles, até que…

Uma das noites, diz o Belchior a gaguejar, como era de sua natureza, e quando alguns já estavam nos primeiros acordes do sono:
- Ó…Ó…ag…o…ra en…entrou um …um mo…mo…morcego!

Então à voz de morcego (e se é um vampiro?) todos se levantaram de um salto, mesmo os mais ensonados.

O Baião, habitual “inspetor” nestas coisas, levantou-se, contrariado, já se vê, e deu então uma volta pelo exíguo compartimento.

- Queres ver que este viu entrar um sapo com asas! Diz que viu entrar um morcego a voar e afinal o que eu vejo aqui é um sapo - Diz, em sotaque alentejano genuíno – voz grossa e pachorrenta -, o Baião, ao deparar com um amedrontado sapo num canto.

Foi uma grande risota. - O Belchior deve estar a chocar o paludismo - Alguém disse.

Tão cedo ninguém esqueceu esta, para mal dos pecados do Belchior, pois não mais foi poupado.

Mas, andar por ali um sapo!...

Olha o Belchior viu um sapo com asas!

Quantas vezes! Até aparecer outra, o que não demorou muito, o homem teve que ouvir.

Periferia do aquartelamento do Olossato
Olossato, Olossato, onde tudo é muito chato e a vida não dá prazer / Companhia, Companhia, quer de noite quer de dia há sempre muito que fazer.

Passaram-se mais dois dias e eis que o Capitão reúne Sargentos e Oficiais e diz-nos que temos de voltar à estrada do K3 para limpar as abatises, pois segundo um reconhecimento aéreo, o inimigo, em face das outras terem sido retiradas, abateu outras e então à laia de vingança, um número muito maior de abatises estava agora na estrada. Portanto, a ordem, que era do Comando do Batalhão, ficou dada através do nosso Capitão. Começou aí “o dia mais longo”, como lhe chamamos, para a 816. Operação de orgulho do Batalhão que custaria bem caro à 816. A estrada Olossato-Farim continuaria interdita afinal, mas agora já manchada também de sangue de militares da 816.

O Poste 3383 conta bem como foi…

Rui Silva
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 – P10100: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (19): A Serração de Joboiá - a destruição de um mito

Guiné 63/74 - P10347: Recortes de imprensa (57): Gazeta de Notícias, da Guiné-Bissau - Divisão de Educação Cívica das FA Recupera Estúdio da Rádio Libertação (Patrício Ribeiro)

1. Em mensagem de 3 de Setembro de 2012 do nosso camarada e amigo Patrício Ribeiro, sócio-gerente e Director Ténico da firma IMPAR, Lda., a viver na Guiné-Bissau, enviou-nos este recorte da Gazeta de Notícias daquele país de 10 de Agosto de 2012:


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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10270: Recortes de imprensa (56): Notícias do Centro, 14 de agosto de 2012: 'Afectos com Letras' instala biblioteca pública na Guiné com 13 mil livros

Guiné 63/74 - P10346: Convívios (471): Reunião comemorativa dos 45 anos do regresso da Guiné da CART 1525; Almoço de confraternização do 50.º aniversário da incorporação de Setembro de 1964 do COM e CSM - CISMI/Tavira (Rogério Freire)

1. Mensagem do nosso camarada Rogério Freire (ex-Alf Mil da CART 1525, Bissorã, 1966/67, com data de 24 de Agosto de 2012, para a qual chamamos a atenção da tertúlia pelos assuntos tratados:

Caro Carlos, Camarada da Guiné e Amigo Tertuliano:
Antes de mais, deixa-me aproveitar esta oportunidade para te agradecer e felicitar pelo teu desempenho na árdua tarefa, que parece ser a edição do nosso Blogue.

Tenho três notícias a comunicar-te e a elas darás o fim que achares mais útil para a nossa comunidade:


1) Reunião comemorativa dos 45 anos do regresso da Guiné da CART 1525 (Os Falcões) (www.cart1525.com)


Todos os anos tocamos a reunir no sábado mais próximo do dia 11 de Novembro, dia em que desembarcámos do velho Uíge.

Normalmente juntamos, entre Falcões, familiares e amigos, uma média de centena e meia de participantes, com muita alegria e muito convívio. Porque a maioria de nós é do Norte do País temos realizado as nossas reuniões anuais na região de Coimbra à excepção das reuniões quinquenais que temos vindo a realizar, sempre com o excelente apoio e boas vindas do Exército, na nossa unidade mobilizadora o antigo RAC em Oeiras.

Estas reuniões quinquenais foram realizadas no início na já extinta Bateria da Parede e já vai para 15 anos que a temos realizado no próprio quartel de Oeiras. Em Oeiras, durante a nossa reunião, além do convívio e do "comes e bebes", celebramos uma Missa pelos Falcões que já partiram, deixamos uma coroa de flores no bonito Monumento aos nossos Mortos que foi erguido dentro do Quartel e deixamos na parede da Unidade uma placa evocativa do acontecimento.

É sempre uma reunião muito marcante e normalmente é das reuniões com maior participação.

Este ano, para comemorar os 45 anos do nosso regresso da Guiné, a nossa reunião vai-se realizar no sábado dia 10 de Novembro no Quartel do ex-RAC em Oeiras.


2) Almoço de confraternização do 50.º aniversário da incorporação militar do COM e CSM de Setembro de 1964 - CISMI - TAVIRA (http://www.cismi-setembro-1964.pt)


Um grupo de Camaradas da CART 1525 que terminou a recruta no CISMI em Dezembro de 1964 está a organizar-se para conseguir reunir um grupo de simpáticos septuagenários, "quantos mais melhor", no CISMI em Tavira no dia 20 de Setembro de 2014 - 50 anos depois do "assentar praça".

Neste momento já temos 9 inscritos e gostaríamos de solicitar a divulgação deste evento no nosso Blogue, pois há com certeza muitos Camarigos que passaram pelo CISMI nesta altura.

Para o efeito de informação e inscrições estruturamos o site http://www.cismi-setembro-1964.pt onde esperamos uma visita tua e agradecemos, desde já, a tua colaboração e opinião sobre este assunto.


3) Transcrição de negativos e slides de 35mm para ficheiros .jpg (http://www.lp-to-cd.pt/)


Em determinada altura as minhas fotos reveladas em Bissorã nos idos anos de 1966/67 começaram a perder cor e a pouco e pouco foram-se desvanecendo. Creio que esta situação já deve ter acontecido a vários Camaradas ... o tempo por cima e a qualidade dos químicos usados na fixação das fotos cumpriram a sua tarefa. Mas com alegria descobri vários rolos de negativos e me preparei para rever as minhas fotos com qualidade.

Adquiri o equipamento e o "know how" necessários e comecei a digitalizar os negativos e os meus slides e a transformá-los em ficheiros .jpg, os quais, uns imprimi na minha laser a cores e outros fui a um laboratório do Shopping e transformei-os em fotos actuais.

Claro está que elas todas ficaram devidamente organizadas e arquivadas num DVD que agora posso mostrar à família e aos amigos.

Esta actividade decorreu em 2006/2007 e fez-me muito bem pois, não só me ajudou a passar o tempo fazendo alguma coisa de útil e que me deu satisfação pessoal como também me alertou para a possibilidade/oportunidade de criar/montar uma pequena actividade negocial e passar a oferecer este serviço às pessoas em geral. Foi assim que apareceu em 2009 o site http://www.lp-to-cd.pt/ a oferecer além do serviço de transcrição de negativos e slides para .jpg também a conversão dos "velhos" LP's em vinil para CD´s.

Lembrei-me de fazer uma oferta aos Camarigos, familiares e amigos incluídos, que é a seguinte. No site o preço de conversão de cada negativo ou slide é de 20,4 cêntimos + IVA = 25 cêntimos A minha proposta para os Camarigos interessados em rever/revitalizar/conservar os seus negativos e slides é de 15,45 cêntimos + IVA = 19 cêntimos

Com relação aos LP's, se houver interesse no serviço, a oferta é de 4,06 euros + IVA = 5,00 euros para qualquer quantidade de LP's.

A estes valores só deverão juntar os portes e os custos do suporte seleccionado (CD ou Pen) de acordo com as instruções no site.

Para aceder a este desconto bastará que nas Observações da nota de encomenda que deve acompanhar os negativos/slides/Lp's escrevam "Camaradas da Guiné".

Caro Carlos Vinhal, espero que tenhas aproveitado com a semanita de férias e agradeço a divulgação destes assuntos da forma como entenderes que o deves fazer.

Um abraço do
Rogério Freire
Ex-Alf Mil da CART 1525
Bissorã, Guiné, 1966/67
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10337: Convívios (470): 4ºEncontro de Gerações de Lanceiros Policia Militar/Policia do Exército, Portalegre – 20 de Outubro de 2012 (Nuno Esteves )

Guiné 63/74 - P10345: O PIFAS, de saudosa memória (12): Excerto áudio... (Tony Sacavém)



Extrato de uma crónica do PFA - Programa das Forças Armadas. Texto atribuído a Júlio Montenegro. s/d [Julho de 1969? junho de 1971 ?]. Excerto áudio enviado por Tony Sacavém. 

Vídeo (4' 05'') disponível em You Tube > Nhabijões. Edição do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2012).

1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) Tony Sacavém,


De: Tony Sacavém [ an_ter_bar@hotmail.com ]

Data: 6 de Setembro de 2012 01:18

Assunto: Blogue - Pifas


As minhas saudações.

Andando eu a pesquisar na Internet algo sobre a Guiné portuguesa, eis que apareceu a tua página. Tanto li e reli as várias insertas no Google que foi com surpresa que de repente figurou o meu nome como fazendo parte da equipa de 70/72, [do PFA].

Tenho fotos da altura e também de um jantar de confraternização nos anos 80. Junto em anexo um pedaço de uma gravação que,  se foi para o ar na sua totalidade,  foi porque nesse dia a censura estava de folga. Parte do texto é da autoria do Júlio Montenegro, nome que creio não está referido, e que foi alguém que me ensinou muito sobre como escrever textos radiofónicos.

Qualquer esclarecimento sobre a história do PFA,  estás à vontade. Por exemplo, o criador do boneco [, o PIFAS,] sempre o conheci pelo nome de Jorge Henrique. Penso que exercia as funções de desenhador junto com o José Avelino. Tinham ambos o curso da Escola António Arroio.

E mais não digo... (como se dizia nos autos da tropa)

Tony Sacavém


2. Comentário de L.G.:

Tony, obrigado pelo envio deste preciosidade... Estamos mesmo interessados em conhecer melhor a história do PFA, de saudosa memória. Por exemplo, não sabíamos que o jornalista, realizador, produtor e apresentador de rádio e televisão Júlio Montenegro tinha feito parte da equipa do PFA. 

Gostaríamos também de te convidar para integrar esta comunidade virtual dos amigos e camaradas da Guiné. Se aceitares, manda-nos, de acordo com as nossas regras bloguísticas, uma foto do teu tempo de tropa e uma atual. E conta-nos algo mais sobre o teu tempo no PFA - Programa das Forças Armadas... Com quem trabalhaste ? Quando ? Donde vieste ? O que fizeste depois da passagem á peluda ?... Queres contar-nos algo mais ?... Por enquanto blogar não paga imposto à Troika... E já agora, de que data é o programa ? Julho de 1969, pela referência à alunagem da Apolo 11 ? De que são as vozes que se ouvem ? 9 de junho de 1971, a avaliar pela notícia da flagelação de Bissau com um ou mais foguetões 122 mm, por volta das  21h45  ? 

Um grande Alfa Bravo (ABraço).
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 26 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9666: O PIFAS, de saudosa memória (11): Também havia relatos da bola, em março de 1970... (Arménio Estorninho)



Guiné 63/74 - P10344: Notas de leitura (398): Guiné-Bissau - O Estado da Nação (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 6 de Julho de 2012:

Queridos amigos,
Graças à disponibilidade e solicitude do Dr. António Duarte Silva, ando a ler documentos de incontestável interesse referentes ao período pós-independência. É o caso deste longuíssimo discurso de Luís Cabral, proferido em 1978, e que é uma grande angular sobre os atos de governação e as promessas de um mundo melhor que se estava a preparar.
Está aqui praticamente tudo, entre a fantasia e a realidade, os acenos a tempos melhores e a reprovação por comportamentos negligentes, até a denúncia de corrupção.
Obra indispensável para perceber o desbaratamento da credibilidade que o PAIGC trazia da luta armada.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau, o estado da Nação segundo Luís Cabral

Beja Santos

Consta no início do livro que se trata da versão integral do discurso proferido por Luís Cabral, secretário-geral adjunto do PAIGC e Presidente do Conselho de Estado da República da Guiné-Bissau, em 9 de Maio de 1978, durante a abertura da primeira sessão ordinária da II Legislatura da Assembleia Nacional Popular. Tem-se sérias dúvidas que realmente tenha sido assim, não se vê facilmente um discurso de 200 páginas, embora haja precedentes históricos eloquentes como os de Fidel de Castro e Samora Machel.

O importante é que Luís Cabral abordou os principais pontos da sua política e enquadrou as atividades governamentais com amplos detalhes. Por isso mesmo há que reconhecer que não é aceitável encarar o consulado de Luís Cabral sem dar atenção a este seu discurso tão amplificado.

O dirigente iniciou a sua comunicação falando de planeamento e destacou várias urgências: fazer-se o recenseamento da população (na altura já existia o anuário estatístico de 1977); foi feita referência à criação de empresas estatais nomeadamente, no comércio e na indústria e logo se reconheceu tais empresas tinham gente com pouca experiência de trabalho, nomeadamente na área da gestão; anunciou que já havia um projeto de criação de uma empresa de seguros, mas reconhecia estar-se numa fase de empasse e comentou a situação: “Não podemos pensar que qualquer cidadão pode ter um carro e não ter seguro nenhum. Há pessoas que andam na rua, correm o perigo de serem atropeladas e não têm nenhuma garantia. Principalmente nas coisas que prejudicam os interesses de terceiros, temos que obrigar as pessoas a fazer seguro”.

E passou o registo para o orçamento nacional, alertando a assistência para o problema do controlo dos impostos onde tinham sido detetadas inúmeras irregularidades: “Temos de ser capazes de levar o nosso povo a pagar impostos e de exigir que cada cidadão cumpra o seu dever perante o Estado. Não podemos pensar que o Estado vai pedir dinheiro a outros países para o Governo pode viver. Vamos tomar todas as medidas necessárias para conseguir o fundamental para as finanças do nosso Estado. O nosso Estado não pode continuar a viver como nestes anos que passaram, com encargos de 1 milhão de contos e com receitas de metade. Para o nosso Estado ter crédito no mundo, para os organismos internacionais nos ajudarem a sério, temos que ter uma vida financeira sã, temos de ser capazes de ter na nossa terra dinheiro nosso para pagar as nossas despesas”.

Mais adiante, teceu considerações sobre o Banco Nacional: “Sabemos quantas dificuldades temos com dinheiro estrangeiro, porque ainda não exportámos quase nada, o nível das nossas exportações ainda não permite importar muitas coisas. Mas não podemos pensar em deixar de importar. O Banco Nacional não pode ficar na posição de informar se há ou não há dinheiro para comprar coisas no estrangeiro. O banco tem que participar ativamente na busca de soluções que nos permitam viver estes próximos anos, que vão ser difíceis. O banco tem que ser capaz de garantir matéria-prima para as nossas indústrias. Não podemos fazer uma fábrica que depende de matéria-prima importada, como é o caso da fábrica de espuma, por exemplo, ou da fábrica de plásticos, e depois deixá-las paradas por falta de matéria-prima”. E sugeriu que era necessário avançar com um projeto de criação de um banco de crédito e desenvolvimento. Falando da melhoria das condições dos camponeses, chamou a atenção para as culturas industriais indispensáveis para obter divisas e para o equilíbrio da balança comercial. Referiu que estava em conclusão a elaboração de uma carta de vocação dos solos, instrumento indispensável para o desenvolvimento agrícola. Lembrou que era propósito do PAIGC fazer distribuição de sementes, tanto de mancarra como de arroz e passou em revista um conjunto de projetos: algodão e arroz, milho e hortaliças, tabaco, recuperação de bolanhas, voltou a insistir na fábrica de açúcar, tinham já sido feitos novos estudos pois inicialmente pensara-se num projeto desmesurado. Também o repovoamento florestal era dado como iniciativa prioritária, havia que não circunscrever a indústria da madeira ao bissilão, pau sangue e mogno, havia que ser capaz de plantar madeira mais barata para cofragens e caixotes, era um desperdício fazer essas cofragens com madeira de bissilão.

E daqui passou para a alimentação das populações. Fora criada uma empresa nacional de criação de aves, a Emavi. E lançou críticas: “Há coisas que não conseguimos compreender como, por exemplo, o caso do centro de Ilondé que destinámos à criação agrícola, para reprodutoras. Já nos deram as aves, mas aquela obra não avança. Há quase dois anos que se está a proceder a uma transformação simples. A Emavi tem grandes problemas com a venda de galinhas e de ovos. Há dois anos que oiço falar neste problema! Isto só serve para que as pessoas que querem favores, mesmo responsáveis ou dirigentes, vão lá perturbar a ordem, porque cada um acha que tem mais responsabilidades e que direito a mais ovos e mais galinhas. A Emavi tem de acabar com o problema dos que vão pedir favores”. Seguiram-se referências à criação de porcos e lançou novas críticas: “Não podemos permitir que nestes empreendimentos dos quais dependem a vida de centenas de animais haja desleixos. Lembro-me de que da primeira vez que visitei a criação de porcos, quando se chegava à porta da Veterinária, as rodas dos carros entravam dentro da água desinfetada. Pouco tempo depois quando voltei lá, já não havia água nem na porta nem no local dos porcos!”.

E o registo transferiu-se para o comércio, abordou complementarmente o comércio interno e o externo. A sua apreciação sobre os Armazéns do Povo foi lisonjeira e também dura, falou dos desvios e desfalques e até concretizou com um jovem que tinha tirado 600 contos dos armazéns do povo para os entregar a um vigarista que lhe tinha prometido multiplicar este dinheiro por três! Nessa altura a Socomi era uma empresa que só existia no papel, resultara da transformação da antiga Sociedade Comercial Ultramarina e tinha cerca de 1000 trabalhadores. Luís Cabral, face à importância social da Ultramarina, disse que havia que resolver este problema. E fez desfilar um conjunto de iniciativas, uma garagem Volvo, uma fábrica de bandas em Bolama, a criação da cooperativa de motoristas, o projeto da fábrica de automóveis Citroen, uma fábrica de montagem de carros em Bissau que seria o orgulho de todos os guineenses, o projeto de cerâmica de Plubá.

Parecia que a Guiné-Bissau depois de tantas dificuldades via abrirem-se as portas do progresso: a fábrica do Cumeré para o descasque da mancarra, a recuperação da Cicer, a Socotram, fábrica de parquetes, que já tinha nova direção, a fábrica de cerâmica de Bandim, há alguns anos em dificuldade de arranque, a fábrica de leite de Blufo, a fábrica de oxigénio e de acetileno, em Brá, mas o projeto do Cumeré era inegavelmente o mais ambicioso, iria permitir transformar toda a mancarra em óleo bruto. Lêem-se estas coisas escritas e mais de 30 anos depois procura-se as concretizações. E não pode haver desapontamento maior por tanto dinheiro deitado à rua, por tanta cooperação desviada dos seus interesses mais nobres, por tanto desalento que ficou entre aqueles que suspiravam e suspiram pelo desenvolvimento e pela dignidade da pessoa humana.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10335: Notas de leitura (397): A Viagem do Tangomau - Memórias da Guerra Colonial Que Não Se Apagam, de Mário Beja Santos (1) (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P10343: Blogpoesia (199): Os felizardos da guerra (Joaquim L. Mendes Gomes)


Os Felizardos da Guerra



Somos os afortunados
Das guerras de África.
Para onde, muito jovens,

Desafortunadamente,

Tivemos de ir…
Uns à força.
A maioria, não.

Regressámos todos,
Por boa sorte,
Num bojudo ventre,
Ao Cais da Rocha…
Lá muito atrás.
Dali partimos
Por esse mundo, fora,
Para a outra guerra,
Feita na paz:
Uma tarefa ingente,
De luta, sozinhos,
Construir o futuro
Que havíamos de ser.

Sem mais regimentos,
Sem noites de escala,
Sem mais cornetins,
Mais paradas de ócio,
Sem mais portas de armas…

Estava tudo aberto…
À nossa mão,
Com braços de ferro
E muito suor.

Essa luta passou.
Todos vencemos
A guerra da vida,
Muitas vezes, de sonho,
Tantas vezes, feroz.

E ao cabo de tudo,
Espalhados pelo mundo,
A mesma Glória nos une:
- A de estarmos bem vivos,
É sermos Avós…Imortais!


Ovar, 4 de Setembro de 2012
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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de setembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10332: Blogpoesia (198): Uma estranha maneira de dizer adeus (Luís Graça)

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10342: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (25): "O Aguardente"

1. Em mensagem do dia 3 de Agosto de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais três das suas histórias e memórias. Segue-se a primeira desta série:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (25)


O “AGUARDENTE”

O soldado n.º 2377 do 2.º pelotão da CCaç 675, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor, recebeu aquela alcunha (aguardente) durante o 1.º ciclo de instrução que lhe foi ministrada noutra unidade por onde passou. Quando deu entrada no RI 16, integrou-se na gloriosa CCaç 675, já sobejamente conhecido por esta alcunha; ninguém o conhecia pelo seu nome legítimo. Mesmo hoje, qualquer elemento da nossa Companhia recorda com amizade e carinho o aguardente… mas pouquíssimos sabem quem é o Silvestre F. V. Flor.

Creio bem que é fácil depreender qual é a origem desta alcunha que se sobrepõe completamente ao nome de nascimento, abafando-o por completo. Isto ainda hoje acontece, muito frequentemente nas nossas aldeias; muitas vezes a alcunha passa até de pais para filhos, e casos existem em que passa a ser registada como nome. É natural de Figueira de Castelo Rodrigo onde actualmente tem residência fixa numa volumosa vivenda com um jardim ao longo de duas faces da casa.

Regressou da Guiné em 1966; passados uns meses junto da família, emigrou para a França; radicou-se em Paris, onde viveu com a família (esposa e dois filhos) até se reformar.

Todos os anos vinha com a cara metade e os rebentos passar um mês de férias na sua terra natal, onde recentemente voltou a fixar-se.

Ninguém terá pensado nisso, mas a Guerra do Ultramar serviu também para desenraizar os mancebos das suas aldeias de nascimento, retirando-lhes a protecção que lhes era proporcionada pelas saias da mãe. Antes de 1961 a maioria dos rapazes da província assentavam praça num dos quartéis do distrito. Quanto à minha região a maioria ia para Aveiro; um ou outro ia até à Figueira da Foz ou Coimbra; conheci um que foi parar ao Porto. No resto do interior do país aconteceria sensivelmente o mesmo.

Lembro-me apenas de um jovem que, contrariando todas as regras da época, nos idos 1940, foi cumprir serviço militar em Tancos. Diariamente, todas as mães da aldeia juntavam-se em casa dos pais daquele “azarado” magala, para… chorar dolorosamente e rezar com muita fé por aquele militar porque foi “ desterrado para o fim do mundo”. Era assim que, com tristeza e dó, manifestavam a sua dor e se associavam ao pesar da mãe.

Os jovens, por norma, cresciam, casavam e morriam nas aldeias onde nasceram ou nas povoações circundantes. Lá diz o ditado: “quem longe vai casar ou se engana ou vai enganar”.

O Silvestre Fernando era fisicamente bem constituído, robusto e duro; era um puro beirão (da alta); estatura pouco mais que média, sempre bem disposto, alegre e folgazão; era um desenrascado nato, sempre pronto a ajudar os outros a libertarem-se dos apertos em que, voluntariamente ou não, haviam caído. Tinha conversa fácil, atilada q.b., tinha um bom poder de argumentação – o pobre podia abandonar a porta sem esmola… mas não ia sem resposta. Naquela época, com 22 anos, já o cabelo rareava (talvez pelo efeito do capacete); hoje com o pouco “pelo” que lhe resta, usa um rabo-de-cavalo; faz-lhe falta um brinco… como lhe assentaria bem!

Durante o tempo que permanecemos em Bissau – cerca de mês e meio – os soldados andavam todos com os nervos em frangalhos, à flor da pele, emocionalmente descontrolados, porque, em vez de aferrar em Moçambique, como previsto, aportaram a Bissau! Autêntico descalabro!

Como consequência, os soldados desentendiam-se a todas as horas, por tudo e por nada e, com frequência, defendiam a sua dama… à bofetada.

O Flor – mas que flor! – e outro soldado desentenderam-se e agrediram-se mutuamente. Como estes casos eram bastante frequentes e não se via o fim da meada, o capitão Tomé Pinto procurou pôr água na fervura: ordenou, sem citação em O.S., que eu instaurasse um processo disciplinar. Ouvi os arguidos e testemunhas e elaborei cuidadosamente “a justa” sentença que se segue:

O Silvestre, porque provocou a contenda, é punido com cinco dias de detenção; o Frazão porque não soube evitá-la, cumpre três dias de privação de saída. Com estes castigos, as suas cadernetas continuaram “limpas”.

As admoestações foram afixadas em local bem à vista de todos para que se apercebessem que passava a haver castigos para quem usasse a força para decidir desentendimentos.

Todos acharam graça aos castigos aplicados! O certo, porém, é que a sentença resultou em pleno – todos passaram a entender-se bem e sem uso da força.

Numa bela tarde soalheira, em Binta, o Verges Flor foi protagonista dum acontecimento insólito, inimaginável.

Tínhamos surripiado umas dezenas de vacas aos “Turras” do Oio; no Domingo seguinte houve festa brava: ferrámos o “nosso” gado!

Uma das “nossas” vacas que marrava estupidamente, foi a última a ser ferrada; houve lugar a toureio (ameaça de) e o aguardente, sem saber como, fez uma pega… mirabolante. Ele distraiu-se, na “arena”… a vaca atacou furiosa e sorrateira; já sem tempo para fugir… curvou-se para a frente e… embarbelou-se – uma pega magistral. Este acto, a todos os títulos ousado, não saiu da memória nem do álbum de fotografias do Silvestre. Sempre que é oportuno, ele relembra a sua arte em tauromaquia, especialmente aquela pega prodigiosa e audaz. E ele nem era da região de touros, toureiros ou pegadores.

Enquanto esteve em Paris, o aguardente vinha a Portugal no mínimo uma vez por ano.

Durante umas férias da emigração, foi passar uns dias ao Algarve, com a família; no regresso visitou-me no Hotel Dom Carlos Park, onde pernoitou. Tivemos oportunidade para ali recordar as suas habilidades e façanhas, falámos da nossa passagem pelo norte da Guiné. Ninguém esquece aqueles anos! O sacrifício foi grande, mas… resta a amizade cimentada na guerra.

Nunca participou nas nossas reuniões, porque vinha a Portugal sempre no Verão. Mas tomou parte numa “mini” confraternização; - Contando com as esposas, éramos dez – num restaurante em Vilar Formoso, sito no rés-do-chão da vivenda do companheiro Espinha. Foi uma “mini” impagável, inesquecível. Os participantes eram divertidos e estavam inspirados. O Espinha (cara-rota) com os seus pés chatos foi o bombo da festa; todos malharam nele mas o aguardente também ouviu das boas!.

O Silvestre Flor veio algumas vezes de mota de Paris até Figueira de Castelo Rodrigo.

Um dia o Flor, talvez para fazer jus à sua alcunha, entendeu que devia entrar de mota no jardim da sua casa, sem passar pelo portão; não ousou saltar sobre o muro com a mota. Arranjou uma prancha de madeira larga q.b., suficientemente comprida e resistente. Apoiou-a, inclinada, sobre o muro e subiu por ela com a mota; a ponta superior da prancha ficou cerca de meio metro ou mais dentro da vedação; devido ao peso na extremidade superior, a prancha virou por cima do muro, abatendo-se pesadamente sobre a cabeça já descabelada do incauto Silvestre, que caiu inanimado. Recuperou em escassos segundos! Aprendeu logo como não devia passar por cima do muro… não repetiu a experiência.

É pai de dois filhos, um casal; ela é professora do ensino secundário e o filho vive em França.

O Silvestres sente-se orgulhoso porque casou com uma moça nascida em Ligares, aldeia contígua a Maçores, a Terra Natal do Gen Tomé Pinto. Até isto serve para se colocar nos píncaros!

Já me prometeu estar presente na nossa confraternização do próximo ano. Não costuma faltar à palavra dada. É um bom pagador de promessas! Costumava ser!

Lisboa Junho 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10075: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (24): O Soldado Lua